A lingüística textual como ferramenta para a leitura de trechos de Ulisses de James Joyce

June 23, 2017 | Autor: Deborah Scheidt | Categoria: James Joyce, Modernist Literature (Literary Modernism)
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Uma versão em inglês deste trabalho encontra-se em:

SCHEIDT, Déborah. Applying text linguistics to the reading of Ulysses. Annals of the 2nd International ABRAPUI Conference. CD –ROM. Universidade Estadual Paulista - São José do Rio Preto, SP, Brazil. May 31 – June 4, 2009. Disponível em: https://uepg.academia.edu/DeborahScheidt A lingüística textual como ferramenta para a leitura de trechos de Ulisses de James Joyce Déborah Scheidt Introdução

Ulisses, de James Joyce, verdadeiro divisor de águas na literatura universal, é tido por muitos como o romance mais notável do século XX. Sua presença é, portanto, praticamente obrigatória nos programas de literatura e teoria literária dos cursos de letras mundo afora. A tarefa de ler Ulisses, no entanto, pode facilmente converter-se numa experiência traumática, tanto para alunos quanto para professores de literatura. Cada uma das cerca de 800 páginas é repleta de empecilhos à leitura, seja pela erudição que demanda do leitor, seja pela exploração extrema que o autor faz dos recursos da língua inglesa. Um fator que dificulta ainda mais as coisas são as inevitáveis agruras da tradução, que fazem com que muita dessa peculiaridade lingüística acabe se perdendo, ou tornam o texto ainda mais hermético. Persistência torna-se, assim, fundamental e muitos leitores recorrem a roteiros de leitura, que geralmente constituemse em um livro à parte, quase tão extenso quanto o original. Mesmo assim as desistências são freqüentes.

A anedota

recorrente é a de que Ulisses é a obra mais famosa do século XX que pouquíssimos leram até o final. Neste trabalho procuramos demonstrar como um modelo de leitura estilo ―top down‖, que parte do geral (contexto) para o particular (texto), e privilegia uma análise mais cuidadosa dos elementos que compõem a textualidade (lingüística textual), pode valer como subsídio importante para a leitura de textos complexos como é o caso de Ulisses.

O recorte

Os excertos selecionados figuram em Carter e McRae, em The Rougledge History of Literature in English (1998, p.423-4), como trechos modelares do tratamento diferenciado que Joyce pode dar a diferentes episódios e sua utilização das técnicas literárias chamadas de ―fluxo de consciência‖. O primeiro é proveniente do episódio 8 (conhecido como ―Lestrígones‖). O excerto número 2 provém da 18ª parte, o último, mais inovador e mais famoso episódio da obra (―Penélope‖) composto de 8 imensas frases sem pontuação, que se estendem por mais de 40 páginas, conhecidas como o ―monólogo de Molly Bloom.‖

Os excertos

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A tradução escolhida foi a de Antonio Houaiss (JOYCE,1999). Os trechos em sua forma inglesa original encontram-se anexos. Excerto 1 1

Ah, estou com fome.

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Entrava no Davy Byrne. Frege limpo. Não é de conversa. Oferece um gole uma vez ou outra. Mas em ano

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bissexto. Descontou um cheque para mim uma vez. 2

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Que é que eu vou querer agora? Tirou o relógio. Vamos ver agora. Cerveja de gengibirra ?

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— Alô, Bloom — disse Nosey Flynn de seu canto.

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— Alô, Flynn.

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— Como vão as coisas?

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— De primeira... Vejamos. Vou tomar um copo de Borgonha e... vejamos.

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Sardinhas no mostruário. Quase que a gente as degusta com vê-las. Sanduíche? Presunto e sua descendência

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amostardados com pão. Carnes em conserva. Que é um lar, leitor discreto, sem Carne Pasta Cereja? Incompleto. Que

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anúncio estúpido! E o pespegam debaixo dos avisos de óbitos. Todos em cima de uma cerejeira. A carne em conserva

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de Dignam. Os canibais o fariam com limão e arroz. Missionário branco muito salgado. Como porco em salmoura. É de

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se esperar que ao chefe caibam as partes de honra. Deve estar acostumado com a prática. As suas mulheres a postos

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para ver o efeito. Era uma vez um muito real negro velho. Que comeu dois dos algos do reverendo senhor Mac Trigger.

