A língua e o discurso do Exame das Tradições Phariseas de Uriel da Costa. M.A. Thesis. The Hebrew University of Jerusalem, 2011.

July 3, 2017 | Autor: Gabriel Mordoch | Categoria: Sephardic Studies, Jewish Languages, New-Christians' History, Uriel Da Costa
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‫תכנית אישית למוסמך במדעי הרוח‬ ‫הפקולטה למדעי הרוח‬ ‫האוניברסיטה העברית בירושלים‬ )74449 '‫עבודה סמינריונית בעלת אופי מחקרי (סמל קורס מס‬ ‫מגוש על ידי גבריאל מורדוך‬ ‫בהנחיית פרופ' סיריל אסלנוב‬

‫ תשע"א‬- ‫ירושלים‬

‫היבטים על הלשון והשיח בבחינת מסורות הפרושים מאת אוריאל דה קוסטה‬

SOBRE A LÍNGUA E O DISCURSO DO ‘EXAME DAS TRADIÇÕES PHARISEAS’ DE URIEL DA COSTA

Aspects of the Language and Discourse of Uriel da Costa’s Exame das Tradições Phariseas (Examination of Pharisaic Traditions)

Seminar Research Project in M.A. Studies (course nº 74449) Submitted by Gabriel Mordoch Director: Prof. Cyril Aslanov

Individual Graduate Program The Faculty of Humanities The Hebrew University of Jerusalem

2011

‫סיכום‬ ‫בעבודה הזאת אנחנו שופכים אור על היחסים בין זהותו הגבולית של האנוס לשעבר אוריאל דה קוסטה‬ Exame das tradições ( ‫) לבין לשונו כפי שהיא משתקפת בבחינת מסורות הפרושים‬1640-1584( .)1624( ‫ יצירה איקונוקלסטית כתובה בפורטוגלית שפורסמה באמסטרדם בשנת שפ"ד‬,)phariseas ‫ ביניהם ייחודיותה של הלשון‬,‫הניתוח שלנו עוסק בהיבטים לשוניים של בחינת מסורות הפרושים‬ ‫ אנחנו עסקים גם בהיבטים של השיח כגון‬.) 1553( ‫הפורטוגלית של אוריאל דה קוסטה וזיקתה לתנ"ך פררה‬ .‫תנכית‬-‫הנוכחות של שדות סמנטיות קשורות לטוהר והשאיפה לעבריּות בלתי תלויה במסורת היהודית הבתר‬

Abstract This work investigates the interaction between the former-converso Uriel da Costa`s liminal identity and the language of his iconoclastic Exame das tradições phariseas (Examination of pharisaic traditions), published in Amsterdam in 1624. Our analysis deals with some linguistic aspects as the uniqueness of da Costa’s Portuguese language and its relation to the Bible of Ferrara’s Spanish language. Among other topics, our analysis also deals with discourse aspects of da Costa’s book as the presence of semantic camps connected to the concept of purity, the aspiration for a restored Hebrewness free of the post-biblical Jewish heritage tradition, and the direct connection between pharisaism and ordinary/vulgar character.

Resumo Este trabalho busca analisar o vínculo entre a identidade liminar do ex-converso portuense Uriel da Costa (1584-1640) e a linguagem do seu Exame das tradições phariseas (Amsterdam, 1624), obra iconoclasta escrita em português no âmbito da contenda com o também ex-converso Samuel da Silva. Em nossa análise abordamos aspectos linguísticos do Exame das tradições phariseas tais quais a singularidade do idioma português de Uriel da Costa e sua relação com a Bíblia de Ferrara (1553). Na nossa análise também discutimos aspectos discursivos da obra tais quais a orientação purificadora da semântica dacostiana, a aspiração a uma hebraicidade desprovida da tradição judaica pós-bíblica, e a criação de uma conecção entre farisaismo e vulgaridade.

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Agradeço ao professor Cyril Aslanov pela orientação livre e acessível, pelas aulas repletas de entusiasmo, ao professor Yosef Kaplan pela valiosa sugestão de estudar o Exame das tradições Phariseas, pelas aulas fascinantes sobre a dispersão judaico-portuguesa dos primórdios da Modernidade, ao professor David Bunis e às doutoras Aldina Quintana e Michal Held pelas aulas cativantes sobre a língua e o horizonte cultural sefaraditas, à colega Miriam Sharon pela disponibilização de material bibliográfico, aos amigos Omer Shafran, Omri Ben Yehuda, Pedro Galé e Roberto Alves e a meus pais Eva e Horácio pelo incentivo incondicional, a Giselle Singer pela convivência. Agradeço também ao Instituto Mandel de Ciências Judaicas da Universidade Hebraica de Jerusalém, à Fundação Arieh Lubin, à Fundação Salo and Rita Frankenhuis e à Autoridad Nasionala del Ladino pelo generoso apoio financeiro.

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Índice

Introdução ............................................................................................................................ 5

1. A identidade liminar de Uriel da Costa ........................................................................... 11 2. A identidade lingüística de Uriel da Costa ..................................................................... 21 3. A gênese do Exame das tradições Phariseas.................................................................. 32 4. A Bíblia dacostiana ........................................................................................................ 40 5. O discurso dacostiano...................................................................................................... 46

Considerações finais ........................................................................................................... 54

Anexo .................................................................................................................................. 65 Bibliografia ......................................................................................................................... 68

Abreviaturas

Gn Ex Lv Nm Dt Sam Is Jer Ez Sl Ecl

= Gênesis = Êxodo = Levítico = Números = Deuteronômio = Samuel = Isaías = Jeremias = Ezequiel = Salmos = Eclesiastes

Para citar o Exame das tradições Phariseas foi adotado o seguinte sistema: o primeiro número, em algarismo romano, indica a parte do livro. O segundo número indica o capítulo. Nas ocasiões em que o capítulo possui subdivisão numerada, o terceiro número indica a subdivisão do capítulo.

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,‫חֻּקֹותי‬-‫ ְׁואֶּת‬,‫הּגֹוי ִם‬-‫ מִן‬,‫ ִמשְׁפטי ל ְִׁרשְׁעה‬-‫ו ֶּתמֶּר אֶּת‬ ,‫ כִי ְׁב ִמשְׁפטי מָאסּו‬:‫האֲרצֹות ֲאשֶּר ְׁסבִיבֹותֶּיה‬-‫ִמן‬ ‫ ו‬,‫ יחזקאל ה‬.‫הלְׁכּו בהֶּם‬-‫ְׁוחֻּקֹותי לא‬ (E mudou meus iuizos em impiedade mais que as gentes, e meus estatutos mais que as terras que estão em seus arredores. Iechezquel, 5-6.)

“Paixão! Embriaguez! Loucura! Vocês, os razoáveis, permanecem tão calmos, tão indiferentes, condenando os bêbados, repelindo os tresloucados, e seguem seu caminho como um sacerdote e agradecem a Deus, como um fariseu, por Ele não os ter feito igual aos outros”. Goethe, Werther.

“Who am I – Gabriel? Uriel? Gabriel?”. Stanley Burnshaw, Uriel da Costa 4

Introdução Escrito como dissertação de mestrado interdisciplinar junto ao departamento de línguas judaicas da faculdade de Ciências Humanas da Universidade Hebraica de Jerusalém, a presente investigação nasceu do meu interesse acerca da expressão lingüística do judaísmo português. A variedade e quantidade de estudos sobre o espanhol dos judeus de extração ibérica contrasta com o pequeno número de estudos acerca do uso da língua portuguesa entre esses mesmos judeus. Chamou-me a atenção, a principio, que na lista de línguas judaicas adjacente a um artigo de um precursor deste ramo de estudo, o lingüista israelense Haim Rabin, não havia nenhuma menção ao uso do português entre as comunidades de judeus de origem ibérica, ou de ex-cristãos-novos aderidos ao judaísmo, estabelecidas no Império Otomano, na Europa ocidental e no Novo Mundo a partir do século XVI.1 No verbete dedicado ao judeu-espanhol, também chamado de ladino, judezmo ou espanholit, afirma-se que os ex-conversos aderidos ao judaísmo em Amsterdam no século XVII falavam espanhol standard. 2 Nas décadas seguintes, a pesquisa mostrou que embora o espanhol tenha sido uma das principais línguas dessa comunidade, fosse ele standard ou não, a língua vernacular cotidiana dessa comunidade era na verdade o português. Yerushalmi, por exemplo, não titubeia em dizer que Spinoza se referia ao português quando contava a Oldenburg sobre sua vontade de escrever na língua em que foi criado.3 Elegi o Exame das tradições Phariseas 4 de Uriel da Costa (Porto, 1583-4 – Amsterdam, 1640) como objeto de estudo da minha pesquisa exatamente porque esse corpus proporcionaria uma imersão numa obra que potencialmente poderia estar escrita numa variedade judaica da língua portuguesa e que, ao mesmo tempo, possibilitaria o exercício de outro tema de meu interesse, a saber, a identidade religiosa judaica de modo geral, e luso-judaica em particular.

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Rabin, Haim, “As línguas judaicas – o denominador comum, a singularidade e a problemática” (1979) (em hebraico). A lista adjacente foi compilada por Avner Levi no âmbito do fórum de pesquisadores israelenses sobre línguas judaicas, no qual está circunscrito o artigo de Rabin; seu título traduzido é: “Línguas judaicas: no oriente e no ocidente”. 2 Idem, pgs. 63-64. 3 Cf. Yerushalmi, Yosef Haim, “Consideração de Espinosa acerca da perenidade do povo judeu, com anexo: Espanha e o espanhol na biblioteca de Espinosa” (1982-3) (em hebraico). 4 Exame das tradicoẽs Phariseas conferidas com á lei escrita, por Uriel jurista hebreo, com reposta a hum Semuel da Silva, que faz offiçio de medico, seu falso calumniador. Amsterdam. Em casa de Paulo à Ravesteyn, anno da criaçaõ do Mundo 5384 [1624]. Doravante Exame das tradições.

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A figura de Uriel da Costa, inevitavelmente cativante aos olhos de qualquer jovem estudante das ciências judaicas, torna o Exame das tradições por si só um objeto de altíssimo interesse, dada a repercussão, paixão, polêmica, horror e admiração inspirados pelo ex-converso do Porto, incompreendido e anatemisado pelo espírito do seu tempo, e posteriormente projetado como baluarte das luzes, precursor da reforma judaica e crítico ferrenho da coerção religiosa. A publicação do Exame das tradições rendeu a Uriel da Costa dez dias de cárcere, do qual foi liberado mediante o pagamento de fiança. A obra, considerada blasfema tanto para o judaísmo quanto o cristianismo, foi imediatamente lançada às chamas, e até recentemente esteve considerada totalmente desaparecida, embora durante o século XX alguns pesquisadores sugerissem a possibilidade de sua reaparição. Portanto, até o ressurgimento da obra, toda a pesquisa dacostiana esteve baseada nos escritos não de próprio punho, mas sempre pela intermediação de detratores. Da Costa foi citado e parafraseado pelo celebrado rabino veneziano Leon de Modena (1571-1648) e pelo médico e ex-converso aderido ao judaísmo Samuel da Silva (Porto, 1571Amsterdam, 1631). A famosa e breve autobiografia espiritual de Uriel da Costa, o Exemplar Humanae Vitae (1687), foi publicada quase quarenta anos depois de sua morte, e sua natureza semi-apócrifa é ainda hoje discutida. Seu editor, o teólogo remonstrante amsterdanes Philip Van Limborch (1633-1712) publicou o Exemplar como apêndice do seu famoso De veritate religionis christianae amica collatio cum erudito Judaeo (1687) – um tendencioso livro-debate com o ex-converso aderido ao judaísmo e erudito Isaac (alias Balthasar) Oróbio de Castro (Bragança, 1617 – Amsterdam, 1687). A figura de Uriel da Costa tornou-se popular entre o círculo de Goethe devido a tradução alemã do Exemplar, lançada em 1793. Sua popularização massiva, entretanto, ocorreria na esteira da ficção do intelectual alemão Karl Gutzkow (Berlin, 1811 – Sachsenhausen, 1878), um companheiro de Henrich Heine no grupo Junges Deutschland. Gutzkow alcançou enorme sucesso com o seu drama em cinco atos intitulado Uriel Akosta (1846), peça teatral baseada no Der Sadduzaer Von Amsterdam, romance que havia escrito uma década antes (ambos inspirados no Exemplar de Uriel da Costa). O drama de Gutzkow fomentou a imaginação de uma série de artistas, inclusive na pintura e na música, e foi traduzido para diversas línguas, inclusive iídiche e hebraico. Foi principalmente através dessas traduções, bem como do original alemão, 6

que a figura de Uriel da Costa se fez conhecida para o próprio público judaico europeu, sobretudo ashkenaze. A peça de Gutzkow foi encenada, em tradução ou no original, em quase todos os países da Europa e também na América, tornando-se um clássico do gênero dramático e entrando para o repertório de quase todas as companhias judaicas de teatro. A peça de Gutzkow estreou em Dresden em 1864, e chegou a ser uma das primeiras a serem encenadas na moderna palestina judaica, em torno da década de 1900, em hebraico, entrando também para o repertório da famosa companhia judaica de teatro Habimah. Essa ficção chegou ao ponto de ser emoldurada pela própria ficção: a peça é representada pelo grupo teatral mambembe do romance Blandzshende Shteren, do escritor iídiche Shalom Aleihem. 5 Muito embora um tanto carente de fidelidade histórica, Uriel Akosta de Gutzkow bem representou o embate entre duas forças supostamente antagônicas: fé e razão. Na década de 1930, as letras hebraicas ganhariam sua própria ficção sobre Uriel da Costa, escrita em três volumes pelo judeu de origem ucraniana Yohanan Twersky (1900-1967). Sendo assim, Uriel da Costa ficou conhecido mais pelo crivo da ficção do que por seu próprio pensamento. Um dos testemunhos lingüísticos de que o conhecimento sobre Uriel da Costa para o público judaico foi intermediado sobretudo por não-judeus é o fato de em hebraico ele ser comumente chamado de Uriel “Akosta” (‫)אקוסטה‬, ou seja, a acepção latina para “da Costa” (ver Anexo). Desta forma, a pesquisa dacostiana esteve estancada pelo crivo da intermediação ficcional, muito embora tenha sido incrementada em termos histórico-documentais pelas descobertas de Vasconcelos (1921), Magalhães Basto (1930), Vaz Dias (1936), e Albiac (1987), por exemplo, ou pelos estudos genealógicos do famoso professor Revah (1962). A grande descoberta, no entanto, aconteceu em setembro de 1990, com a alegre surpresa da localização de um exemplar do Exame das tradições na Biblioteca Real de Copenhagen.6 Apesar de ser uma obra extremamente atraente não só para os estudos lusojudaicos ou dacostianos especificamente, mas também para várias outras disciplinas 5

Cf. Kaufman, Dalia, “As traduções para o hebraico e para o íidiche de ’Uriel Akosta’ de Karl Gutzkow” (1981) e, da mesma autora, “’Uriel Akosta’ de Karl Gutzkow sobre o palco judaico” (1996) (ambos em hebraico). 6 Cf. Salomon, Herman Prins, “A Copy of Uriel da Costa's 'Exame das tradições phariseas' located in the Royal Library of Copenhagen” (1990).

