A LÍNGUA COMO BEM CULTURAL E IDENTITÁRIO: A MULTIPLICIDADE DE SISTEMAS A SERVIÇO DAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

June 4, 2017 | Autor: G. Andrade da Silva | Categoria: Ensino, Cultura, Identidade, Variação cambial, Língua
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1 Profª. da Universidade do Estado da Bahia – UNEB – CAMPUS IV – Jacobina -BA , Brasil. [email protected]
A LÍNGUA COMO BEM CULTURAL E IDENTITÁRIO: A MULTIPLICIDADE DE SISTEMAS A SERVIÇO DAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Geysa Andrade da Silva

RESUMO: A língua foi, desde muito tempo, objeto de estudo do homem porque esta é um bem cultural e revela em sua prática o caráter identitário de um indivíduo e/ou comunidade que faz uso sistemático deste sistema de signos da mesma, ainda que inicialmente sem caráter científico. Nas últimas décadas tornou-se elemento de acirradas discussões no meio acadêmico, já que há uma norma culta defendida a partir de registros de fala da classe mais escolarizada – classes médias e alta – e de uma norma popular, menos monitorada e que o aluno, no geral, traz para a sala de aula.
Sua relação direta com a cultura e a identidade de um povo e consequentemente com suas propriedades inerentes, trazem para essa discussão linguística aspectos sociais, geográficos e políticos entre tantos outros. Seja com preocupações com a história interna da língua, seja com apreensões com os fatores externos, especialmente os socioculturais, o fato é que este conjunto potencial de signos que é a língua, tornou-se objeto de estudo científico dos linguistas e, nas últimas décadas elemento de ponderação de professores e alunos nos cursos de graduação em Letras e de outros interessados no tema, buscando visualizar e refletir sobre as transformações dos esforços empreendidos nas pesquisas sociolinguísticas em instrumentos pedagógicos capazes de muni-los com práticas pedagógicas para uma educação linguística que lhes ensinem a lidar com as variedades linguísticas estigmatizadas.
Propõe-se discutir o tema em três momentos: 1 - o caráter identitário da língua imersa na cultura de um povo; 2 - os esforços dos linguistas em processos contínuos e sistemáticos de apreensão da natural variação linguística e 3 - o reflexo da variação na educação formal, ainda distante da necessária educação linguística.
PALAVRAS-CHAVES: Língua; Identidade; Cultura; Variação; Ensino.

Introdução

A língua foi, desde muito tempo, objeto de estudo do homem porque esta é um bem cultural e revela em sua prática o caráter identitário de um indivíduo e/ou comunidade que faz uso sistemático deste sistema de signos, ainda que inicialmente sem caráter científico. Nas últimas décadas tornou-se elemento de acirradas discussões no meio acadêmico.
Sua relação direta com a cultura e a identidade de um povo e consequentemente com suas propriedades inerentes, trazem para essa discussão linguística aspectos sociais, geográficos e políticos entre tantos outros. Seja com preocupações com a história interna da língua, seja com apreensões com os fatores externos, especialmente os socioculturais, o fato é que este conjunto potencial de signos que é a língua, tornou-se objeto de estudo científico dos linguistas e, nas últimas décadas elemento de reflexão de professores e alunos nos cursos de graduação em Letras e de outros interessados no tema.
O presente texto faz uma retomada bibliográfica sobre língua, identidade, cultura, variação e ensino e busca refletir com professores e estudantes de língua as transformações dos esforços empreendidos nas pesquisas sociolinguísticas em instrumentos pedagógicos capazes de muni-los com práticas pedagógicas para uma educação linguística que lhes ensinem a lidar com as variedades linguísticas estigmatizadas.
Este artigo se propõe a discutir o tema em três momentos: 1 - o caráter identitário da língua imersa na cultura de um povo; 2 - os esforços dos linguistas em processos contínuos e sistemáticos de apreensão da natural variação linguística e 3 - o reflexo da variação na educação formal, ainda distante da necessária educação linguística.

