A LIBERDADE EM SARTRE ATRAVÉS DE TRÊS CONCEITOS SEMINAIS EM SUA OBRA: CONSCIÊNCIA INTENCIONAL, ANGÚSTIA E MÁ-FÉ

June 14, 2017 | Autor: G. Miranda Junior | Categoria: Jean Paul Sartre, Filosofía, Existencialismo, Consciencia
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A LIBERDADE EM SARTRE ATRAVÉS DE TRÊS NOÇÕES SEMINAIS EM SUA OBRA: CONSCIÊNCIA INTENCIONAL, ANGÚSTIA E MÁ-FÉ1. Gilberto Miranda Junior 2 [email protected]

Resumo Para desenvolver a proposição de que a Liberdade é a condição de possibilidade para toda ação humana, Sartre se utiliza de três noções seminais que dão suporte e sustentação ao conceito de Liberdade dentro do existencialismo; são eles: o caráter intencional da Consciência, a Angústia e a Má-fé. O presente artigo tem por objetivo descrever esses conceitos e articular, à luz do pensamento sartreano, as relações entre eles e a Liberdade enquanto condição inescapável do agir humano frente ao momento contemporâneo em que o capitalismo determina e constrange a liberdade a favor de sua manutenção perene. Para tanto, serão utilizados, principalmente, os escritos de sua principal obra ‘O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica’ além de ‘A Transcendência do Ego’ e ‘Existencialismo é um Humanismo’, assim como alguns artigos científicos que tocam com relevância as noções a serem trabalhadas. A ação humana dá-se por móbeis a partir de uma consciência que se projeta na possibilidade de uma situação distinta da vivida e é por poder escolher sem nenhum tipo de constrangimento que o homem se faz. Ao se dar conta de que não há uma essência ou uma teleologia que determine quem ele é, o homem toma consciência de que é um ser histórico e que, com suas escolhas, faz a si mesmo e toda a humanidade, sobrevindo, assim, a angústia a partir do peso da responsabilidade decorrente. A má-fé é o recurso pelo qual o ser humano mascara a angústia e lida com a necessidade incessante da escolha para agir sem que nada ulterior a ele fundamente sua ação, apenas sua própria consciência e as escolhas livres que faz.

Palavras-chave Existencialismo, liberdade, má-fé, consciência, angústia, Sartre.

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Trabalho selecionado para ser apresentado no VII ENCIC 2015 – Encontro Nacional Claretiano de Iniciação Científica. 2 Graduando de Licenciatura em Filosofia no Centro Universitário Claretiano e estudante membro do CEFIL (Centro de Estudos de Filosofia) ligado à UFVJM, registrado no CNPQ.

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Introdução A importância do estudo de Sartre nessa segunda década do sec. XXI diz respeito

a uma clara percepção da crise da consciência de liberdade e representatividade institucional que o ser humano experimenta na atualidade. As perguntas que Sartre fez a si próprio a partir da sua experiência na ocupação nazista de França, seu engajamento e rompimento com o comunismo e a escolha pela matriz marxista para a compreensão do sujeito histórico com o auxílio da Fenomenologia de Husserl, são pertinentes hoje na medida em que vivemos a colonização cultural de um sistema que tem em seu modus operandis a privação da liberdade como determinação das relações sociais a partir de uma estética de produção que se mascara por um discurso difuso e falsamente ‘desideologizado’ ou, poderíamos dizer: naturalizado via reificação. Compreender de que forma nossas escolhas são feitas, por que voluntariamente escolhemos a não liberdade e a prisão da consciência na razão de meios, instrumental, encontra no pensamento existencialista um rico cabedal de conceitos que emergiram da própria vivência de seu principal autor. As contradições do sujeito na história desembocam na própria experiência de vida de Sartre, que tem na radicalidade da liberdade a própria experiência radical na história, pois “sempre tentou compreender, acompanhar e participar dos acontecimentos da única forma que lhe parecia possível: no calor da contingência, na emergência da denúncia, na defesa intransigente da liberdade – o mais autêntico critério de coerência” (SILVA, 2009, p. 106). O presente artigo tem por objetivo articular três noções seminais em Sartre para a compreensão do que ele entende por Liberdade dentro da Filosofia Existencialista. Toma por base os seguintes textos: sua obra máxima O Ser e o Nada:

Ensaio de Ontologia Fenomenológica (escrito em 1943), seu texto A Transcendência do Ego (de 1937), em que ele articula as noções que vai desenvolver em O Ser e o Nada e o texto em que ele procura responder às críticas sobre sua filosofia, Existencialismo é um Humanismo , escrito em 1946. É imprescindível para a compreensão da Liberdade em Sartre que percorramos, mesmo que suscintamente,

a forma como ele entende a Consciência enquanto posicionamento intencional do sujeito no mundo, a Angústia enquanto condição do homem ver-se responsável por sua própria construção a partir da existência e a Má-fé enquanto enfrentamento pouco ético, de fuga, dessa responsabilidade e do sentimento de angústia proveniente dela. Antes de adentrarmos a essas importantes noções, porém, é preciso nos aproximar do que Sartre entende como Ser Humano. Dentro de um existencialismo ateu como o que ele professa, a antropologia de Sartre coloca o ser humano como o único ser cuja essência (aquilo que ele é e o distingue enquanto gênero) é construída na história, a partir de sua existência. Ou seja, daquilo que se pode entender por ser humano, concebê-lo e aponta-lo como distintivo, não é possível recorrer a nada ulterior a ele próprio enquanto fenômeno. Portanto, é o próprio homem que se faz na história. A antropologia de Sartre não tem respaldo apenas em um ateísmo de fundo, mas, sobretudo, na evidência histórica de que, apesar de todos os atributos dados ao homem pelas filosofias idealistas (inclusive as de fundo iluminista, laicas) a história sempre contradisse a capacidade de o homem agir de acordo com sua essência propagada. Até as filosofias mais pessimistas, do próprio iluminismo, que preconizavam o homem como essencialmente mau, carecem de fundamento. Portanto, muito mais do que pressuposto, o ateísmo de fundo no existencialismo de Sartre se dá como emergência da falta de fundamento ao enxergar o homem na história a partir de seus atos e compromissos, e não por qualquer tipo de condição de possibilidade que o determine a ser de uma forma ou de outra. O desembaraço que Sartre procura fazer está em seu postulado de que, no homem, sua existência precede sua essência: O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. (...) O homem nada mais é do que aquilo que ele fizer de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. (SARTRE, 1970, p. 4)

O que distingue o homem de todos os outros seres vivos para que ele tenha essa característica de autoconstrução de sua essência após sua existência, é,

justamente, a dimensão de liberdade que o constitui a partir da emergência de certa forma de ser que chamamos Consciência.

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Desenvolvimento

2.1 A Consciência Intencional Tendo

como

pontos de partida o

cogito

cartesiano

e a noção de

intencionalidade husserliana, porém distanciando-se tanto de Descartes quanto de Husserl para construir uma visão própria, Sartre postula que nossa consciência é um ato, um modo de ser do próprio sujeito e não uma coisa (ou res cogitans cartesiana), pois é destituída de conteúdo e só é enquanto consciência de algo, ou seja, posicionamento 3: Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se preferirmos, que a consciência não tem ‘conteúdo’. (...) O primeiro passo de uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo, a saber, a consciência como consciência posicional do mundo. Toda consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objeto, e ela esgota-se nesta posição mesma: tudo quanto há de intenção na minha consciência atual está dirigido para o exterior, toda a minha afetividade do momento, transcendem-se, visam a mesa e nela se absorvem. Nem toda consciência é conhecimento (há consciências afetivas, por exemplo), mas toda consciência cognoscente só pode ser conhecimento de seu objeto. (SARTRE, 2008, p. 22)

Para Sartre, a divisão entre fenômeno e coisa-em-si de Kant carece de sentido, pois aquilo que aparece (φαινόμενον - phainômenon) não tem como fundamento algum SER para além do que aparece (νοούμενoν – nômenon). Ou seja, o Em-si das coisas, seu Ser, é sua relação fenomênica com um sujeito que toma consciência da coisa. E qual seria, então, o Ser da consciência? Sartre postula que é tanto movimento, ou seja, a consciência é somente enquanto consciência de alguma coisa, quanto a própria coisa de que é consciência. Sendo posicional, a consciência sempre terá por seu próprio ser um objeto que não é ela própria. Ela, repousada sem ser consciência de algo, é Nada, pois não pode ser