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como a Filosofia, a História e a Literatura, por exemplo, o Exame das Tradições foi relativamente pouco estudado, de maneira que ainda está por concretizar todo seu potencial. Um dos principais motivos que torna o Exame das tradições um atraente objeto de estudo é por si só o fato de finalmente abrir-se a possibilidade de ler Uriel da Costa por ele mesmo. Além disso, trata-se de uma das poucas obras escritas pelo próprio punho de um ex-converso sefaradita heterodoxo do século XVII, senão a única, que alcançou ser publicada e capaz de sobreviver à fúria da censura judaico-cristã amsterdanesa. Mais do que isso, foi a primeira vez que um judeu, escrevendo numa língua européia moderna, se atreveu a por em dúvida os dogmas fundamentais tanto da ortodoxia judaica quanto da cristã. Dir-se-á até que o Exame das tradições constituiu o ataque mais radical contra a ortodoxia reinante que alguma vez surgira na comunidade sefaradita de Amsterdam até o surgimento do Tractatus theologico-politicus (1670) de Spinoza.7 Os principais estudos sobre o Exame das tradições aos quais tive acesso são os realizados por Den Boer (1989), Salomon (1990), Salomon & Sassoon (edições críticas de 1993 e 1995), Sassoon (1994) e Proietti (2004). À fortuna crítica sobre o Exame das tradições devem ser somados também os trabalhos de Porges (1911), Vasconcelos (1921), Gebhardt (1922), Sonne (1932), Revah (1962, 1964), Osier (1980) e Albiac (1987), entre outros. Apesar de não terem tido acesso à obra, esses estudiosos pesquisaram os trechos de Uriel da Costa disponíveis então, trechos estes que, como veremos no capítulo sobre a gênese da obra, coincidem em parte com trechos do próprio Exame das tradições. Mas foi o famoso Exemplar Humanae Vitae o grande impulsionador dos estudos sobre Uriel da Costa. A já mencionada problemática quanto ao caráter semi-apócrifo dessa obra não impediu que a pesquisa o atribuísse a da Costa e, de fato, a leitura do Exame das tradições aponta coincidências que corroboram a autoria do Exemplar atribuída a da Costa. Alguns trechos específicos despertaram a desconfiança de que o Exemplar recebeu enxertos apócrifos, entre eles a descrição da cerimônia do ḥerem (excomunhão) ou, de maneira geral, o modo como a narrativa tenta representar Uriel da Costa quase como um Cristo moderno.8 As traduções do Exemplar para diversas línguas geralmente vieram acompanhadas de estudos ou edições especiais, de maneira que em torno dessa obra se 7 8

Salomon, Herman Prins & Sassoon, Isaac S. D. (1995: 82-3). Cf. Faur, José, "Uriel da Costa: The Man behind the Mirror" (1992: 110-141).

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formou outra importante camada da fortuna crítica sobre Uriel da Costa; a começar pelo verbete de Pierre Bayle no seu Dictionnaire philosophique et critique (1720) até estudos nas mais novas edições críticas do Exemplar lançadas no século XXI. A figura de Uriel que brota do seu Exemplar projetou-o como um paladino instintivo da razão e um mártir das luzes, chegando a despertar o interesse de Voltaire e a comoção de Herder. A figura paradigmática de Uriel da Costa também não pode deixar de despertar o interesse dos estudiosos do judaísmo lusitano e da diáspora sefaradita ocidental do século XVII. Assim, podemos encontrar trechos e mini-capítulos dedicados ao exconverso do Porto em pesquisas realizadas por Mendes dos Remédios (1911), Roth (1932), Yerushalmi (1971), Kaplan (1989), Yovel, (1992), Bodian (1995), Swetschinski (2000) e Nadler (2001), entre outros. As páginas dedicadas por Strauss (1965) ou Damasio (2003), e outros mais, à investigação dos possíveis impactos do pensamento dacostiano sobre o pensamento de Spinoza exemplificam mais uma das dimensões de fortuna crítica sobre o ex-converso do Porto. O objetivo desta dissertação é realizar um estudo panorâmico do Exame das tradições, de modo a abordar aspectos discursivos, lingüísticos e identitários da obra. À guisa de contextualização, dedicamos o primeiro capítulo da dissertação à discussão da identidade e condição liminares de da Costa enquanto converso (ou cristão-novo) inadaptado, emigrado, aderido ao judaísmo, e então excomungado. Para diferenciar “cristãos-novos” de “conversos” (em hebraico anussim), acredito ser pertinente adotar um marco teórico à maneira do sugerido por Kaplan: os primeiros eram judeus que se converteram por espontânea vontade, enquanto os últimos foram forçados a fazê-lo 9 ; os descendentes de cada uma dessas duas categorias herdavam “hereditariamente”, conforme observa Bodian, o status dos pais. 10 É importantíssimo notar, conforme bem assinalado por esses pesquisadores, que se trata tão somente de uma classificação esquemática, dado que, na prática, seria impossível determinar com precisão e de modo totalizante as circunstancias tanto coletivas quanto particulares. No marco desta dissertação, uso os dois termos alternadamente e como sinônimos. No segundo capítulo da dissertação discutimos a identidade lingüística dos exconversos portugueses emigrados, de um modo geral, e a identidade lingüística de Uriel 9

Kaplan, Yosef, “A problemática dos conversos e dos ‘cristãos-novos’ entre a última geração da pesquisa historiográfica” (1987: 117) (em hebraico). 10 Bodian, Miriam, "Men of the Nation: The Shaping of Converso Identity in Early Modern Europe” (1995: 52).

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da Costa, em particular. Neste capítulo tratamos de investigar a possibilidade de formação de um idioma português singularmente judaico e de situar o Exame das tradições dentro deste marco teórico. Nesse capitulo também discutimos a divisão de papeis entre o espanhol e o português no marco das comunidades em questão. No terceiro capítulo explicamos as diferentes etapas e circunstancias dialógicas entre Uriel da Costa e seus oponentes Leon de Modena e Samuel da Silva, das quais resultou a publicação do Exame das tradições em 1624. No quarto capítulo, abordamos a tradução portuguesa dos versículos bíblicos com os quais Uriel da Costa ilustra sua argumentação em favor da não-autenticidade da Lei oral e contra a doutrina da imortalidade da alma. Com alguns exemplos, demonstramos como o estado liminar de Uriel da Costa também se expressa através da sua versão bíblica portuguesa. No quinto e último capítulo, analisamos o discurso de Uriel da Costa. Enfatizamos nessa análise a abordagem purista da Escritura, a associação da tradição rabínica à vulgaridade, as estratégias dacostianas para deslegitimizar a Lei oral, sua abordagem da doutrina da imortalidade e as conseqüências implicadas nessa doutrina, considerada um deliberado acréscimo à lei mosaica. Uma vez que o Exame das tradições está conectado à noção estilística de barroco e ao zeitgeist contra-reformista católico, o conhecimento profundo desses dois vértices histórico-literários, de seus discursos, recursos retóricos e institucionais – conhecimentos estes não abarcados por este trabalho – deverá acrescentar uma importante dimensão ao estudo do Exame das tradições de Uriel da Costa. De maneira que fica aqui já declarada uma lacuna a ser preenchida e um projeto e proposta de pesquisa para um futuro (de preferência) próximo.

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1. A identidade liminar de Uriel da Costa

Tendo em vista o cuidado de não incorrer na armadilha das homogeneizações anacronistas ou classificações apriorísticas, gostaria de analisar o perfil identitário de Uriel da Costa à luz daquilo que Turner, via Arnold van Gennep, chama de “liminaridade”, isto é: o estado relativo à segunda etapa do trinômio separação-limiaragregação característico dos rites de passage. Por ritos de passagem entendemos: processo(s) que acompanha(m) toda mudança de lugar, status, posição social e idade ou, de modo geral, toda mudança, estável ou recorrente, que envolve uma condição culturalmente reconhecida. As entidades liminares não estão “nem aqui nem lá”, elas estão na brecha entre as posições determinadas e ordenadas pela lei, costumes, convenções e cerimonial.11 A primeira camada liminar da identidade dacostiana se encontra na sua condição de cristão-novo/converso. Nascido entre 1583 e 1584 na cidade do Porto, o segundo filho de Bento da Costa Brandão e Branca (alias Sarah) Dinis da Costa foi batizado com o nome de Gabriel da Costa. Se calcularmos que uma geração recobre cerca de vinte anos, o então Gabriel pode ou deve ter sido filho da quarta geração de descendentes daqueles judeus ibéricos que vivenciaram a expulsão da Espanha (1492) e/ou a conversão massiva ao cristianismo em Portugal (1496-7). Significativamente, Basto (1932) mostrou que Uriel da Costa habitou numa das trinta casas cedidas pela municipalidade portuense às trintas famílias nobres israelitas emigradas de Castela em 1492.12 Na Espanha, a conversão dos judeus ao catolicismo ocorreu em diferentes etapas, em ondas que oscilaram de acordo com as circunstâncias, até culminar no édito de expulsão de 1492. No vizinho Portugal, entretanto, a totalidade dos judeus que habitavam o país em 1496-1497 foi convertida à força ao catolicismo, a um só tempo, pelo decreto do Rei Manuel, que governou entre 1495 e 1521. Não queremos dizer com isso que não houve conversões do judaísmo ao cristianismo em Portugal antes de 14961497, mas destacar o caráter coletivo da conversão neste país. Entre estes últimos, havia também correligionários prófugos da Espanha que, em 1492, optaram pelo exílio em detrimento da conversão ao cristianismo. A questão da quantificação do número de judeus que deixou a Espanha em 1492 é um tema espinhoso; muitos historiadores a

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Turner, Victor, “Liminality and Communitas” (1969: 94). Basto, Artur de Magalhães, "Alguns documentos inéditos sobre Uriel da Costa" (1930).

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discutiram, e podemos resumir aqui que as cifras variam entre quarenta mil e o exorbitante 1 milhão.13 Dadas as circunstâncias, costuma-se afirmar que em Portugal a conversão forçada, por conta de seu caráter totalizante, não afetou, tanto quanto na Espanha, a coesão e continuidade da antiga comunidade judaica então cristianizada. Muito embora isso não tenha se traduzido necessariamente em termos de integração à sociedade cristã. Costuma-se assinalar que essa nova classe social (bem heterogênea é verdade) chamada tecnicamente de cristãos-novos (ou por outros termos de cunho pejorativo-popular, como por exemplo marranos), encontrou certa dificuldade em integrar-se à sociedade dos cristãos-velhos, muito embora o dogma católico rechaçasse tal tipo de discriminação por parte destes últimos. Os estatutos de limpeza de sangue, criados na Espanha e posteriormente implantados em Portugal, são um testemunho legislativo da segregação étnica imposta numa circunstância em que a tradicional segregação religiosa de judeus-cristãos já não mais podia tecnicamente funcionar. De maneira que a liminaridade dacostiana, se analisada de um ponto de vista atávico, da memória coletiva ou mesmo de fato, começa já em Portugal. A questão da sinceridade da fé dos cristãos-novos, ou quantos deles judaizavam, não é relevante para nossa discussão. Sobre este tema muito já se escreveu, e o que podemos dizer em resumo é que as últimas gerações de pesquisadores empregaram pelo menos duas grandes transformações dentro deste campo de estudos: primeiro, passaram a contestar a visão romantizada de que a maioria dos cristãos-novos judaizava (isto é, praticava o que se chama de “cripto-judaísmo”); segundo, passou-se a discutir novos aspectos não circunscritos à identidade religiosa dos cristãos-novos e/ou a questões inquisitoriais, como por exemplo a dimensão econômica, as imigrações, etc. A “tipologia conversa” de Faur é uma tentativa teórica de arejar as possibilidades identitárias do cristão-novo que vivenciou pessoalmente a conversão, muito embora o próprio pesquisador reconheça que as categorias “cristão fiel”, “judeu fiel”, “judaizante” e “apático em termos de religião” por vezes eram separadas por uma fronteira tênue e, de fato, são impossíveis de serem medidas com precisão, e muito menos por algum investigador nosso contemporâneo.14 As categorias de Faur servem portanto de marco teórico esquemático, mas se revelam complicadas quando aplicadas às gerações seguintes, isto é, os filhos, netos e 13 14

Cf. Gitlitz, David Martin, “The problem of quantification” (1996: 73-76). Faur, José, “Tipology of the converso” (1992: 41-52).

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bisnetos daqueles que vivenciaram a conversão pessoalmente. Em que medida as fronteiras entre os quatro arquétipos básicos se afrouxaram, ou se fortaleceram, no decorrer das gerações? Em que medida um dos arquétipos prevaleceu quantitativamente sobre os outros? Em que medida a possível fusão dos arquétipos, dentro de um próprio indivíduo ou coletivamente, formou uma espécie de cristianidade-nova que veio a atingir inclusive certo grau de normatividade, isto é, criando uma alternativa de normalização da liminaridade coletiva? O que nos interessa mais que tudo, nesse momento, é pensar na situação social e na identidade coletiva de da Costa nos seus anos de formação, isto é, até cerca de 1615, ano em que chegaria a Amsterdam, mudaria seu nome de Gabriel para Uriel e vivenciaria então uma nova e não menos complicada situação liminar. Conforme o seu Exemplar Humanae Vitae, auto-biografia cujo caráter semi-apócrifo é discutido até hoje, da Costa tenta resolver um conflito espiritual, causado pela dualidade cristianismo-judaísmo, descartando o “Novo Testamento”, porque este é aceito tão somente pelos cristãos, enquanto o “Velho Testamento” é comum a ambas as religiões”. Conforme o Exemplar Humanae Vitae: Não podendo portanto encontrar a paz da alma na religião católica, e desejando firmar-me em qualquer coisa, como me não era desconhecida a grande desavença que divide judeus e cristão, li no seu texto integral os livros de Moisés e dos profetas, onde descortinei bastantes passagens que violentamente contradizem o Novo Testamento, e onde as palavras proferidas pela boca de Deus eram de mais fácil interpretação. Aliás, ao Antigo Testamento o aceitam judeus como cristãos, enquanto que o novo só é verdadeiro para os últimos. Enfim, Moisés tornara-se a minha fé. 15

Seria essa uma chave para interpretar o norte de seu pensamento posterior 16, isto é, a resolução de status liminares com os quais veio se deparando ao longo de sua jornada de vida? Em contraste com a falta de estudos e documentos sobre o judaísmo português préconversão, há bastante material sobre a história dos cristãos-novos portugueses. Não queremos aqui discutir o século XVI português ou entrar em detalhes sobre as realidades sociais durante as décadas que precederam o nascimento de Gabriel-Uriel da 15

Exemplo da vida humana (Exemplar Humanae Vitae), tradução de Castelo Branco Chaves, in Salomon H. P. e Sassoon, I. S. D. (1995: 577). 16 Sem entrar em questões a respeito das armadilhas da memória, digo posterior porque, embora escrevendo supostamente em 1640, da Costa reflete aqui sobre sua etapa cristã em Portugal.