1 - Língua sempre se revelou como cultura e identidade

Os precursores gregos com suas profundas reflexões filosóficas acerca da língua, tratavam-na com finalidades eminentemente práticas, ainda que desprovidos de uma visão científica e nada interessados no estudo da língua em si mesmo. Quando tais estudos evoluíram para a Filologia dos alexandrinos, a língua passou a ser marcada por uma preocupação gramatical em nível de modalidade escrita.
A descoberta do parentesco entre as línguas, na preocupação diacrônica de suas evoluções e funcionamento, foi o conhecimento aproveitado pelas novas perspectivas lingüísticas. Iniciavam-se assim os primeiros estudos sistemáticos de língua, os quais experimentariam um impulso extraordinário e se prolongariam até os dias de hoje.
Na contemporaneidade, os estudos de Weinreich, Labov e Herzog constituem ponto de partida para estudos da língua a partir da dinâmica da mudança direcionada pelos fatores extralinguísticos, o que não vem a gerar um caos na língua, mas uma aceitação de uma heterogeneidade ordenada.
No Brasil especificamente, a partir do século XX, há de se levar em consideração ainda que o contato entre línguas (indígenas e africanas predominantemente e ainda, dos povos imigrantes) afetou a maneira como o português passou a ser falado e, por conseguinte virou objeto de estudo de projetos de pesquisas, na tentativa de desvendar as marcas da influência de contato do Português com outras línguas. Portanto, a língua brasileira, símbolo de identidade cultural, agregou-se a muitas outras culturas além da portuguesa, despontando-se ser uma amálgama de todas elas.
Tal língua sempre se revelou como cultura e identidade de seus falantes. Passeando pelo conceito de cultura abordado por Michel Certau (2005) em A cultura na sociedade, nos deparamos com uma fixação do termo entre tantos outros semeados "sobre um solo de palavras instáveis" que satisfaz ao anseio deste artigo. Designa, cultura como
Mais do que um conjunto de valores que devem ser defendidos ou ideias que devem ser promovidas, a cultura tem hoje a conotação de um trabalho que deve ser realizado em toda extensão da vida social... As indagações, as organizações e as ações ditas culturais representam ao mesmo tempo sintomas e respostas com relação a mudanças estruturais na sociedade (CERTEAU, 2005, p. 192).
E, exatamente por realizar-se em toda essa extensão, é que se insere na cultura a língua. No entanto, observa-se que no regime social capitalista no qual estamos mergulhados, há inúmeros processos de tensão, inclusive uma vez que no termo cultura, pode-se circular "o que quer que seja" e estando ela repleta de agentes e promotores culturais que monopolizam a fachada da cultura e deixam a população imersa numa passividade, é restrito o número de indivíduos que pensam a língua enquanto elemento da cultura do nosso povo; sequer nas aulas de Língua Portuguesa (ou na maioria delas), analisam-na como objeto vivo e não apenas estrutural.
Imaginar que o Brasil, tão diverso culturalmente, conseguiria implementar uma mesma norma linguística culta nos mais distantes territórios deste continente é utópico. Se possuímos cultura popular e erudita, realizações conscientes e inconscientes, produções, manifestações e ciências tão diversa é natural que nossa língua, reflexo de toda essa cultura, seja também tão diversa, rica em variações e identitário de parcelas múltiplas da população.
Justamente por tamanhas variações, o desprezo a vertente popular da língua e da cultura reafirma que ambas são tidas como inferiores por não terem significativa representação econômica e política, embora como todo traço cultural, interagiram com tantos outros formando nossas permutações, combinações e sínteses como cita Durkheim (1912) e, que pelo menos a priori, enriqueceram assim suas propriedades. Desprezar tal vertente popular e aceitar automaticamente a cultura dominante de uma classe seja social, política ou econômica apesar de demograficamente ter representação minoritária é tornar lícito o preconceito imbuído na variação cultural, e por extensão linguística. (DURKHEIM,1912 apud NARDI, 2002, p.4)