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Com ele, conto de gozo. Deus é que sabe que gororoba. Buchada de tripas passadas traquéia enrolada em picadinho.

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O problema é encontrar a carne. Kosher . Nada de carne e leite juntos. Isso era higiene como lhe chamam agora. Jejum

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de Yom Kippur limpeza da primavera do de dentro. A paz e a guerra dependem da digestão de algum sujeito. Religiões.

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Perus e gansos de Natal. Matança dos inocentes. Comer, beber e alegrar-se. Então é o pronto socorro depois. Cabeças

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atadas. O queijo digere tudo menos a si mesmo. Queijo poderoso.

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— Tem sanduíche de queijo? (p. 223-24) Excerto 2

1

(...) melhor baixar essa lâmpada e tentar de novo para eu poder me levantar cedo eu vou ao Lambe lá ao lado do

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Findlater e fazer eles mandarem umas flores pra pôr por aí para o caso que ele traga ele em casa amanhã hoje quero

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dizer não é sexta-feira é dia de má sorte primeiro eu quero arranjar a casa um pouco a poeira se deposita eu penso

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enquanto eu durmo então a gente pode fazer música e fumar cigarros eu posso acompanhar ele primeiro eu preciso

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limpar as teclas do piano com leite que é que eu vou botar será que eu boto uma rosa branca ou aqueles bolinhos de

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fada do Lipton eu adoro o cheiro de uma loja grande por 7,5 p. a lb ou os outros com cerejas dentro e açúcar rosado a

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11 p. o par de lbs é claro uma bonita planta para o centro da mesa eu podia conseguir mais barata no espera onde é

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que que era que eu vi elas não faz muito eu adoro as flores eu ia adorar ter a casa nadando em rosas Deus do céu não

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tem nada como a natureza as montanhas bravas então o mar e as ondas correndo então a bela campina com campos

1 2 3

―Frege moscas‖: casa de pasto pouco asseada (Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa) No original ―Shandygaff‖: coquetel de cerveja com gengibirra. Estritas regras judaicas referentes à alimentação em alguns períodos.

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de aveia e trigo e todos os tipos de coisas e todo o gado viçoso andando por ali que ia ser de fazer bem ao coração de

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ver rios e lagos e flores todas as espécies de formas e cheiros e cores brotando (...)

(p. 955)

O período histórico-literário

O modernismo surgiu no início do século XX, como uma reação às estritas convenções do Realismo, conceito disputado pelos modernistas. Para a britânica Virginia Wolf (―Modern Fiction‖, 1925 citado por Lehman,1989), por exemplo, para descrever realisticamente a vida, o escritor precisa ―olhar para dentro‖: ―Examine por um momento uma mente comum, num dia comum. A mente recebe milhares e milhares de impressões – triviais, fantásticas, evanescentes ou gravadas com a agudez do aço. Vêm de todos os lados, – uma chuva incessante de inúmeros átomos; e ao caírem, ao se transformarem na vida de segunda ou terça-feira, o acento recai de modo diferente do de antigamente‖ Esse novo modo de tentar apreender a realidade implica, quanto à estrutura da obra literária, em fragmentação, rupturas temporais, metanarrativas e intertextualidade.

Quanto ao conteúdo, surge um novo conceito de herói, o

homem/mulher comum, e enfocam-se os acontecimentos do dia-a-dia, a aventura do pensamento, em detrimento da dramática ação externa privilegiada desde os grandes épicos clássicos até o século XIX.

O contexto

O romance foi publicado pela primeira vez em 1922, em Paris, mas, devido ao seu realismo ―obsceno‖, ficou proibido na Inglaterra e nos Estados Unidos até a década de 30. Trata dos ―acontecimentos‖ – absolutamente banais e aleatórios – se levarmos em conta a acepção tradicional do termo ―enredo‖ – do dia 16 de junho de 1904 na vida de três personagens: Leopold Bloom, um criador de propagandas (daí sua crítica ao anúncio de Carne Pasta Cereja no excerto 1), sua mulher, a cantora lírica Molly, e um jovem poeta, Stephen Dedalus. O enredo exterior gira em torno das andanças de Leopold e Stephen pelas ruas de Dublin e suas paradas em vários locais, tais como escola, cemitério, jornal, bar, biblioteca, hospital e bordel. Uma das preocupações de Joyce era a de ―mapear‖ 4

