A LIBERDADE E A GRAÇA EM AGOSTINHO DE HIPONA

October 14, 2017 | Autor: Rafael Silva | Categoria: Liberdade, Santo Agostinho, Fustel De Coulanges, Agostinho De Hipona, Divindades Gregas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

(UNIRIO)

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - FACULDADE DE FILOSOFIA DISCIPLINA: Filosofia Medieval

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ALUNO: Rafael Silva

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25/09/2014 – RIO

A LIBERDADE E A GRAÇA EM AGOSTINHO DE HIPONA No sentido de entender o que liberdade e graça significam na teoria de Agostinho de Hipona, e no processo que representam na restauração da boa ‘vontade’ humana - quando ela é corrompida ou para a sua plena manutenção vejo pertinência em fazer uma breve retomada histórica sobre a crença humana no divino baseando-me no livro “A Cidade Antiga”, de Fustel de Coulanges. Pois, de acordo com este autor, foi a instituição da transcendência no pensamento da humanidade a responsável pelo surgimento tanto de Cristo quanto do cristianismo e, objeto do presente estudo, da teoria cristã de Santo Agostinho. Por isso peço a licença para estender-me inicialmente na investigação do movimento histórico que antecedeu ao cristianismo e que propiciou ao pensador de Hipona a pertinência de suas ideias. Caso o leitor não sinta necessidade de acompanhar esta préintrodução, por favor avance ao próximo título: “Todos pecaram em Adão”.

A MEMÓRIA DO DIVINO ANTES DO DEUS CRISTÃO Logo depois do “Verbo” primordial, o homem era apenas ele mesmo em sua isolada família-tribo. Ser humano, portanto, era ser o tanto de terra necessário à subsistência e o culto aos imediatamente mortos que jaziam-compartilhavam do mesmo chão plantado e habitado pelos seus vivos. De acordo com o historiador Fustel de Coulanges, estes “idos” familiares foram os primeiros seres divinizadoscultuados pelos homens. O culto aos antepassados era absolutamente funcional aos vivos, visto que essas divindades pessoais intermediavam com o “Todo” impessoal a fecundidade da Natureza necessária à manutenção da vida. “Lar” era o local absolutamente privado e resguardado do mundo aonde o culto aos mortos se dava através de um fogo mantido sempre aceso que só podia ser visto ou manuseado pelos vivos daqueles mortos. Uma vez profanado esse sigilo, a fortuna dos vivos comprometia-se, pois, ao melhor estilo grego, estas divindades eram egoístas extremamente preocupadas consigo próprias. Na esteira histórica, o homem, transpondo seus limites “Lares”, viu na cidade a solução para as desventuras que não encontravam solução na esfera

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doméstica. Destarte, tal empresa necessitava de legitimação divina aos moldes daquela que legitimava sua existência privada. Os novos grupamentos urbanos elegeram mortos em comum - outros que não os seus familiares sagrados-secretos -, em função da bem-aventurança coletiva, sem a qual essa congregação humana estaria desprotegida. Da mesma forma que as divindades privadas delimitavam as famílias, as coletivas fronteirizavam as cidades. Logo, cidadãos eram os que compartilhavam de uma mesma divindade, e estrangeiros aqueles que de forma alguma podiam cultuá-la. Circulando entre duas esferas distintas, a doméstica e a pública, e por conta disso sacrificando-se por divindades diversas, o homem, inadvertidamente, dividia seu secreto espaço transcendente de outrora com as novas divindades públicas. Aí ocorre a primeira laicização das divindades humanas primordiais. Da mesma forma, as posteriores relações entre diferentes cidades exigiam sempre novas divindades em comum. O Império Romano, a cosmópolis absoluta, na sua estratégia de não profanar as divindades dos seus dominados, reuniu tantas famílias-tribos-cidades que, neste estágio, o homem encontrava-se imerso em um panteão de deuses, cada um com sua esfera de atuação e de culto. As divindades foram sendo criadas e hierarquizadas de acordo com as sensíveis necessidades mundanas e, inescapavelmente, relativizadas - por fim, reificadas - evidenciando aos homens que suas instituições podiam prescindir das divindades. O homem, portanto, na decadência do Império Romano, encontrou-se publicamente órfão dos seus deuses Lares, desterritorializado do seu campo de subsistência e com sua família-tribo partida pelas vicissitudes imperiosas da urbe. Seus deuses lares esquecidos eram-lhe mais dadivosos, mas, uma vez profanados, não os receberia novamente. Logo, a transcendência humana, e o próprio homem, estavam pela primeira vez sozinhos no mundo. No centro desse sofisticado caos romano, chega Jesus de Nazaré, um vilipendiado como a maioria, porém, encarnando em si a crítica ao mundo instituído, disse aos homens que, embora eles tivessem profanado as suas divindades antepassadas e rendido culto o mundo caído, havia uma divindade suprema que a todos amava e a todos aceitaria. Para tanto, o homem devia abrir mão daquele mundo caído e volta-se ao culto à Deus e à simples sobrevivência, longe da sofisticação instituída até ali; o que, esquecido na secularidade, era a vida de outrora dos homens. Corroborando com a afirmação de Aristóteles de que até o maior império retorna miticamente ao seu início, Roma, com Cristo, ruiu e retrocedeu ao seu primórdio pré-urbano. O mundo medieval, o futuro imediato dessa decadência, foi o percurso desiludido do homem em regresso ao seu quinhão solitário de terra e aos secretos lares familiares. No entanto, em vez da divindade pessoal enterrada sob o fogo do