A língua configura-se como elemento fundamental de traços culturais, e além de sua vertente popular, desprezada por uma minoria – mas reforçada pela maioria dos usuários dela – é preciso lembrar-se dos problemas que ela enfrenta na sua modalidade oral.
Segundo Jean Baptista Nardi (2002) o termo cultura aborda uma confusão semântica, uma opacidade de conceito, muitas vezes reduzido apenas à produção cultural e termina por carecer de uma definição nítida. E quando trata de noções de cultura nacional o autor releva:
A cultura nacional, geralmente, identifica-se com a cultura dominante de uma classe social, economicamente e politicamente superior enquanto é demograficamente minoritária. Opõe-se à cultura popular, considerada como inferior, embora seja numericamente superior, por não ter a mesma qualidade de representação econômica e política. Também considera-se como subcultura - sem o sentido de inferioridade - as culturas regionais ou locais, como parte da cultura nacional, ideia que supõe a existência de um centro como ponto de partida (NARDI, 2002, p. 4-5).
É neste contexto, que Nardi propaga que os problemas da língua brasileira em relação a Portugal não são apenas terminológicos passam pelas questões culturais e sociais dos dois países:
vão desde a evolução separada do Português brasileiro, já que se tornou uma variante do Português de Portugal com diferenças estruturais importantes da sua língua mãe;
atingem a língua falada no que tange a ausência de norma lisboeta, além das numerosas variantes decorrentes de classes sociais e níveis escolares encontrados na população brasileira;
e encerram-se - se é que podemos dizer dos fins dos problemas – no fato de que o Português ensinado no Brasil mantém a norma portuguesa com algumas adaptações, distante todavia da língua utilizada pelos falantes nativos da língua brasileira.
Constata-se então que não são problemas apenas de ordem linguística, mas também de cultura e sociedade. Entre eles, de um lado uma atitude conservadora defendendo a integridade da Língua Portuguesa, do outro uma atitude patriota daqueles que estão voltados para um status de língua nacional e que se afastam das raízes culturais portuguesas. E qualquer que seja a solução encontrada, haverá frustações daqueles que submergiram na questão e cultivaram o estudo da língua, seja pela falta de padrão no Brasil ou pelo ensino da norma portuguesa. Será um conflito social com vitórias políticas como já perpetuado.
O linguista alemão Wilhelm Von Humboldt (1972) mantém-se nesta linha da não unidade linguística e afirma que as palavras são objetos reais e que a excelência da língua vem do fato de ser falada por um povo - sendo social é, portanto, heterogênea - abre precedente para se ver na língua as variações. Humboldt (1972) declara que a língua precisa da gramática para adquirir nexo, para ele a linguagem é como um sistema que "faz infinitos usos de meios finitos" o que depois veio a ser a base da teoria da linguagem de Noam Chomsky (gramática gerativa transformacional) e revela uma propriedade das línguas humanas. Aquele autor defende assim, a ideia de que a língua é um instrumento vigoroso de resistência às padronizações o que inclui, portanto uma resistência à própria padronização da língua, por isso apesar dos finitos fonemas, número de palavras e regras organizacionais sintáticas é infinito o número de enunciados possíveis. (HUMBOLDT,1972 apud MATEUS, 2000, p. 9).
É preciso também considerar que no Brasil há mais de 180 línguas vivas e este número pode ser muito maior. A grande maioria é autóctone (indígena) e mais de 30 delas são alóctones (de imigração), estas presentes em diferentes regiões do país e em muitas cidades colonizadas por imigrantes, inclusive coexistindo. Como impor uma unidade nacional na nossa língua diante da vertente popular, diante de um português culto distante do falante nativo, diante de tantas diferenças sociais e das culturas que se agregam a nós?
É óbvio que a partir do constatado, o caráter identitário do brasileiro com sua língua oficial é conflituoso, além de comprometer sua identidade nacional, da qual a língua é inegavelmente instrumento. É preciso considerar que as estruturas finitas não esgotam a descrição da língua, já que seu funcionamento social é incluído na sua análise, multiplicando-se em inúmeras variantes.