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Costa. O que nos interessa principalmente é nortear a discussão sobre a História de maneira a contribuir para o entendimento da identidade liminar dos cristãos-novos de um modo geral e de Uriel da Costa em particular. A instalação do braço português do Santo Ofício da Inquisição, em 1536, foi um fato que transformou a realidade social portuguesa de modo geral, uma vez que instaurou o pânico da desconfiança quanto a qualquer traço de ascendência judaica entre toda a população portuguesa. Isso desencadeou nas décadas seguintes ondas de imigração de cristãos-novos portugueses à vizinha Espanha, uma vez neste país o furor inicial da Inquisição já havia passado, enquanto em Portugal tudo ainda era novidade. Na Espanha os emigrados portugueses passaram a ser vistos como judeus, ou judaizantes, de maneira a reativar a tensão cristãos-novos – cristãos-velhos neste país. Com a união das coroas ibéricas (1580-1640), que coincide quase completamente com a vida de Uriel da Costa, a fronteira entre Portugal e Espanha passou a ser mais facilmente transponível, de maneira que o mar deixou de ser a principal alternativa para os cristãos-novos interessados em abandonar ou fugir de Portugal. Poderíamos encarar o Portugal de da Costa como um “Portugal liminar”, dado o estado de exceção provocado pela submissão ao trono espanhol? Essa hipótese extrapolatória quiçá será exercitada num outro momento. A heterogeneidade da classe dos cristãos-novos ibéricos, geralmente identificados, em termos de classe social, com a nascente burguesia urbana, também passou a se expressar mais radicalmente em termos geográficos e religiosos a partir do século XVII. Conectados ao comércio ultramarino, cristãos-novos começaram a estabelecer comunidades fora da Península Ibérica, em terras livres do olho inquisitorial. É verdade que, durante o século 16, na Itália, no Império Otomano e no Norte africano, alguns cristãos-novos puderam trocar sua velha-nova fé cristã por uma nova-velha fé judaica. Contudo, nesses lugares os cristãos-novos aderiram a comunidades judaicas locais já existentes, por vezes fundadas por judeus prófugos de Espanha, por vezes não. A grande singularidade das comunidades judaico-portuguesas de Amsterdam e Hamburgo foi justamente o fato de terem sido totalmente fundadas por iniciativa de excristãos-novos. Quando o então Gabriel da Costa chegou a Amsterdam em 1615, começava a nascer nesta cidade uma comunidade judaica inteiramente criada por excristãos-novos, ou seja: o estado liminar se rompia coletivamente em prol da adoção da religião da qual estiveram tecnicamente desconectados por quase um século, sobre a qual aprenderam, por vezes, através da literatura anti-judaica que circulava na Península 14

Ibérica, ou do retratar que representava o judaísmo enquanto a religião do Velho Testamento. O século XVII foi o século de ouro dessas comunidades espalhadas pelo Atlântico norte e Novo Mundo, para as quais a partir da década de 1640 – coincidentemente quando da morte de Uriel da Costa – Amsterdam passou a ser a referência máxima.17 Quando a partir do século XVIII cessou a imigração de cristãos-novos a esses centros de judaísmo-ibérico de extração cristã-nova, sua atividade e efervescência cultural e religiosa declinaram quase completamente. De maneira que a múltipla heterogeneidade dos cristãos-novos do século XVII encontrou uma sorte de espaço comum naquilo que se chamou de “a Nação”, e/ou de “homens da Nação”. Esse termo, derivado das idéias de “gente da nação” e/ou “homens de negócios” já empregadas em Portugal para designar a classe dos cristãos-novos, se tornou no século XVII talvez uma das primeiras grandes “comunidades imaginadas”, cujos denominadores comuns eram a extração ibérica e um judaísmo potencial ou efetivado – por vezes amalgamados pela esfera econômico-marítima. 18 Conforme os estatutos da Santa Companhia de dotar orfans e donzelas pobres, fundada em Amsterdam em 1615, tanto aqueles (ou aquelas) que viviam como judeus como aqueles que ainda não o faziam, mas tinham a possibilidade de fazê-lo num futuro, poderiam afiliar-se à companhia. De maneira que a Santa Companhia (bem como outras organizações de caridade judaico-portuguesas) é um exemplo da própria institucionalização e estratégia de conservação de laços menos religiosos propriamente ditos do que étnicos: Os auzentens que vivem fora de Judesmo [judaísmo], admitindosse a esta Santa Companhia, seram escritos no livro della com os nomes que uzam nas partes em que habitam, e, quando venha a Judesmo, se lhe mudaram nos que tomarem. 19

A chegada de Gabriel da Costa a Amsterdam e sua adesão imediata a comunidade judaica local, em torno do ano de 1615, pode ser encarada, dentro do marco teórico aqui proposto, como uma tentativa de resolução do estado liminar da condição de cristão-novo vivenciada em Portugal até então. 17

Cf. Bodian, Miriam, “Amsterdam, Venice and the Marrano diaspora in the seventeenth century” (1989). 18 Cf. Yerushalmi, Yosef Haim, “The ‘Men of the Nation” (1981: 12-21) e Bodian, Miriam, “’Men of the Nation’: the shaping of converso identity in early modern Europe” (1995). 19 In Revah, Israel Salvador, “Le premier reglement imprimé de la ‘Santa Companhia de dotar orfans e donzelas pores” (1963), capítulo III, pg. 674.

15

Egresso a Amsterdam acompanhado da mãe e irmãos, da Costa deve prontamente

ter

aderido

à

comunidade

judaico-portuguesa

local;

“[...]

e

desembarcámos, enfim, em Amesterdão, onde encontrámos os judeus vivendo em conformidade com a Lei, na qual ingressámos sem delongas, fazendo-me circuncidar”, assinala em sua autobiografia.20 A mudança do nome de Gabriel para Uriel deve ter ocorrido na ocasião da cerimônia de circuncisão, muito embora Uriel só mencione a mudança no último parágrafo da autobiografia, sem detalhar exatamente quando se deu: “E para que tudo fique dito, revelarei que em Portugal, como cristão, me chamava Gabriel da Costa, e entre judeus (e que demónio me conduziu para eles?), Uriel”. 21 Como é sabido, em quase toda cultura a adoção de um novo nome simboliza o início de uma nova vida. Essa nova vida, metaforizada no novo nome, decretaria portanto o fim do estado liminar. A mudança do nome é tão importante quanto carregar um nome hebraico. Caso contrário, não se faria necessária para da Costa, já que Gabriel é um nome hebraico. É interessante notar que o nome Uriel foi bastante incomum entre os ex-cristãos-novos aderidos ao judaísmo. Contudo, seria muito difícil assinalar se a escolha de um nome incomum foi um evento fortuito ou um ato proposital. A força e carga simbólica contidas no nome próprio são uma marca de provavelmente todas as sociedades humanas. Mesmo por vezes sem querer, ou sem saber, o nome diz muitas coisas sobre a pessoa, ou pelo menos sobre os pais dela, primeiros responsáveis pela escolha do nome. A dupla identidade Gabriel-Uriel, no entanto, naturalmente que não se desfez ao momento. Porque ninguém pode descartar seu passado em questão de segundos, tão somente porque resolveu trilhar um novo caminho; ou como no dito de Shakespeare, atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se está bem morto. A herança cultural ibero-católica, os estudos universitários, a vulnerabilidade da condição de cristão-novo, etc., não se apagaram totalmente da personalidade de da Costa, mas se tornaram mais uma camada do seu palimpsesto identitário. Da mesma maneira, conforme veremos, seu afã por desfazer liminaridades não deve ter evaporado tão facilmente. Alguns documentos nos mostram que Uriel da Costa também foi chamado por (ou adotou) outros nomes. Na minuta de 15 de maio de 1623 do Livro dos Termos da imposta da nação da comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam, da Costa é

20 21

Exemplo da vida humana, op.cit., pg. 577. Idem, pg. 584.

16

referido como Uriel Abadat.22 Nenhum pesquisador explicou de maneira definitiva o nome “Uriel Abadat”, mas aventou-se a hipótese de que se trata de um nome aleatório que serve tão somente para ocultar o verdadeiro sobrenome do acusado, em respeito aos seus familiares. 23 Da Costa também utilizou o nome Adam Romes, com o qual assinou um ato judicial em 1639, nome este que também aparece num documento de 1641. 24 Já o seu Exame das tradições é assinado por “Uriel, jurista hebreu”. Os poucos estudos sobre essa obra não destacaram a interessante significação desse epíteto. Como veremos adiante, esse epíteto corrobora duplamente a hipótese de que o discurso dacostiano projeta a Escritura como uma espécie de lei divina pura e clássica, lamentavelmente corrompida pelo que se entende por um farisaísmo sectário, impostor e anti-hebraico. Além do mais, quanto aos nomes, cabe notar que a imaginação do rabino veneziano Leon de Modena (sobre o qual falaremos adiante) criou no seu Kol Sakhal um Rabbi Amittai ben Jedajah Ibn Ras possivelmente inspirado no seu interlocutor-alter ego Uriel da Costa.25 O ritual da circuncisão é um rito de passagem presente em diferentes sociedades humanas, de maneira que assinala, nesse caso através de um sinal físico, a passagem do indivíduo de um grupo a outro, de um status a outro. Para Arnold Van Gennep, a circuncisão só pode ser entendida se analisada como uma das diversas práticas rituais de passagem que, por meio da mutilação de qualquer parte do corpo, modificam a personalidade do indivíduo de forma visível a todos.26 No âmbito dos ex-cristãos-novos aderidos ao judaísmo, a circuncisão se tornou um preceito central, um signo categórico da eliminação/superação do estado liminar e da opção pelo judaísmo em detrimento do cristianismo, uma vez que na prática o homem circuncidado estaria correndo sérios riscos caso circulasse em terras onde o judaísmo estava proibido por decreto.27 No universo dual desses novos judeus, ou “judeus-novos”,28 a circuncisão era até mesmo resignificada ao ponto de ser equiparada a uma espécie de batismo judaico, gerando inclusive elucubrações acerca do destino incerto da alma de judeus 22

Esta minuta foi publicada por C. Gebhardt, Die Schriften des Uriel da Costa (1922: 181-182). Sobre a significação do nome “Abadat”, cf. as sugestões oferecidas por N. Porges em sua crítica Gebhardt’s Book on Uriel da Costa (1928: 41-2). 24 Salomon, H. P. & Sassoon I. S. D. (1995: 53). 25 Cf. Proietti, Omero, “‹‹La você di De Acosta [=431]››. Sul vero autore del Qol Sakhal” (2004: 36). 26 Citado em Kacelnik, Zilda, “O significado social da circuncisão” (1974: 15-16). 27 Cf. Kaplan, Yosef, “The Travels of the Portuguese Jews from Amsterdam to the ‘lands of idolatry’ (1644 – 1724)” (1985). 28 Conforme a expressão cunhada pelo professor Yosef Kaplan. 23

17

incircuncisos.

29

A natureza “fluída” da nova comunidade judaica formada em

Amsterdam à época de da Costa deve ter formado uma órbita de indivíduos liminares, para os quais o ato físico da circuncisão não foi uma simples questão de fé, mas de significativa implicação prática extra-religiosa. Como veremos adiante, da Costa não se furta de incluir a maneira rabínica de realizar a circuncisão entre as suas críticas contra a “tradição farisaica”, uma vez que assinala a etapa da periah como alheia ao rito descrito da Escritura. A periah, que corresponde a segunda etapa da circuncisão conforme o rito rabínico, é assim abordada por da Costa:

O que no prepúcio he sobeio, e inutil, e faz o membro cerrado, só com a çircumçisam se lança fora, e a lei nam pedio, nem quiz que se abrisse, nem descobrisse mais , por que seria imperfeiçam, e demasia: logo a priah que esta demasia causa, e que a lei nam pedio, ia nam he filha da lei”. (I.9.2)

No entanto, conforme mencionado em sua autobiografia, da Costa não deixa de realizar o rito da circuncisão, muito embora teoricamente pudesse ter-lo evitado, como alguns o fizeram. Entre estes, há o famoso caso de Baruch Senior (alias Henrique Garces, falecido em 1619), ex-cristão-novo circuncidado somente após a morte (na finalidade de receber sepultamente judaico), mesmo vivendo muitas décadas como “judeu-novo” em Amsterdam. 30 Da mesma maneira pela qual é possível, ainda que fragilmente, traçar uma tipologia conversa,

conforme proposto

por Faur, também podemos pensar

esquematicamente na mesma tipologia, ora invertida, isto é, aplicada ao âmbito dos excristãos-novos emigrados que, durante o século XVII, se viram às voltas com a possibilidade de assumir uma identidade judaica. Contudo, devemos igualmente levar em conta que as fronteiras entre os arquétipos foram tênues tanto em termos coletivos quanto individuais ou, se assim se quer, tanto vertical como horizontalmente. Entre o radicalismo anti-rabínico de da Costa e a imóvel ortodoxia de tipos como Samuel da Silva (sobre quem discorreremos adiante) houve várias possibilidades de resolução dialética para o “dia seguinte a revolução”, uma revolução tanto coletiva quanto pessoal. A apatia em relação à religião, a vida de judeu sem sinagoga, o ceticismo fideista de um

29

Cf. Kaplan, Yosef, “O primeiro e principal preceito: a circuncisão no universo dos conversos aderidos ao judaísmo nos primórdios da modernidade” (2010) (em hebraico). 30 Idem, pg. 389.

18

Leon de Modena ou a reconversão ao cristianismo foram algumas das principais alternativas arquetípicas. Uma passagem de uma das epístolas de Sigmund Freud a seu amigo Eduard Silberstein atesta que Freud leu o Uriel Akosta de Gutzkow. O fato de se corresponder com esse amigo escrevendo em espanhol contribui ainda mais para a tese de Kobrin sobre a possibilidade de enxergar em Freud, grosso modo, como uma sorte de criptojudeu vivendo num país católico e coincidentemente governado pela mesma dinastia habsburga que governou a Espanha. Esta pesquisadora destacou a ligação de Freud com a cultura judaica-sefaradita, assinalando também que a teoria do inconsciente de Freud “resonated with the ideia of a ‘hidden’, vulnerable self. Because it was too risky to expose this ‘truer’ self in public, it remained a private ‘underground’ self, like the ‘un’conscious”.31 Outra dimensão liminar da etapa de Uriel da Costa como ex-cristão-novo emigrado e judeu-novo excomungado é justamente sua condição de imigrante numa circunstância em que não há exatamente o apoio das instituições fundadas por outros imigrantes de mesma origem e background. A expressão “um estado dentro do estado”, muito usada para definir a comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam (e, por extensão, comunidades judaico-portuguesas menores, mas modeladas de modo semelhante), conota o sistema de organização, amparo e controle social desenvolvidos por imigrantes num ambiente tolerante mas nem tanto. De maneira que na mini-Portugal judaica que estas comunidades de certa maneira reproduziram não houve lugar para o excomungado Uriel da Costa. 32 Ou, se houve, seu papel foi o de servir de “mau exemplo”, de um modelo indesejável de réprobo, de “o outro”, espécie de Elisha Ben Avuiá moderno, transformado pedagogicamente em padrão de comportamento inadequado. A pertinência a uma fringe society acrescenta portanto mais uma dimensão liminar a essa etapa da vida de Uriel da Costa. Ao mesmo tempo em que não podia integrar oficialmente a instituição lusofônica implementada na Holanda, as portas da sociedade maior holandesa lhe estavam fechadas tanto por questões lingüísticas quanto

31

Kobrin, Nancy Hartevelt, “Uriel da Costa, J.M. Da Costa, M.D. – What’s Freud Got to Do With It? Or How Ladino and Sephardic Culture Inform Psychoanalysis and Trauma Studies” (2009). 32 Sobre as funções sociais da excomunhão entre os sefaraditas portugueses do século XVII cf. Kaplan, Yosef, “The Social Functions of the ‘Herem’ in the Portuguese Jewish Community of Amsterdam in the Seventeenth Century” (1984).

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legislativas (não há dados, informação ou estudos sobre o quão da Costa foi proficiente nas línguas holandesa ou alemã). Sua famosa tentativa de reconciliação com a comunidade judaico-portuguesa, levada a cabo em 1639, também pode ser lida como intento de resolver um estado liminar insuportável. Quanto ao suposto suicídio, um ano depois, não cabe aqui opinar em que chave deve ser lido, pois se trata de uma questão extremamente complexa para ser resolvida em umas poucas páginas. A questão planteada por Pinto Ferreira toca no estado liminar dacostiano, e no entanto, é formulada de maneira simplista, anticientífica (apesar de estar escrevendo numa revista de filosofia) e mesmo periculosa: “Com efeito, a personalidade individual ou coletiva dos judeus (salvas honrosas excepções), mostra bem que neles não existe crença convicta, procedimento estável. Nesta instabilidade vive escondido o tal demónio que empurrou Uriel para o judaísmo e depois o não deixou renegar esse judaísmo, quando francamente reconheceu o passo em falso que tinha dado. Não terá nascido daí aquele momento de desespero que o levou ao suicídio?”.33 Em resumo, a liminaridade dacostiana se expressou nas duas grandes fases da sua vida: cristão-novo em Portugal e judeu-novo excomungado em Hamburgo e Amsterdam. Guardadas as proporções, seu “salto final” rumo à negação da religião revelada pode ser entendido como uma resolução dialética dessas duas experiências liminares.

33

Ferreira, J. A. Pinto, “Uriel da Costa: (pensador quinhentista e portuense) redivivo no séc. XX?” (1969). Aparentemente há um erro conceitual no título desse artigo, uma vez que a escrita de Uriel da Costa não se realizou no quinhentos, mas durante o seiscentos.

20

2. A identidade lingüística de da Costa

A princípio, não há motivos para pensar que a identidade lingüística de da Costa tenha sido muito diferente da identidade lingüística de qualquer cidadão português culto de fins do século XVI e princípios do século XVII. Pelo menos não durante sua fase portuguesa, que coincidiu cronologicamente com aproximadamente a primeira metade de sua vida. Muito embora seja válido perguntar em que medida o português dos cristãosnovos diferiu do português dos cristãos velhos, a resposta a esta pergunta não poderia ser dada nesta pesquisa. Limitamo-nos aqui a supor que um cristão-novo, por motivos óbvios (isto é, não correr riscos ante a Inquisição), não falava ou escrevia, pelo menos no âmbito público, num português que poderia insinuar qualquer traço ou caráter “judaizante”. Se dermos alguns passos atrás, poderíamos refletir acerca da identidade lingüística dos próprios judeus portugueses durante os séculos XIV e XV. Nesse caso, a discussão se assemelharia, só que em menor escala, à discussão sobre a formação de uma variedade lingüística judaico-espanhola pré-expulsão. 34 Ou seja, há muito mais possibilidade teórica de encontrar no idioma daqueles judeus portugueses, do que entre os cristãos-novos portugueses, traços singulares que o aproximariam do conceito de língua judaica, isto é: um idioma vernacular escrito e falado por judeus que convive em diglossia com o hebraico bíblico e que possui traços de heterogenia e arcaicidade.35 De uma perspectiva literária, por exemplo, Gil Vicente (1465 ? – 1537 ?) coloca na boca do personagem judeu do Auto da barca do inferno (1517) o termo “el deu”.36 O mesmo termo aparece na boca de Latão, personagem judeu da Farsa de Inês Pereira (1523). Ainda nessa farsa, os personagem judeus utilizam o vocábulo “manim”. 37 Esses exemplos literários atestam de fato uma real singularidade lingüística dos judeus portugueses de então? Seriam meros detalhes, ou metonímias de uma singularidade

34

Para um panorama histórico do idioma judeu-espanhol cf. Bunis, David M., “El idioma de los sefardíes: un panorama histórico” (1993). 35 Para um estudo sobre a sociedade judaica portuguesa cf. Lipiner, Elias, O tempo dos judeus: segundo as Ordenações do Reino (1982). Para demais bibliografia cf. Singerman, Robert, Spanish and Portuguese Jewry: a classified bibliography (1993). Para um marco teórico sobre o conceito de línguas judaicas cf. Bar-Asher, Moshe, "Aspects in the Study of Jewish Languages and Literatures" (2009). 36 Na linha 88. 37 Na cena em que Canta o Escudeiro o romance “Mal me quieren em Castilla” e diz Vidal, linha 63. Cf. Artola, George T. & Eichengreen, William A., “A Judeo-Portuguese passage in the Farça de Inês Pereira of Gil Vicente” (1948).

21

factual? À semelhança do “el dio” do judeu-espanhol, no “el deu” português a eliminação do “s” final também indica a tentativa de neutralizar uma associação entre a denotação plural do “s” e a conotação da divina trindade cristã. “Manim” seria um construto que mescla o espanhol “mano” (mão) com “im”, sufixo hebraico que indica o plural masculino – o que nos leva a refletir acerca do papel relevante do elemento hebraico e espanhol no idioma dos judeus portugueses. Contudo, nem sequer a questão acerca do nível de espanholização do português standard entre os séculos XV e XVII foi suficientemente estudada. Mesmo antes da união das duas coroas ibéricas, sob a batuta da monarquia filipina, a Espanha já exercia uma forte influência cultural sobre o vizinho Portugal. O reinado de Manuel, o Venturoso (1469-1521), marcado pela aliança com a Espanha e pela política de intercasamentos, assinalou o apogeu da época castelhanizante, que ameaçou reduzir o português ao status de dialeto. 38 Não obstante, apesar de ser tido como certo que o período do “bilingüismo luso-espanhol” tenha imprimido sua marca na língua portuguesa, ainda assim é difícil precisar quais foram esses efeitos, dados os poucos estudos acerca desse tema, o afirma Teyssier.39 A ruptura provocada pelo quase um século de gerações convertidas e (posteriormente) nascidas no cristianismo dificulta em muito a validade das especulações acerca de uma continuidade lingüística entre o judaísmo português pré1496-7 e o tempo e espírito da época do Porto de da Costa. Ainda assim, apesar da ruptura, há lingüistas que, sob o influxo da moderna disciplina das línguas judaicas, afirmam que a língua portuguesa dos “marranos” também incorporou elementos do idioma judeu-português antigo.40 Como aluno de direito canônico na Universidade de Coimbra, está comprovada por documentação sua proficiência em latim, língua então indispensável para os estudantes desta carreira. Sua formação religiosa também se realizou nessa língua, já que desde há tempos o latim era a língua sacra por excelência da tradição cristã. Além do mais, pelo que temos entendido, no marco da contra-reforma católica as traduções da Bíblia a línguas vernáculas estavam sumamente proibidas. Mestres latinos clássicos, bem como renascentistas do século XV, seguramente não deixaram de figurar no repertório de leitura de da Costa durante seus anos de 38

Cf. Entwistle, William. James, The Spanish language: together with Portuguese, Catalan and Basque (1965: 298). 39 Cf. Teyssier, Paul, História da língua portuguesa (1984: 71). 40 Essa é por exemplo a opinião de P. Wexler em “Linguistica Judeo-Lusitanica” (1985: 190).

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formação e como estudante. Da Costa cita Plínio, faz um provável referencia a Cipião e trás um verso da Eneida de Virgilio. A menção ou citação desses autores latinos se realiza, entretanto, sempre em português. Além disso, Uriel da Costa declara textualmente seu conhecimento de latim: Nas letras nasçi eu, e da mama posso dizer me tiraram para ellas, pois de oito annos entrei na grammatica Latina; e eram ellas tam proprias, e naturaes para mim, que a tudo o mais furtava o tempo para o dar ellas. Assi em diferentes estudos gastei a idade, e posto que minha profissam foi estudar direito, a curiosidade me levava tambem a saber o que diziaõ os Theologos, e revolver seus escritos. (II.10)

O contato de da Costa com o hebraico provavelmente só aconteceria a partir do momento em que deixou Portugal, mesmo porque neste país, onde o judaísmo estava proibido, o hebraico por extensão também o estava. Mesmo levando em consideração que a família de da Costa “judaizava” em Portugal, ainda assim o conhecimento de hebraico nessas circunstâncias deve ter sido mínimo. Em que medida Uriel da Costa, na sua nova fase hamburgo-amsterdanesa, aprendeu e dominou o hebraico? Para o detrator Samuel da Silva, a heterodoxia dacostiana e seus conseqüentes erros “nascem de não saber a língua santa para seguir a verdade hebraica”. 41 É provável que a declaração contundente de da Silva foi o que levou um crítico de estilo exagerado a considerar que da Costa “no sabe una palavra de hebreo”. 42 Não obstante, apesar da afirmação contundente de Samuel da Silva, da Costa demonstra pelo menos um conhecimento elementar do hebraico bíblico em certas passagens do seu Exame das tradições. Nessas passagens, via discussões semânticas ou sintáticas, da Costa justamente tenta provar que “o contrario” (isto é, seu detrator) é que interpreta mal o idioma original da Escritura. É verdade que não seria possível esperar grandes conhecimentos de hebraico de um cristão-novo emigrado já adulto a Amsterdam, uma vez que esta língua estava banida, juntamente com o judaísmo, na Península Ibérica. Mas as gerações já nascidas ou criadas às beiras do Amstel atingiram um alto grau de conhecimento da língua. Menasseh Ben Israel, Moshe Rafael d’Aguilar e Spinoza, por exemplo, escreveram gramáticas da língua hebraica. Uma das várias diferenças fundamentais entre as gramáticas desses filhos da comunidade judaico-portuguesa, entretanto, foi justamente

41 42

Tratado da imortalidade da alma, pg. 141 da edição de Pinharanda Gomes. Albiac, Gabriel, “Morir en la sinagoga: Uriel da Costa” (1987: 227).

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seu público destinatário: enquanto os dois primeiros escreveram para o público comunitário, em português, o último escreveu para o grande público, em latim. 43 Conforme mencionado, Uriel da Costa não se furta de demonstrar algum conhecimento da língua da Escritura em seu Exame das tradições. Por exemplo, quando discute o significado e as diferenças entre as palavras hebraicas ruaḥ e neshama, passiveis de serem traduzidas como “alento”, “espírito”, “sopro”, etc. (II.14). Se no Exame das tradições da Costa não cita a Escritura em hebraico, isso se deve tanto a sua falta de domínio completo da língua hebraica quanto à provável falta de conhecimento dessa língua por parte de seu publico leitor. Sendo assim, da Costa pelo menos apresenta uma tradução calcada na sintaxe do hebraico bíblico, de maneira que respeita, na medida do possível, a tradição judaica de alterar o menos possível o texto bíblico original. Em que medida o Exame das tradições está escrito num idioma singular, ou quiçá numa língua judaica? Antes de uma análise propriamente lingüística, devemos refletir sobre as circunstâncias de sua escritura. Em 1624, ano da publicação da obra, da Costa estava há cerca de dez anos longe de Portugal, e portanto afastado há quase uma década do epicentro normativo da língua. Caberia perguntar o quanto esses dez anos de ruptura permitiram o desenvolvimento de singularidades idiomáticas (arcaísmos, por exemplo) na linguagem do Exame das tradições. Uma resposta precisa demandaria, entretanto, um estudo exaustivo de fontes primárias portuguesas escritas dentro do território nacional durante a década de 1620, estudo este também necessário para avaliar o grau específico de espanholização do idioma dacostiano. Uma análise prévia de trechos do Breve discurso contra a herética perfídia do iudaismo, de Vicente da Costa Mattos, publicado em Lisboa em 1623, aponta certa semelhança entre os idiomas de Uriel da Costa e Vicente da Costa Mattos, muito embora seus discursos sejam bem diferentes. Nota-se, além disso, que a tipografia das duas obras é idêntica. Uma pequena diferença idiomática se nota no vocábulo “rezão” em Uriel da Costa para o normativo “razão” de Vicente da Costa Mattos. A locução conjuntiva “assim que” (significando “portanto”; “pelo que”; “em conseqüência”), muito usada por Uriel da Costa, não aparece nos trechos de Vicente da Costa Mattos analisados. Essa locução conjuntiva, com o significado supracitado, só aparece em dicionários espanhóis (“así que”). Trata-se de um espanholismo no português de da 43

Sobre a gramática da língua hebraica escrita por Spinoza cf. Santiago, Homero, “Gramática da língua e gramática da Escritura: necessidade e contingência na Gramática hebraica espinosana” (2009).

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Costa, quiçá um arcaísmo, ou talvez um regionalismo? A locução conjuntiva com esse sentido também aparece, por exemplo, em Cervantes, 44 em Antonio Vieira 45 e em Camões. 46 Por outro lado, é certo que durante o século XVII as comunidades judaicoportuguesas de Amsterdam e Hamburgo não foram realmente ilhas lingüísticas suficientemente isoladas do português peninsular, dado o constante fluxo de conversos a estas "terras de liberdade" onde a Inquisição não atuou. Da mesma maneira, não chegou a cessar o contato dos ex-conversos de Amsterdam ou Hamburgo, ora aderidos (ou não) ao judaísmo, com cristãos-novos habitantes da Península Ibérica, seja por motivos comerciais, familiares ou diplomáticos. Como é sabido, membros de uma mesma família poderiam ser encontrados vivendo em Portugal como cristãos-novos, na França como “portugueses” e na Itália, norte da África, em Amsterdam, Hamburgo ou no Império Otomano como judeus.47 Todos esses fatores frearam as condições de relativo isolamento nas quais uma língua tem mais chances de desenvolver características morfossintáticas, semânticas e lexicais diferentes daquelas da língua standard da qual deriva. Portanto, é possível que a primeira geração de descendentes de ex-cristãos-novos já nascidos em Amsterdam ou Hamburgo tenha falado e/ou escrito num português singular, mas no caso dos próprios imigrantes o marco teórico em si já aponta para a improbabilidade do desenvolvimento de um idioma singular padronizado. Uma vez no ambiente da Amsterdam judaica, um novo vetor de espanholização passa a atuar sobre a língua portuguesa dos ex-cristãos-novos que ora orbitavam em torno do judaísmo normatizado. Isso porque os primeiros mestres dos ex-cristãos-novos judaizados não podiam ser também ex-cristãos-novos, dado que seu conhecimento do cânone judaico pós-bíblico deveria ser praticamente nulo. Dessa maneira, foram importados rabinos do Norte da África, do Império Otomano e da Itália para a função de (re)educar os ex-cristãos-novos na nova-velha fé mosaica. Para citar um exemplo, mencionamos a importação de Isaac Uziel (? – 1622) oriundo de Fez, rabino que educou Menasseh Ben Israel (1604 – 1657), por sua vez um representante da primeira geração de ḥakhamim formados pela própria comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam. De

44

Don Quijote, 1ª parte, 10º capítulo; 2ª parte, 2º capítulo, entre outros lugares. Sermão de Santo António aos Peixes. 46 Na décima camoniana citada no sexto capítulo desta dissertação. 47 Cf. Yerushalmi, Y. H., “The ‘Men of the Nation’” (1981: 17). 45

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maneira que o contato com os mestres do mundo sefaradita otomano implicou também no contato com o idioma judeu-espanhol/ladino e sua literatura. Um estudo realizado por Teensma (1993) com fontes primárias escritas em português e espanhol por sefaraditas, em Amsterdam, entre 1650 e 1795, analisa o papel e a interação dos dois principais idiomas ibéricos no marco da comunidade judaicoportuguesa daquela cidade. É interessante notar que esse estudo acaba por conectar-se à questão recém discutida da espanholização da língua portuguesa falada e escrita por judeus no ambiente holandês. Seu estudo, entretanto, aponta mais do que essa influência de mão única. Conforme demonstrado, o que ocorre no ambiente holandês é o que o investigador batavo chamou de fecundação cruzada (cross ferlitization) lexical e sintática entre o português e o espanhol dos sefaraditas de Amsterdam. De maneira que não só a língua hegemônica e prestigiada da Península exerceu influencia sobre o português que Teensma chama de Amsterdam Sephardi Portuguese, mas também o contrário: o Amsterdam Sephardi Spanish não deixou de sentir o impacto da influência da língua portuguesa.48 O processo de espanholização do português dos sefaraditas de Amsterdam não se deu, portanto, tão somente devido ao background espanhol de parte da população excristã-nova aderida ao judaísmo, mas também através do background espanhol do mundo sefaradita otomano e norte africano. Cabe destacar também o papel da Bíblia de Ferrara, a Bíblia en lengua Española traduzida palabra por palabra dela verdad Hebrayca, isto é, calcada no idioma hebraico original, publicada pela imprensa de Abraham Usque em 1553 em Ferrara, Itália. Da mesma maneira que o circuito Península Ibérica – Amsterdam foi o lugar comum dos ex-cristãos-novos aderidos ao judaísmo durante o século XVII, assim também foi o circuito Península Ibérica – Itália para aqueles de mesmo perfil social durante o século 16. Para citar exemplos significativos, mencionamos (Don) Isaac Abravanel, Fernando (alias Isaac) Cardoso e Samuel Usque. Este último, sobrinho do impressor Abraão Usque, foi o autor do clássico luso-judaico Consolação as tribulações de Israel, publicado na imprensa do tio no mesmo ano da lançamento da Bíblia de

48

Teensma, Benjamin N., “The suffocation of Spanish and Portuguese among Amsterdam Sephardi Jews” (1993).

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Ferrara.49 A Bíblia castelhano-judaica também foi editada em Amsterdam em 1611, em cópia direta do original de 1553, e em 1646 e 1661. Devido à importância da Bíblia de Ferrara o espanhol e o português ocuparam funções diferentes no marco da comunidade portuguesa de Amsterdam e demais cidades satélites. Cabe lembrar também que o prestigio gozado pelo espanhol não se deu somente pela via sacra da Bíblia de Ferrara, mas também por uma tradição um pouco mais longínqua no tempo, a saber, a da época de ouro judaico-espanhola (séculos 11 e 12). Apesar de os baluartes dessa época terem escrito em hebraico e árabe, o caráter hispanofônico da Espanha das três culturas não deixou de ser um ponto de referência para as gerações sefaraditas seguintes. Na falta do hebraico, que para os novos emigrados do século XVII era tão somente uma novidade, o espanhol foi elevado ao patamar de língua semi- ou quasesacra.50 Várias obras escritas em português, por exemplo o próprio Tratado de Samuel da Silva ou o Therouro dos Dinim de Menasseh Ben Israel, trazem todas as citações bíblicas no espanhol de Ferrara, demarcando assim o contraste entre as funções reservadas ao espanhol e o português. Como veremos mais detalhadamente no capítulo sobre a Bíblia dacostiana, o fato de da Costa citar todos os versículos bíblicos incrustados no Exame das tradições em português pode denotar um crítica subliminar a autoridade incutida à essa tradução bíblica consagrada pela tradição judaico-sefaradita de seu tempo. Ao longo do século XVIII, as duas línguas ibéricas perderiam muito da sua importância entre os sefaraditas de Amsterdam, devido à assimilação à língua local, ao cessar da emigração cristã-nova oriunda da Península e/ou pelo ofuscamento causado por línguas de maior prestigio como o francês ou as línguas locais.51 Esse século marca o início do declínio do uso do português pelas comunidades sefaraditas ocidentais. De maneira interessante, paradoxalmente (mas nem tanto), a língua étnica que paulatinamente deixava de ser conhecida pelas novas gerações da comunidade, acabava por revestir-se de certo ar de sacralidade – talvez devido à tendência de associar o misterioso ao divino. Roth, no que diz respeito ao definhamento (ou, se quisermos “sufocamento”, na metáfora de Teensma) do espanhol e o português entre os sefaraditas de Amsterdam, atribui o uso do português entre os sefaraditas portugueses do século 49

Para um estudo detalhado sobre Consolação as tribulações de Israel cf. a edição crítica de 1989. Cf. também Roth, Cecil, “The marrano press at Ferrara, 1552-1555” (1943). 50 Cf. Roth, Cecil, “The role of Spanish in the Marrano Diaspora” (1959). 51 Teensma, B. N., op.cit..

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XIX à uma sorte de “conservadorismo galante” ou a iniciativa de revivalistas antiquarizantes e/ou romantizantes.52 Quanto a Hamburgo, Cassuto atesta que até a metade do século XIX os judeus portugueses desta cidade fizeram uso do idioma português e que, desde então, “seu uso tem desaparecido rapidamente até ao ponto de que hoje [1930] está completamente esquecido, exceto em alguns dos serviços sinagogais em que o uso da antiga língua ainda persiste [...]”.53 O estudo de Germano (1968) analisa textos publicados em Hamburgo e Amsterdam no século XVIII e princípios do século XIX, apresentando detalhadamente características morfossintáticas, fonéticas e lexicais de textos em português escritos pelos sefaraditas destas cidades. No entanto, esse pesquisador, escrevendo na década de 1960, ou seja, antes da cristalização do moderno conceito de língua judaica, não chega a usar o termo judeu-português, mas se contenta em pesquisar a língua portuguesa usada pelos judeus sefarditas no exílio, para a qual propõe uma tentativa de caracterização.54 Sobre Livorno, Tavani (1988) apresenta um estudo detalhado das características gráficas, particularidades fonéticas, morfológicas e sintáticas baseadas em sete textos portugueses escritos naquela cidade, durante o século XVIII, por judeus de ascendência cristã-nova. De fato, neste estágio da língua, conforme atesta a análise de Tavani, já há suficientes singularidades que o diferem morfossintática e lexicalmente do português standard do seu tempo.55 Uma análise de idioma de David Franco Mendes também nos mostra que deve ter sido mesmo no século XVIII que o idioma dos judeus de origem cristã-nova conheceu o seu máximo momento de singularidade lingüística. O idioma do clássico Memórias do estabelecimento e progresso dos judeus portuguezes e espanhóis nesta famosa cidade de Amsterdam (1772), espécie de memorbucher da comunidade, foi classificado como um híbrido íbero-galico-português fossilizado,56 ou seja, um idioma que apresenta pelo menos duas características das línguas judaicas, a saber, arcaicidade e heterogenia.

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Roth, C., idem, pg. 307-8. Cassuto, Alfonso, Elementos para a história dos judeus portugueses de Hamburgo (1930: 29). 54 Germano, Pedro da Silva, A língua portuguesa usada pelos judeus sefarditas no exílio: tentativa de caracterização (1968). 55 Tavani, Giuseppe, "A expressão linguística dos judeus portugueses de Livorno" (1988). 56 Cf. o estudo introdutório de B. N. Teensma para a edição de 1990 do Memórias do estabelecimento e progresso dos judeus portuguezes e espanhóis nesta famosa cidade de Amsterdam. 53

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Após essa breve consideração panorâmica acerca da posição da língua portuguesa no marco sefaradita, podemos voltar a considerar a identidade lingüística portuguesa do próprio Uriel da Costa. Na opinião da historiadora luso-germânica Michaelis de Vasconcelos, Uriel da Costa era fraco escritor português.57 Para o filosofo espanhol Albiac, Uriel escribia en un portugués detestable. 58 Mesmo que baseados tão somente nos excertos da prédescoberta do Exame das tradições completo, essas opiniões têm sua significação, muito embora não estejam fundamentadas em estudos lingüísticos. Mais que tudo, estes investigadores, despreocupados com a conexão entre língua e sociedade, revelam certa dose de preconceito lingüístico. O portenho de origem damasquina Faur, embora escrevendo sobre o Exemplar Humanae Vitae, não se furta de opinar sobre o português de da Costa, assinalando que his Portuguese is not that of a man of letters.59 Não obstante, essas observações furtivas, pouco fundamentadas e muito mais prescritivistas do que descritivas, nos dão uma importante pista: a suposta fraqueza e/ou detestabilidade de alguma maneira percebidas por Vasconcelos e Albiac, ou a simples “deselegância” na ótica de Faur, podem ser sinais de uma dissonância provocada pelo idioma de da Costa, ou seja, um desvio da norma, ou uma falta de norma. 60 Salomon e Sassoon são os que mais se aproximam de uma análise idiomática pertinente, muito embora breve e pouco conclusiva. Numa comparação lexical com a norma empregada por Samuel da Silva no seu Tratado da imortalidade, Salomon e Sassoon assinalam que o português de da Costa possui tanto traços "arcaicos" quanto "modernos".

Por exemplo, sempre que da Silva cita o texto de Uriel, transcreve “no, num, Deus, traição, fruto” enquanto, no livro de Uriel, estas palavras se escrevem “em o, em um, Deos, treição, fruito”. Por estranho que pareça embora da Silva fosse aproximadamente doze anos mais velhor que Uriel, o sistema ortográfico que adopta é, nestes casos, menos arcaico. Por outro lado, da Silva emprega as formas arcaicas “polo, cudar, baxo”, enquanto Uriel escreve “pelo, cuidar, baixo”.61

57

Vasconcelos, Carolina Michaelis de, Uriel da Costa, Notas relativas à sua vida e às suas obras (1921: 83). 58 Albiac, G., op. cit., pg. 226. 59 Faur, José, "Uriel da Costa: The Man behind the Mirror" (1992: 133). 60 Tanto Albiac (idem) quanto Faur (idem) afirmam que o Exemplar Humanae Vitae provavelmente tenha sido originalmente escrito em português. 61 Salomon, H. P. & Sassoon, I. S. D. (1995:67).

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Delineamos adiante algumas características do idioma vernacular de da Costa que nos chamaram a atenção. Tratam-se, no entanto, de características esporádicas, que às vezes ocorrem tão somente nos exemplos citados (entre parênteses assinalamos os lugares onde aparecem):

1. [l] > [r]: a. simprez (I.9; I.14); b. prantada (I.10); c. plurar (I.14; I.2.4); d. frol (I.15) [quiçá metástase ?]; e. afriçam (II.13)/ afrito (II. Questão); f. frauta (II. Soneto em nome de alguns do povo quase penitentes, segunda estrofe, quarto verso). 2. Apócope de vogal: a. val [para vale] (I.2.4, etc.); b. inda [para ainda] (I.3, etc.). 3. Apócope de consoante: a. proa [para prova] (I.14); b. rumia [para rumina] (II.9). 4. [u] > [ui]: a. luitou (I.2.8), luitando (II.14); b. fruito (I.7, etc.). 5. [e] > [ei]: a. exceiçam (I.8.4); b. seisto (II.2, etc.). 6. [pre] > [per]: a. perjudicial (I.3), periuizo (I.4.5), perjudicar (II.15). 7. [v] > [b]: a. biboras (II.16);62 b. bastos (II.2). 8.

[e]: rezam/rezaõ (I.3, etc.).63

9. [e] > [a]: piadade (I.1.12).64 10. [u] >[o]: soportar (I. Ao Leitor). 11. Arcaísmo grafemático: A grafia , empregada por Camões em Os Lusíadas (1572), não é usada no Breve discurso (1623) de Costa Mattos, que emprega a grafia . Portanto, de acordo com essa comparação, a grafia empregada por Uriel da Costa aparentemente já não mais era usada em Portugal na terceira década do século XVII.

62

víboras em Os Lusíadas (V-11). razão no Breve discurso contra a herética perfídia do iudaismo, de Vicente da Costa Mattos (1623). 64 piedade em Os Lusíadas (II-32; II-104; etc.). 63

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12. Espanholismos: a. despois (I.7.5, etc.);65 b. donde (I.8, etc.);66 c. nuves (I.13, etc.); d. fea (II. Prefácio); e. escuridade (II.1.4); f. entonçes (II.2, etc.); g. alvedrio (II.19); h. antojasse (II.19); i. vivirei (para “viverei”, II.2); j. “assim que” (espalhado por todo o texto).67 13. Hebraísmos: a. malsim (II.17) [de ‫;]ןישלמ‬68 b. man (I.14) [de ‫( ןמ‬manah)]; c. “culto estranho” (= “idolatrar”, II. Prefácio), calque da expressão ‫עבודה זרה‬. 14. Diferentes grafias para a mesma palavra: a. substantia – substançia (I. Ao Leitor); b. tradiçaõ – tradiçam (I.1; I.1.6); c. declaraçaõ – declaraçaom – declaracaom (I.1.2; I.1.3; I.1.5); d. Senhor – Sñor (I.1.5; I.5,1); e. naom – nam – naõ (I.1.4; I.1.6; I.1.11); f. superstiçioso – superstitioso (I.8; I.9); g. onde – donde (II. Prefácio); h. rezam – rezaõ (II. Prefácio; II.1); i. criaturas – creatura (II.1; II.1.2).

As apócopes, ditongações, metástases, e a confusão no emprego de certas consoantes e certas vogais em determinadas situações revelam o traço eminentemente oral da escrita vernacular dacostiana, de maneira a confirmar a tradicional divisão sociolingüística que relaciona o uso da língua portuguesa entre os sefaraditas do século XVII à situações cotidianas e/ou de oralidade. Alguns dos espanholismos relacionados entre os exemplos supracitados também foram encontrados em textos de autores não judeus, de maneira que aparentemente atestam marcas da espanholização do próprio português standard e não propriamente do idioma português dos sefaraditas. Quanto ao arcaísmo grafemático , ainda é necessário pesquisar mais textos contemporâneos para verificar sua presença ou ausência. Contudo, essa característica, a principio, confere um traço de arcaicidade grafemática ao idioma de da Costa.

65

Assim também no Breve discurso (supracitado). Assim também em Os Lusíadas (I-50). No Exame das tradições se alterna com “onde”. 67 Sobre este espanholismo cf. pg. 24 deste capítulo. 68 Encontrei o termo “malsinada [noite]” no romance histórico de Alfonso Schmidt (1963: 22) sobre o cristão-novo degredado João Ramalho. Segundo o dicionário etimológico da língua portuguesa de Antônio Geraldo da Cunha, o substantivo português “malsim” deriva do espanhol “malsin”, que por sua vez deriva do hebraico. A definição é: “denunciante, delator”; “fiscal alfandegário, zelador dos regulamentos policiais, beleguim”; por extensão “espião”. 66

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3. A gênese do Exame das tradições

O Exame das tradições de Uriel da Costa foi publicado, conforme sua capa atesta, em casa de Paulo à Ravesteyn anno da criação do mundo 5384 [1624]. No entanto, esta obra se divide em duas unidades que foram cada qual o resultado de processos dialógicos com duas figuras específicas, respectivamente: o rabino veneziano Leon de Modena e o portuense ex-converso aderido ao judaísmo em Hamburgo Samuel da Silva. Neste capítulo reconstituiremos as etapas do palimpsesto que forma o Exame das tradições publicado em 1624 Um ponto de partida para a reconstituição da gênese da obra é própria autobiografia de Uriel da Costa, na qual podemos encontrar algumas pistas para a nossa análise. Segundo o Exemplar Humanae Vitae, Uriel da Costa foi expulso da comunidade judaica, aparentemente a de Amsterdam, pela primeira vez, devido a suas idéias contra a tradição rabínica, e não devido a algo que tivesse escrito. Devemos aqui levar em conta o caráter lacunar (e quiçá semi-apócrifo) do Exemplar, no qual não há nenhuma referência a Hamburgo, cidade na qual segundo a historiografia Uriel da Costa foi excomungado pela primeira vez. Na esteira da sua expulsão da comunidade, da Costa nos conta:

Resolvi escrever um livro no qual demonstraria a justiça da minha causa, e abertamente provaria, em conformidade com a Lei, a vaidade das tradições e dos costumes farisaicos e da discordância que tanto as suas instituições como as suas tradições têm com a Lei de Moisés. Estava já a minha obra começada, quando (é necessário que tudo fique esclarecido, e todos os acontecimentos contados com verdade) aconteceu vir a participar, corajosamente, e depois de amadurecido exame, da opinião daqueles que limitam a recompensa e castigo do Antigo Testamento à nossa vida terrestre, sem se ocuparem da outra vida e da imortalidade das almas [...].

Na continuação, da Costa nos conta que antes de o seu livro, que já estava escrito, alcançar a imprensa, saiu publicado o Tratado da imortalidade da alma, de autoria de “não sei que médico”, que hoje sabemos tratar-se de Samuel da Silva. Da Costa não faz menção sobre o destino do seu livro, que aparentemente não chegou a ser publicado. Na seqüência, da Costa nos conta:

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Logo que o libelo que me atacava se publicou, preparei imediatamente a minha defesa, e escrevi outro livro que o refutava; combatia a imortalidade com todas as minhas energias, aflorando de passagem outros pontos sobre os quais os fariseus divergem de Moisés.

Mais adiante, da Costa conta que esse último livro foi condenado à destruição por um juiz do magistrado público. Essa é a sua última menção ao livro. Como sabemos agora, esse livro é o Exame das tradições publicado em 1624. Sabemos também que o Tratado da imortalidade de Samuel da Silva foi publicado em 1623. Portanto, o livro de Uriel da Costa foi redigido entre 1623 e 1624. Graças ao rabino veneziano Leon de Modena, sabemos que a primeira parte do Exame das tradições (pg. 5-49) é uma reformulação de um escrito enviado por Uriel da Costa à comunidade judaico-ponentina de Veneza em torno do ano de 1616. O escrito original de da Costa não sobreviveu, senão através dos excertos reproduzidos na refutação-resposta de Leon de Modena. 69 Ironicamente, neste e em outros casos, o refutador, ao reproduzir ou parafrasear o texto do refutado, colaborava substancialmente para veicular e perpetuar as idéias as quais justamente queria combater. O rabino veneziano, sem mencionar o nome de Uriel, reproduziu em hebraico, no livro refutatório, as palavras atribuídas a um herege cuja identidade provou-se ser a de Uriel da Costa. Podemos concluir portanto que a primeira parte do Exame das tradições redigido entre 1623 e 1624 já havia sido proto-elaborada em torno de 1616, quiçá mesmo antes. Uma vez que não sabemos a data exata da chegada de da Costa a Amsterdam, onde aderiu formalmente ao judaísmo, não podemos delimitar exatamente em que ano Uriel da Costa poderia ter começado a escrever o texto que enviaria a Veneza em torno de 1616. Precisamente porque não há um consenso sobre o exato ano da chegada de Uriel (então Gabriel) a Amsterdam. Sua expatriação de Portugal, segundo bem indicou Magalhães Basto, ocorreu antes de 29 de abril de 1615.70 A historiografia tende a situar sua chegada a Amsterdam em 1615, mas há aqueles que consideram o ano de 1612.71 Do mesmo modo, a historiografia tende afirmar que da Costa estabeleceu-se diretamente em Amsterdam, da qual se mudou, após curta estadia, para Hamburgo. 69

Maamar Maghen we-Sinnah (1616?), publicado pela primeira vez por Abraham Geiger em 1856. O título significa “Escudo e adarga”, numa alusão ao Salmo 35:2. 70 Basto, Artur de Magalhães., op.cit.. 71 Nadler, Steven, Spinoza’s Heresy: Immortality and the Jewish Mind (2001: 165).

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Alguns historiadores, no entanto, consideram que da Costa estabeleceu-se diretamente na cidade hanseática, e há mesmo pelo menos um investigador que afirma que da Costa passou pela Itália antes de chegar a Amsterdam.72 Acaso o texto enviado a Veneza teria sido o próprio primeiro livro que da Costa menciona em sua autobiografia? Essa hipótese não pode ser de todo refutada. O texto de Uriel foi escrito originalmente em português, mas é reproduzido por Modena em hebraico. Uma vez que Modena não mencionou textualmente o nome do “herege” refutado, a identidade do autor dos excertos foi motivo de contendas entre pesquisadores até a reaparição do Exame das tradições, em 1990, através do qual se pode confirmar que o herético e malvado a quem da Modena menciona, tão somente para melhor refutar, era ninguém menos que o próprio Uriel da Costa. Os excertos atribuídos a Uriel da Costa ficaram conhecidos como propostas (ou objeções) contra a tradição, ou como as 11 teses, apesar de não sabermos se o texto original sequer tinha um título; eles foram intitulados dessa maneira na edição standard de Gebhardt (1922), e não foram portanto escritos pelo próprio punho de da Costa, mas sim extraídos por Gebhardt de dentro do texto de Modena e organizados de maneira esquemática. 73 Nas 11 teses, da Costa analisa de forma concisa rituais judaicos tais quais a circuncisão segundo o rito rabínico e a cadeira destinada simbolicamente ao profeta Elias na ocasião dessa cerimônia; o uso dos tefilin (filactérios); o acréscimo de um dia à celebração de feriados na diáspora; detalhes de questões legais como no caso do boi que acorneou um homem; o imperativo olho por olho [Lv 24:20], ou seja, a lei de talião (lex talionis), assim como o próprio status da Lei oral. À luz de versículos do Pentateuco, a análise de da Costa visa fundamentalmente provar que a interpretação talmúdica deturpou a Lei de Moisés. Não sabemos qual era a extensão nem o formato do texto que Uriel da Costa enviou a Veneza em 1616, e é possível que aquilo que chegou às mãos de Leon de Modena não tenha sido senão um fragmento do primeiro livro mencionado por da Costa no Exemplar Humanae Vitae. Este primeiro livro teria sido então, conforme desconfia Proietti, uma proto-versão não só da primeira parte mas das duas partes do Exame das

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Sonne, Isaiah, “Da Costa studies” (1932). Esse investigador baseia o argumento da passagem de da Costa pela Itália em alguns excertos da Nomologia, o Discursos Legales, de Imanuel Aboab (1629). 73 Cf. Gebhardt, Carl, op.cit..

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tradições. 74 Ante essa possibilidade, é precipitado afirmar que da Costa enviou a Veneza exatamente aquilo que obtemos do texto de Leon de Modena, e com o título técnico empregado por Gebhardt, conforme o fazem Nadler e outros mais. 75 A versão portuguesa das propostas apresentada na edição de Gebhardt é aparentemente a tradução feita do hebraico ao português por Moshe Rafael d’Aguilar (?-1679) a partir do texto de Leon de Modena (na verdade uma “re-tradução, ou melhor, reversão, do português de volta ao português, intermediada pela tradução hebraica), e tão pouco sabemos em que ano foi publicada. Aqueles excertos mandados por Uriel da Costa a Veneza, os quais Modena reproduz, integral ou parcialmente, em hebraico, na sua obra refutatótia, foram reelaborados por Uriel da Costa a partir da crítica de Leon de Modena, de maneira a ganharem uma nova dimensão ou, se assim quiser, camada 76 . Esse novo texto, ora crivado pela crítica de Leon de Modena, é que constitui a primeira parte do Exame das tradições publicado em 1624, e ocupa as páginas 1 a 49 desta obra. Cogita-se também que a relação dialética que gerou a primeira parte do Exame das tradições é resultado do eco da voz de Uriel da Costa não só no Maamar Maguen ve-Sina, mas também em outra obra de Leon de Modena, o famoso Kol Sakhal (Voz de um tolo) [ano de publicação desconhecido]. Sob o disfarce da personalidade ficcional de um rabino quinhentista de Alcalá de Henares, estariam ecoando escritos de Uriel da Costa.77 Especula-se que Uriel da Costa sabia pouquíssimo hebraico; então, de que maneira ele pode reescrever suas propostas contra a tradição, com base em Modena, se Modena escreveu em hebraico? Passemos agora a investigar o segundo prototexto de Uriel da Costa, que é precisamente aquele que gerou a segunda parte do Exame das tradições. Trata-se dos excertos reproduzidos por Samuel da Silva, citados ipsis litteris em seu Tratado da immortalidade da alma.78 A dialética com Samuel da Silva é de certa maneira bastante parecida com aquela entabulada com Leon de Modena, com a diferença que desta vez se conduz totalmente em português. 74

Cf. Proietti, O., op.cit.. Nadler, Steven, Spinoza (1999: 68). 76 Sobre o impacto das censuras de Modena na reelaboração do texto de 1624 cf. Salomon & Sassoon (1995: 57-63) e Fishman, Talia, Shaking the Pillars of Exile: ‘Voice of a Fool’, an Early Modern Jewish Critique of Rabbinic Culture (1997: 49-59). 77 Essa é a tese que O. Proietti (op.cit.) tenta provar. Cf. também T. Fishman, op.cit.. 78 Tratado da Immortalidade da Alma. Composto polo Doutor Semuel da Silva, em que tambem se mostra a ignorancia de certo contrariador de nosso tempo que entre outros muytos erros deu neste delirio de ter para si e publicar que a alma de homem acaba juntamente com o corpo. Amsterdam. Impresso em casa de Paulo de Ravesteyn. Anno da criacaõ do mundo 5383 [1623]. Doravante Tratado da Imortalidade. Retirado da edição de Salomon & Sassoon (1995: 458). 75

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Na introdução do Tratado da imortalidade, da Silva afirma que “[...] vi eu e viram outras pessoas dos nossos, escritos de sua mão de tantos escândalos e insolências [...]”. Assim como Modena, da Silva também não nomeia o autor dos escritos, mas se vê impelido (ou talvez tenha sido mesmo contratado) a redigir uma refutação urgente para os escritos escandalosos. Os escritos de Uriel da Costa que alcançaram as mãos de da Silva foram citados por da Silva ao longo dos capítulos 8 e 28 do seu Tratado da imortalidade, naturalmente que com a finalidade de serem refutados. Da Silva inclusive assinala a numeração original dos escritos de da Costa: capítulos 23-24-25. Essa numeração dá margem a algumas especulações. Voltamos a perguntar: tratar-se-ia de um prototexto tão somente dedicado a refutação da imortalidade da alma, ou de um texto que já incluía a revisão das teses contra a tradição? A segunda hipótese parece ser a mais provável, se levarmos em conta aquilo que podemos extrair dos exertos do Exemplar Humanae Vitae supramencionados. Segundo a autobiografia, Uriel já havia começado a escrever um livro quando o tema da imortalidade da alma veio à tona. Uriel então deve ter incorporado o tema ao livro, que ficou pronto, mas cujo destino Uriel não menciona. Nesse meio tempo seria publicado o ataque de Samuel da Silva, e aí então Uriel da Costa escreve o novo livro. A segunda parte do Exame das tradições de 1624, que ocupa as páginas 49 a 214, está dividida em prefácio, 20 capítulos-tópicos, uma questão final e dois sonetos decassílabos intitulados respectivamente aos rebeldes porfiosos do povo e em nome de alguns do povo quase penitentes, 79 os quais dramaticamente encerram a obra. Aqui reaparecem os mesmos trechos citados por da Silva em seu Tratado da Imortalidade, ora como capítulos 1-2-3. Os demais capítulos são uma tréplica de da Costa àquilo que da Silva argumenta no Tratado da Imortalidade. Da costa faz referências diretas ao texto de da Silva, e ambos os polemistas não se furtam em nenhum momento do uso deliberado do escárnio e da crítica ad hominem, isto é, a crítica focada não propriamente na falsidade do enunciado, mas no próprio enunciador. Esse elemento, inscrito na perspectiva de uma discussão dialógica, não estava nem poderia estar presente nos textos dacostianos precedentes, geradores do Exame das tradições de 1624, porque esses escritos primevos não estavam circunscritos em diálogos definidos, contra opositores definidos, que marcam a obra de 1624. Muito embora Leon de Modena não 79

No primeiro deles, conforme nota Salomon, H. P. (1990: 165), da Costa se vale de uma imagética inspirada no Novo Testamento para definir seus oponentes. Nota-se sobretudo o paralelismo entre este soneto e os versículos de Mateus 15:14; 23:16,23; Lucas 6:39 e João 9:40, na maneira de explorar os campos semânticos da cegueira, da oposição luz-sombra e da cova.

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seja nomeado, é sabido que ele está latente na primeira parte do Exame das tradições. Quanto a Samuel da Silva, ele é diretamente nomeado por da Costa, muito embora da Costa não seja diretamente nomeado por da Silva, que assim prefere “por honra do sangue donde precede, ainda que ele o não merece pela soltura e soberba com que fala [...]”.80 O fato de o Tratado da imortalidade e o Exame das tradições – obras supostamente antagônicas – terem sido publicadas pelo mesmo impressor, o holandês Paulo de Ravesteyn, tão somente sublinha sua tanto paradoxal quanto coerente interdependência. 81 O exemplar do Exame das Tradições de 1624 encontrado na Biblioteca Real de Copenhagen em 1990 teve seu fac-símile publicado em 1993 numa edição crítica a cargo dos professores Salomon e Sassoon.82 Essa edição, provida de um interessante estudo introdutório, notas e carta genealógica, também apresenta traduções inglesas do Exame das Tradições e do Tratado da imortalidade.83 Em 1995, a mesma edição foi lançada em versão portuguesa, acompanhada de uma transcrição atualizada e pontuada dos textos originais de da Costa e da Silva. Esse breve excurso acerca da gênese do Exame das tradições nos dá a impressão de que se trata de uma obra de caráter dialógico, isto é, inscrita num marco onde a presença de um oponente direto se faz imprescindível. Sem as objeções que da Costa enviou de Hamburgo a Veneza Leon de Modena não teria escrito as duas obras de seu punho supramencionas, sem os cadernos de Uriel da Costa, Samuel da Silva não teria escrito seu tratado sobre a imortalidade da alma, e sem as réplicas desses dois antagonistas o próprio Uriel da Costa não teria produzido sua tréplica intitulada Exame das tradições. Escrevendo num português desterritorializado, o dialogo da Costa-da Silva constitui um bom exemplo de escrita realizada no marco da província portuguesa da République des Lettres européia do século XVII. Porém, segundo a abertura Ao Leitor do Exame das tradições, Uriel da Costa não tinha a intenção de polemizar; o que o levou a escrever seu Exame das tradições foi, segundo alega, a legítima defesa. De maneira que fica a impressão de que da Costa era mais necessário para seus detratores

80

Tratado da imortalidade, “Ao benigno Leitor”. Retirado da edição de Salomon & Sassoon (1995: 457). Paulus Aertsz Ravesteyn também foi responsável pela publicação da primeira edição da tradução neerlandesa da Bíblia, a Statenbijbel, em 1637. 82 Conferir Boer, Harm den., “Was Uriel da Costa's 'Examen' seized by the Spanish Inquisition? The Spanish 'Index librorum prohibitorum' as a bibliographical source" (1989), e Salomon, H. P. (1990). 83 Cf. a crítica (não de todo entusiástica) de Miriam Bodian (JQR, 1996) à esta edição. 81

37

do que os detratores necessários para da Costa. No entanto, essa alegada defesa talvez não passe senão de recurso retórico:

[...] tomei trabalho, sobre escrever, e com forca quiz mostrar a verdade do que dizia. Ensinoume o tempo que todo o que nisto gastasse seria perdido, e que não era era conveniente perseverar em querer da bom conselho a quem o naõ queria ouvir, e sobre iso pagava mal. recolhi os escritos, e naõ os quiz publicar. Sahio neste meio tempo hum medico com hum tratado cheo de calumnia, que intitulou da immortalidade da alma, e assi por elle naõ fiquar detodo sem alguã reposta ao muito que mereçe, como para mostrar a substantia do que digo aos que naõ tem inteira notiçia, e com isso desviar a falsa voz de homens maos que calumniando querem defender sua injusta causa, me pareçeo neçessario fazer hum breve compendio de alguãs cousas, e pólo diante aos que quizerem ser iuizes, para conforme elle, assi iulgarem, e naõ conforme ao que da boca apaixonada, e inimiga receberem. (Ao Leitor)

Conforme o observam Salomon e Sassoon, nada mais nada menos do que cinco textos em apoio da sobrevivência depois da morte, da ressurreição final e da imortalidade da alma correram das penas rabínicas de Amsterdam entre 1624 e 1640, três delas diretamente relacionadas ao Exame das tradições. O primeiro deles foi o inédito Tratado da imortalidade e da eternidade da alma racional, do ḥakham Saul Levi Mortera (1596?-1660). O segundo foi o tratado intitulado De La Resurrecion de los muertos Libros III em los quales contra los Zaduceus se prueva la immortalidad del alma y resurreccion de los muertos [...] obra de las divinas letras y antigos sabios colegida, da autoria do multifacetado ḥakham Menesseh Ben Israel. O terceiro deles foi lançado por volta de 1639, por Moshe Rafael d’Aguilar. Quando traduziu para o português o Maamar Magen ve-Sina de Leon de Modena, Aguilar aproveitou para escrever também nesta língua o breve “Tratado da Imortalidade da Alma”, que permaneceu inédito até 1934. Temos, assim, uma noção do impacto causado pelo Exame das tradições.84 De maneira esquemática, podemos sintetizar a gênese do Exame das tradições do seguinte modo:

1-

Livro inacabado, ou texto avulso, enviado a Veneza – escrito entre 1612 e 1616, e reproduzido parcialmente no Maamar Maghen ve-sina (1616?), de Leon de

84

Salomon & Sassoon (1995: 83-86). Cf. também Nadler, S. (2001).

38

Modena (os excertos do livro de Uriel reproduzidos por Leon de Modena ficaram conhecidos como Propostas contra a tradição, ou 11 teses) – esse texto seria a proto-versão da primeira parte do Exame das tradições. 2-

Livro terminado, interceptado por Samuel da Silva – escrito entre 1616 e 1623 (quiçá antes de 1616), conhecido como Sobre a mortalidade da alma – esse texto/livro consistiria numa soma do livro inacabado (ou texto avulso), acrescido de considerações acerca da mortalidade da alma, por sua vez uma proto-versão da segunda parte do Exame das tradições.

3-

Exame das tradições – escrito (ou reescrito) entre 1623 e 1624, após a leitura do Maamar Maghen ve-sina (e quiçá também do Kol Sakhal) de Leon de Modena, e do Tratado da imortalidade de Samuel da Silva.

ou

1-

Proto-Exame das tradições (?) – escrito entre 1612 e 1616, desaparecido por completo ou fragmentado, reproduzido e/ou parafraseado no:

a.

Maamar Maghen ve-sina (1616?), de Leon de Modena. As palavras de Uriel da Costa dentro dessa obra ficaram conhecidas como Propostas contra a tradição, ou 11 teses

b.

Tratado da imortalidade (1623), de Samuel da Silva. Os capítulos de Uriel da Costa veiculados dentro da obra de da Silva ficaram foram intitulados por Gebhardt como Sobre a mortalidade da alma.

2-

Exame das tradições – escrito (na verdade reescrito) entre 1623 e 1624, após a leitura do Maamar Maghen ve-sina (e quiçá também do Kol Sakhal) de Leon de Modena, e do Tratado da imortalidade de Samuel da Silva.

39

4.

A Bíblia dacostiana

Conforme veremos no capítulo seguinte de maneira mais detalhada, o discurso dacostiano se constrói e se justifica em torno do Pentateuco, determinados profetas e alguns livros dos Escritos, de modo que se foca em parte do cânone tradicional, ao mesmo tempo em que deixa de mencionar boa parte dele. Na finalidade de refutar a autenticidade e ao mesmo tempo denunciar a fraudulência da tradição oral, Uriel da Costa propõe um simples exercício: cotejar as tradições fariseas (ou, como diz o título, conferi-las) com a lei escrita. Mas Uriel da Costa não as examina à luz de toda a Bíblia, senão segundo uma seleção de versículos escolhidos por ele mesmo (ou pelo adversário da Silva) para melhor paramentar sua argumentação. A negação da Lei oral não se faz por dentro; não há tentativa de se entendê-las em si, mas tão somente através de um artificioso confrontamento com a lei escrita. De maneira que a negação das tradições fariseas, isto é, da lei oral, não se dá tão somente pela via propriamente verbal, mas também pragmática, isto é, nenhuma passagem do Talmud é textualmente citada no Exame das tradições. O idioma das citações bíblicas de da Costa é um construto extremamente singular e provavelmente inédito dentro da língua portuguesa de então. Ele é um testemunho textual da encruzilhada de mundos e culturas do discurso dacostiano, de sua dupla dimensão, do seu desgarramento e sua liminaridade. Os trechos bíblicos citados em obras escritas em português no âmbito da diáspora sefaradita ocidental do século XVII, via de regra, se faziam na popular versão castelhana da Bíblia de Ferrara. Isso se exemplifica, entre vários outros lugares, no próprio Tratado de Samuel da Silva (1623) ou o Thesouro dos Dinim de Menasseh Ben Israel (1635). Publicada em 1553, na cidade que leva seu nome, pela “imprensa marrana” de Abraão Usque, a Bíblia de Ferrara ocupou papel fundamental no âmbito da educação judaica dos ex-conversos85. A Bíblia de Ferrara foi reeditada em Amsterdam em 1611, em cópia direta do original de 1553, com o objetivo de cumprir tal função educativa, justamente pouco tempo antes da chegada do ex-converso do Porto à capital da República holandesa, em torno do ano de 1615. De maneira que, nesta ocasião, a Bíblia de Ferrara também representava uma novidade editorial da cidade. 85

Cf. Roth, Cecil, (supracitado, 1959).

40

Na contramão da tradição de citar a celebrada Bíblia de Ferrara, da Costa cita a Bíblia em português, muito embora seu idioma esteja evidentemente calcado da Bíblia de Ferrara. Deve-se perguntar portanto por que razão Uriel da Costa se dá o trabalho de traduzir a Bíblia de Ferrara ao português, quando a própria Bíblia de Ferrara poderia tranquilamente ser citada; seu público a entenderia sem problemas e além do mais tratase de uma língua fiel a sintaxe do hebraico bíblico. Dentro do discurso dacostiano, tal opção pode conotar um rompimento com a tradição sefaradita de semi-sacralização da Bíblia de Ferrara. Romper com a tradição de citar a Bíblia no idioma de Ferrara implica, de certa maneira, em nadar contra a corrente, e questionar um hábito dado como subentendido ou natural. Essa hipótese explicaria o trabalho de traduzir para o português uma tradução já bastante parecida com o português e compreensível para praticamente qualquer lusófono. No entanto, a situação encerra um paradoxo, que é o seguinte: a Bíblia dacostiana apresenta uma relação de diglossia com a Bíblia de Ferrara, esta na posição alta, aquela na baixa da fração diglóssica. Essa relação tão somente distancia a Bíblia dacostiana da língua da Bíblia hebraica original, da qual Uriel da Costa justamente quer se aproximar, pelo menos discursivamente, sem intermediários. Mas dentro do seu discurso isso não é e nem poderia ser levado em conta. A Bíblia de Ferrara é mesmo criticada diretamente, conforme exemplificaremos a seguir. Contudo, da Costa também estava familiarizado com bíblias latinas e com a língua latina de modo geral, em virtude de sua fase católica em Portugal, de maneira que, conforme demonstraremos em exemplos adiante, a Bíblia dacostiana não é uma simples tradução da Bíblia de Ferrara. Para sua tradução portuguesa, da Costa também coteja bíblias latinas, mencionando textualmente a versão de Pagnini (II.16). Além disso, da Costa realiza discussões lingüísticas acerca da semântica e gramática hebraicas (I.9; I.10; I.13; etc.). De maneira que a versão portuguesa da Bíblia criada por da Costa é uma metonímia da encruzilhada de tradições na qual se encontra: hebraica, judaicoespanhola, cristã-latina e luso-conversa. Essa confusão de paradigmas evidencia o caráter difuso da identidade de Uriel da Costa discutido anteriormente, e faz com que sua pertinência a essas tradições fragmente sua identidade ao ponto ser possível enxergá-lo como parte de todas e simultaneamente de nenhuma. Assim, a “Bíblia dacostiana” é um testemunho textual da natureza liminar de Uriel da Costa.

41

Para Salomon e Sassoon, Uriel da Costa aparentemente também se valeu do Pentateuco de Constantinopla (1547) para criar sua tradução portuguesa dos trechos bíblicos que cita no Exame das tradições. Em uma ocasião, os autores da edição crítica do Exame das tradições notam a curiosa coincidência entre o Pentateuco de Constantinopla e a tradução dacostiana da Bíblia: a expressão hebraica ‫ מקוצץ עצים‬é traduzida por cortán leñas no Pentateuco de Constantinopla, pelo qual, aparentemente, Uriel da Costa chegou a cortou para se referir a Nm. 27:5-6; 36:5-6,10. Tanto Santi Pagnini (Utriusque instrumenti nova translatio, Lion, 1528) quanto a Bíblia de Ferrara traduzem a expressão hebraica por “apanhar lenha” (colligente ligna e coscogién leñas, respectivamente). 86 Salomon e Sassoon também notam a coincidência entre a Bíblia Septuaginta e a paráfrase de da Costa para Job 42:8-9. Nos dois casos, diferentemente do original hebraico, da Bíblia de Ferrara ou de traduções latinas, não são os amigos de quem se exige uma “oferta de elevação”, mas do próprio Job. É somente nessa nota que os editores determinam a influência da Septuaginta sobre a tradução bíblica portuguesa de da Costa.87 A seguir, relacionamos alguns exemplos do impacto do texto latino na Bíblia dacostiana (para este exercício usei a tradução latina de São Jerônimo):

a.

Nota-se o paralelismo entre o vocábulo da versão de da Costa e o texto

latino para Gen 8:21, bem como a opção tradutória da Bíblia de Ferrara, seguidos do versículo original hebraico e da versão de Ferreira de Almeida: Da Costa: Por que o pensamento do coraçaõ do homem mao des de sua mocidade : e naõ ajuntarei mais para matar todo vivente assi com fiz, (II.Questaõ). São Jerônimo: ...enim et cogitatio humani cordis in malum prona sunt ab adulescentia sua non igitur ultra percutiam omnem animantem sicut feci Ferrara: ...que apetite de coraçon del hombre malo de sus moçedades, y no añadire mas por herir a todo biuo como hize .‫ כ ֲאשֶּר עשִיתִי‬,‫חי‬-‫כל‬-‫) עֹוד לְׁהכֹות אֶּת‬cis!( ‫אֹסִף‬-‫יֵצֶּר לֵב הָאדם רע ִמנְׁעֻריו; וְֹׁלא‬... :‫תנ"ך‬

86

Cf. Salomon & Sassoon (1995: 308, nota nº 2). Salomon & Sassoon (idem: 373: nota nº 9). Essa nota, no entanto, não me permitiu entender se da Costa de fato sabia grego. 87

42

Ferreira de Almeida: Porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice, nem tornarei mais a ferir todo o vivente, como fiz.

b. Nota-se em Gen 1:28 a supressão em da Costa do artigo definido "el" característico de Ferrara, bem como a inexistência de artigo característica da língua latina, seguidos do versículo hebraico original e da versão de Ferreira de Almeida: Da Costa: E bendise a elles Deos, e dise a elles Deos : gerai , multiplicai , e enchei a terra (II.1). Ferrara: Y bendixo a ellos el Dio, y dixo a ellos el Dio: fruchiguad y muchiguad, y hinchid a la tierra... São Jerônimo: benedixitque illis Deus et ait crescite et multiplicamini et replete terram... ...‫ָארץ‬ ֶּ ‫ה‬- ‫ּורבּו ּו ִמלְׁאּו אֶּת‬ ְׁ ‫ וי ֹאמֶּר להֶּם אֱֹלהִים פְׁרּו‬,‫ אֱֹלהִים‬,‫ וי ְׁב ֶּרְך א ֹתם‬:‫תנ"ך‬ Ferreira de Almeida: E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Fructificae e multiplicae-vos, e enchei a terra, [...]

c. Nota-se o paralelismo entre o vocábulo da versão de da Costa e o texto latino para Gen 5:3, bem como a opção tradutória da Bíblia de Ferrara, seguidos do versículo original hebraico e da versão de Ferreira de Almeida: Da Costa: E Adam viveo cento e trinta annos , e gerou á sua semelhanca , á sua imagem. (II.1) São Jerônimo: vixit autem Adam centum triginta annis et genuit ad similitudinem et imaginem suam... Ferrara: Y biuio Adam çiento y treinta años, y engendro en su semejança como su figura... ...‫ ְׁכצלְׁמֹו‬,‫ ויֹולֶּד בִדְׁ מּותֹו‬,‫ שְֹׁלשִים ּומְַׁאת שנה‬,‫ ויְׁחִי ָאדם‬:‫תנ"ך‬ Ferreira de Almeida: E Adão viveu centro e trinta annos, e gerou um filho á sua similhança, conforme á sua imagem...

d. Nota-se o paralelismo entre as formas do verbo em da Costa e no texto latino, por um lado, e em Ferrara e no hebraico original, por outro lado, para Gen 2:17. Ao final, o versículo em português na versão de Ferreira de Almeida: Da Costa: Em o dia em que comeres da arvore, morrer morrerás (II.1). São Jerônimo: quocumque enim die comederis ex eo morte morieris Ferrara: en dia de tu comer del morir moriras ‫מֹות תמּות‬--‫ בְׁיֹום אֲכלְָׁך ִממֶּנּו‬:‫תנ"ך‬ 43

Ferreira de Almeida: porque no dia em que d'ella comeres, certamente morrerás

e. Nota-se o paralelismo entre as formas do verbo em da Costa e no texto latino (forma reflexiva), por um lado, e em Ferrara e no hebraico original, por outro lado, para Gen 3:19. Ao final, o versículo em português na versão de Ferreira de Almeida: Da Costa: poo tu, e em poo serás tornado (II.1). São Jerônimo: quia pulvis es et in pulverem reverteris Ferrara: que poluo tu y a poluo tornaras ‫עפר תשּוב‬-‫ ְׁואֶּל‬,‫עפר אתה‬-‫ כִי‬:‫תנ"ך‬ Ferreira de Almeida: porquanto és pó, e em pó te tornarás.

f. Nota-se o paralelismo entre os vocábulos em da Costa e no texto latino para Ecl. 3:19 [3:18 segundo Ferrara], bem como a opção tradutória de Ferrara. Ademais, nota-se a espanholização de da Costa por meio de Ferrara ("ventagem"). Ao final, seguem o versículo hebraico original e na versão de Ferreira de Almeida: Da Costa: Por que o acontecimento dos filhos dos homens, e o acontecimento do animal, e acontecimento hum a elles. Assi como morre este ,assi morre a quelle, e espirito hum a todos, e ventagem do homem mais que o animal nenhuã por que tudo vaidade. (II.1.4) São Jerônimo: idcirco unus interitus est hominis et iumentorum et aequa utriusque condicio sicut moritur homo sic et illa moriuntur similiter spirant omnia et nihil habet homo iumento amplius cuncta subiacent vanitati. Ferrara: Por que acontescimiento de hijos de los hombres, y acontescimiento de la quatropea, y acontescimiento uno a ellos; como muere este, assi muere este, y esprito vno a todos, y ventaja del hombre de la quatropea no es, por que todo nada. ‫ כי מקרה בני האדם ומקרה הבהמה ומקרה אחד להם כמות זה כן מות זה‬:‫תנ"ך‬ .‫ורוח אחד לכל ומותר האדם מן הבהמה אין כי הכל הבל‬ Ferreira de Almeida: Porque o que succede aos filhos dos homens, isso mesmo tambem succede aos animaes; a mesma coisa lhes succede: como morre um, assim morre o outro, todos teem o mesmo folego: e a vantagem dos homens sobre os animaes não é nenhuma, porque todos são vaidade.

Exemplos da crítica direta de da Costa à Bíblia de Ferrara (grifos meus): O uso dos tephilim he abuso, e invencam de homens que mal entenderam, e declaram a lei, e como tal deve ser reprovado, e julgado. I. Por que a lei naõ mandou fazer os taes tephilim, nem

44

deu o modo de seu feitio,e naõ somente os nam mandou fazer, mas nem inda o nome lhe conheçe, por que em toda ella naõ sam nomeados, e a traducção Castelhana naõ traduzio verdade. (I.8)

He ridicula, sobre falsa, a tradiçaõ, em dizer que a tal escritura se deve fazer na porta da cozinha, e em todas quantas ouver na casa; por que nem na porta da cozinha, nem em nenhuã que aia na casa, salvo nos postes da porta da rua encomenda a lei esta escritura: e escrevelas has sobre os postes de tua casa: O que segue: e em tuas portas : Se ha de entender pellas portas da çidades, que sam portas publicas, por que a palavra Hebraica, Sahar, nam se accomoda a qualquer porta; e a porta da casa tem seu nome particular, e nunqua se dará que se chame, Sahar, [...] (I.14) Sobre o que atras fiqua escrito çerca a alma do homem fundou nosso contrario sua reposta, e quiz mostrar immortalidade da dita alma. Propos no primeiro capitulo tratar da criaçam do homem, e de suas perfeiçoes ["e" acentuado com til], e logo começa a delirar, e se voa sem azas á criaçaõ dos anios [anjos], e mundo invisivel, querendo corroborar seus sonhos com huãs authoridades que allega, e para provar muitos mudos ["u" acentuado com til, i.e., “mundos”] traz um verso de Iesahiahu (26:4): Confiai em o Sñor para sempre , por que em Iah o Sñor fortaleza dos mundos. Aonde no Hebraiço se le, holamim, plurar de, holam, que significa, seculo tempo, idade 88 ,e nam significa o mundo, a que se chama redondeza, que esse tem outra palavra com que nomea, e se diz, tevel, e nam, holam. (II.4)

88

Conhecide com o campo semântico de Isaias 26:4 do texto latino: sperastis in Domino in saeculis aeternis in Domino Deo forti in perpetuum [meu grifo].

45

5. Sobre o discurso dacostiano.

Por que motivos Uriel da Costa afirma que a Lei oral não é autentica? Em primeiro lugar, porque a Lei oral não é mencionada na Lei escrita (Pentateuco). Da Lei naõ consta que outra declaraçaõ se desse a ella mais que a quella que na mesma lei se escreveo: se outra declaçaõ se dera, naõ era possivel naõ se fazer della mençaõ em alguã parte da lei: logo outra declaraçaõ naõ se deu. (I.1.2)

O Pentateuco é a “Lei escrita”, onde “Moisés escreveu toda a declaração que teve para dar” (I.I.5), não cabendo outra “declaração” senão aquela (o sentido de “declaração” aqui é de aclaração, explicação). Portanto, desde o princípio, da Costa subverte o caráter lacunar da Escritura em favor do seu próprio postulado. Conforme o crítico literário Erich Auerbach, a característica lacunar do texto bíblico contrasta com a onipresença do narrador homérico, sendo esta uma das diferenças mais marcantes entre os focos narrativos bíblico e homérico. 89 Acaso o discurso dacostiano, moldado na tradição ocidental, estaria buscando no texto bíblico, de maneira retroativa, algo que lhe é estranho? Na verdade, preencher essa lacunaridade é umas das funções desempenhadas pelo Talmud nos primeiros séculos da era comum, e por comentaristas posteriores no decorrer dos séculos seguintes. O que o discurso dacostiano trata de refutar, nas entrelinhas, é a prerrogativa dos mestres do Talmud, bem como dos comentaristas oficiais que os sucederam, no que diz respeito ao exercício dessa função. A tradição oral também deve ser refutada, entre outros motivos, porque é inverossímil que a suposta mensagem sinaítica tenha se transmitido intacta e incorrupta de geração em geração. Uma vez que não possui esses atributos, a tradição oral não pode ser aceita pelo “método” purista e perfeccionista de da Costa. É principalmente pelo contestar de toda a cadeia da tradição que Osier chama o judaísmo de da Costa de “judaísmo individualista”: porque a seu ver o judaísmo dacostiano se afasta da tradição do grupo, da interpretação canonizada pelo grupo. Mas mais que tudo, porque sustenta o discurso de uma ame affamée de salut que não acata a via de salvação institucionalizada pelo grupo.90

89 90

Auerbach, Erich, “A cicatriz de Ulisses” (1971). Osier, Jean-Pierre, "Un aspect du judaïsme individualiste d'Uriel da Costa" (1980).

46

De maneira que a tradição não pode ser entendida pelo discurso dacostiano como um fenômeno cultural que alimenta a coesão grupal, ao mesmo tempo em que por ela é alimentado, numa linha ou perspectiva a qual se costuma chamar de ceticismo fideista. Da Costa adota o próprio ponto de vista da Lei oral, a própria concepção teológica da revelação oral sinaítica, paralela e complementar à entrega do texto escrito, tão somente para poder destruir esse postulado a partir de critérios ligados à pureza, perfeição e verossimilhança. A Lei oral não pode ser perfeita (I.1.1) nem pura (I.1.7) devido a própria fragilidade e falibilidade implicadas no modo de transmissão oral, na torpeza da memória humana, e devido à própria imperfeição ontológica do ser humano. Por que então, mesmo assim, existe uma tradição oral? Conectando farisaísmo e vulgaridade, da Costa oferece uma resposta lógica para essa pergunta. Maldosos aproveitadores, usurpadores e deturpadores da verdadeira hebraicidade, a hebraicidade expressa no Pentateuco, nos Profetas, Salmos, Jó e Eclesiastes, os fariseus são diretamente responsabilizados dentro do discurso dacostiano pelo rumo tenebroso da história judaica. Sua maldade e corrupção inclusive se provam dentro da Escritura, pois já estava previsto que “Israel baldaria o concerto selado com Deus”.

E no cap. 31 diz o mesmo profeta [Jeremias 31:31-33] que por que Israel baldou o concerto escrito em papel, faria o Snõr com elle outro escrito no coracam para nam o poder baldar com falsa doutrina. (I.1.14)

A própria natureza sociológica dos fariseus e de seus seguidores explica o sucesso e perpetuação da Lei oral: os fariseus são diretamente associados pelo discurso dacostiano ao vulgus. Em contrapartida, os saduceus atuam como o contraponto esclarecido e “nobre” da sociedade judaica à época do cisma. Retomando a circunstância histórica, da Costa remete ao momento em que a coisa começa a degringolar. De acordo com a narrativa dacostiana, Sadoc e Betus (personagens bíblicos da época do Rei David) se opuseram à introdução (ou reintrodução) da Lei oral. Essa oposição também foi adotada pela: [...] parte do povo mais prinçipal [importante], entendida, e nobre, posto que muidesigual em numero, e aos outros [introdutores da Lei oral] o mais comum [simplório], e geral levados de doçuras que em suas pregaçoens mixturavam immortalidade da alma brandura nos iuízos, a que o comum dos homens façilmente se inclina, por ser a immortalidade bem que se deseia, e a natureza

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inclinar mais a misericordia, e piadade que ao rigor da justiça. (I.1.12)

Da Costa projeta os fariseus como manipuladores da vulgaridade e ingenuidade do vulgus. Como o vulgus é sempre a maioria, é natural portanto seu sucesso e perpetuação ao longo da história, já que, conforme a lógica dacostiana, um erro leva a outro, que leva a outro erro, e assim por diante: [...] pintores falsos: novos çensores da justiça divina, maravilhosos, e espantosos navista do rude povo que com admiraçaõ os ouve. (II.3)

A invocação de fariseus e saduceus não é somente uma tentativa de entender e remeter à história judaica na época do fechamento do cânone tradicional do judaísmo, mas também é um vetor metafórico dentro do discurso dacostiano. Essa cisma histórica simboliza a luta travada entre esclarecimento e obscurantismo – tanto à época bíblica quanto no próprio século XVII. O paralelismo entre o passado e o presente fica marcado já na abertura do Exame das tradições: Dizia Iehosuah, e Caleb ao povo [Nm. 14] que naõ ouvisse a voz falsa e danosa daquelles que falando contra Deos lhe atalhavaõ, e impediaõ seu bem; mas como os coracoés estavaõ affeicoados, e prezos ia da falsa énformaçaõ, naõ so naõ foram ouvidos, mas estiveraõ a ponto de ser apedreiados, se a gloria do Snõr naõ aparecera logo para livralos. começei eu a abrir a boca, e querer falar pella verdade da lei, estavaõ os coracoẽs inhabilitados para soportar: naõ so naõ fui ouvido, mas se Deos naõ tirara ao povo as pedras da maõ, e lhe negara o poder de iulgar, achara muitas pedras sobre mim. [Ao Leitor]

A polêmica acerca da imortalidade da alma, epicentro da segunda parte do Exame das tradições, mantêm o eixo discursivo apresentado anteriormente. A Escritura não faz menção explicita a um mundo vindouro, nem fala de castigos ou recompensas em outra dimensão que não a terrena. Assim, da Costa novamente explora o silêncio da Escritura e despreza seu caráter lacunar a fim de articular sua crítica. Algum tempo morei eu na escuridade em que veio [vejo] a muitos estar, embaraçado, e duvidoso com os enleos de falsas escrituras, e doutrina de fabulosos homens, nam podendo tomar firmeza, e acabar de atinar com esta vida eterna tam apregoada de tantos, e lugar onde se avia de possuir, vendo a lei de todo calada em cousas tam grandes, e de tanta importância; [...] (II.3)

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Na lógica do discurso dacostiano, a doutrina da imortalidade da alma é mais um exemplo de acréscimo indevido instituído pela já indevidamente criada tradição rabínica. Neste caso, há mais um agravante: a crença na imortalidade da alma também é um dos alicerces da fé cristã, justamente da qual, tanto da Costa quanto seu interlocutor da Silva (bem como a maioria do seu público leitor), acabaram de fugir. A lacuna ou o silêncio da Escritura são decretados a priori como impreenchíveis, de maneira que o discurso dacostiano não perderá tempo investigando como a tradição oral lida e explica a não-menção de tema tão importante dentro da Escritura. Ou seja, trata-se de uma crítica de fora para dentro, uma crítica que não se preocupa em conhecer a fundo o seu alvo. Como bem notou Sassoon, da Costa não vem examinar as tradições farisaicas por dentro, a partir dos termos e conceitos próprios dessa tradição, mas tão somente à luz da Torá escrita, de modo a julgá-las tão somente com base naquilo que, em sua opinião, respeita a Torá escrita.91 Em prol da sua argumentação, da Costa alega que o Eclesiastes não é totalmente autêntico, e que a impiedade e vaidade dos defensores da imortalidade da alma o adulterou a fim de promover sua causa em favor da imortalidade da alma. Dizemos pois que aquelle estilo guardado naquelle capítulo [Ecl, cap. 12] nam he conforme ao estilo que fiqua atras em todo o livro, e foi hum accresçentamento feito pellos sabios [emprego irônico de “sábios”] para prova da immortalidade, que no discurso fiquava negada por muitas vezes ; [...] (II.8)

E o mesmo, um pouco antes, em relação aos Salmos: Este Psalmo [49:16]92 nam he de David , e entre elles [Salmos] ha muitos que foraõ feitos na segũda casa [Segundo Templo], quando ia [já] dominava a doutrina Pharisea. (II.8)

A crítica dacostiana, portanto, vai além da crítica às “tradições farisaicas”; ela também penetra no próprio cânone tradicional do judaísmo. Ou melhor, acusa a tradição farisaica de adulterar o cânone tradicional. A discussão travada acerca do caráter do livro de Daniel, na qual outros livros canônicos também acabam envolvidos, é mais um exemplo da contestação da inimputabilidade do cânone hebraico tradicional: 91

Sassoon, I. S. D., “The Relevance for Today of Uriel da Costa’s ‘Exame das tradições fariseas’” (1994: 7). 92 de certo Deos remirá minha alma de poder da cova quando me tomar.

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outras cousas se achaõ no livro de Daniel que bem mostram, e publicam sua artifiçiosa invencaõ. alli he a primeira vez que achamos nomes de anios [anjos] nomeados por seus nomes, que atelli nam aviamos sabido, nem por lei, nem por outros livros, etodo seu estilo, e modo, he huã fabricada composiçaõ. E nam pareça a algum [alguém] cousa difficultosa aver escritos, e escritores falsos, por que se quizer abrir os olhos, nenhuã cousa verá que mais ordinaria seia entre os homens. quem fez o livro de Judith, e teçeo aquella historia? quem o terçeiro, e quarto de Esdras? quem o da sabedoria, e outros muitos que nam he neçessario referir? pois também a historia de Esther he neçessario que entre neste numero. Nam faltaõ escritores falsos, prophetas, sonhadores mentirosos, que a tudo se estende a maliçia humana; amoestaçoