A Liberdade do Ser: Ensino em Agostinho da Silva e Paulo Freire

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A Liberdade do Ser: Ensino em Agostinho da Silva e Paulo Freire Bruno Gonçalves Bernardes1

Aquando da sua estadia no Brasil, Agostinho da Silva, conheceu Paulo Freire. Sobre o seu trabalho viria a considerá-lo de grande importância para a autonomia do Brasil e dos brasileiros. Na sua chegada à América Latina, já Agostinho da Silva tinha contactado com as ideias da escola nova que despontaram na Europa entre os finais do século XIX e o início do século XX. Seria também por essa altura que Paulo Freire iniciaria as suas primeiras experiências com a educação de adultos e o que mais tarde viria a ser a sua perspectiva crítica. Entre Agostinho da Silva e Paulo Freire medem-se distâncias geográficas, temporais, contextuais que são facilmente ultrapassáveis pela conceção e vivência da liberdade que encontramos nas suas biografias. Pese embora as diferenças de temperamento e de ações, em ambos subsiste a ideia de que é através do ensino que os indivíduos podem tomar consciência da sua excepcionalidade e papel no mundo. É também caraterística de ambos um engajamento social na qual a liberdade se junta ao sentido de justiça e de pertença ao mundo. Para ambos, subsiste a ideia primordial de que a existência individual só faz sentido quando em harmonia com toda a existência. Enquanto contemporâneos, Agostinho da Silva (1906-1994) e Paulo Freire (19211997) inscrevem-se num grupo de intelectuais e pensadores que se dedicam a pensar e praticar um ensino que contradiz a ideia de evolução linear do positivismo, que acabou por ter consequências na formatação das escolas e nas técnicas de ensino. Em ambos reflete-se uma crítica à pedagogia competitiva e uma renúncia às estruturas de poder como forma de libertação individual, mas também a busca por uma soberania coletiva para Portugal e para o Brasil.

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Doutorando em ciência política pela Universidade de Lisboa e mestre em ciência política pela Universidade de Estocolmo. Investigador associado do Observatório Político e membro da Brazilian Studies Association da Universidade de Illinois e da Associoación Latinoamericana de Ciencia Política.

Pedagogia e ensino no século XX Desde os finais do século XIX que se intensificaram as críticas à escola tradicional que se fundira com a Revolução Industrial e que impunha nas escolas um ensino baseado no treino da memória e das competências técnico-profissionais. Esta primeira crítica assenta numa conceção do indivíduo enquanto potenciador de mudança e transformação e não como simples reprodutor de cultura (Kincheloe, 2008; Kincheloe, Hayes, Steinberg & Tobin, 2011; Leeach e Moon, 2008; Loreman, 2011). É aliás esta perspetiva que defende John Dewey em Democracy and Education (1916) e que Maria Montessori põe em prática com o seu método escolar. Ambos consideram que a educação serve para o treino crítico da criança, despoletando nesta a sua criatividade, a capacidade de raciocínio e o treino de competências sociais. Estas perspetivas vão beber do grande debate iluminista sobre a educação e a construção da sociedade do futuro, tendo como pano de fundo os escritos de Rousseau, Pestalozzi ou Fröbel. Nesta perspetiva progressista, o professor deve apoiar o florescimento das potencialidades dos alunos, exercendo uma autoridade que não está baseada nos seus conhecimentos intelectuais, mas na forma como aceita os seus alunos (Leeach & Moon, 2008; Loreman, 2011). Com a alteração do conceito de liberdade na década de 1960, passou-se a discutir o lugar da autoridade no ensino, incluindo, entre outros, os ensaios sobre autoridade e educação de Hannah Arendt reunidos em Between Past and Future. Nestes, Arendt considera que a autoridade desvaneceu-se em nome da confusão com os regimes autoritários, e que é necessário resgatá-la para que não esmoreça a barreira entre o público e o privado, para que se mantenha o difícil equilíbrio entre a continuidade e a renovação do mundo pela renovação das gerações. Tal como conclui:

Education is the point at which we decide whether we love the world enough to assume responsibility for it (…) And education, too, is where we decide whether we love our children enough not to expel them from our world and leave them to their own devices (…) but to prepare them in advance for the task of renewing a common world. (Arendt, 2006)

Nesta mesma altura, o psicólogo norte-americano Carl Rogers desenvolvia a sua client-centred therapy baseada, entre outros pressupostos, no poder transformador do paciente, retirando ao terapeuta o seu papel preponderante. Em Freedom to Learn, Rogers aplica o seu método ao ensino, dando ênfase à aliança entre a educação e a

experiência, diminuindo a transmissão oral de conhecimentos e atribuindo ao professor o papel de “escuta ativa” e de facilitador anagógico das potencialidades das crianças. Estas perspetivas pedagógicas progressistas são contemporâneas dos preceitos teórico-práticos apresentados por Paulo Freire e Agostinho da Silva. Aliás as suas perspetivas encontram-se contextualizadas pelo debate nacional sobre a condição de Portugal e do Brasil. Por um lado, as perspetivas de Sérgio Buarque de Hollanda, Celso Furtado ou Raymundo Faoro sobre o impacto do passado colonial no presente póscolonial, mas também sobre a democratização do Brasil e a participação das massas populares no empoderamento da soberania cívica. Por outro, a herança da “geração de 70” e dos seareiros como António Sérgio no debate sobre o papel de Portugal no mundo, numa perspetiva de dependência e atraso civilizacional face à Europa e onde se impunha a educação de Portugal através do espírito crítico (Bernardes, 2010; Sérgio, 1972; Serrão, 2010).

Ontologia, humanidade e liberdade Os mundos de Agostinho e Freire são marcadamente contemporâneos. Ao contrário das leituras biográficas comparativas onde somos forçados a utilizar analepses sucessivamente extemporâneas, entre Freire e Agostinho da Silva perpassa um tempo histórico específico e uma série de escolas, heróis e acontecimentos que marcam ambos na sua ontologia e conceção humanista. Tanto para Agostinho como Freire, a ideia central de humanidade reside nos fatores que constroem e alimentam as comunidades. Em ambos, a ideia de liberdade é essencial na construção de uma comunidade de amor e aceitação, pois, tal como indica Freire, “sem liberdade não haveria história” (Pereyra, 2008; Romão, 2010). Neste sentido, Freire postula o homem potencial ou o “ser mais” que se assume como sujeito protagonista da sua própria história (Romão, 2010). Freire considera que a liberdade é uma forma de desenvolver vocações. É por isso importante que os indivíduos tomem consciência do seu lugar no mundo. Tal como em Gramsci, Paulo Freire considera que todos temos a capacidade de refletir sobre a nossa condição, tanto do ponto de vista biográfico como histórico (Romão, 2010). Neste sentido, defende a ideia de que o simples camponês é, na sua essência, um “intelectual orgânico” com uma visão própria de si e do mundo, ou seja, um ser pensante. A essência do conhecimento encontra-se no humano e não é fruto de uma condição social ou “intelectualizante”.

Em Agostinho da Silva, o conhecimento é, tal como no Sócrates de Platão, uma forma de libertação. Para o português, o conhecimento é uno e profundo, correspondendo a uma visão essencialista e franciscana de recusa do trágico e da assunção de deus na humanidade. Desta forma, Agostinho propõe que as múltiplas formas de conhecimento refletem somente uma coisa, uma finalidade, ou uma ideia de deus. Desenvolve estas ideias no Brasil onde toma contacto com a cultura brasileira que a considera cultura portuguesa não europeia (Sarmento e Ribeiro, 2010). Múltipla, eclética e heterodoxa, esta assume, no candomblé da Bahia, no olhar do nordestino ou no cosmopolitismo de São Paulo, um verdadeiro laboratório para o futuro desejável. O Brasil de Paulo Freire é também produto de uma confluência de culturas. No entanto, considera que o arranjo entre estas culturas não se encontra ainda ordenado sob a batuta da justiça. A extrema pobreza e a dificuldade em que o brasileiro se encontra no acesso à cultura e à sua livre expressão estão contextualizadas na dependência da própria América Latina. Com o fim da segunda guerra mundial, os teóricos da dependência expuseram o que o nobel da economia Gunnar Myrdal definiu como uma dinâmica de causação circular e cumulativa, interminável se não forem postos em causa os seus fatores. No contexto latino-americano, a dependência surge como afronta aos estados pós-coloniais que, formalmente dotados de soberania, viam-se sujeitos às regras formais e informais ditadas pelas potências ocidentais. Para Freire, a autonomia das classes socioeconomicamente desfavorecidas passava pela consciencialização de uma soberania individual e comunitária (Rodríguez, Marin, Moreno e Rubano, 2007). Em Freire e Agostinho da Silva encontramos uma resposta às dificuldades impostas pela institucionalização das prisões existenciais. O gosto que ambos demonstram pela liberdade é o ponto de partida para a discussão de uma nova pedagogia que para Agostinho deve preparar a criança para o futuro (Manso, 2000), e que para Freire se deve apresentar como uma forma de harmonizar discurso e prática (Pereyra, 2008; Romão, 2010). Por um lado, preparar a criança para o futuro assenta na ideia de que cada ser é único e excecional, tanto na essência como na existência. Tal como nos discursos de mestre Eckhart, Agostinho da Silva crê num deus uno mas plural que na sua criatividade manifesta e alimenta a diferença. É aliás esta perspetiva que explora em “Um Fernando Pessoa”, uma análise biográfica e literária do autor português. Aliado ao amor franciscano, o português é, tal como o Fernando Pessoa de Agostinho da Silva, um ser multicolor capaz de interagir com as outras culturas, ou seja, de estar mais perto dos

outros por se aceitar plural. Neste sentido, Agostinho argumenta que a excecionalidade dos indivíduos deverá ser a matéria orientadora do futuro do mundo (Manso, 2000). Por outro lado, o objetivo de harmonizar discurso e prática orienta a criança para o mundo da equidade e da igualdade, ainda que estas se apresentam em período de transição, ou seja, em potência. Na teoria de Paulo Freire, teoria e prática devem ser uma e a mesma coisa, orientadas pela ideia de que o conhecimento deve ser alicerçado na experiência e no contexto do indivíduo. Para o brasileiro, a curiosidade é uma pedra fundamental do conhecimento, pois não só alimenta a dúvida como orienta o indivíduo para interpretar o mundo à sua volta. Tal como na ideia de Agostinha da Silva, Freire crê que a educação se deve basear no respeito pela realidade própria do outro.

Crítica ao mundo pensante Tanto em Agostinho da Silva como em Paulo Freire, encontramos uma ontologia que se distingue pela sua crítica ao mundo dos intelectuais e às estruturas de poder ligadas a estes. No entanto, ambos têm uma perspetiva diferente sobre este problema. O completo sentido racionalista da obra de Agostinho, ganho pelo contacto com António Sérgio, irá perder o seu significado quando parte para o Brasil em 1946, descobrindo aí uma necessidade de reinventar o seu pensamento através do misticismo. Será isto mesmo que Eduardo Lourenço (Baptista, 2006) escreve sobre Agostinho em Poesia e Metafísica:

“Para a árida e medíocre mistura de empirismo e racionalismo que constitui a substância da mais comum meditação portuguesa, um livrinho [Um Fernando Pessoa] tão singular como o de Agostinho da Silva deve parecer uma pura aberração (…) O seu mérito, todavia, reside na efectiva superação dessas duas atitudes por uma harmonia de que conhecemos poucos exemplos nas letras portuguesas contemporâneas.” (2002, p. 233)

Em Sete Cartas a um Jovem Filósofo (1945), Agostinho acerta uma crítica ao pensamento

intelectualizante

e

à

filosofia

enclausurada

nos

departamentos

universitários. Respondendo ficticiamente a um jovem filósofo, considera essencial que a busca do filósofo se deve cingir à busca por uma vida melhor, ou seja, uma que esteja conforme a doutrina que se defende:

"Você tenciona, pelo que depreendo da sua carta, ser um filósofo, não no sentido de que exporá doutrinas alheias ou construirá uma sua doutrina e se dará satisfeito com tudo isso, mas no sentido de que tentará pôr a sua vida de acordo com a sua filosofia, à maneira de certos gregos e de quase todos os hindus." (Silva, 1945)

Na busca por esse objetivo, o filósofo - aqui entendido como ser pensante – não deve ficar reduzido à cartilha intelectual, ao amontoado de conhecimento e à doutrina. Pelo contrário, deverá ter em conta o amor como força motriz do conhecimento e do entendimento do mundo. Sem reconhecer esta força, o intelectual é despido do que mais importante e premente existe para se conhecer. Assim, o português afirma que,

"O essencial na vida não é convencer ninguém, nem talvez isso seja possível; o que é preciso é que eles sejam nossos amigos; para tal, seremos nós amigos deles; que forças hão-de trabalhar o mundo se pusermos de parte a amizade?" (Silva, 1945)

Neste sentido, o intelectual inscreve-se na sociedade não como um agente afastado do mundo, objetivamente observando e analisando, mas como um indivíduo completo que não se separa nem dos outros nem de si próprio:

"Aqui tem você um conselho que lhe poderá servir para a sua filosofia: não force nunca; seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas. Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida." (Silva, 1945)

Esta é uma crítica à teoria aristotélica, tal como é apresentada nas Cartas a Nicómaco. Nesta obra, o filósofo grego defende a ideia de que a intelectualização é a atividade humana que mais se aproxima do divino e que por isso o intelectual é o homem mais feliz de todos. Contrariando esta perspetiva, Agostinho da Silva parte de uma interpretação original dos Lusíadas e da maneira como o puro empirismo dos navegadores portugueses destronou todas as teorias e hipóteses científicas de Aristóteles, completando-se como os verdadeiros príncipes do renascimento, pois nunca deixaram de “viver como pensavam”. Desta forma, Agostinho apresenta um intelectual que utiliza o pensar e o conhecer como meios de se atingir o pleno da vida que é o de simplesmente viver, cumprindo-se, tal como o gato que contempla a cidade no parapeito

de uma janela. Um ser engajado no amor franciscano, fraternal e universalista, estando intimamente ligado com o objeto que ensina e com os sujeitos com quem interage. Nestes termos, Agostinho apresenta o pensar como a capacidade de aceitar o paradoxo. Tal como em Lao-Tsé, a contradição é para Agostinho a regra essencial do pensamento visto que “a perfeição suprema parece imperfeita”. Na senda desta crítica ao mundo moderno, Freire considera que o Homem não tem vivido sob a batuta do seu verdadeiro potencial. Postula o sujeito como protagonista da sua própria história, desenvolvendo a liberdade capaz de desenvolver a sua vocação (Pereyra, 2008). Neste sentido, considera que cabe ao indivíduo “ser mais”, tanto na relação consigo próprio como na relação com a comunidade, estando disponível para ouvir e respeitar os outros, reconhecendo-se como agente de mudança. Tal como Agostinho, Paulo Freire reconhece que o papel do intelectual ou do professor é não desligar-se do mundo e dos sujeitos que o rodeiam, tendo um papel ativo na comunidade e no aprofundamento democrático do acesso ao conhecimento (Romão, 2010). No entanto, o brasileiro também considera que por forma a atingir-se este potencial, é necessário que os indivíduos tenham a sensibilidade bastante sobre a dura realidade e a injustiça (Pereyra, 2008). Freire apela para que intervenhamos no mundo por forma a alterá-lo. Na sua obra seminal Pedagogia do Oprimido (1970) Freire reflete primeiramente sobre o papel da sua educação familiar como dinâmica de aprendizagem democrática:

Minha experiência pessoal em casa, na relação com os meus pais, os meus irmãos (…) marcou-me profundamente com o seu caráter democrático. No ambiente em que vivíamos, a nossa liberdade, tratada com respeito pela autoridade de meus pais, era desafiada a assumir-se responsavelmente. (Feire, 1996: 105)

Freire considera que a conquista da liberdade só acontece na conquista do respeito pela liberdade de cada um (Pereyra, 2008). É desta maneira um forte crítico da prática individualista tal como é professada pelo sistema capitalista, que nega o signo ecuménico da escola e formata a criatividade. Para alcançar essa liberdade póscapitalista, Freire considera a autoridade como elemento essencial na prossecução do conhecimento de si próprio e do mundo (Romão, 2010). Tal como exemplifica em Pedagogia do Oprimido, o professor deverá ser capaz de alterar uma postura “rebelde” por outra que se torne consciencialização:

Na prática educativa verdadeiramente democrática, nada mecanicista, radicalmente progressista, o educador ou educadora não pode desprezar os sinais de rebeldia. Pelo contrário, ao ensinar os conteúdos indispensáveis, ele ou ela devem tomar a rebeldia pelas mãos e estudá-la como uma postura a superar por outra mais crítica, mais comprometida e mais politicamente consciencializada, mas metodologicamente rigorosa. (Freire, 1996: 135)

Esta proposta de Freire considera que não basta libertar o oprimido, pois isso daria azo ao uso da violência contra a injustiça em que este tem vivido. Para que o oprimido se liberte é necessário que se consciencialize para as estruturas que o oprimem, mas também que tome conta da sua vida por forma a tomar conta das suas dinâmicas internas, da sua rebeldia e sentimento de opressão, ou seja, que seja autoridade em si mesmo. Desta forma, em Freire e Agostinho permanece a ideia de que o intelectual/professor deve ser agente atuante e engajado. Vejamos de que forma discutem esse papel nas suas conceções pedagógicas.

Para uma teoria pedagógica do sul Tendo em atenção a crítica à visão eurocêntrica do mundo, Paulo Freire considera que tanto o progresso científico como a educação – aliás intrinsecamente interligados – não podem ser medidas descartáveis, ou seja, regidos pela ética do mercado. Partindo de uma visão sulista e comunitarista, o brasileiro critica a lógica dependentista que imperava na América Latina e no terceiro mundo, lógica essa que não era apenas visível na economia, mas também na produção cultural, no conhecimento científico ou no simples acesso ao ensino (Rodríguez et al., 2007). Tal como o Brasil perdido e esquecido nas lógicas da política internacional, assim também se apresentava o brasileiro pobre e analfabeto, entre a seca e o poder do nordeste, os coronéis da Bahia, as lonjuras de Manaus, na periferia das cidades ou nas favelas emergentes. Conhecimento e autonomia tornaram-se palavras-chave no desenvolvimento da teoria freiriana, metáforas da condição soberana do Brasil e da América Latina. Neste contexto, Paulo Freire propõe uma campanha de alfabetização, convocada pelo governo de João Goulart (1961-64), com o objetivo de estabelecer uma rede de escolas a partir de um sistema de leitura ensaiado no Recife. Em 1959 inicia-se o primeiro período na carreira pedagógica de Freire com a sua tese de doutoramento Educação e atualidade brasileira (Rodríguez et al., 2007). Nesta desenvolve a hipótese

de um “método” apropriado à realidade educacional brasileira das décadas de 1950 e 1960. Esta tese foi largamente influenciada pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros e pela sua formação cristã. Entre 1959 e 1969 o pedagogo trabalha no movimento de cultura popular organizado pela igreja católica no Recife, ao mesmo tempo que mergulha em Celso Furtado, Karl Jaspers, Elio Jaguaribe, Karl Manheim e Gilberto Freyre, numa encruzilhada heterodoxa, própria da riqueza cultural brasileira e que lhe permite chegar a uma proposta pedagógica contextualizada. Em 1962 é convidado por Paulo de Tarso Santos, ministro da educação do presidente João Goulart, para montar um plano nacional de alfabetização de adultos. O mesmo começa os seus trabalhos em junho de 1963 e em 1964 estavam já planeados 20 mil círculos de cultura preparados para alfabetizar cerca de 2 milhões de brasileiros. No entanto, os esforços iniciados com a campanha terminam com o golpe militar de 1964 e Freire exila-se no Chile onde trava conhecimento com os escritos de Sartre, Marcuse e Lenine. Em 1970 publica pela primeira vez Pedagogia do Oprimido atribuindo um substrato metodológico às considerações pedagógicas que tinha vindo a desenvolver desde a década de 1950. Nesta obra expressa o objetivo político fundamental de “dar a palavra” aos milhões de oprimidos que deveriam ter um papel preponderante na construção de um Brasil novo, “dono de seu próprio destino e que superasse o colonialismo”. O contacto com o nordeste brasileiro extremamente pobre, assolado pela seca e pela desigualdade social, tornou-o mais consciente da necessidade de uma alfabetização consciente, não meramente ensinada do ponto de vista técnico, ou seja, dotando os indivíduos de uma literacia formal, mas implicando o analfabetismo funcional e a consciencialização social (Afonso, Vieira-Silva e Abade, 2009; Kincheloe, 2008; Kincheloe et. al., 2008; Souza, 2006). O profundo objetivo político da “metodologia” freiriana atinge, desta forma, não só o ganho soberanista brasileiro, mas também um ganho de soberania individual, capacitante e libertador das condições que separam classes, credos e origens. Tal como escreveu Freire, “Era preciso dar-lhes a palavra para que transitassem para a participação na construção de um Brasil, que fosse dono do seu próprio destino e que superasse o colonialismo.” Neste sentido, Freire pensa o ensino como uma forma dos indivíduos desenvolverem uma consciência crítica, em oposição à consciência ingénua que adquiriram social e culturalmente, estando na base da pedagogia crítica (Kincheloe, 2008; Kincheloe et. al., 2008). Ainda no Recife e enquanto coordenador do “projeto de

educação de adultos”, estabeleceu o “círculo de cultura” organizado em torno de debates com o duplo intuito de discutir situações e preparar os indivíduos para agir. O desejo de Freire era o de preparar os indivíduos para a necessidade de diálogo através de um sentimento comunitarista. Tal como considera, não basta a aprendizagem formal da leitura ou escrita proficiente, tornando-se necessário apreender o contexto social, as relações de poder e o contributo de cada um nesse contexto (Freire, 1987; Freire, 1996). É deste reconhecimento que resulta a “escuta ativa” como forma de nos revermos nos outros, reconhecendo assim o contexto em que vivemos. Em Freire, esta “escuta ativa” faz parte do diálogo enquanto instrumento para a conquista do mundo em conjunto. Assim sendo, o diálogo assume-se como “uma relação entre seres cognoscentes em torno de um objeto cognoscível”. Freire propõe uma educação como prática libertadora, de caráter gnosiológico, “um encontro de sujeitos interlocutores, que procuram o significado dos significados” (Freire, 1987). A comunicação não deve pressupor a relação entre sujeitos ativos e passivos, mas uma relação dialógica de igual para igual, ou seja, um diálogo problematizador que reúna os sujeitos na busca de soluções para os problemas individuais e comunitários (Freire, 1987; Freire, 1996). Com o diálogo cresce a consciência para os obstáculos que se colocam à nossa liberdade, e nasce também a consciência para o que Freire concetualiza como “percebidos destacados”, ou seja, estruturas e realidade determinadas que passam a ser objeto de atenção e ação dos indivíduos. É através da consciencialização que as realidades objetivas são destacadas, permitindo ao indivíduo que “se aproprie da realidade histórica superando o fatalismo através de um esforço de transformação” (Rodríguez et. al., 2007). Tal como fica imprimido em Pedagogia do Oprimido, Freire conclui que o indivíduo é capaz de alterar o seu contexto, pois que as ideias, as instituições e a sociedade foram estabelecidos pelo Homem e por ele podem ser alterados. Com a publicação de Pedagogia do Oprimido, o pedagogo brasileiro entra no segundo período da sua carreira pedagógica (Rodríguez et. al.,2007). A escrita deste livro foi feita no exílio chileno e a sua primeira edição sairia em 1968 na sua versão espanhola. Tendo sido convidado em 1969 pela Universidade de Harvard como professor, publica em 1970 a versão inglesa do livro. Entretanto passa uma estadia em Cambridge antes de se mudar para Genebra onde se torna consultor do conselho mundial de igrejas (Romão, 2010; Scocuglia, 2005).

A independência da Guiné-Bissau reconhecida pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 3 de novembro de 1973 levaria Freire a desenvolver um trabalho de consultor educacional do recém-criado Estado (Freire, 1978). O impacto do marxismo em África durante as décadas de 1960 e 1970 granjeou-lhe um convite em 1975 para a implementação de um projeto de alfabetização de adultos, vinculando-se à profunda transformação da condição de colonização cultural e à formação dos trabalhadores e dos quadros políticos para um novo sistema de produção (Scocuglia, 2005; Souza, 2006; Romão, 2010). Completamente engajado com o marxismo emergente no sul, mergulha nos escritos de Amílcar Cabral, tomando interesse pela ideia de “suicídio de classe” enquanto processo de reafricanização para a recuperação da cultura indígena précolonial. Paralelamente, Pedagogia do Oprimido é publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1971 e em sueco em 1972. As suas teses têm um impacto na formação de políticas públicas para a educação, despoletando um profundo debate entre pedagogos e políticos e demonstrando o alcance do seu “método” pedagógico e da sua perspetiva crítica à escala global (Kallós e Rodhe, 1987; Kincheloe, 2008; Kincheloe et. al., 2008). Em 1980 o governo autoriza o retorno de Paulo Freire ao Brasil, num contexto económico desfavorável à ditadura militar. O clima social brasileiro assistira a uma profunda transformação com a organização de novos movimentos sociais e novas formas de contestação. A década de 1980 inaugura uma nova fase política na América Latina impulsionada pela demografia urbana, pelo paradigma económico e consequente dívida pública e, finalmente, pela degradação das classes médias e baixas. Neste contexto, Paulo Freire decide fazer parte do processo fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) culminando em 1980 no colégio Sion em São Paulo (Bernardes, 2012). O pedagogo quis desde logo assumir o seu engajamento na redemocratização do Brasil, tendo entretanto aceitado os convites das Universidades Católica e Estadual de São Paulo para se tornar professor. A participação no processo petista deu-lhe a oportunidade de pôr em prática a sua teoria pedagógica especialmente desenvolvida durante o exílio. Ao mesmo tempo, Freire entrou em contacto com os movimentos sociais emergentes no Brasil e na América Latina, nomeadamente a teologia da libertação, o novo sindicalismo e variados grupos de intelectuais esquerdistas (Bernardes, 2012; Secco, 2010). Ainda a vitória de Luiza Erundina para a prefeitura paulistana trouxe Freire para a secretaria de educação da cidade, num momento da vida

política brasileira de transição para a democracia, enquanto o PT passava gradualmente a ter um papel preponderante no sistema político. Neste período, trabalha também como consultor de diversas cidades brasileiras. A consolidação do seu método e o movimento internacional de apoio à sua abordagem tornou Paulo Freire numa referência da pedagogia crítica (Kallós e Rodhe, 1987; Kincheloe, 2008; Kincheloe et. al., 2008), de libertação das classes pobres e de consciencialização das sociedades para a importância do ensino na criação de um futuro diferente e afastado da competição doentia do capitalismo.

Ser bastante largo por dentro para caber o mundo A proposta “pedagógica” de Agostinho da Silva apresenta também uma alternativa radical aos modelos de pedagogia baseados no sistema capitalista e competitivo. Para Agostinho, o ensino tem de ser um ideário para o futuro, pois não pode ser apenas o veículo de uma filosofia ou visão do mundo (Manso, 2000; Sarmento e Ribeiro, 2010). Prosseguindo a ideia de que o pensamento e a ação humanas são heterodoxas, Agostinho considera que,

“Uma filosofia ao que eu entendo, tem de ser uma explicação total do universo. Porque não inclui então aquele que nos aparece como adversário? (…) Dirá você que uma concepção dessas, em que todos o contrários se harmonizam, só é possível em Deus? Vamos, então, nós, desistir de chegar a Deus? Essa, para mim, é que é a grande tarefa da arte, da ciência, da sociologia, ou melhor, da política.” (Silva, 1945)

Neste sentido, o ensino nasce em Agostinho da Silva como uma necessidade não meramente pedagógica mas como prática, no presente, do “mundo a haver” (Epifânio, 2007; Sarmento e Ribeiro, 2010), um mundo profundamente heterodoxo e múltiplo unicamente possível pelo ensino da diferença, adaptado às necessidades e aptidões de cada um. O seu percurso atesta estes princípios através de um confronto com os preceitos autoritários do Estado Novo. Tal como escreve o seu filho Pedro Agostinho da Silva:

“Concluinte do curso secundário em 1924 (1º lugar), Licenciado em Clássicas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1º lugar, 1928), Doutor, suma cum

laude, pela sua Faculdade de origem aos 23 anos (1929), e diplomado pela Escola Normal Superior de Lisboa (1º lugar, 1931), bolsista na Sorbonne e Collége de France (1931-33), e no Centro de Estudos Históricos de Madrid (1935-36), ingressara no ensino secundário oficial em 1928 e dele foi expulso pela Ditadura em 1935. Este último tornou-se, para Agostinho, talvez o momento mais decisivo de sua vida, e aquele que lhe determinou todo o curso posterior da carreira e existência pessoal.” (Silva, 2006).

Entre o regresso a Lisboa em 1936 e a prisão pela polícia política em 1943, Agostinho dedica-se ao ensino particular, estando envolvido no processo educativo, entre outros, de Mário Soares ou do escultor Lagoa Henriques. Cria também o núcleo pedagógico Antero de Quental em 1939, e em 1940 inicia a publicação dos cadernos de informação cultural. Estes últimos têm um enorme impacto na organização de grupos de leitura em aldeias e fábricas, bem como na educação de jovens alunos (Silva, 2006). Estes cadernos discutiam introduções a diversos autores como Sócrates, Confúcio, Edison, Epicuro, Winnetka ou Goethe, passando por temas como o budismo, o sistema nervoso ou ainda o cristianismo, e uma série de traduções de clássicos desde os Diálogos Filosóficos de Voltaire a O Adereço de Maupassant. Os cadernos incitavam ao pensamento crítico e livre, premissas que contrariavam a política educacional do Estado Novo português (Manso, 2000; Real, 2009; Sá, 2009; Silva, 2006). É aliás no contexto oposicionista que se insere grande parte do pensamento inovador de Agostinho antes da sua partida para o Brasil. O contacto com Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mais tarde com António Sérgio e Jaime Cortesão em Paris, e o grupo da Seara Nova, revista para onde começa a escrever em 1938, inscreve-o entre os intelectuais que exigem a educação do povo analfabeto português. Esta noção de formação surge com a oitocentista geração de 70 e com a consciência, entre a intelectualidade portuguesa, das limitações de Portugal face às restantes potências coloniais no que estas possuíam de tecnologia, capitalismo e, consequentemente, de produção cultural e acesso ao ensino. Tal como tivemos oportunidade de argumentar, é neste contexto que o próprio António Sérgio discorre sobre O Reino Cadaveroso (Sérgio, 1972; Serrão, 1969) um Portugal impreparado para a competição capitalista, enredado no caos do seu caráter e das suas elites (Bernardes, 2010).

No entanto, Agostinho da Silva é desde cedo um duro crítico desta perspetiva. Entra em colisão com Sérgio quando este defende a lógica e o racionalismo, preferindo Espinosa; elege o contacto direto com a população pobre das cidades e do campo através de conferências que foi realizando por todo o país com o apoio de Fernando Rau e do núcleo pedagógico Antero Quental (Manso, 2000; Real, 2009; Sá, 2009; Silva, 2006). Tal como considera em retrospetiva sobre o papel dos seareiros no plano do ensino em Portugal:

"(…) campanha educativa que felizmente não ficou no que respeita a um sector especializado, o da pedagogia, mas se estendeu a todo o domínio da vida humana (...) não deu suficiente atenção, em politica interna, a sectores verdadeiramente populares, julgando que o era a juventude das escolas, que da classe média vinha e da classe média iria” (Op. cit. Manso, 2000: 362).

Durante este período, Agostinho consolida a ideia de que cada “um de nós tem de ser sujeito do processo educativo”, pois “educar não é se encher isoladamente de conhecimento” (Sá, 2009). É aliás a partir desta visão que tenta ultrapassar a ideia de pedagogia, através do que considera ser a anagogia, ou seja, o processo pelo qual se extraem as potencialidades de qualquer indivíduo. Paralelamente, e tendo em conta a forma como atua entre as décadas de 1930 e 1940, Agostinho da Silva desenvolve a ideia de que todo o ensino deve ter a intenção de transformar os indivíduos por forma a transformar as instituições e a sociedade, tal como irá defender em Educação de Portugal de 1970. Desde cedo que o pensador português entrara em contacto com outras perspetivas pedagógicas emergentes no início do século XX como é o caso do proposto por Maria Montessori. Publica em 1939 O Método Montessori demonstrando conhecer outros métodos pedagógicos que não aqueles desenvolvidos durante a segunda revolução industrial. A leitura da sua obra leva-o a concluir que:

“O que é impossível, depois do conhecimento dos seus trabalhos, é negar a utilidade das escolas infantis ou empregarem-se, no seu funcionamento, os processos da escola velha (…) por outro lado, encerrá-las numa sala, com o ambiente das carteiras, dos exames e dos castigos, matando-lhes, logo no início, tudo quanto é delicadeza e gosto da vida, não é nem menos absurdo nem menos criminoso.” (Silva, 1939: 79)

Tomando contacto com a perspetiva montessoriana e outras alternativas pedagógicas como as de Winnetka ou Sanderson, Agostinho passou a considerar o “pensar autêntico e original nos indivíduos porque acreditava que em todos nós há uma força criativa e criadora (…) que nos torna, em simultâneo, poetas e poemas de nossos afazeres cotidianos e fazeres espirituais” (Sá, 2009: 62). Em 1944 abandona o país, instalando-se definitivamente no Brasil em 1947, chegando a lecionar em colégios e universidades livres no Uruguai e na Argentina, bem como na Escola de Estudos Superiores de Buenos Aires (Epifânio, 2007; Manso, 2000; Sarmento e Ribeiro, 2010). Nesta última instituição chegou a organizar cursos de pedagogia moderna, demonstrando que já na segunda metade da década de 1940 teria consolidado a sua visão pedagógica, sendo a sua passagem pelo Brasil o meio pelo qual iria confrontar-se com o legado português no mundo. Até esta data, não contactou apenas com os novos movimentos pedagógicos e com a escola nova, mas esteve também interessado em entender por que razão o poder político exercia tamanho controlo sobre a escola, por que razão o adulto exercia tamanho poder coercivo sobre a criatividade da criança e por que razão vivem os homens revoltados contra o mundo, enredados no egoísmo e no primado do económico e da eficiência. Neste sentido, a educação tem limitado a humanidade e a própria pedagogia dominante não tem tido mais do que o papel de “empurrar”, ou seja, “Empurra-se o menino, empurra-se o adolescente, empurra-se o adulto: somos todos uns excelentes pedagogos: empurramos” (Silva, 1989: 60). Como chega a considerar em Namorando o Amanhã, “o que fazemos é criar cabeças cúbicas. E nós não perdemos essa memória do cúbico, o que dizemos é que a maior parte das vezes, a pessoa sai da escola sendo uma besta-quadrada” (op. cit. Manso, 2000: 364). No fundo, Agostinho preocupava-se não apenas com a educação das massas populares mas com a transformação da sociedade como um todo partindo de uma educação que não estivesse baseada na memorização de conteúdos e na conservação das estruturas opressoras da liberdade individual. Logo em 1948 está envolvido na fundação da faculdade de filosofia da Universidade Federal Fluminense, seguindo-se-lhes a Universidade Federal da Paraíba (1951), a Federal de Santa Catarina (1955) e na década de 1960 tanto a Universidade de Brasília como o Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás (Epifânio, 2007; Magalhães, 2010; Sarmento e Ribeiro, 2010; Silva, 2006). Ainda em 1959 funda o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador da Bahia, centrado nas relações entre o

Brasil, a África e a Ásia coloniais e pós-coloniais tanto do ponto de vista antropológico – no qual terá um papel relevante no estudo das origens do candomblé e da cultura negra na Bahia – como nas relações de poder e da condição pós-colonial do Brasil e das culturas sulistas. É também durante este período que Agostinho põe em prática o seu modo de pensar o mundo, comunicando com as diversas comunidades pobres brasileiras. Tal como mais tarde irá considerar, sempre deu mais importância ao que “escreveu na vida” do que ao que “escreveu nos livros”, sendo um homem de ação e de procura do outro. Na serra de Itatiaia e ainda na década de 1940 esteve próximo das comunidades locais, na alfabetização ou ainda no apoio às populações que sofriam com a seca no sertão brasileiro (Epifânio, 2007). No entanto, o seu grande projeto seria a Universidade de Brasília pensada enquanto escola normal de universidades. Fundada em 1962, a universidade surgiu idealizada no planalto como uma instituição integrada no plano da nova capital. Em 1968 Agostinho é convidado por uma comissão parlamentar de inquérito para discorrer sobre as condições do ensino superior brasileiro (Magalhães, 2010). Enquanto professor universitário nas universidades federais de Santa Catarina e da Paraíba, o português tinha já contactado com a realidade universitária brasileira e especialmente com as condições de formação e recrutamento de professores e com o acesso universal da população brasileira à cultura e aos centros de criação cultural (Magalhães, 2010). É aliás focado na criação que inicia a sua análise da universidade do futuro (Manso, 2000). Por criação Agostinho considera a reinvenção do mundo num duplo combate ao “sebentarismo” e à disciplina, e é por isso que a universidade se deve concentrar na formação de indivíduos alicerçados no seu tempo e no seu contexto. Tal como reflete:

(…) o Brasil só pode ter uma Universidade que corresponda à sua estrutura económica, sua estrutura psicológica, temos que ter a paciência de ir avançando com honestidade, como devemos ter a paciência de ir avançando com o país até atingir um desenvolvimento que não creio, seja apenas, e que seja sobretudo, um desenvolvimento de carácter económico, a economia apenas deve aparelhar como estrutura de base e nada mais; o Brasil não tem que se preocupar com o desenvolvimento em si mesmo, tem de se preocupar com o desenvolvimento na medida em que ele permite uma livre acção do homem e portanto a missão essencial do Brasil é pensar qual a missão desse homem no mundo. (Silva, 2000b: 39)

Paralelamente, o português reflete sobre a necessidade estrutural de uma “escola normal de universidades” por forma a fazer um esforço de formação do pessoal educativo para todo o Brasil e de “fazer frequentar na Universidade de Brasília alunos que viessem de todos os Estados do Brasil por concursos locais” (Magalhães, 2010; Silva, 2000b: 40-41). O regresso a Portugal acontece em 1969 depois do agravamento da situação política brasileira e do desanuviamento trazido pelo marcelismo em Portugal. Agostinho ingressa na Universidade Técnica de Lisboa com o Centro de Estudos LatinoAmericanos (Silva, 2006). A sua estadia em Portugal até 1994, ano da sua morte, serviria para confirmar e disseminar as suas ideias sobre o ensino e, especialmente, sobre o papel de Portugal no mundo. Enquanto nas décadas de 1930 e 1940 Agostinho apreende os ensinamentos de Montessori e Sanderson concluindo que “educar é a arte de conduzir uma criança a auto-descobrir-se” (Real, 2009: 71), em 1970 e com a publicação de Educação de Portugal, confirma a ideia de que educar pressupõe mudanças sociais. Tal como considera:

“Creio, primeiro, que o mundo em nada nos melhora, que nascemos estrelas de ímpar brilho, o que quer dizer, por um lado, que nada na vida vale o homem que somos, por outro lado, que o homem algum pode substituir a outro homem. Penso, portanto, que a natureza é bela na medida em que reflecte a nossa beleza, que o amor que temos pelos outros é o amor que temos pelo que neles de nós se reflecte, como o ódio que lhes sintamos é o desagrado por nossas próprias deficiências, e que afinal Deus é grande na medida em que somos grandes nós mesmos: o tempo que vivemos, se for mesquinho, amesquinha o esterno.” (op. cit. Real, 2009, 72)

Nas duas últimas décadas da sua vida, Agostinho tem uma vida frugal e harmoniosa, por vezes interrompida por entrevistas em jornais e na televisão pública. O contacto constante com jovens e amigos granjeiam-lhe uma atividade pedagógica não institucionalizada que reflete o seu pensamento anagógico, imprimindo em cada um a necessidade de serem eles próprios, “por muito incómodo que tal seja, e tem sido, para mim mesmo e para os outros [pois] não tens essencialmente de amar nos outros senão a liberdade” (op. cit. Real, 2009, 72).

Uma dupla mirada ou o encontro entre os mestres Refletindo sobre a condição cultural do Brasil, Darcy Ribeiro considerava que o brasileiro resulta de uma “cultura mestiça”, construída sob um “povo síntese e mestiço [pois] para nós brasileiros, a mestiçagem jamais foi um crime ou pecado” (op. cit. Romão, 2010: 19). Resulta desta análise que os povos mestiços, esquecidos e marginalizados na ordem internacional, possuem a vantagem da “dupla mirada” cultural sobre o mundo e que por isso, serão eles a preparar o futuro. Tal como tivemos hipótese de analisar anteriormente, existem diferenças e encontros na forma como Freire e Agostinho entendem o ensino, tanto na sua componente de prática escolar como nos seus efeitos sociais. Em ambos encontramos um ensino ontologicamente político (Sá, 2009: 61), ou seja, possuindo uma componente de transformação social. No entanto, para Agostinho essa mudança só acontece através de um processo anagógico, que traga a criança “para cima” por forma a libertar-lhe as potencialidades, através de “um conjunto de preceitos auxiliadores que criem condições para que a personalidade da criança desabroche” (Real, 2009: 72). Estando na polis, os indivíduos têm a capacidade de mudar o mundo através da confrontação. Em Paulo Freire, esta confrontação acontece por meio da consciencialização de si mesmo e dos outros, processo aliás que Agostinho também propõe quando defende que a produção do conhecimento deve estar ao serviço do futuro (Manso, 2000). Para que isso aconteça é necessário preparar a humanidade para sonhar livremente, ou seja, para produzir conhecimento pois este “implica a aquisição, a manutenção e a reinvenção do poder” (Sá, 2009: 62). Neste sentido, ambos refletem sobre a condição social da humanidade, imersa numa luta pela harmonização do diferente, pela competição desenfreada e pela desigualdade. Como nos escrevia Agostinho, “nenhum Homem verdadeiramente o é enquanto submetido à miséria, à ignorância e ao medo” (op. cit. Sá, 2009: 63). Para o português, torna-se essencial humanizar o poder e o conhecimento, análise que aliás faz da festa do divino espírito santo em Educação de Portugal, enquanto escola de civismo e de paz (Carvalho, 2009: 69). Na mesma senda, Freire defende a aprendizagem da diversidade entendendo, tal como Gramsci, que as classes populares são múltiplas e diversas. Esta aprendizagem pela diversidade ajudaria essas mesmas classes se tornem criadoras e progressistas por forma a quebrar a “fossilização” dos estratos sociais e dos hábitos (Rodríguez, 2007: 16).

Para a transformação política e social Agostinho da Silva sugeriu a divulgação cultural e um ensino que vá ao encontro das necessidades do aluno, propondo “o primado da criança sobre o adulto; o primado da aprendizagem sobre o ensino; o primado do natural sobre o convencional” (Real, 2009: 70-71). Em última instância, “é a criança quem deve mandar em todos nós” tal como defende em 1972 no ensaio O Espírito Santo nas Ilhas Atlânticas. Desta forma, encontra um paralelismo entre o ideário do quinto império e o futuro da escola, na busca pelo tempo da espera, da descoberta e da transformação das estruturas do poder, da condição do mundo (Manso, 2000; Real, 2009). Por forma a contrariar o ensino pretensamente infalível de onde “só escap[am] os cábulas” e “gente de tipo Gauss”, Agostinho argumenta que se deve contrariar o espírito do trabalho, da eficácia e do mercantilismo, substituindo-os pelo ócio e pela liberdade de ser (Real, 2009). Em Freire, esta transformação só acontece quando se alterar a visão dominante constantemente passada pela figura do professor na sala de aula. Desta forma, o campo da cultura torna-se o campo primordial para a luta política, enquanto a cultura popular surge como cultura de conflito. Tal como Agostinho da Silva em Portugal e no Brasil que agiu para a promoção da cultura popular, Paulo Freire pretende estabelecer uma cultura de diálogo e de consciencialização para a diversidade. A busca pela diversidade só poderá dar frutos quando o novo sistema educativo estiver articulado com a política e com a história (Rodríguez, 2007). Enquanto tal não acontecer, continuarão a persistir as “epistemologias silenciadas” produzindo conhecimento marginal, subalternizado e do contra (Romão, 2010). Freire defende, assim, uma pedagogia do oprimido e não uma pedagogia para o oprimido, ou seja, uma pedagogia preparada para as especificidades dos interlocutores, pois ao libertar-se o oprimido, libertamos o opressor. Assim sendo, Agostinho da Silva e Paulo Freire inscrevem-se numa “dupla mirada”, tentando estabelecer uma mestiçagem que ultrapasse as visões únicas e dominantes, em busca de uma definitiva liberdade do ser.

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