Não podemos esquecer também como a última flor do Lácio chegou a terra Pau-Brasil, imposta e tradicional, aculturou nativos e a grosso modo se fez oficial. No entanto, considerar que ela fosse permanecer homogênea, invariável e compacta era uma concepção sem nexo, uma vez que as línguas estão sempre num processo de construção e reconstrução, um nunca concluído, fruto do fato de que os seres humanos estão sempre sujeitos a diversificação, instabilidade e conflitos.
Como afirma Bagno (2007)
Ao contrário de um produto pronto e acabado, de um monumento histórico feito de pedra e cimento, a língua é um nunca concluído. A língua é uma atividade social, um trabalho coletivo, empreendido por todos os seus falantes, cada vez que eles põem a interagir por meio da fala ou da escrita (BAGNO, 2007, p. 23).
Assim sendo, o "estado natural" das línguas é composto da variação e da mudança linguística, para inclusive, acompanhar o estado dos seres humanos que a falam, que independente de época ou lugar, é diversificado, instável, mutante. A língua tornou-se, portanto um sistema nunca pronto concebido pela plena interação social e cultural. E assim, por mais que desejássemos jamais conseguiríamos juntar num dicionário todas as palavras da língua com seus diversos sentidos, pois a língua não é uma realidade estática; ela é sim, dinâmica e aberta, em contínuo movimento imprevisível, tal qual a vivência humana.
A Língua Portuguesa do Brasil varia não apenas pelas capacidades cognitivas dos indivíduos, mas por estar no território brasileiro, por ser falada por pessoas de classes sociais e níveis escolares diferentes, por receber influências dos imigrantes no contato entre línguas, porque é usada mais na oralidade do que na modalidade escrita, pelo conflito de interesses entre a integridade da Língua Portuguesa e a reforma que valoriza as especialidades dos nossos falantes, pela rigidez imposta e falível da norma-padrão a que o falante não se adapta, porque é criação de um homem em constante reconstrução e a ele está submetida, e assim (ainda), varia porque é uma identidade cultural de uma população com muitas facetas.
É, portanto, papel da língua marcar a identidade do indivíduo ao mesmo tempo que são os indivíduos na sua coletividade que identificam uma língua, um contínuo estado de fluxo. Como afirma Rajagopalan (1998)
A identidade de um indivíduo se constrói na língua e através dela. Isso significa que o indivíduo não tem uma identidade fixa anterior e fora da língua. Além disso, a construção da identidade de um indivíduo na língua e através dela depende do fato da própria língua em si ser uma atividade em evolução e vice-versa. Entre outras palavras, as identidades da língua e do indivíduo têm implicações mútuas. Isso por sua vez significa que as identidades em questão estão sempre num estado de fluxo. (RAJAGOPALAN, 1998, p. 41).
Há muito tempo, ficou evidente aos pesquisadores o comportamento variável da língua. Compreender as razões que influenciam tais mudanças perpassa sem sombras de dúvidas por aspectos não apenas linguísticos, mas também extralinguísticos da vivência cotidiana do homem neste coletivo que é a sociedade. Neste sentido, a afirmação do autor sobre a implicação da evolução da língua na construção da identidade cultural do indivíduo e vice-versa.
2 – A sociolinguística apreende a natural variação linguística
Diferentes correntes científicas, nos últimos tempos, estão às voltas nos estudos da língua; tradicionais, descritivistas, puristas, linguistas, sociolinguistas coexistem na busca de uma análise imparcial para entender não apenas a estrutura normativa – pois esta já está posta - mas justamente, para entender a situação mais interessante: a pluralidade linguística.
Muitos são ainda os tradicionais que acreditam que para falar bem é preciso ornar as estruturas e por isto mesmo, apostam numa língua normativa; na mão oposta, estão os sociolinguistas que sustentam a variação linguística como riqueza da língua. Sobre essa relação variação e sociolinguística, Mollica (2004) então assinala que:

A sociolinguística considera em especial como objeto de estudo exatamente a variação, entendendo-a como um princípio geral e universal, passível de ser descrita e analisada cientificamente. Ela parte do pressuposto de que as alternâncias de uso são influenciadas por fatores estruturais e sociais (MOLLICA, 2004, p.9-10).

A gênese da variação linguística é esboçada pela língua enquanto elemento cultural mergulhada na sociedade e Certau (2005, p. 204) quando revela que "o homem é falado pela linguagem de determinismos socioeconômicos muito antes que fale", revela inegavelmente, que este falante então determinado, esteja imbuído de tais aspectos e das inúmeras influências deles na realização da língua, assemelhando-se ao dito por Humboldt.
A fala espontânea é característica identitária do falante que deixa escapar uma série de variáveis sociais na sua realização, acrescente-se aqui a escrita também, já que há de se considerar uma diferença no uso dessas modalidades. Os falantes fazem usos dessas variantes sem grandes alterações na mensagem, Naro (2008) acrescenta que isto fica bem evidente em casos como peixe/pexe, menino/minino, pego/pegado, alguém lavou os pratos/os pratos foram lavados, tu/você e que esta heterogeneidade é também regulada por um conjunto de regras, no qual as variações podem estar em competição ou sequer figurar como possibilidade dentro das regras sendo, portanto, inaceitáveis. No entanto, analisar cientificamente a língua não é um processo fácil, uma vez que os linguistas se deparam sempre com uma inesgotável complexidade de estrutura e funcionamento dela.
A sociolinguística variacionista propagada pela figura chave de Willian Labov (1927) aposta, portanto, em reforçar a importância do estudo da língua, a partir da variação, já que na perspectiva da interação, nenhuma língua permanece imutável dada às mudanças geográficas, de classes sociais, de faixa etária, de meio urbano ou rural, de sexo/gênero do falante, de nível de escolaridade, isto sem se falar, nos padrões estéticos e morais, além da estilística que revela o gosto de um mesmo indivíduo em contextos diferentes.
Tais processos de variação não ocorrem de um dia para o outro e, para tentar entender esta heterogeneidade da língua, os pesquisadores variacionistas valem-se de um processo contínuo e sistemático, incluindo uma análise quantitativa em programas de computadores (a exemplo do Varbrul e do Goldvarb), de células sociais de informantes para refletir sobre os aspectos formais da língua, seus usos, seus falantes, seus gêneros, contextos e sua história.
Nestes métodos quantitativos – variabilidade, tendências, relações de mais e menos – busca-se mapear a relação língua e sociedade, "incluindo o uso de tabelas e gráficos para apresentação de dados, medidas estatísticas para resumir dados e fazer inferências sobre eles, testes de significância e confiabilidade e técnicas analíticas quantitativas" (GUY, 2007, p. 20). De posse dos dados, podemos destacar a afirmação confiante de Bortoni- Ricardo:

[...] as variedades faladas pelos grupos de maior poder político e econômico passam a ser vistas como variedades mais bonitas e até mais corretas. Mas essas variedades, que ganham prestígio porque são faladas por grupos de maior poder, nada têm de intrinsecamente superior às demais. O prestígio que adquirem é mero resultado de fatores políticos e econômicos. O dialeto (ou variedade regional) falado em uma região pobre pode vir a ser considerado um dialeto "ruim", enquanto o dialeto falado em uma região rica e poderosa passa a ser visto como um "bom" dialeto ( BORTONI-RICARDO2004, p.34).


Não havendo supremacia de uma variação sobre a outra – a não ser política e economicamente – as diversas formas de falar estão respaldadas na maneira de falar de uma comunidade linguística. A diversidade é tamanha e em diversos aspectos – fonológicos, morfológicos, sintáticos, lexicais – que um único falante constrói e reconstrói enunciados semelhantes em processos comunicativos diferentes, sendo capaz inclusive de adquirir variações do seu interlocutor. Neste ponto, Boomfield (1933) dispara:
Todo falante está constantemente adaptando seus hábitos de fala aos de seu interlocutor; ele abre mão de formas que tem usado, adota novas e, talvez mais frequentemente que tudo, muda a frequência das formas faladas sem abandonar inteiramente as velhas ou aceitar qualquer uma que seja realmente nova para ele. ( BLOOMFIELD, 1933, p.327-328 apud WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006, p. 93-94 ).