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Em nota do tradutor, “posicionamento” refere-se ao grego thésis: ato de colocar algo como existente no mundo – tese.

posicional de si mesma, já que não está no mundo e todo mundo está fora dela. Enquanto consciência é consciência da presença do objeto visado e se esgota nele de forma plena. No Para-si, mundo da própria consciência, é constatado o nada na medida em que ela sempre é reflexiva. Na reflexão de si a consciência se esgota naquilo que ela mesma atribui significado a partir da reflexão que faz e constata que, por mais que atribua conteúdo ao que reflete de si mesma, aquilo que permanece consciência de si mesma não é refletido ao mesmo tempo em que se esgota na reflexão. O que sobra é o Nada constituinte de seu Ser. É o caráter intencional da consciência o que a define, já que ela é Nada se não é consciência de alguma coisa e não pode ser coisa para si mesma. Portanto, ao se fazer, o homem se faz nos posicionamentos que assume a partir de sua consciência posicional no mundo, o que significa que ele é um ser aberto ao mundo, descentrado, mas catalisado no movimento intencional da consciência que o constitui como dinâmica relacional, formando uma síntese de si como Ego no Em-si, no mundo. Sendo intencionalidade, portanto, a consciência existe pelo modo de não-Ser, ou devir. Nesse não-Ser, ela precisa ser também consciente do que é. Ter consciência de uma mesa, segundo Sartre, é ter consciência de ser consciente de uma mesa: É uma condição necessária: se minha consciência não fosse consciência de ser consciência de mesa, seria consciência desta mesa sem ser consciente de sê-lo, ou, se preferirmos, uma consciência ignorante de si, uma consciência inconsciente – o que é absurdo. (SARTRE, 2008, p. 23)

Há, portanto, um desdobramento da consciência para dizer que temos consciência: a consciência do objeto visado implica, necessariamente, a consciência de que há uma visagem. E essa consciência da visagem exclui da consciência da mesa a própria consciência de si, portanto, na visagem, a consciência se constitui sempre por negatividade: “(...) ela se transcenderia, e, como consciência posicional do mundo, esgotar-se-ia visando seu objeto. Só que este objeto seria uma consciência” (Idem). O receio de um círculo-vicioso onde, ao ser consciência da consciência, poderíamos regredir infinitamente como consciência da consciência da consciência, é revogado por Sartre na medida em que postula que é da própria natureza da

consciência existir em círculo: “toda existência consciente existe como consciência de existir” (Ibidem, p. 25). Em termos mais conceituais: A consciência imediata de perceber não me permite julgar, querer, envergonhar-me. Ela não conhece minha percepção, não a posiciona: tudo que há de intenção na minha consciência atual acha-se voltado para fora, para o mundo. Em troca, esta consciência espontânea de minha percepção é constitutiva de minha consciência perceptiva. Em outros termos, toda consciência posicional do objeto é ao mesmo tempo consciência nãoposicional de si. (Ibidem, p. 24)

Dessa forma, destituída de conteúdo, voltada totalmente para fora em sua negatividade e existente enquanto processo – quando vemos uma árvore, a árvore é exterior, e minha consciência da árvore também é totalmente fora de si – toda descrição da consciência é, de fato, uma descoberta da liberdade. Essa existência exterior e destituída de conteúdo da consciência é, justamente, seu caráter intencional, portanto nossa radical condição de liberdade. Segundo ABDO (2011), Sartre faz um encurtamento do campo transcendental e o reduz à própria consciência, enquanto que para Kant, Husserl e mesmo Heidegger a consciência pertenceria a esse campo; estaria contida nele. Em contrapartida Sartre promove, conceitualmente, o alongamento do Ser desde A

Transcendência do Ego . Ainda segundo ABDO, a representação como acontecimento transcendental não existe para Sartre: “assim, não retira apenas (...) o Ego do campo transcendental, mas sim tudo que possamos pensar que exista, propiciando o conceito de ser-em-si como aquilo que a consciência não é” (ABDO, 2011, p. 3). Nas palavras de Sartre: O campo transcendental, purificado de toda estrutura egológica, recobra sua limpidez primeira. Em certo sentido ele é um nada, já que todas as verdades, todos os valores estão fora dele, já que meu “Mim” cessou ele próprio de fazer parte dele. Mas este nada é tudo já que ele é consciência de todos estes objetos. (SARTRE, 2010, p. 221)

2.2 A Angústia Na medida em que o Ego perde seu primado na concepção de consciência intencional em Sartre e passa a compor (embora não totalmente4) o mundo como um Em-si – em contrapartida ao Para-Si que é a própria consciência intencional que nadifica o homem – esta deixa de possuir (já que é destituída de conteúdos por não ser coisa – res) um polo condensador e criador de suas manifestações. Instaura-se, dessa forma, a radicalidade de uma Liberdade constitutiva do Ser da Consciência enquanto Para-si. A constituição desse Para-Si é, portanto, trinitária: é Nada (fora de todo Em-Si), é Liberdade e, também, Angústia. É angústia, como o próprio Sartre diz, não como prova da liberdade humana, mas na medida em que “(...) existe uma consciência específica de liberdade e esta consciência é angústia. Buscamos estabelecer a angústia, em sua estrutura essencial, como consciência de liberdade” (SARTRE, 2008, p. 77). Há, destarte, uma ambiguidade entre consciência de liberdade e a consciência da ignorância daquilo que determina nossos atos. Parecem coisas distintas, mas que se manifestam da mesma maneira na angústia: A liberdade que se revela na angústia pode caracterizar -se pela existência do nada que se insinua entre os motivos e o ato. Não é porque sou livre que meu ato escapa à determinação dos motivos, mas, ao contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é que condiciona minha liberdade. (Ibidem, p. 78)

Essa estrutura ineficiente dos motivos convoca sempre a consciência para dar significação ao que pode ser o móbil para nossos atos. Esse é um ato radical de liberdade,

pois em

última instância, sempre somos nós que escolhemos,

racionalizamos e constituímos os móbeis para nossos atos e comportamento a partir da própria intencionalidade da consciência. Sartre, emblematicamente, exemplifica essa questão: Descobrimo-nos, pois, em um mundo povoado de exigências, no seio de projetos ‘em curso de realização’ (...), porém, basta que a empresa a realizar se distancie de mim e eu seja remetido a mim mesmo porque devo me aguardar no futuro, descubro-me de repente como aquele que dá ao despertador seu sentido, que se proíbe, a partir de um cartaz, de andar por um canteiro ou gramado, aquele que confere poder à ordem do chefe, decide sobre o interesse do livro que está escrevendo – enfim, aquele que

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Embora tenha limpado o campo transcendental de toda estrutura egológica e reduzido esse campo à consciência posicional, não podemos dizer que, com isso, Sartre tenha colocado o Ego como empírico no mundo. Sartre, em sua fundamentação, descobre que esse Ego “nem é transcendental e nem é empírico, mas, no limite de sua existência, representa ambos os conceitos” (VIOLANTE, 2001, p. 82)

faz com que existam os valores, cujas exigências irão determinar sua ação. (SARTRE, 2008, p. 84)

Dessa forma, a angústia, embora consciência imediata de si, ao mesmo tempo se torna presença na negação das exigências do mundo quando nos desprendemos do que havíamos nos comprometido como sinal de nossa irrevogável liberdade em significar, dar sentido e aceitar os valores para essas exigências. Ao homem, destituído de uma essência que preceda sua existência, não lhe resta senão o Nada que o constitui para respaldo de suas escolhas e decisões. Não há, por ser nada, qualquer tipo de referencial ético, religioso e político pelos quais o homem possa se guiar, tornando-o solitário e desamparado diante das escolhas irresistíveis que precisa fazer no mundo. Esses fatos não se referem à falta de fundamento nesses referenciais (embora eles não tenham nenhum fundamento fora do mundo dos homens, segundo Sartre), mas sim se referem ao fato de que a consciência intencional, ao visar uma situação para a escolha do sujeito, esgotar-se totalmente nessa visagem sem que esses referenciais (mesmo que heteronômicos) estejam no campo transcendental em que ela tem plenitude de seu ser. O esgotar-se no que visa faz com que a consciência se reporte somente à situação na hora da escolha e o Sujeito se vê desamparado e em desespero porque sente e vive a falta de princípios suficientes para suas decisões: um cenário de solidão e ausência de sentido angustiante. Exemplarmente, em Existencialismo é um Humanismo , quando Sartre responde aos críticos do existencialismo a questão da falta de ética dessa concepção, há importantes considerações quanto a angústia enquanto consciência da liberdade e, principalmente, enquanto responsabilidade: O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. (SARTRE, 1970, p. 5)

Logo, para além da responsabilidade de escolher diante da falta de motivos ulteriores aos que a consciência tem como consciência de motivos, constatando assim uma liberdade angustiante diante da decisão, ao decidir o homem não faz apenas a si próprio, mas constrói e é responsável pela própria forma de ser da

humanidade: “na angústia, a liberdade se angustia diante de si porque nada a solicita ou obstrui jamais” (SARTRE, 2008, p. 79). Viver

a angústia enquanto consciência de liberdade e do peso da

responsabilidade de decidir a própria natureza do homem, faz com que o homem vivencie uma situação de solidão e desamparo que pode, simplesmente, fazê-lo abrir mão de decidir e escolher. Na própria consciência de ser nada, ao homem resta-lhe transformar-se em coisa, exteriorizar-se. Por isso emerge a má-fé como resposta e, principalmente, como fuga.

2.3 A Má-Fé Os motivos que levam a nossos comportamentos sempre são significados a partir de uma consciência intencional que, da forma que é, estabelece a radicalidade de nossa liberdade. Se a forma como nossa consciência é estabelece o nada como sua constituinte e a posiciona no mundo como visagem que se esgota no próprio objeto visado, então sua característica principal é a radicalidade da liberdade, o que significa a falta completa de fundamentação para os motivos que nos levam a nos comportar de certa maneira. A cada escolha que o homem faz – e com elas faz a si próprio – faz a partir dessa consciência intencional que tira do nada (que é ela em si) os motivos que fundamentam sua atitude. Portanto, a consciência dos motivos que nos levam a fazer algum ato ou escolha não implica, necessariamente, que esses motivos são aqueles que nos levaram a fazer o ato e a escolha. Entre os motivos e o ato há valores que a consciência usa para fundamentá-los como móbeis. Nela mesma, enquanto Nada, esses valores não existem. A má-fé, portanto, consiste em atribuir aos próprios objetos os valores norteadores de nossas escolhas. Para fugir da responsabilidade de ser consciência de suas próprias escolhas e de si mesmo, o homem encarna o que Sartre define como ‘espírito de seriedade’, “que capta os valores a partir do mundo e reside na substancialização tranquilizadora e coisista dos valores” (SARTRE, 2008, p. 84). Para Sartre a consciência da angústia (que, por sua vez é consciência da liberdade, que por sua vez é consciência do nada constituinte da consciência posicional) faz com que o homem assuma condutas de fuga. Não que haja um

determinismo nesse sentido. Ao homem ele pode escolher a própria angústia como modo de ser; fato inexorável de se assumir livre radicalmente. Mas em geral a conduta padrão ao homem comum é a conduta de fuga diante da angústia. Essa fuga, chamada por Sartre de má-fé, se constitui no determinismo psicológico que o próprio homem se impõe como “fundamento de todas as condutas de fuga” (Ibidem, p. 85). Porém, na verdade, sem ter como ir contra a evidência de nossa liberdade, o determinismo se apresenta como crença de fuga, um autoengano. Sartre exemplifica o mecanismo da má-fé como uma espécie de alheamento dos possíveis em nós diante de nossas escolhas. Só conseguimos fazer algo porque, em alguma medida, torno alheio a mim os possíveis distintos do que me comprometi em fazer. Entre o futuro que planejei – que depende de meus atos e escolhas – e o agora, existe somente um Nada. Mil possibilidades de atos e escolhas entre o resultado futuro esperado e o agora se abrem sem que um leve ao outro necessariamente. A consciência sendo posicional, ela será o próprio ato que escolhemos a partir do Nada que nos constitui existencialmente. É preciso que dissimulemos para nós mesmos o fato de que todos esses possíveis, na verdade, somos nós, e precisamos nos determinar ser apenas um possível que leve, a partir do agora, ao resultado que desejamos. Determinar-se em um único possível é má-fé. Mas nesse caso, é condição de possibilidade de realização de planos. Por outro lado, também, é revogação de nossa condição fundamental de liberdade e alheamento de nossa responsabilidade diante do mundo. Agir de acordo com o que planejamos sem que ajamos de má-fé, é conviver com a angústia enquanto consciência da radicalidade da liberdade que nos constitui. Ao fugir da angústia pela má-fé, podemos realizar coisas, mas também fugimos da responsabilidade que nos cabe diante de nossa condição existencial. Essa fuga, destarte, também nos justifica ao mundo e a nós mesmos aquilo que no fundo queremos fazer, mas não temos como justificar. Ou seja, nos determinamos pela má-fé a escolhas cujos móbeis possuem valores inconfessáveis, mas que satisfazem nossos desejos também inconfessáveis via alheamento. Há, porém, uma forma própria no ser desse autoengano ou esse ato de mentir para si mesmo. Sartre aceita a má-fé como autoengano desde que se possa distinguir da simples mentira:

A essência da mentira, de fato, implica que o mentiroso esteja completamente a par da verdade que esconde. Não se mente sobre o que se ignora; não se mente quando se difunde um erro do qual se é vítima; não se mente quando se está equivocado. O ideal do mentiroso seria, portanto, uma consciência cínica, que afirmasse em si a verdade, negando-a em suas palavras e negando para si mesma esta negação. (...) Por certo, para quem pratica a má-fé, trata-se de mascarar uma verdade desagradável ou apresentar como verdade um erro agradável. A má-fé tem na aparência, portanto, a estrutura da mentira. Só que – e isso muda tudo – na má-fé eu mesmo escondo a verdade de mim mesmo. Assim, não existe a dualidade do enganador e do enganado. A má-fé implica por essência, ao contrário, a unidade de uma consciência. (SARTRE, 2008, p. 93 e 94)

A má-fé se constitui em um conjunto de processos da própria consciência (que se constitui mesmo em um projeto da própria consciência enquanto angústia) que se dá na captação de nosso possível evitando considerar todos os outros possíveis que estão como horizonte a partir do nada constituinte de nossa consciência. A esses outros possíveis “convertemos em possíveis de um outro indiferenciado; não queremos ver esse possível sustentado no ser por uma pura liberdade nadificadora, mas tentamos apreendê-lo como engendrado por um objeto já constituído” (SARTRE, 2008, p. 88). Esse objeto, segundo Sartre, é nosso Eu, descrito para e pela consciência como se fosse a pessoa de um ‘outro’.

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Conclusão Ao fim dessa exposição que procurou, na visão do existencialismo em Sartre,

entender como a liberdade se relaciona com as três noções seminais de sua obra, é importante salientar os aspectos que justificaram o desenvolvimento do presente artigo. Falávamos ao início que a importância desse estudo “diz respeito a uma clara percepção da crise de consciência da liberdade e representatividade institucional que o ser humano experimenta na atualidade”. É impossível, portanto, deixar de vincular essa importância aos conceitos de reificação e alienação, ensejando um diálogo, mesmo que post-mortem, entre Sartre e Lukács. Esse diálogo foi feito por István Mészáros no livro A Obra de Sartre: busca pela liberdade e desafio da história5. O presente estudo poderia levar ao aprofundamento do existencialismo em direção ao

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Obra em que Mészáros procura fazer justiça à Sartre por ocasião das críticas recebidas por Lukács antes de Sartre escrever a Crítica da Razão Dialética . (GAJANIGO, 2012)

marxismo que consta da obra Crítica da Razão Dialética de Sartre, mas não seria o foco dessa conclusão. A má-fé, caracterizada pela autodeterminação a um único possível, encerra em si dimensões necessárias e alienantes que Sartre explora na obra mencionada e que explica, com contundência, as condições pelas quais o ser humano não goza de sua radical liberdade na construção coletiva da superação da escassez e em direção a uma vivência mais autêntica de sua subjetividade no coletivo. Muitas vezes usamos a liberdade que nos constitui radicalmente para nos colocarmos em um cativeiro que apazigue a angústia da consciência dessa liberdade. Obviamente que a necessidade e a escassez se colocam como condições objetivas da impotência do sujeito em exercer sua liberdade, mas não revoga a liberdade de escolher buscar formas de superação e emancipação, seja dessas condições, seja da má-fé como fuga de nossa condição essencial de angústia. A má-fé como fenômeno de uma falsa consciência se coloca como urgência de problematizações consequentes. Esperamos ter cumprido nosso intento e ter aberto espaço para maiores aprofundamentos futuro numa compreensão mais ampla da realidade que nos cerca.

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Referências bibliográficas

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