a cidade de Dublin em seus escritos . As referências geográficas costumam ser muito precisas e Joyce, que na época da composição da obra havia se auto-exilado na Europa continental, costumava escrever cartas para casa pedindo detalhes, como O pub Davy Byrne’s, 21 Duke St, Dublin

por exemplo, que tipo de árvore crescia atrás de uma determinada igreja de Dublin. (Heaney, 2003, p. 356) Quando os dois personagens se encontram ao final do dia, Bloom, exausto, convida Stephen para jantar em sua casa. Após a partida de Stephen, Leopold se deita e adormece, enquanto Molly, que tinha traído o marido naquela mesma tarde, tenta dormir (o que dá subsídio para seu monólogo de 20.000 palavras).

A técnica narrativa

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Outra anedota sobre a obsessão de Joyce por Dublin é a de que, se houvesse uma catástrofe que destruísse a cidade, ela poderia ser totalmente reconstruída, bastando-se ler a sua obra.

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Ao compor Ulisses, Joyce propagou um novo estilo literário, permitindo que o leitor penetre nas mentes dos personagens e siga seus pensamentos, apresentados como um contínuo, o que provoca o rompimento das regras tradicionais da descrição, fala e pontuação. Esse estilo ficou conhecido como ―fluxo de consciência‖ e tem influenciado o trabalho de muitos outros escritores. A expressão ―fluxo de consciência‖ foi criada pelo psicólogo William James em 1890 e de acordo com Humphrey (1976) designa algumas técnicas literárias, que trabalham com o nível da ―pré-fala‖, o qual ―não implica uma base para a comunicação, como é o caso da fala‖. Tais níveis de consciência ―não são censurados, racionalmente controlados ou logicamente ordenados. Com esse conceito de consciência, podemos definir a ficção do fluxo da consciência como um tipo de ficção em que a ênfase principal é posta na exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico dos personagens.‖ (ibid) O monólogo interior é uma das técnicas narrativas básicas utilizadas na apresentação do fluxo de consciência. O monólogo busca ―representar o conteúdo e os processos psíquicos dos personagens, parcial ou inteiramente inarticulados, exatamente da maneira como esses processos existem em diversos níveis do controle consciente antes de serem formulados para a fala deliberada.‖ ―Interior‖ pressupõe a não existência de um interlocutor. O monólogo interior indireto, ainda segundo Humphrey, é aquele em que o leitor pode sentir a presença do autor/narrador, com seus comentários e descrições (ex.: ―ele disse‖, ―ela pensou‖, ―ele abriu a porta‖). O início do excerto 1 é um bom exemplo da utilização dessa técnica. Já no monólogo interior direto, cujo exemplo supremo é o monólogo de Molly Bloom, o autor desaparece completamente (ou quase que completamente) da cena e o leitor é deixado às próprias custas, o que lhe demanda um papel muito mais ativo. As estratégias sócio-cognitivas de leitura apontadas por Koch e Elias (2006, p. 39-45) – os conhecimentos lingüístico, de mundo, sejam eles interacionais, ilocucionais, comunicacionais, metacomunicativos ou superrestruturais – são exigidos muito mais aberta e intensamente nessa situação, o que justifica a opinião da maioria das pessoas sobre a ―dificuldade‖ de se ler Joyce.

A intertextualidade

Apesar da referência explícita ao protagonista do épico de Homero no próprio título do romance, as relações intertextuais entre as duas obras são implícitas. O próprio leitor precisa ativar seu conhecimento de mundo para reconhecer em Leopold, Stephen e Molly as representações paródicas de Odisseu, Telêmaco e Penélope do século XX. Nesse caso ―exige-se do interlocutor uma busca na memória para a identificação do intertexto e dos objetivos do produtor do texto ao inseri-lo no seu discurso. Quando isso não ocorre, grande parte ou mesmo toda a construção do sentido fica prejudicada.‖ (Koch e Elias, 2006, p. 92). Talvez para esclarecer o fato de que o elemento mítico pretende ser o mecanismo unificador no caos aparente do romance, o próprio Joyce apresentou uma tabela (vide anexo 3) em que explicita os episódios da Odisséia a que se refere cada parte de sua obra, assim como o espaço, o tempo, a técnica narrativa utilizada e os elementos simbólicos de que faz uso. Assim, sabemos que o excerto 1 dialoga com o mito homérico dos ―Lestrígones‖, em que, após alguma luta, grande parte dos homens da esquadra de Odisseu é devorada por gigantes canibais na ilha do povo lestrígone. Na versão joyceana