Observe-se ainda, que a língua é caracterizada pela fluidez e por seus recursos diversos, podemos jogar com sua estrutura fazendo com que o enunciado signifique além dele mesmo. É o que ocorre quando fazemos uma afirmativa e valemo-nos de ironia para que signifique exatamente o oposto, ou quando não nos referimos exatamente a um pedido ou ordem, mas permitimos que nosso interlocutor compreenda-o a partir do mencionado – o dito indireto.
Essas duas situações unidas às metáforas, comparações, metonímias e tantas outras figuras de linguagem mergulhadas na língua do indivíduo, ampliam a rede de análise dos linguistas a essa língua movente em seu uso e de universo infinito.
Mesmo sem escapar as mudanças, as variedades ou movimento contínuo, a língua continua sendo desejo / objeto de estudo dos linguistas, num método científico, pois quanto mais a compreendermos, mais estaremos compreendendo aos seres humanos da linguagem que somos. Reconhece-se então, a identidade cultural do povo em estudo, povo este que adquire relativa unidade através da língua.

3 - Língua como elemento de reflexão de professores e alunos

Se o homem é heterogêneo e a língua um produto social deste entrelaçamento, não faz sentido algum tratar as variações linguísticas como um "problema". Problema mesmo é acreditar numa padronização linguística, enrijecedora da língua idealizada, perfeita, imutável, bem acabada, incapaz de permitir variações, mas capaz de contradizer o saber que o falante tem do funcionamento da sua língua materna, que sofre variações em processo contínuo, impossível de ser estancado.
Apostar numa norma-padrão é renegar a fala espontânea, o modo particular que cada falante tem de usar a língua; é reduzir, tanto no ambiente das aulas de Língua Portuguesa – e às vezes de algumas outras – e no discurso da mídia conservadora, a variação linguística – que torna a língua tão heterogênea – ao conceito do erro, estigmatizando o preconceito linguístico. Tal conceito é na verdade um pseudoconceito, formado por uma tentativa sociocultural fraudulenta de impor critérios de avaliação fundamentados numa minoria privilegiada, isto porque
[...] os erros que condenamos só são erros se o critério de avaliação for externo à língua ou ao dialeto, ou seja, se o critério for social. Mas, se adotássemos esse critério para todos os casos, deveríamos também concluir que são erros todos os modos diferentes de falar, mesmo os que são típicos de outras línguas (POSSENTI, 1997, p.30).

Para uma atitude de maior relevância sociocultural da língua dada a sua dinâmica, é necessário entender que a língua padrão cumpre seu papel, mas a atitude negativa do erro tradicionalmente imposta como preconceito linguístico posto pelo ensino da gramática normativa precisa ser superada criticamente.
Estabelecer diante do exposto, uma norma falada a ser ensinada deste lado do oceano não é tarefa fácil para educadores e linguistas; se por um lado não se pode manter integralmente a língua do além-mar, por outro não se pode defender radicalmente as especificidades da terra brasilis.
Encontrar o meio termo é uma tarefa que exige sutileza, não é a toa que muitos erros/desvios são criados na produção não só da língua falada, mas também da escrita e, saná-los não é uma tarefa específica da linguística ou do ensino.
Antagônico, portanto é constatar que vivendo e usufruindo da língua enquanto objeto da sua própria cultura, o aluno e o professor de Língua Portuguesa, sujeitos mais especializados na questão, permitam-se estar submetidos a uma variante social, dita culta, imposta pela mídia de massa – mais poderosa que a escola e a família – e reprodutora de um discurso político dominante. E mais, permitam-se reproduzir tal discurso, fazendo da língua um elemento de estratificação social, na e pela qual indivíduos são condenados a situar-se a margem da sociedade por não dominarem a norma difundida por aqueles agentes e promotores culturais que planejam e divulgam uma língua que nada mais é que o reflexo do monopólio e o fruto de uma padronização distante da realização da maioria populacional brasileira; mas que no entanto, reina na mídia e para um grupo minoritário amante do conservadorismo linguístico.
Se o modo de falar do indivíduo identifica sua maneira de viver, do grupo social no qual está inserido, assim como da localidade onde mora, reforçando nesta fala a identidade cultural peculiar do indivíduo; não há lógica que a escola tire a ferro e fogo o domínio dessa comunicação da prática linguística do aluno. É preciso sensibilidade e cautela para não destituir o indivíduo de sua identidade cultural, deixando-o deslocado de uma identidade ou causar-lhe aversão à escola na qual ele não se reconhece. Há uma obrigatoriedade em se adotar uma postura que nos afaste do ensinar já que
A prática tradicional de ensino da língua portuguesa no Brasil deixa transparecer, além da crença no mito da "unidade da língua portuguesa", a ideologia da necessidade de "dar" ao aluno aquilo que ele "não tem", ou seja, uma "língua". Essa pedagogia paternalista e autoritária faz tábua rasa da bagagem lingüística da criança, e trata-a como se seu primeiro dia de aula fosse também seu primeiro dia de vida. Trata-se de querer "ensinar" ao invés de "educar" (BAGNO, 1997, p.62).

