A leitura musical no ensino do Piano

May 18, 2017 | Autor: Edgard Sales | Categoria: Piano Pedagogy
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Conservatório de Música de Calouste Gulbenkian de Braga Centro de Pesquisa Pedagógica do Departamento de Teclas e Percussão Prof. Ivete Rebelo, coordenadora

A leitura musical no ensino do Piano (1992) por Edgard Jorge Sales1

! Trabalho desenvolvido do âmbito do Departamento de Teclas do Conservatório de Música de Calouste Gulbenkian de Braga em 1992.

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Docente do departamento de Teclas, diplomado com o Curso Superior de Piano.

A presente edição foi realizada a partir do original, em maio de 2017 com o propósito de colocar este trabalho online. Preservou o texto original de 1992 bem como as fontes citadas na altura. Não segue o acordo ortográfico.

Acrescenta-se nesta nota um agradecimento omisso no texto original à Prof. Doutora Maria de Lourdes Álvares Ribeiro pelo apoio e orientação prestados na feitura deste trabalho.

O autor. !

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Índice

Introdução.

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1. Vectores visuais da leitura musical.

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1.1 A condição visual.

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1.2 A partitura é um gráfico.

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1.3 A prévia observação.

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2. Vectores auditivos da leitura musical.

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2.1 A condição auditiva.

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2.2 A partitura é um texto.

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2.3 A leitura da partitura como um texto.

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2.4 A audição prévia.

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3. Vectores motrizes da leitura musical.

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3.1 A condição psico-motriz.

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3.2 A motricidade na aprendizagem do piano.

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3.3 A motricidade e a leitura no piano.

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Considerações finais.

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Bibliografia

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Introdução. Devido à relativa facilidade em produzir som, às suas potencialidades polifónicas e tímbricas, o piano transformou-se, em dois séculos, no instrumento musical mais popular de nossa civilização.

O ensino do piano, ao longo de sua história, tem sido alvo de vários trabalhos, quer práticos, quer teóricos, de autoridades como Czerny ou Cortot. Este ensino é muitas vezes ministrado individualmente, embora abundem os casos de aulas para classes inteiras, por exemplo, em master classes. Não subestimando o interesse didático que norteia o ensino em grupo, a progressão prática do aluno necessita de um contacto pessoal e direto entre a entidade artística na pessoa do professor e a personalidade emergente do sujeito pedagógico.

Reconhecemos pois a delicada situação do professor de piano, quando este tem de adaptar sua pedagoga em função de cada aluno. Na linha desta problemática, surge o método genéticoestrutural, em oposição aos tradicionais de Durkheim e de Alain, prevendo uma adequação ao desenvolvimento, estrutura psicológica e projeto pessoal do aluno. Sendo pois o piano um instrumento solista, a realização artística do aluno não poderá advir de uma estratégia massificada, antes da prontidão do professor em diagnosticar e agir perante os problemas revelados pelo jovem solista, a todos os níveis. Então, a pedagogia do piano abarca já as componentes didáticas da matemática - dedutivas, analíticas, lógicas, da língua - estruturais, lexicais, e também do teatro estético-temporais e discursivas.

Ainda sobre pedagogia, a aprendizagem assenta numa cadeia de procedimentos mentais: a atenção, a reflexão e a memorização, considerando-se a reflexão como o retorno aos esquemas operatórios adquiridos pela atenção - de normas e regras armazenadas na consciência, como imagens visuais (preferencialmente lógico-matemáticas) ou auditivas (especialmente léxico-linguísticas). Como veremos ao longo deste trabalho, a aprendizagem do piano recorre plenamente a estes procedimentos mentais. Como executante e solista, o pianista coloca no sentimento de antecipação (estimulador do processo de memória) as suas aquisições, resultando daí um repertório prodigioso (pelo menos em potencial!). Para uma rentabilização dos processos de reflexão e de memória, todo o cuidado segue para a exploração da atenção do aluno. La Garanderie afirma que a atenção é a atitude mental, cuja boa execução é a origem pedagógica da pedagogia (1988, p.23). 4

Perante problemas como a opção pela qualidade ou quantidade, que nos é imposta por vezes, por programas que não levam em conta as assimetrias psico-genéticas dos alunos, e questões sobre se a leitura musical implica prévios conhecimentos teóricos, ou o inverso, é importante refletir sobre quais os objetivos de trabalho numa aula de piano. Neste contexto, onde a atenção assume vital importância, pretende o presente trabalho debruçar-se sobre um dos aspetos fundamentais do ensino do piano: a leitura.