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seu Lar privado, ele levou consigo um Deus uno e onipotente que compartilharia com os demais homens. Cristo, de certa forma, fez a História que se desenrolou antes deles voltar a ser mito, ciclando-a, de certa forma, ao seu primórdio. Isso foi um golpe não no humano, mas nas suas instituições. O cristianismo, entretanto, foi a força humana sobrevivente desse descrédito das instituição culturais e, de acordo com seus propósitos, reconverteu a certeza mítica em nova abertura histórica: uma que principia no nascimento, passa pela total subserviência a Deus a longo da vida para findar no ponto máximo e último simbolizado pelo retorno ao paraíso eterno junto do Criador. Doravante o homem medieval esteve condenado a buscar esse paraíso não mais no seu chão subsistente, nem nos seus mortos Lares, mas no amor e na graça de Deus.

TODOS PECARAM EM ADÃO Segundo Agostinho, é devido ao pecado original que o ser humano adquiriu a tendência ao pecado. Essa origem pecaminosa, para o pensador, estava na queda de Adão e Eva do paraíso devido ao roubo da sabedoria divina. “Ao submeter-se à serpente, o ser humano faz-se inferior a ela, por escolha própria, abandonando seu lugar de primazia, que lhe fora dado por Deus, violando o princípio da subordinação” (OLIVEIRA , 2014, p.44). Aqui reencontramos aspectos da teoria de Anaximandro que estabelecia injustiça sempre que uma parte que se predicava em detrimento do Todo, logo, diga de expiação. O pecado cristão também encontra pertinência a partir do ancestral mito de Prometeu acerca do fogo divino furtado e entregue aos humanos para que eles pudessem viver na natureza sem a fundamental ajuda de Zeus, e que, em Hesíodo, transforma-se em uma árdua expiação irreparável. O exílio do paraíso, na interpretação do sábio de Hipona, se deu pela “livre manifestação da vontade, quando o ser humano despreza a hierarquia das coisas superiores e volta seus interesses às coisas menores. O ápice desse mal é optar pela criatura em lugar do criador” (OLIVEIRA , 2014, p.40), ou seja, quando Adão optou pelo conselho da serpente, por sua própria vontade e pela maçã proibida, não pela Lei do seu Criador. “Retornar àquela condição prévia ao pecado original, entretanto, não mais era possível ao Homem sem o socorro divino (CRUBELLATE, 2011, p.175). Mais trágica era a percepção de Agostinho de que “depois da queda o poder de escolha entre o bem e o mal; passou a significar uma propensão para escolher o mal” (OLIVEIRA , 2014, p.44). Esse pecado original, e o mal que ele legou à humanidade, foi o ponto de partida do sábio de Hipona. Percebendo o homem contaminado pela vontade de seguir seus prazeres mundanos em detrimento dos mandamentos de Deus,

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Agostinho perguntou-se: de onde provém o mal e por que nos atinge? Intuiu ser a vontade, pois ela sofre do “degradante erro de não conseguir separar de si as imagens das coisas sensíveis para se ver a si sozinha. [...]E esta é a sua impureza, porque, ao tentar pensar em si sozinha, julga ser aquilo sem o qual não se pode pensar a si mesma. [A vontade não consegue] separar de si aquilo que a si acrescentou.” (SANTO AGOSTINHO, 2007, p.75)