A língua materna de quase a totalidade dos habitantes do Brasil é objeto de estudo dos linguistas a décadas. Inúmeras pesquisas e centenas de textos já foram publicadas sobre o assunto em meios especializados. No entanto, ainda é tímida a modificação de todos estes esforços em instrumentos pedagógicos capazes de munir professores com práticas pedagógicas por uma educação linguística que ensine a lidar com as variedades linguísticas estigmatizadas. E não se pode ficar esperando uma sensibilidade social dos docentes ou dos envolvidos no processo educacional para superar o que por séculos vem sendo negligenciado pelas ações políticas em relação à educação formal.
É preciso vestir a camisa e honrar com ações o fato de a escola, por ser primordialmente a fonte do letramento na nossa sociedade, não poder ser responsável pela reprodução das desigualdades sociais que passam pelo preconceito linguístico. E mais, é preciso oferecer aos professores oportunidades de observar os fenômenos de variação e/ou mudança linguística dos seus alunos de modo mais embasado cientificamente e por consequência mais consistente. Saí da sensibilidade social e instrumentalizar pedagogicamente a outra ponta com as pesquisas – já realizadas ou em andamento – é uma necessidade para transformar esta relação de preconceito entre língua e sociedade.
O que está posto é que os professores de Língua Portuguesa acabam por acreditar que é obrigação deles coibir severamente os usos de língua desviados da norma culta. Na verdade, a maioria deles não sabe como lidar com os "erros de português" e acabam por, na sua prática, reafirmar o preconceito linguístico de natureza ideológica.
É em sala de aula que a variedade informal usada no domínio familiar do aluno justapõe-se a variante padrão da cultura letrada,
É papel da escola, portanto, facilitar a ampliação da competência comunicativa dos alunos, permitindo-lhes apropriarem-se dos recursos comunicativos necessários para se desempenharem bem, e com segurança, nas mais distintas tarefas lingüísticas (BORTONI-RICARDO, 2004, p.74).
Sabemos que as mudanças na língua não se dão apenas no aspecto lexical, mas também morfossintático e não podemos deixar de abordar os fonológicos exemplificados amplamente nas monotongações, para citar apenas um. Assim ao ingressar na escola, o aluno encontra-se frente a uma série de mudanças da língua que ele acreditava ser materna, do seu domínio. Este estranhamento, dar-se também no ingresso ao curso universitário tanto pelos formatos dos gêneros textuais agora dominantes, como por uma extensa lista de vocábulos destituídos de significados (e até significantes) no tempo do Ensino Fundamental e Médio.
Bortoni-Ricardo (1945) apresenta, no seu trabalho Educação em Língua Materna: a Sociolinguística na sala de aula (2004), contínuos da variação linguística urbano-rural, oralidade-letramento, monitoração estilística. Observa-se que nas séries iniciais temos mais ocorrências destes contínuos, mas eles se estendem aos cursos de Letras e é neste contato que percebemos que muitos dos professores não estão instrumentalizados para realizar uma abordagem sistêmica das diferenças e o indivíduo mesmo tendo cumprido mais de uma década de educação básica não domina a variante padrão e por vezes, o curso universitário não cumpre o papel de instruir tal domínio e os caminhos que estes futuros professores de língua precisam seguir para levar seus então alunos a não ficarem presos neste arame farpado na trincheira da linguagem.
Os chamados "erros" que nossos alunos cometem têm explicação no próprio sistema e processo evolutivo da língua. Portanto, podem ser previstos e trabalhados com uma abordagem sistêmica. Para tanto, faz-se necessário que o professor saiba identificar o uso não padrão pelo aluno a fim de que possa propor intervenção que conscientize os educandos da transgressão a norma culta respeitando as características individuais deles. Mas como revela a pesquisadora Bortoni- Ricardo (2004), o problema está no fato de que, muitas vezes, o professor não consegue identificar a diferença ou por falta de atenção ou pelo desconhecimento a respeito da regra; tal conscientização tem o objetivo de mostrar ao aluno que ele pode monitorar o seu próprio estilo, mas para tanto, o professor não pode fazer uma intervenção inoportuna ou desrespeitosa ao trabalhar esta variedade padrão, pois tal condução é inadequada ao processo de ensino da língua materna identitária da cultura daquele aluno.