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Leopold dirige-se ao pub para almoçar e toda a peripécia antropofágica se realiza criativamente, na mente fecunda do personagem, nos poucos segundos entre o momento em que consulta o cardápio, avista o comercial da carne enlatada (colocado diretamente acima dos anúncios de óbitos) e decide o que vai comer. Ao leitor cabe, por exemplo, inferir, ativando 5

seu conhecimento supraestrutural do gênero anúncio, que Leopold está olhando um anúncio que mostra uma cerejeira , a logomarca provável para um produto que se chama ―Carne Pasta Cereja‖. Também em ―Missionário branco muito salgado‖ e “Era uma vez um muito real negro velho. Que comeu algo dos algos do reverendo senhor Mac Trigger” verificamos intertextualidade. No primeiro caso Bloom pretende ―emprestar a voz‖ do que ele imagina ser um ―canibal‖ do imaginário popular, no momento em que este estaria almoçando um pio missionário católico irlandês. Já a segunda referência utiliza a estrutura típica do conto de fadas para subverter seu conteúdo parodicamente. O fenômeno em que um gênero traveste-se de outro é denominado por Koch e Elias de ―intergenericidade‖ (2006, p.114). Nesse caso o gênero conto de fadas está ―a serviço‖, emprestando uma expressão utilizada pelas autoras (ibid), do gênero romance de fluxo de consciência com o propósito de reforçar a sensação do devaneio mental. Ambos os exemplos demonstram muito claramente a noção bakhtiniana de que tudo o que dizemos (ou pensamos) está inevitavelmente baseado em algo já dito ou pensado por outros. Além das brincadeiras estilísticas, o leitor precisa navegar, somente nesse pequeno trecho, por detalhes da cultura irlandesa do início do século, conceitos de publicidade, nutrição, antropologia, colonialismo, judaísmo e cristianismo. Já o último capítulo – o célebre monólogo – é uma releitura moderna (e bem mais sexualizada) da espera de Penélope pela volta do marido Odisseu. Assim como Penélope, Molly permanece celibatária por 10 anos, mas ao contrário de sua figura inspiradora grega, Molly acaba por trair o marido. Ainda assim, as lembranças de Molly quanto à primeira vez que encontrou Leopold, sua primeira relação sexual com ele, a palavra ―yes‖, repetida no início e no fim do monólogo, reafirmam uma reconciliação amorosa, ou pelo menos uma grande esperança de mudança, ao final do romance. Essas manipulações sobre o texto de Homero têm por objetivo produzir determinados efeitos de sentido: materializar no texto o projeto modernista que desmistifica a figura do herói e coloca a verdadeira aventura na mente do personagem e não na ação física externa. O efeito, como afirmam Thornley e Roberts (1997, p. 149, minha tradução), é misto: Ulisses ―é engraçado, tocante e em grande parte satírico; alguns acontecimentos são claramente fantasiosos, enquanto outras partes do livro são absolutamente realistas.‖

A análise lingüístico- textual

1. As relações textuais de conexão

De acordo com Antunes (2005, p. 140), as relações textuais por conexão distinguem-se das demais ―por envolver[em] um tipo específico de ligação: aquela efetuada em pontos bem determinados do texto (entre orações e períodos, sobretudo) e sob determinações sintáticas mais rígidas.‖ A análise do uso dos conectores costuma ser priorizada nos estudos de coesão e coerência tradicionais, talvez pelo papel preponderante que costuma-se dar a esses recursos no discurso escrito.

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No original, ―ameixeira‖, já que a carne em conserva se chama ―plumtree‖, um produto que realmente era comercializado na época.