Portanto, “o mal decorre da livre manifestação da vontade de suas criaturas, inicialmente dotadas de perfeição, mas que abandonaram seu estado de pureza por alimentarem uma má vontade, carreada de paixões irracionais” (OLIVEIRA , 2014, p.41). Na tentativa de purgar esse mal imanente à condição humana, o santo de Hipona percorreu o forte dualismo maniqueísta entre o Bem (Deus), que conduzia à virtude; e o Mal (a matéria), que preenchia a vida de pecados. Porém, essa rivalidade dialética da árida lógica maniquéia, para a sensibilidade de Agostinho, impunha verticalmente vontades aos seres humanos, roubando-lhes a responsabilidade pelas suas escolhas; logo, fazendo da vontade algo que não ela mesma, e de Adão, um injustiçado por Deus. Isso era inconcebível para Agostinho, dado que seu Deus era a verdade e a justiça absolutas. A impossibilidade maniqueísta de responsabilizar as más vontades dos homens pelas suas vis escolhas colocava essa falta, em última instância, em Deus. Portanto, foi a partir dessa percepção que Agostinho deu as costas ao dualismo irredutível de Maniqueu e aventurou-se nas ideias de Plotino. Então, em acordo com o neoplatonismo do pensador de Licópolis, o santo de Hipona passou a “entender que o Mal é a ausência do Bem, por outras palavras, “o Mal não é um ser, mas deficiência e privação do ser” (OLIVEIRA , 2014, p.40), chegando à conclusão de que não existe Mal no universo, e sim uma hierarquia graduada do bem em relação a Deus; ideia que preservava a integridade do seu Criador. De posse da concepção plotiniana, Agostinho refutou a teoria de Pelágio que dizia ser o homem o dono do seu futuro, e que por esforço pessoal recuperar-se do pecado. Deus permanecia reduzido na visão pelagiana, pois ela transformava a existência em uma meritocracia abstrata e o Criador em um mercador de sua Graça; “e, desse modo, já não seria graça, porquanto já não seria gratuita, mas pagamento” (OLIVEIRA , 2014, p.48).

Legando ao homem a responsabilidade pelas suas próprias vontades, Agostinho liberta-o dos desígnios divinos em direção à vontade suprema que possibilita o reencontro com o criador e com o “amor divino pela criatura humana, porquanto converte paradoxalmente a ofensa – o pecado – em ocasião para a revelação mais profunda de seu amor” (CRUBELLATE, 2011, p.178). Desse modo, Deus não impunha ao homem o seu destino, como queriam os maniqueístas, e também não permanecia como um negociador de perdão, como pregava Pelágio, mas sim como o libertador da vontade humana no sentido dela poder escolher a fruição da bem-aventurança divina. Com Agostinho o homem ganha liberdade

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para, ou seguir sua razão, observando a lei de Deus que conduz a uma vida feliz, ou fixar-se irracionalmente nas paixões, alienando-se da sua capacidade de dominálas. Assim, a liberdade agostiniana insere no mundo dos homens uma abertura que só cicatriza-se através da sabedoria e da verdade máxima de Deus. A relação entre o saber imperfeito dos homens e o perfeito, de Deus, para Agostinho, bebe na afirmação de Sócrates “só sei que nada sei”, dando-se da seguinte forma: “nem só aquele que diz: ‘sei’, e diz a verdade, sabe obrigatoriamente o que significa saber; mas também aquele que diz: ‘não sei’, e o diz com segurança, e diz a verdade e sabe que diz a verdade, sabe, com certeza, o que significa saber, porque também ele distingue quem não sabe de quem sabe quando, olhando-se a si, diz francamente: ‘não sei” (SANTO AGOSTINHO, 2007, p.66),

consequentemente, o ser humano só encontra a sabedoria necessária para seguir

pelos tortuosos caminhos sublunares, de acordo com Agostinho, usando o livrearbítrio com que foi presenteado e usando sabiamente sua vontade. Só assim pode fruir da Graça divina. Porém, a corrupção dessa liberdade, que para o pensador de Hipona é a liberdade em relação à justiça, não em relação ao pecado, transforma a sã vontade em má, afastando ainda mais o homem da fruição da bem-aventurança abundante em Deus. Entretanto, não é a falta de Graça um mal, visto que a graça nunca falta, ou do contrário não seria ela mesma. O Mal, ou melhor dizendo, a ausência do Bem, seria antes o indevido uso do livre-arbítrio, e esse mal uso é de total responsabilidade humana, pois “o livre-arbítrio não foi outorgado ao ser humano para que ele optasse pelo pecado, mas para que andasse em retidão” (OLIVEIRA , 2014, p.43). Todavia, de forma alguma o livre-arbítrio é afetado pela distância da verdade imposta pelo pecado, dado que “para Santo Agostinho, o livre arbítrio e a graça não se opõem e sim são aliados na restauração da vontade para o bem” (CRUBELLATE, 2011, p.173). Antes de ser a perda da Graça, a liberdade corrompida ainda é a possibilidade de restaurar a verdade, a justiça, a boa vontade e, por conseguinte, a liberdade plena de Graça, a mais desejada. Para demonstrar que o livre-arbítrio é um Sumo bem, Agostinho “menciona as mãos, cuja ausência acarreta grandes dificuldades para quem não as tem. Entretanto, mesmo sendo elas um bem em si mesmas, há quem as use para o mal, realizando ações cruéis e vergonhosas. Mas tanto as mãos daqueles que as usam para o bem, como as daqueles que as usam para o mal, foram dadas por Deus” (OLIVEIRA , 2014, p.42)

Não fruir da Graça de Deus, ou seja, daquilo que já está dado, de graça, que imediatamente é o próprio homem na liberdade de sua vontade, é desperdiçar a oportunidade de conhecer-se, logo, ignorar sua própria essência, pois, somente “conhecendo-se a si, a mente conhece a sua substância e, quando tem a certeza de si, tem a certeza da sua substância” (SANTO AGOSTINHO, 2007, p.80). Sendo assim, desconhecer a própria essência é ignorar e desdenhar da obra do Criador, o que,

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absolutamente, é o Sumo pecado. Desconhecendo a verdade, e desconhecendo sua própria substância, o homem incorre em pecado porquanto “vê coisas intrinsecamente belas numa natureza superior, que é Deus. E quando devia parar para fruir delas, ao pretender atribuí-las a si e, considerando-se semelhante a Deus não por obra dele, mas por si própria, ao pretender ser aquilo que ele é, afasta-se dele, desvia-se e cai no menos e no menos que julga ser o mais e o mais, porque nem ela se basta a si, nem nada basta a quem se aparta daquele que é o único que basta.” (SANTO AGOSTINHO, 2007, p.71).

Portanto, o homem deve submeter-se à verdade de Deus e não às suas próprias verdades, pois para Agostinho, a liberdade verdadeira é servir a Cristo, isto é, fruir dele e servir à gratuita disseminação de Sua Graça. Órfão da Graça de Deus, o homem não perde seu livre-arbítrio, porém, o tem no seu modo mais baixo, aonde, mesmo conhecendo o Bem, usa sua liberdade para não escolhê-lo; diminuindo-o; e recobrando Plotino, graduando-o negativamente. Sendo assim, o sábio de Hipona afirma que as más escolhas nunca roubam do homem a liberdade de escolha do Bem, mas sim a qualidade dessa liberdade. Agostinho pregava que “Deus concedeu o livre-arbítrio ao ser humano não para que este escolhesse entre o bem e o mal, mas para livremente [...] gerenciar a criação divina” (OLIVEIRA , 2014, p.44). Aqui fica patente a grandeza dessa Graça que entrega nas mãos do homem a Natureza toda e que só lhe é privada sob o pecado de deliberadamente escolher as partes dessa natureza em detrimento dela toda; os desejos pessoais à sabedoria divina; o Mal em vez do Bem. A graça de Agostinho foi a de insistir na ideia de que d o Mal pode surgir Bem, e essa ideia constitui a liberdade da nossa vontade nesta escolha. A vontade é uma das categorias centrais no pensamento de Santo Agostinho, e só é completamente livre, através de uma dialética que contempla por um lado o pecado, isto é, a vontade de transgressão, e por outro a submissão à verdade suprema residente em Deus e em seus mandamentos. A síntese virtuosa desse diálogo é o fruto da liberdade para buscar e para fruir da Graça dEle. Para Agostinho, a possibilidade é ofertada por Deus, mas a vontade e a ação são de responsabilidade do próprio ser humano. Todavia, a reconciliação proposta pelo santo de Hipona é somente obra divina, não humana, como queria Pelágio, nem desnecessária como tentavam os maniqueístas que poupavam o homem da responsabilidade pelos seus atos. Apesar de a teologia agostiniana inescusar o homem de seu pecado, há o Ser dadivoso que, com o exclusivo poder de transformar o Mal em Bem, poder, com sua Graça, sair em socorro do pecador. Boehner e Gilson (2009, p. 192) colocaram que, em Santo Agostinho, o ideal de liberdade “é senão o livre-arbítrio libertado”, que pode ser interpretado como a liberdade de escolher o Bem para ser livre de escolher o Mal, muito mais que a liberdade de apenas escolher entre o Bem e o Mal. Dessa forma, a liberdade agostiniana é uma sobre-liberdade disponível aos

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homens para que eles galguem a ascensão até o Bem supremo; e essa gradação, sobremaneira, remete àquela entre Bem e Mal contada por Plotino. A sobreliberdade agostiniana é o livre caminho através do qual a vontade torna-se sábia e livre para não desvirtuar-se do Todo divino; livre para não estacionar nas paragens mundanas corrompidas; por fim, livre para fruir a Graça que é de graça - Bem que se oferece inclusive ao pecador como o farol que deseja guia-lo para longe do pecado. A Graça, isto é, a salvação divina ao homem caído do paraíso, na visão de Agostinho, por ausente que pareça no Mal-querer e no Mal-agir humano, deve ser procurada como algo que sempre nos falta. Falta-nos sempre, de fato, pois a Graça, à Deus pertence, e somente a Ele. No entanto devemos procurá-la “do mesmo modo que nós costumamos procurar que nos venha à mente aquilo que se nos escapou, mas não escapou completamente porque pode ser reconhecido como aquilo que se procurava quando vier à mente” (SANTO AGOSTINHO, 2007, p.70). Esta citação remete à fé parmenídica a respeito da integridade incorruptível do seu Ser – Uno-Todo - revivida através das palavras do sábio de Hipona. A vontade maior, isto é, aquela de ser agraciado por Deus, mesmo estando reduzida no pecado, “sabe sobre si alguma coisa que não pode saber senão ela toda, sabe-se a si toda” (SANTO AGOSTINHO, 2007, p.71), sempre, ainda que por trás e sob todas as gradações do Mal. Nesse sentido, ser livre, para Agostinho, é sempre poder agir, ainda que dentro das mais negativas circunstâncias, em busca da Graça divina.

ADENDO CONCLUSIVO Retornando à tomada histórica do divino no seio humano desenvolvida na pré-introdução do presente exercício, e mantendo na mesa de trabalho a análise, ainda que superficial, das ideias de Santo Agostinho acerca da Liberdade e da Graça, percebe-se que a destruição histórica provocada por Cristo, iconizada pelo solapamento do populoso panteão de deuses do fim da Idade Antiga em benefício de um único, o Deus cristão; bem como pelo massivo abandono da vida urbana seio material de todos os males, tanto para os maniqueístas como para Cristo – levou o homem de volta à vida hesiódica de outrora. Como o erro de História é não reconhecer-se como mito, sendo antes a História a tentativa épica do homem para escapar da natureza mítica da sua existência na Natureza - e lembrando que o sintoma é o erro decorrente da tentativa de acerto -, o movimento iniciado por Jesus de Nazaré foi contaminado por esse erro sintomático. Portanto, o cristianismo, sem Cristo, não atendeu aos anseios dos homens da mesma forma que a urbe mostrou-se incapaz de solucionar o que prometia àqueles camponeses doravante urbanizados. Nesse sentido, o esforço de Santo Agostinho foi o de ‘religar’ - atentando plenamente ao sentido de “religião” que decorre da palavra – o homem ao Todo, e sua obra se deu no sentido

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de colocar no cerne do humano a possibilidade e, mais importante, a liberdade para agir no sentido dessa religação que só se dá com a anuência de Deus e com o abandono dos impérios materiais. Para o pensador de Hipona, o próprio homem não poderia dar-se, ele mesmo, a Graça de ser novamente esse Todo, dado que uma vez caído do paraíso e desconectado de Deus por sua própria vontade – pensamento discordante do de Pelágio e do de Maniqueu. A partir de Agostinho o homem só poderia retornar ao paraíso celeste junto à Deus – ou, a partir da retomada histórica baseada em Coulanges, ao ancestral mundo hesiódico junto às divindades Lares - seguindo as pegadas de sua própria vontade. Vontade essa graciosamente deixada livre para que o homem merecesse, sempre que submisso, a Graça de ser novamente a livre criatura do Criador no paraíso eterno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -OLIVEIRA, Marcos de. Liberdade e graça no pensamento de Agostinho. Discernindo Revista Teológica Discente da Metodista 35 v.2, n.2, p. 35-52, jan. dez. 2014 -CRUBELLATE , João Marcelo . O itinerário da vontade na antropologia de Santo Agostinho. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 33, n. 2, p. 173-178, 2011 -BOEHNER, P.; GILSON, E. História da filosofia cristã. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. -SANTO AGOSTINHO, De Trinitate / Trindade, Paulinas Editora, Prior Velho, 2007 -COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Rio de Janeiro, Ediouro, 2014

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