Considerações Finais

Diante de tudo, e já dito por muitos embora ainda não consigamos atingir o objetivo na prática, é compromisso da escola levar o aluno ao domínio de variantes que gozem de prestígio, ampliando seu repertório lexical, pronunciando e escrevendo as palavras com todos e apenas os seus fonemas, realizando as concordâncias, produzindo enunciados sintaticamente coerentes, acessando as estruturas e os recursos de forma ampla e diversificada, adquirindo assim uma competência comunicativa que não desvalorize a sua própria variedade social e ao mesmo tempo forneça-lhe subsídios para transitar pela variedade dita padrão.
Não é o caso de tornar uma norma linguística obrigatória, pois assim estaríamos tomando uma decisão política de no mínimo duplo sentido e com muitas consequências. Reduziríamos a um grupo denominador – a classe mais formada – o alto nível de poder e norma linguística; ao mesmo tempo em que, estaríamos impondo uma forma de opressão de nível político e não de conteúdos linguísticos e culturais ao outro grupo das classes excluídas – parcial e totalmente. Sem extremismos, é preciso não negar a própria existência de nenhum grupo e assegurar a coexistência de todos, a pluralidade linguística, a multiplicidade de sistemas, admitindo a mudança e a variação como algo natural, intrínseco da língua inserida neste contexto brasileiro.
Caso contrário, precisamos nos segurar na utopia de que sendo o homem criador e produto da sua cultura – e por extensão língua – e estando nela envolvidas uma série de questões política, econômicas, sociais, linguísticas, o meio plausível de se diminuir as lacunas entre as variações linguísticas seria produzir significativas mudanças sociais e econômicas para reduzir as desigualdades e, por conseguinte, integrar os falantes e escritores nativos brasileiros com suas riquezas individuais a uma mesma comunidade linguística, econômica e cultural, na qual seu processo de identidade nacional esteja assegurado e, anuladas as tão díspares variantes linguísticas.
Estamos portanto, entre 1- o possível, neste momento, a coexistência da pluralidade linguística, corroborando com o multilinguismo do falante dentro de sua própria língua, assegurando ao aluno o domínio da norma padrão – como mais uma – para que o mesmo lance mão dela em situações específicas e 2 – a utopia, de sanar as desigualdades sociais do país e levar os falantes a unificação de uma comunidade linguística. Enquanto professores de Língua Portuguesa já temos um objetivo: mãos a obra.

REFERÊNCIAS

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GUY, Gregory R. ZILLES, Ana. Sociolinguística Quantitativa – instrumentos de análise. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
MATEUS, Maria Helena Mira - Se a língua é um factor de identificação cultural, como se compreende que a mesma língua identifique culturas diferentes? Educação & Comunicação. N.º 4 (Dez. 2000), p. 9-21.
MOLLICA, Maria Cecília. BRAGA, Maria Luiza (orgs.). – Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. – 3ª ed. – São Paulo: Contexto, 2008.
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