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No entanto, o pensamento não necessita tanto de conexão quanto a fala ou a escrita. O texto de Joyce, ao procurar reproduzir os estados psíquicos que antecedem a fala, chama a atenção por sua quase abolição dos recursos conectivos. Assim, no início do século XX, o autor causou polêmica ao romper com os padrões ainda hoje comumente aceitos para o ―bom‖ texto escrito. Ele tinha boas razões para isso. Com poucas exceções, como ―mas‖ (l. 3), ―e‖ (l. 11) , ―que‖ (l.15), ―então‖(l. 19), as orações do excerto 1 se sucedem sem a utilização de conectores, criando a sensação de rápida seqüência de idéias e encadeamento de raciocínios: ―Religiões. Perus e gansos de Natal. Matança dos inocentes. Comer, beber e alegrar-se. Então é o pronto socorro depois. Cabeças atadas.‖ Notam-se orações bastante sintéticas, em vários casos, resíduos de períodos compostos, como em: “Era uma vez um muito real negro velho. Que comeu algo dos algos do reverendo senhor Mac Trigger.“ e ―Que anúncio estúpido! E o pespegam debaixo dos avisos de óbitos.‖ A mesma renúncia ao uso de conectores acontece, em parte, no excerto 2, porém de maneira intensificada pela ausência completa de pontuação. Esse último recurso é bastante eficaz, levando-se em conta o estado de consciência particular da protagonista. Os momentos anteriores ao sono caracterizam-se pela alternância de períodos de maior e menor consciência, ou seja, por um embaralhamento de pensamentos, alguns completos, outros somente iniciados e abandonados logo a seguir: ―que é que eu vou botar será que eu boto uma rosa branca ou aqueles bolinhos de fada do Lipton eu adoro o cheiro de uma loja grande por 7,5 p. a lb ou os outros com cerejas dentro e açúcar rosado a 11 p. o par de lbs é claro uma bonita planta para o centro da mesa eu podia conseguir mais barata no espera onde é que que era que eu vi elas não faz muito‖. Percebemos no trecho acima que, ao eliminar a pontuação, Joyce engenhosamente materializa o efeito da sonolência na página e o leitor consegue ―visualizar‖ a confusão mental de Molly. Já ao final do excerto 2 ocorre o processo inverso em ―Deus do céu não tem nada como a natureza as montanhas bravas então o mar e as ondas correndo então a bela campina com campos de aveia e trigo e todos os tipos de coisas e todo o gado viçoso andando por ali que ia ser de fazer bem ao coração de ver rios e lagos e flores todas as espécies de formas e cheiros e cores brotando‖. A repetição do conector de alternância inclusiva e o exagero no uso do conector de adição caracterizam muito bem listagens espontâneas (orais e mentais), em que elementos vão sendo adicionados sem muito planejamento, o que se parece ser muito natural na presente condição intelectiva de Molly. Podemos verificar que a hábil manipulação do uso da conexão textual é um dos fatores que permite a Joyce criar estados mentais específicos para seus personagens, representando maiores ou menores graus de consciência e possibilitando que o leitor realmente tenha a sensação de que está adentrando num território reservado da psique humana, como se o autor não estivesse intermediando a relação leitor-texto.

2. As relações textuais de associação

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Figura 1

7

2.1. A seleção lexical

A primeira frase do excerto 1 – ―Estou com fome‖ – inicia um movimento circular, acionando um frame responsável pela ―seleção de palavras semanticamente próximas‖ (Antunes, 2002, p. 51) que vão se sucedendo na mente do personagem, independentemente da ―ação física‖ (o amigo que lhe cumprimenta, o exame do cardápio) até o fechamento do círculo com o pedido ―Tem sanduíche de queijo?‖. Na figura 1 procuro demonstrar mais claramente como, nesse percurso, os sub-frames vão se sucedendo, cada um seguido por sua trilha lexical específica. Nesse percurso objetos lingüísticos – que descrevem opções de bebidas e comidas, a qualidade de um anúncio, as notícias de óbitos recentes, canibalismo, rituais religiosos e sexuais, judaísmo, guerras, celebrações cristãs, questões de saúde – vão sendo introduzidos, reconstruídos, abandonados, retomados... o efeito final é de um humor bastante grosseiro e até mesmo escatológico, tendo em mente que o próprio Joyce denominou o ―órgão‖ preponderante nesse episódio como o ―esôfago‖ e a ―técnica‖ como ―peristáltica‖, e de sarcasmo. Algo semelhante acontece no excerto 2 – porém aqui nota-se a alternância de pensamentos seguindo 3 eixos: a) utilitário: o esforço de Molly para dormir, já que no dia seguinte receberá visitas e precisa planejar tudo, a limpeza da casa, o cardápio, a compra dos ingredientes, sua aparência e o entretenimento do convidado; b) meta-referente: ―eu penso enquanto eu durmo‖ e c) poético: longa trilha de pensamento iniciada pela idéia de comprar flores para decorar a casa. Percebe-se assim que, mesmo quando se reporta a ações pragmáticas, a seleção lexical para o discurso mental de Molly a consolida como uma personagem quase lírica: o planejamento das ações pragmáticas (compras, cardápio, limpeza) é entrecortado pela menção recorrente a flores, com as quais Molly pretende decorar a casa e enfeitar-se, culminando no poético devaneio final sobre a natureza. Tal comportamento condiz com a sua profissão (cantora de ópera). Compare-se o monólogo de Molly com as abstrações mentais de Bloom. Nelas também figura a natureza (a cerejeira), mas vista por uma ótica bem mais ácida, mas que também se ajusta perfeitamente à caracterização da personagem (criador de anúncios publicitários).

3. As relações textuais de reiteração

3.1 Repetição propriamente dita e substituição lexical

O substantivo ―carne‖ é repetido 5 vezes no primeiro excerto, mas não de maneira fortuita. Ele reforça a obsessão momentânea de Bloom pelo tema (e a referência paródica ao episódio da Odisséia), uma idéia que foi desencadeada pelo elemento ―fome‖, aliada ao anúncio afixado acima da lista de óbitos. ―Carne‖ funciona como um hiperônimo, que além de repetido, tem sua ação reforçada pela substituição lexical, i.e: ―sardinhas‖, ―presunto‖, ―porco‖, ―partes de honra‖, ―algo dos algos‖, ―gororoba‖, ―buchada de tripas‖, ―picadinho‖, ―Kosher‖, ―perus‖ e ―gansos‖. Depois dessas associações inusitadas e pouco apetecíveis, não é de se estranhar que Bloom exclua a presença de carne quando finalmente faz seu pedido. No trecho de Molly, existe a repetição de ―flores‖ (com as variantes lexicais ―rosas‖ e ―planta‖) e ―cheiro‖, o que sugere o contraste da fisicalidade de Molly com o intelectualismo dos protagonistas homens, que não é tão evidente nestes dois

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excertos, mas que vai se comprovando mais e mais à medida que o monólogo transcorre. (Heaney et al, 2003, p. 356) O hiperônimo ―natureza‖, que desencadeia ―montanhas‖, ―mar‖, ―ondas‖, ―campina‖, ―campos‖, ―gado‖, ―rios‖, ―lagos‖ e ―flores‖ reforça, como já foi dito acima, a personalidade lírica de Molly.

3.2 Substituição gramatical e elipse

O início do excerto 1 (um exemplo de ―monólogo interior indireto‖, que evidencia a presença do narrador) faz uso da elipse como um recurso natural dos processos mentais, aqui reforçando a associação que Bloom cria entre o bar, sua qualidade, seu dono e a generosidade um pouco ambígua deste. Removendo as elipses, teríamos: (Eu) entrava no (pub do) Davy Byrne. (É) um frege limpo. (Davy) não é de conversa. (Ele até) oferece um gole uma vez ou outra. Mas (isso só acontece) em ano bissexto. (Ele) descontou um cheque para mim uma vez. Também os trechos em que é utilizada a técnica do ―monólogo interior direto‖ em que, como vimos, o narrador ―desaparece‖ da cena como descritor dos aspectos externos, alheios ao pensamento das personagens, parece ser um campo profícuo para a utilização de elipses, como se pode verificar no trecho que inicia com ―Sardinhas no mostruário. Quase que a gente as degusta com vê-las. Sanduíche? Presunto e sua descendência amostardados com pão. Carnes em conserva...‖ Poderíamos reescrever esse trecho por um foco narrativo tradicional e teríamos: Bloom observou as sardinhas no mostruário e pensou:”Quase que a gente as degusta com vê-las.” Então cogitou pedir um sanduíche: “O que é um sanduíche?” Indagou-se. “Simplesmente presunto e sua descendência mostardados com pão.” O que trouxe-lhe à memória carnes em conserva...” Os exemplos e considerações acima parecem apontar para o fato que a utilização da elipse no fluxo de consciência (e no monólogo interior direto) é muito mais freqüente e complexa do que as elipses das narrativas tradicionais (como também no molólogo interior indireto). No excerto 2, além dessa utilização mais sofisticada do artifício da elipse, observamos também um exemplo de substituição gramatical bem particular, que em situações usuais de uso da língua poderia ser considerado como deselegante e passível de causar ambigüidade: ―para o caso que ele traga ele em casa amanhã‖. Nessa frase a co-referenciação aponta para elementos dêiticos e requer-se do leitor um papel bem mais ativo do que o normal. Em um modo tradicional de narrativa, o primeiro ele seria substituído por ―Leopold‖ e o segundo, por ―Stephen‖. Porém tal detalhamento é desnecessário em pensamento. O desafio do escritor que procura representar o fluxo de consciência é, manter a verossimilhança formal sem onerar demais o leitor ou causar interpretações errôneas. Nesse caso é o contexto dos capítulos anteriores que nos permite identificar os referentes para cada ―ele‖. Assim, ao representar os processos de formação do pensamento humano na literatura, Joyce deixa um pouco de lado os processos de progressão referencial da escrita tradicional e intensifica o uso das relações textuais de reiteração através da substituição gramatical e da elipse, mas de um modo bastante particular e intensificado.