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1. Vectores visuais da leitura musical. 1.1 A condição visual. O pensamento humano, nas suas funções perceptivas, reflexivas e memorizadas , é conduzido através de imagens visuais e /ou auditivas. Tal processo difere de indivíduo para indivíduo e , somente os mais inteligentes, ou beneficiários de pedagogias propícias usam satisfatoriamente em suas funções mentais, os dois tipos de imagens. Geralmente, os alunos inclinam-se para o uso de esquemas visuais ou auditivos.

Uma predisposição para o visual poderá surgir quando o aluno sofre uma deficiência auditiva. Apesar de frequentes, e ao contrário das visuais, as deficiências auditivas passam desapercebidas aos pais e professores, devido à sua dificuldade de detecção. A mesma predisposição poderá aparecer por influência do meio. Tal acontecerá se o sujeito tiver suas motivações centradas em áreas de interesse onde predomine a retenção de imagens visuais. Poderá então cultivar o emprego do visual, mas o inverso também é possível, isto é: devido a uma predisposição para oi visual, o sujeito preferirá áreas de predomínio visual.

Uma compreensão visual não é explícita, uma vez que não capacita o sujeito a demonstrar o conhecimento a outrem por processo verbal, embora seja capaz de demonstrar-lo por atitudes práticas. A lógica indutiva do indivíduo visual beneficia-o nos domínios plásticos, matemáticos e científicos. Sendo o seu sentido artístico sobretudo plástico, as analogias entre música e pintura (por exemplo) serão constantes, e deverão ser exploradas pelo professor. Neste contexto, poder-se-á afirmar que o visual compreende melhor a forma que propriamente o conteúdo.

1.2 A partitura é um gráfico. O sistema de pautas do repertório pianístico, mas também o do sinfónico, está organizado segundo um sistema de coordenadas altura-duração, e complementado por sinais dinâmicos e outros.

O aluno de piano associa, num primeiro momento que, quando a sucessão de notas sobe no pentagrama, ele deverá procurar as referidas notas cada vez mais à direita no seu teclado. Como curiosidade, esta troca de eixos (de vertical para horizontal) encontra um argumento biológico 6

precisamente no órgão de visão humano, onde o cristalino simplesmente inverte a imagem captada pela pupila. Recebido o resultado na retina, os impulsos seguem pelo nervo ótico, chegando ao cérebro e sofrendo uma nova inversão simétrica à primeira.

Num segundo momento, apercebe-se da posição relativa das notas em função do seu valor

! sendo reprovável uma escrita que não o possibilite como, por exemplo:

!

Esta relação espaço-tempo completa o sistema de coordenadas bi-dimensional altura-duração.

A necessidade de comunicação escrita, e com o advento da prática do canto gregoriano, a música ocidental atribui a primazia aos desenhos formados sobre a altura dos sons. O nascimento da polifonia canaliza as atenções dos compositores para as relações modais entre as várias vozes e, já no barroco, a harmonia começa a ter predomínio sobre o ritmo (recorde-se como exemplo o coral). Embora o termo dodecafonismo seja aplicado em 1923 à técnica de Schoemberg na Suite para piano Op. 23, a atonalidade em Pierrot Lunaire (1912) - marco fundamental nas orientações musicais do século XX - não será mais que uma reformulação do sistema tonal clássico, uma espécie de pantonalismo segundo o compositor, não conotando tal atitude com um negativismo inerente à palavra atonal. Porém, uma reordenação democrática do tonal que inclua técnicas definitivamente não tonais, como o Sprechgesang - que em Pierrot Lunaire traduz perfeitamente o decadentismo expressionista daquela época - leva em consideração a colocação em igualdade de circunstâncias da altura, do ritmo e especialmente do timbre, da intensidade. Este facto, aliado à necessária emancipação da música em relação aos instrumentos tradicionais, levou ao aparecimento de uk sem fim de técnicas de escrita. Alguns destes sistemas, na época da electro-acústica e da informática, primam pelo rigor na percepção visual de todas as características sonoras. Frequentemente, requerem do executante um estudo prévio da simbologia empregue, como se de uma carta topográfica se tratasse.

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1.3 A prévia observação. A professora elogia o trabalho que Ana apresentou. Na verdade, a peça de piano da Aa tem sido bastante mastigada nas aulas, atingindo agora um nível considerado bom para a professora. Como recompensa, a professora dá à aluna uma nova peça que diz ser muito bonita. Sem mais, coloca a partitura na estante do piano e, a trabalhar!

É frequente encontrarmos procedimentos análogos ao mencionado, em muitas áreas do ensino. Apesar de indispensável, o trabalho com o professor, por si só, parece-me, em termos de orientação pedagógica, insuficiente. É importante que a capacidade de observação do aluno seja estimulada.

O momento em que o aluno toma, pela primeira vez, contacto com uma determinada peça, deve ser grandemente explorado pelo professor. Um olhar ao título, ao compositor, às dimensões da obra e, finalmente, uma audição, deverão constituir um cartão de visita de todo o novo repertório. Tal procedimento fornece os elementos básicos para que o aluno possa formar a sua própria percepção exterior da obra.

Presentemente, crê-se que a aprendizagem pode ser grandemente reforçada por um processo indutivo. O professor deve respeitar o processo de assimilação do aluno, uma vez que a organização do pensamento e do saber são internas ao sujeito. Deste modo, o aluno parte para a percepção interior (musical, se quiser) da obra, por um processo indutivo de observação, auxiliado pelo feedback aluno-som.. Quando utilizado, um diálogo aluno-professor é meramente formativo dos mecanismos de observação, guiando o aluno para que este alcance os pontos chave da obra, pelo contraste visual das formas. Este procedimento produz um valioso estímulo à observação. Graças a ele, o aluno, esboçando prioridades e pontos de referência, rentabiliza o seu estudo com uma análise prévia da obra.

Com o desenvolvimento da sua observação, o aluno terá condições para tomar posições críticas, sejam elas certas ou erradas. O professor deverá abrir caminhos opcionais ao aluno, sempre que este esteja em condições de avaliar as consequências técnicas ou artísticas as que tais opções implicam. Louis Not escreve:

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É desejável que o aluno seja confrontado com a diversidade de julgamentos que outros puderem emitir sobre assuntos literários, científicos, éticos ou estéticos, que descubra e analise as diferenças, mesmo as oposições, mas que também defenda o seu. (1991, p.42).

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2. Vectores auditivos da leitura musical. 2.1 A condição auditiva. Anteriormente, estabelecemos os dois tipos de imagens usados pelo processo mental: o tipo visual e o auditivo. O aluno recorre predominantemente a imagens auditivas quando estas, por alguma circunstância interna (deficiência visual), ou externa (ensino verbalizado, por exemplo), se tornam mais abundantes ou mais facilmente assimiláveis para o aluno.

Os processos lógicos visuais e auditivos têm a mesma direção, mas sentidos opostos. O visual apercebe-se primeiramente do global, do genérico, da forma, partindo depois para o pormenor. O auditivo capta primeiro o conjunto - ou parte dele - de pequenos fragmentos da mensagem, deduzindo depois o propósito do todo. A assimilação da mensagem literária é rentabilizada com processos auditivos. O sujeito, ao ler, poderá fazê-lo em voz alta, assimilando o que ouve da sua própria voz ou, se não o fizer, recorre à imagem auditiva que guarda de cada palavra, compondo mentalmente o efeito sonoro daquilo que lê.

No campo musical, e sendo a música, acima de tudo, uma linguagem, o emprego que o aluno faz do seu ouvido na elaboração de imagens auditivas é de vital importância para o rendimento do seu estudo. Por isso, creio também que o efeito do ouvido absoluto poderá ser aproximado, senão adquirido, maximizando a atenção e observação auditivas, de forma que as imagens sonoras possam ser memorizadas com crescente fidelidade quanto à frequência exacta dos sons que as compõem.

2.2 A partitura é um texto. Se a música é uma linguagem com frases, períodos, pontuações, poderemos considerar a sua expressão escrita como um texto? Será a leitura da partitura um processo análogo - se bem que mais complexo - à leitura de um texto?

Na Grécia do Período Arcaico, o conceito de musiké implicava a unidade da língua com a música. Se o ritmo acentual germânico se baseia numa sucessão de sílabas tónicas e átonas, os gregos instituiram uma sucessão de elementos curtos (podendo estar acompanhados por uma elevação do pé - ARSIS) e longos (com o descanso do pé - THESIS). No verso grego, abarcado pelo musiké, 10

para além dessa sucessão rítmica de elementos para-silábicos, utilizava-se um movimento de elevação sonora abrangendo aproximadamente um intervalo de quinta, convertendo a linguagem em melodia.

Nos finais do período arcaico, e durante o período clássico, a escrita musical é totalmente alfabética. Na notação instrumental, o signo designa um determinado som central. Com um expoente, o mesmo signo designará uma oitava superior. Girando o signo, obteremos o som alterado meio tom. A notação para a música vocal, no alfabeto jónico, aplicando o expoente com o mesmo propósito da notação instrumental, estabelece alfa para o grau diatónico fundamental fá, sendo beta a designar fá sustenido, e gama o enarmônico duplamente alterado (fá duplo sustenido). Como resultado, o cantor deverá ler dois textos simultâneos: um indicando a melodia, outro a letra da melodia.

Na Idade Média, uma indicação alfabética dos sons é substituída pela colocação de neumas num sistema de linhas. Franco de Colónia, no seu tratado Ars Cantus Mensurabilis (1280), estabelece a notação mensural que, ao definir ritmicamente cada nota, aperfeiçoa de forma precisa a representação escrita do neuma. Embora os signos resultantes da notação mensural sejam os herdeiros dos signos helénicos, definem o som que representam, não por si próprios, mas pela posição que ocupam na pauta.

2.3 A leitura da partitura como um texto. Considerando a vasta gama de signos (figuras) nas várias posições (notas) como uma espécie de alfabeto musical com pontuações e expressões específicas, será possível estabelecer analogias entre este texto musical e o linguístico, bem como entre os respetivos processos mentais de leitura. Nos dias de hoje, o acto de ler ocorre com tanta frequência e é tão imprescindível, que nem sequer temos consciência da quantidade de imagens visuais - e principalmente - auditivas que estão em nós memorizadas para proporcionar este acto, de modo quase instintivo. Dentro deste conjunto de imagens, destacam-se aquelas que atribuem aos signos e às combinações entre eles uma determinada expressão sonora. Estas imagens, de índole auditiva, constituem a fonética.

Graças à fonética, é-nos possível reproduzir verbalmente ou mentalmente aquilo que lemos, identificando também as palavras e frases por meios auditivos, mais adequados aos textos que os meios visuais. Transladando os conceitos fonéticos ao texto musical, constatamos que a leitura da 11

partitura é imediata quando as imagens auditivas dos fenómenos rítmicos, das relações intervalares, e dos quesitos expressivos, estão presentes na memória do sujeito. Quando um aluno executa uma leitura à primeira vista, limita-se a reproduzir no piano as ideias auditivas do que lê, e os resultados serão tanto melhores quanto mais correcta for a sua capacidade de prever e criar o efeito sonoro. Tal capacidade foi-lhe conferida pelo leque de imagens visuais e auditivas que, interligadas entre si, formam a bagagem fonética do músico.

2.4 A audição prévia. Tendo já referido a importância da prévia observação do novo repertório, e o estímulo que produz no aluno uma prévia audição da nova peça, preferencialmente executada pelo professor, entendo ser oportuno aludir a esta interessante atitude à luz do que foi exposto sobre a leitura e a assimilação auditivas.

Terá algum fundamento opinar que uma exemplificação excessiva por parte do professor poderá atrofiar a capacidade de iniciativa e de pesquisa do aluno? Isso né mais relevante se estivermos a falar da aquisição de imagens sonoras. Não será idêntico o efeito didático de uma aquisição destas imagens sonoras pela imitação ou pela leitura? Quando o professor exemplifica, o aluno assimila uma imagem esteticamente correta que servirá de exemplo para situações futuras onde a partitura o proporcionar. se o aluno não tem em mente uma fonética e uma estética suficientes para uma leitura válida da partitura, e se o professor prescindir do recurso à imitação, poderá optar pela leitura orientada. A leitura orientada leva o professor a guiar o esforço de leitura, pesquisa e interpretação do aluno, para que este atinja um determinado resultado sonoro.

Nos finais do século XIX, surge uma corrente que levantará questões muito sérias sobre o papel do adulto na formação da criança. A denominada Escola Nova relevava a independência cultural da criança em relação ao adulto. Reprovava a aprendizagem demasiado orientada, considerando ideal que os alunos exerçam uma auto-instrução, levantando, eles próprios, os problemas seguindo a lei do efeito: toda a tentativa bem sucedida tende a ser repetida, a que falha não é retomada e acaba por desaparecer. Aplicando estes princípios ao piano, a exemplificação seria contraproducente e a própria escolha do repertório caberia ao aluno.

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Numerosos pontos fracos são apontados à Escola Nova, nomeadamente os limites de experiência corrente, e inadequação ao meio cultural dos nossos dias (onde o acesso às fontes de informação é imprescindível), a impossível recapitulação da experiência ancestral. O aluno não pode observar tudo, nem descobrir tudo com base na sua limitada experiência, correndo o risco de não conseguir sair do seu limitado universo. Neste contexto, a imitação das imagens sonoras, quando realizada com o propósito de capacitar o aluno a uma maior facilidade em interpretar partituras no futuro, pode ser enquadrada na estratégia da leitura orientada.

G. Compayré, a propósito de uma orientação positiva e saudável por parte do professor, escreve:

“Uma lição bem dada, qualquer que seja a disciplina, proporciona aos alunos os resultados de um longo trabalho da inteligência humana. Poupa-lhes lentos e penosos esforços de pesquisa pessoal. Em poucos minutos resume o conteúdo de um grande livro; desenvolve uma ciência já pronta.”2

2! Não me foi possível encontrar a referência deste texto.

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3. Vectores motrizes da leitura musical. 3.1 A condição psico-motriz. Cada vez mais, encara-se a família, não como complemento da atividade educacional da escola, mas como, ela própria responsável, quando bem orientada, pelo apetrechar da criança para que esta possa crescer, no sentido lato do termo. A escola é, juntamente com a família, interveniente ativo neste importante vetor na evolução pessoal e curricular que é a educação psico-motriz.

Em jeito de definição, a psicomotricidade orienta o indivíduo no meio, e dá-lhe também a noção do tempo. A identificação do próprio corpo e do que o rodeia, interiorização de conceitos como o aqui e o ali, o antes e o depois, a orientação espacial, o tacto e a conjunção destes e de outros fatores, condicionarão o crescimento da criança nos aspetos físico, intelectual, social e afetivo.

O homem, como ser pensante, com um grau de inteligência comparativamente superior ao dos restantes animais, deve o seu intelecto a uma atitude psico-motriz muito complexa e desenvolvida. Estudos sobre a evolução do homem mostraram que, graças à habilidade manual característica dos símios, a elaboração de utensílios pelos australopitecídeos provavelmente está conectada ao aumento da capacidade craniana, possibilitando por sua vez o aparecimento de inovações culturais, e consequentemente desenvolvimento intelectual. Forma-se um círculo de causa-efeito.

3.2 A motricidade na aprendizagem do piano. O principiar o estudo do piano é, no aspeto motriz, comparável a dar os primeiros passos onde um novo universo está à espera de ser explorado. O andar, subir escadas, sentar, correr, terá alguma equivalência ao tocar o dó-ré-mi, a primeira escala, o acorde, o arpejo. A primeira aula é um maná de descobertas! A sala, o piano, o enquadramento do piano na sala, a posição da professora face ao piano, e o banco à espera da criança. Depois, é o colocar do banco para trás, o sentar no banco, o ajustar do banco. Encarar pela primeira vez o teclado tem tanto de impressionante ou assustador (dependendo da maneira como o professor o apresentar). O facto de o teclado não ser completamente abrangido pelo horizonte visual da criança, apresentar somente duas cores e uma textura homogénea e de grande periodicidade, leva o aluno a confundir vezes sem conta o dó com o fá, ou a escorregar a nota uma oitava para um lado ou para o outro. 14

Os primeiros exercícios visam o treino dos movimentos básicos. Para este fim, existem vários métodos que seguem, entre si, percursos e objectivos diversos. Os métodos mais tradicionais começam por imobilizar o corpo com excepção dos dedos. Para estes, a questão do movimento do pulso ou do braço só é levantada aquando a primeira passagem do polegar ou a primeira escala. Evitam as teclas das alterações para não prejudicar o estatismo dos braços que, de outro modo, teriam de levar os dedos mais dentro no teclado. Os métodos contemporâneos suprimem este subaproveitamento dos movimentos corporais através da utilização em todo o teclado de clusters, glissandos e outros recursos. Utilizando uma escrita acessível, estes métodos estimulam, através de um maior movimento corporal, um grande empenho da criança na sua execução, uma memorização não só auditiva mas também motriz, e uma exploração tímbrica que, para um nível para-elementar, seria impossível por outro modo.

Se o aluno aprende os movimentos, deverá também aprender a evitá-los, doseá-los, escolher os ais adequados para cada desenho. No domínio do movimento, a escala poderá desempenhar um importante papel. Entre outras indicações, a prática de escalas corrige a posição das mãos, a correção do pulso no momento da passagem superior (3º e 4º dedos) e inferior (polegar), o legato, a junção de mãos, e o equilíbrio do tronco (quando praticada num extensão superior a três oitavas). Permite também um desenvolvimento dos músculos da mão (lumbricais) e do braço (flexores e extensores).

Associado à escala, o arpejo, ao alargar o movimento dos braços e pulsos, exercita a coordenação visual-motora (ou seja, a perfeita sintonia entre a visão do teclado e o movimento a ela subordinado), e o equilíbrio dos gestos, sob pena de um safanão sonoro.

Na verdade, o efeito sonoro depende totalmente da conjunção dos movimentos: ao articulações do corpo permitem que uma mesma tecla, ou agregados de teclas, possam ser tocados pelos dedos, pulso, braço, ou até mesmo pelo tronco, sempre com resultados distintos. Os efeitos da tensão ou do relaxamento corporal, influem decisivamente no modo como os músculos permitem que o corpo articule, condicionando desta forma a sonoridade.

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3.3 A motricidade e a leitura no piano. É unanimemente aceite que o domínio da leitura e da escrita só são possíveis com um bom desenvolvimento psico-motriz. A desordem espaço-temporal provocada pela falta da psicomotricidade, leva a criança a confundir grafias semelhantes (q e p, por exemplo), e a apresentar uma ineficiente localização e descodificação.

A aprendizagem do piano, sendo através da leitura, torna-se complexa para o aluno, uma vez que a este é requerido o domínio simultâneo da partitura, do corpo e do teclado.

A partitura canaliza grande parte da atenção do aluno, e tornou-se num dos objetos do presente trabalho. O corpo, espaço gerador do movimento resultante da interpretação, e onde ocorrem todos os impulsos e reflexos provocados pela observação da partitura. O teclado, espaço específico e concreto onde reside o objeto receptáculo do movimento: as teclas.

