A Lenda da Mula Sem Cabeça

July 24, 2017 | Autor: Sonia Vaz | Categoria: Education, Literatura, Psicología
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12/11/2010 -- 17h32
A LENDA DA MULA-SEM-CABEÇA

*" ... o símbolo máximo da sombra patológica como expressão da dissociação psicótica do self cultural do Ocidente durante sua cristianização foi a matança dos hereges na fogueira e na forca. O delírio psicótico-paranoide, apesar de gravemente enfermo, ainda protege o ego porque projeta no outro as tendências ameaçadoras do self. Quando porém o próprio delírio projetado é também exercido francamente pelo ego, a gravidade da patologia se torna extrema, pois é o sinal de que a defesa parnóide está fracassando e os conteúdos projetados estão dominando o ego. Foi o aconteceu com a Inquisição."

Era uma vez, numa pequena cidadezinha do interior, uma mulher muito linda que se apaixonou pelo padre de sua paróquia. E este, não resistindo aos seus encantos, se entregou.

Espere um pouco. Foi assim mesmo? Talvez tenha sido assim: Certa vez, um padre da paróquia de um distante povoado, se apaixonou pela mais bela de suas fiéis e ela não resistindo à paixão, se entregou e eles se amaram dentro da igreja, várias e várias vezes.

Ou ainda, aconteceu simplesmente assim: Um homem e uma mulher se amaram. Mas, devido a ele ser padre, os amantes foram amaldiçoados.
E desse modo surgiu a lenda da Mula-Sem-Cabeça.

No entanto, até hoje a gente não sabe se foi o padre ou a linda mulher que sofreu a maldição de se transformar em uma mula. Sinceramente, acho que foram os dois.

Talvez, a princípio, tenha sido somente ela, por que naquela época a culpa recaia sobre a mulher. Geralmente a mulher era a pecadora, a bruxa malvada que seduzia o padre.
Posteriormente, o padre também acabou por pagar o seu quinhão diante da moral cristã. E é por isso que a lenda ganhou muitos nomes como: Burrinha do Padre; Padre-Sem-Cabeça; Mula Preta; e Marola, no México.
Parece que sua origem remonta o tempo medieval da "caça as bruxas". Os portugueses trouxeram essa história para o Brasil por volta do século XVI. Há versões dessa lenda em muitos países tais como Argentina, Espanha, México, etc. Sabe-se que a versão norte americana do Cavaleiro-Sem-Cabeça, é apontada como uma variação do mesmo tema.

Parece que a Mula-Sem-Cabeça se originou da mitologia dos povos da Península Ibérica e foi trazida de lá, pelos espanhóis e portugueses. Sobretudo, essa lenda que se tornou popular é oriunda do paganismo latente de algumas práticas populares da época.

Ela foi adaptada pela sociedade judaico-cristã a fim de moralizar comportamentos que seriam inaceitáveis pela nova sociedade emergente. Daí também ela ser equiparada às lendas das bruxas na Europa Ocidental.
Escolheu-se a mula e não outro animal qualquer por que ela representa o meio de locomoção de uso exclusivo dos padres do século XII.
Aqui no Brasil ela é mais popular nos estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, embora seja conhecida por todo o país.

A Mula –Sem- Cabeça faz suas aparições nos povoados e naquelas pequenas cidades onde há uma praça em frente à igreja e as casas ao seu redor.
Em toda passagem de quinta-feira para sexta-feira ela escolhe uma encruzilhada e ali se transforma na besta.
Ao voltar a si, a mulher amaldiçoada estará completamente nua, suada e exalando um forte cheiro de enxofre em alusão ao demônio que quando surge deixa no ar o cheiro desse elemento químico.

Se acaso alguém passar correndo diante de uma cruz bem a meia-noite, a Mula-Sem- Cabeça aparece e vai atrás, trotando com seus cascos de prata e mesmo que se diga que ela não tem cabeça, dá para ouvir o som de seu relinchar e o fogo saindo de suas ventas. De acordo com aqueles que já a viram, é um espetáculo apavorante.
Às vezes, parece chorar como se fosse uma pessoa e outras vezes seu galopar é acompanhado por longos relinchos.
Sua mente também sofre alterações, assim, mesmo que ela tenha sido uma mulher de modos delicados, com a transformação, ela enlouquece, mata o gado, assusta as pessoas, destrói e faz confusão.

Na noite em que se transforma, deverá percorrer sete povoados a partir daquele onde ocorreu o pecado e se de repente, alguém cruzar seu caminho, terá seus olhos, unhas e dedos devidamente arrancados, por isso, reza a crença do povo, que ao vê-la deve-se deitar de bruços no chão e esconder bem os olhos, as unhas e os dentes para não ser atacado.

Quando surgir alguém com muita coragem, o que ainda não aconteceu, e tirar os freios de ferro de sua boca, o encanto será desfeito e a Mula-Sem-Cabeça voltará a ser gente totalmente livre da maldição. Grata, ela se casará com seu bem feitor.

PERSPECTIVA ANALÍTICA JUNGUIANA:

A pessoa amaldiçoada se transformou numa mula por que, de acordo com a crença cristã, uma pessoa que se deixe levar pelo desejo de amar um padre só pode ser um verdadeiro animal.
A mula ficou sem a cabeça por que foi tomada de paixões que são representadas pelo fogo.
De acordo com a moral cristã, a mulher que se apaixonou pelo padre ou o padre que se apaixonou pela mulher, "virou" sua cabeça e cometeu um ato "descabeçado" ao se deixar possuir pela paixão, por isso essa pessoa passa agora a ser representada por um animal, uma mula, um ser que não pensa de modo racional e que não se administra pela moral judaico-cristã como quer a sociedade.
A mula representa as forças instintivas que tomaram conta do comportamento da pessoa considerado como sendo um grande pecado.
Seus cascos de prata são uma alusão à lua que, por sua vez, nessa lenda, significa "trotar ou caminhar lunaticamente", loucamente, pecadoramente, instintualmente. Deixar-se levar pelos instintos.

Desse modo, podemos dizer que as forças instintivas do desejo sexual, na moral judaico-cristã, se tornaram reprimidas ao ponto de serem equivalentes a uma espécie de doença mental, a loucura e a bestialidade. De acordo com essa moral, aquele que possuir desejo sexual e demonstra-lo, é um ser bestial.
Tanto é que o corpo é visto como objeto de manipulação do demônio, daí o cheiro de enxofre. O corpo não é sagrado, apenas a alma o é.
O que vem contradizer as normas de Jesus Cristo que afirmou ser o corpo a Sua morada. O corpo é o templo do Senhor. Mas, essa é uma outra conversa.

Na cultura judaico-cristã a matéria que é representada pelo corpo, é demonizada. No entanto, Jesus Cristo não nasceu do repolho e nem se quer apareceu do nada. Ele nasceu, e parece ter feito questão disso pois poderia simplesmente ter surgido do nada ou do deserto, de um corpo. Do corpo de Maria que representa a matéria e, particularmente, o feminino.

Na tríade cristã, Pai, Filho e Espírito Santo, o quarto elemento, o corpo de Maria, não foi adicionado, sendo relegado ao desprezo. O corpo é sumamente negado e desapropriado de seu lugar juntamente com o feminino, representado por Maria e a gestação de Jesus Cristo.

O numero três equivale ao triangulo que ainda não alcançou a forma concreta e de força representadas pelo número quatro.

O triangulo requer o equilíbrio da força concreta do quadrado. Sem a representação do quarto elemento, o quatérnio não se formou e esse é o sinal do ponto fraco desta doutrina: a negação da matéria, a negação do corpo, a negação dos instintos, a negação de Maria na tríade da doutrina judaico-cristã que, claramente, representa o feminino.
Na história não se deve olhar para a Mula-Sem-Cabeça, o que significa que só de olhar você pode ser contaminado dando origem à cultura que, nesse caso, faz parte do dogma cristão.
Murray Stein in Jung o Mapa da Alma – Ed. Cultrix – considera que:.
"Um símbolo atrai para si uma grande soma de energia e dá forma aos processos pelos quais a energia psíquica é canalizada e consumida." ..."Os símbolos são os grandes organizadores da energia libidinal."
" Para Jung , através do símbolo, ocorre a transformação da libido e a cultura nasce de tais transformações. A cultura é uma realização de desejo, não a sua obstrução. Jung está convencido de que a natureza do ser humano conduz à formação de cultura, à criação de símbolos, ao controle de energia de modo que o seu fluxo possa ser dirigido para esses conteúdos espirituais e mentais."

Analisando os símbolos dessa lenda ocorre que a Mula-Sem-Cabeça, existe antes da moral, e na verdade ela deve ser vista como a representação de categoria de força instintual que necessita ser acolhida e respeitada pelo ego. Enquanto a potência sexual que ela representa for negada e relegada ao inconsciente, aquilo que ela representa escapará na sociedade de modo deturpado e doentio.
A tomada de consciência dessas forças instintuais auxilia o ego a não se deixar levar cegamente pela cultura, assumindo uma postura crítica e de maior objetividade diante dos preconceitos e comportamentos condicionados.

Os dentes e as unhas são símbolos da agressividade instintual. De modo que enquanto que a lenda da Mula Sem Cabeça faz um apelo para que a sociedade como um todo se transforme e acolha sua instintividade exatamente para que não seja por ela possuída, os dentes e unhas fazem o mesmo apelo agora em relação ao indivíduo. Já é hora em que tanto o coletivo quanto o indivíduo passe a reconhecer em si mesmo a potencia da energia libidinal e passe a utiliza-la de modo consciente e sensível, sem a negação e o desprezo advindos da moral cristã.
Os olhos são símbolos de controle e através da visão podemos controlar aquilo que julgamos estar ou não estar de acordo com nossos valores. A lenda nos diz que o olhar também precisa ser transformado e desembaraçado da moral coletiva que nega o corpo e sua instintividade para, finalmente, alcançar a transformação dessa razão moral para uma razão sensível, em que o corpo, inclusive e principalmente do feminino, ganhe seu lugar adequado que é o da criação e fertilidade.
A sexualidade não é um mal, o mal está na maneira como é considerado e vivenciado.
Outro elemento que surge nessa lenda é o ferro que se encontra na mordaça da mula.
O ferro é a representação universal da energia psíquica masculina o que significa que a mordaça de ferro representa uma imposição moral advinda do masculino.
Sem dúvida, as leis e as regras de conduta, na época, eram ditadas pelos homens. No entanto hoje, são elas promulgadas e ferozmente impostas também pelas mulheres que, culturalmente, ainda são as responsáveis por repassar a cultura aos filhos.
A energia psíquica masculina também atravessa a psique da mulher e quando esta se encontra em descompasso, ela manifesta constante comportamento de rigidez e moral, inclusive ela "sempre" acredita estar com a razão. Diz-se da mulher descompensada, o que lhe confere um comportamento de rigidez moral, que ela está possuída pelo seu potencial psíquico masculino.

A encruzilhada e a cruz representam a possibilidade de ir prá lá ou prá cá, um estado sintomático de indecisão entre a moral e o impulso , o que pode paralisar sua vítima incapaz de decidir.

O fogo representa um processo alquímico e a "purificação" dos metais pesados que são a raiva, os impulsos tresloucados, as paixões homicidas e ou suicidas.
Na encruzilhada há de se fazer uma escolha, não apenas entre os impulsos e a moral, mas junto ao fogo transformar os metais pesados em energia psíquica criativa e sensível, buscando alcançar a razão sensibilizada pelos instintos.
Essa é a Grande Obra de que falam os alquimistas. Não permitir que a razão seja objeto da moral, mas que seja sim, sensível através da aceitação do corpo, da matéria, dos instintos enfim.

De modo que os instintos, ao invés de serem negados, sejam eles acolhidos pela razão que através de seu atributo de reflexão possa "negociar" com os instintos. O que equivale a dizer que os instintos não podem ganhar, mas também não podem perder.

Na encruzilhada há quatro elementos. O quatérnio está presente. A razão que nega os instintos é apenas uma moral cristã. E os instintos, quando reprimidos, tornam-se poderosos animais que um dia iráo, com certeza, tomar o ego que cometerá atos impensáveis e corruptos a ponto do sujeito que os praticou não se reconhecer.

Na cruz cristã há cinco elementos, o corpo está bem ao centro. Mas é um corpo negado, um corpo morto e crucificado.

Por outro lado, quando a razão está permeada pela sensibilidade que, claro, provem dos instintos e do corpo, ela não fica possuída pela moral, mas detém uma ética também sensível onde não há lugar para a corrupção. Cria-se assim o quinto elemento, o corpo sensível, vivo e incorruptível, pois os metais pesados foram transformados em OURO e o Ego é o diamante, a pedra filosofal.

Os metais pesados foram, pelo fogo, transformados o que significa que o que estava inconsciente alcançou espaço na consciência que, sensibilizada, modificou o comportamento antes corrupto e corruptível em comportamento ético sensível.

A Mula_sem_Cabeça encontra sua redenção quando surge o elemento oposto com suficiente coragem para livrá-la da mordaça de ferro. Ela se casa com seu bem feitor.

Significando que a transformação exige que permaneçamos entre opostos até o momento em que ambos se integrem e de sua composição possa surgir uma nova maneira de ver e viver sofrendo todos os matizes da dor e da alegria. Obtendo consciência de nossos anseios e medos reprimidos e sobretudo, de nosso desejo impensado.

Ao olhar para o conteúdo sombrio com os olhos de julgamento de categoria de força e não de moral, sua potência oposta, no caso, a força da energia masculina será, pelo ego, reconhecida e ela se casará com seus instintos. Desse casamento, de pura gratidão, surgirá o quinto elemento: o corpo racional/sensível. Meio e objetivo final para a vida saudável.

A sensualidade tanto do homem quanto da mulher é tão natural quanto a elegância e a sensualidade vista no cavalo ou na mula. O fato é que a sensualidade natural foi desvinculada da beleza e vinculada ao pecado e a má conduta sexual pelo simples fato de ser excitável . Ora, cada um que cuide de seus próprios instintos. Se, na idade média, o padre se sentiu excitado pela linda mulher, queimá-la na fogueira não acabou com o seu desejo. Ele não acabará, simplesmente precisa ser contido de uma maneira racional sensível. Queimar as mulheres na fogueira e ou estupra-las porque são naturalmente sensuais não é racional e muito menos sensível.
É tempo de escolher entre viver a sensualidade natural de modo inocente (aquele que não é culpado) ou negá-la a ponto dela se tornar um monstro devorador tanto para mais quanto para menos. A sexualidade exacerbada e a ausência dela, são ambas sintomas de doença psíquica.
Texto de Lunardon Vaz.

Livros consultados:
*- Extraído do texto O Martelo das Feiticeiras de Heinrich Kramer e James Sprenger – Tradução de Paulo Fróes - pág. 39 – Editora Rosa dos Tempos – 8ª edição – Rio de Janeiro – RJ
CASCUDO, Luis da Câmara – Lendas Brasileiras – Ilustrações de Poty – 2ª. Edição – Ediouro – RJ. – 2.000.
JUNG, Carl Gustav - Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade - Obras completas - Vol. XI/ 2 - Tradução de Padre Dom Matheus Ramalho Rocha - Editora. Vozes - 3ª edição - 1988 - Petrópolis - RJ



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