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Conclusão

Como vimos, James Joyce revolucionou a literatura ao elevar o homem e mulher comuns à categoria de heróis e o pensamento à qualidade de aventura épica, propagando um novo conceito de realidade que se delineia no início do século XX. O papel do romancista, em apreender a vida interna das personagens é assim descrito por Virginia Woolf: ―não será esta a tarefa do romancista, a de transmitir, com tão pouca mescla do estranho e esterno quanto possível, esse espírito mutável, desconhecido e ilimitado, quaisquer que sejam as aberrações ou complexidades que ele, romancista, possa descrever?‖ (Lehman, 1989) O escritor modernista vai, desse modo, muito além da inovação temática. Joyce se propõe a formar uma complexa colcha de retalhos textual, em que os retalhos são pensamentos, fantasias, devaneios, abstrações, intuições... O desafio está em representar tudo isso (a ―aberração‖ de que fala V. Woolf) de modo verossímil com a proposta estilística do período, porém coerente. Como concluem Koch e Elias (2006, p. 184), ―a coerência não está no texto, não nos é possível apontá-la, destacá-la, sublinhá-la ou coisa que o valha, mas somos nós, leitores, em um efetivo processo de interação com o autor e o texto, baseados nas pistas que nos são dadas e nos conhecimentos que possuímos, que construímos a coerência.‖ Partindo-se do contexto para o texto, é possível para o professor de literatura encorajar essa interação, ativando e reforçando os conhecimentos lingüístico, de mundo e interacional (Koch e Elias, 2006, p. 40-45) dos alunos e chamando-lhes a atenção para as pistas fornecidas no texto. Ao perceber os detalhes da intensa intertextualidade que permeia a obra e as várias estratégias lingüísticas adotadas pelo autor para materializar na página o fluxo da consciência das personagens, como vimos neste trabalho – a evasão proposital do uso de alguns recursos tradicionais, como os conectores, em detrimento de outros, como a substituição gramatical, a retomada por elipse, e a seleção lexical – o estranhamento inicial do leitor pode transformar-se em admiração e curiosidade. A atenção à lingüística textual pode, assim, tornar a tarefa de ler Joyce bem mais prazerosa e profícua.

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Anexo 1

Excerto 1

Ah, I’m hungry. He entered Davy Byrne’s. Moral pub. He doesn’t chat. Stands a drink now and then. But in leapyear once in four. Cashed a cheque for me once. What will I take now? He drew his watch. Let me see now. Shandygaff? --Hello, Bloom, Nosey Flynn said from his nook. --Hello, Flynn. --How’s things? --Tiptop … Let me see. I’ll take a glass of burgundy and … let me see. Sardines on the shelves. Almost taste them by looking. Sandwich? Ham and his descendants mustered and bred there. Potted meats. What is home without Plumtree’s potted meat? Incomplete. What a stupid ad! Under the obituary notices they stuck it. All up a plumtree. Dignam’s potted meat. Cannibals would with lemon and rice. White missionary too salty. Like pickled pork. Expect the chief consumes the parts of honour. Ought to be tough from exercise. His wives in a row to watch the effect. THERE WAS A RIGHT ROYAL OLD NIGGER. WHO ATE OR SOMETHING THE SOMETHINGS OF THE REVEREND MR MACTRIGGER. With it an abode of bliss. Lord knows what concoction. Cauls mouldy tripes windpipes faked and minced up. Puzzle find the meat. Kosher. No meat and milk together. Hygiene that was what they call now. Yom Kippur fast spring cleaning of inside. Peace and war depend on some fellow’s digestion. Religions. Christmas turkeys and geese. Slaughter of innocents. Eat drink and be merry. Then casual wards full after. Heads bandaged. Cheese digests all but itself. Mity cheese. --Have you a cheese sandwich?

Excerto 2 (…) better lower this lamp and try again so as I can get up early Ill go to Lambes there beside Findlaters and get them to send us some flowers to put about the place in case he brings him home tomorrow today I mean no no Fridays an unlucky day first I want to do the place up someway the dust grows in it I think while Im asleep then we can have music and cigarettes I can accompany him first I must clean the keys of the piano with milk whatll I wear shall I wear a white rose or those fairy cakes in Liptons I love the smell of a rich big shop at 7 1/2d a lb or the other ones with the cherries in them and the pinky sugar 11d a couple of lbs of those a nice plant for the middle of the table Id get that cheaper in wait wheres this I saw them not long ago I love flowers Id love to have the whole place swimming in roses God of heaven theres nothing like nature the wild mountains then the sea and the waves rushing then the beautiful country with the fields of oats and wheat and all kinds of things and all the fine cattle going about that would do your heart good to see rivers and lakes and flowers all sorts of shapes and smells and colours springing up (…)

(Joyce, on-line)

11

Anexo 2

1

Title Telemachus

Scene The Tower

Time 8 a.m.

2

Nestor

The School

3

Proteus

4

Art Theology

Colour White, gold

Symbol Heir

10 a.m.

History

Brown

Horse

The Strand

11 a.m.

Philology

Green

Tide

Calypso

The House

8 a.m.

Kidney

Economics

Orange

Nymph

5

Lotus-eaters

The Bath

10 a.m.

Genitals

6

Hades

11 a.m.

Heart

7

Aeolus

12 noon

Lungs

Rhetoric

8 9

1 p.m. 2 p.m.

Esophagus Brain

Architecture Literature

The Streets

3 p.m.

Blood

11

Lestrygonians Scylla and Charybdis Wandering Rocks Sirens

The Graveyard The Newspaper The Lunch The Library

Botany, Chemistry Religion

4 p.m.

12 13

Cyclops Nausicaa

The Concert Room The Tavern The Rocks

14 15

Oxen of the Sun Circe

16 17 18

10

Organ

Eucharist

Technique Narrative (young) Catechism (personal) Monologue (male) Narrative (mature) Narcissism

White, black

Caretaker

Incubism

Red

Editor

Enthymemic Peristaltic Dialectic

Mechanics

Constables Stratford, London Citizens

Ear

Music

Barmaids

5 p.m. 8 p.m.

Muscle Eye, Nose

Politics Painting

Grey, blue

Fenian Virgin

The Hospital The Brothel

10 p.m.

Womb

Medicine

White

Mothers

12 midnight

Magic

Whore

Eumaeus Ithaca

The Shelter The House

1 a.m. 2 a.m.

Locomotor Apparatus Nerves Skeleton

Fuga per canonem Gigantism Tumescence, detumescence Embryonic development Hallucination

Navigation Science

Sailors Comets

Penelope

The Bed

Flesh

Earth

Labyrinth

Narrative (old) Catechism (impersonal) Monologue (female)

(Heaney et al, 2002, p. 356)

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Referência bibliográfica

ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola, 2005. CARTER, R. e McRAE, J. History of Literature in English. London: Routledge, 1997. HEANEY, Dermot et al. Echoes 2: from romanticism to the present age. Milano: Lang Edizioni, 2003. HUMPREY, Robert. O fluxo de consciência. Trad. Gert Meyer. São Paulo: McGraw Hill, 1976. JOYCE, James. Ulysses. Disponível online: http://www.gutenberg.org/etext/4300. Acesso em 19 de outubro de 2007. JOYCE, James. Ulisses. Trad. Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. KOCH, I. e ELIAS, V. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. LEHMAN, John. Virginia Woolf. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. THORNLEY, G. e ROBERTS, G. An outline of English literature. Harlow: Longman, 1997.

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