Neste universo complexo, a motricidade do jovem pianista desenvolve-se com a progressiva associação destes espaços no plano rítmico (as figuras e a velocidade - curto e longo), no plano melódico (as notas e a amplitude - agudo e grave), e nos planos dinâmico e expressivo.

É frequente acontecer que o ritmo indicado pela leitura seja secundado por outro mais cómodo ao movimento. Um exemplo simples ocorre com o prolongamento instintivo da nota que antecede uma passagem de dedo. Para a correção deste erro, levamos o aluno a executar um movimento periódico (o bater do pé, por exemplo), para depois, conciliando os dois movimentos e sintonizando-os, executar a passagem. A execução deste movimento periódico será mais proveitosa se executada pelo aluno em lugar do professor. esta troca de sujeitos possibilita, não só uma apreciação auditiva como também - e principalmente - motriz. Tal é especialmente indicado quando surge ua dificuldade de assimilação auditiva, derivada de circunstancialismos de vária ordem.

Como o movimento é o resultado de estímulos (impulsos e reflexos), alguns deles provenientes da observação do meio exterior, também o acto de tocar piano é diretamente condicionado pela leiturta ou pela memória que guardamos dela. Não me refiro ao significado dos símbolos musicais, mas ao efeito psicológico produzido no inconsciente por alguns factores: a densidade, a estabilidade, a inconstância rítmica, o andamento e a agógica, os condicionalismos técnicos. 16

A grande concentração de símbolos aumenta a complexidade e a dificuldade em realizar as funções de observação e descodificação, podendo gerar, como consequência, um aumento de tensão. Já a constância de elementos preponderantes facilita a descodificação, regula os impulsos, sugere a distinção. Ritmos anacrúzicos sincopados ou com quiálteras, põe em causa a pulsação, dificultando a execução. O andamento e a agógica, responsáveis pela velocidade do movimento e, consequentemente, pela velocidade da leitura e observação, afectam directamente a complexidade psico-motriz da execução, para além de alterarem o estado de espírito do interprete. Também a inadequação da partitura às condições físicas e técnicas do aluno produzem neste uma grande rigidez nos movimentos, comprometendo o resultado final.

Resta salientar o papel do gesto na memorização. A memória manual, através de passagens de dedos, gestos de pulso, etc., contribui decisivamente para a retenção mental dos fraseados, dinâmica e expressão.

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Considerações finais. Ao concluir o presente trabalho, fica demonstrado o propósito do autor de salientar a importância do professor na aquisição, por parte do aluno, dos métodos de leitura. Ter sempre em mente a teoria associada aos processos de leitura, capacita o docente a diagnosticar cientificamente o subaproveitamento de muitos alunos na disciplina de piano.

Ao referir as várias áreas em que a leitura toca diretamente a aprendizagem e execução do instrumento, é nosso propósito sublinhar o elo que une a teoria à prática e o saber à arte. Também a organização da escrita musical cria um grande impacto nas concepções estéticas da obra, influenciando de maneira indiscutível a interpretação da mesma.

Desejamos que os docentes de piano, apoiados por uma disciplina de solfejo que verdadeiramente eduque arte, tenham como autêntico propósito didático o apoio bem sucedido daqueles alunos que apresentam problemas ao nível da memorização, do gesto, da pulsação e da interpretação.

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Bibliografia BOUSSEUR, D.; BOUSSEUR, Jean-Yves. Révolutions Musicales. Collection Musique ouverte.

CUENCA, F.; RODAO, F.. Cómo desarrollar la psicomotricidad en el niño. Narcea Ediciones.

DE LA GARANDERIE, A. (1989). Pedagogia dos Processos de Aprendizagem. Edições ASA.

JAININ, R. The Human Body. 3

MICHELS, U. (1989). Atlas de Musica I. Alianza Editorial.

NOT, L. (1991). Ensinar e Fazer Aprender. Elementos de Psicodidática Geral. Edições ASA.

STEPHAN, R. (1968). Música. Editora Meridiano.

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Não me foi possível encontrar a referência desta obra.

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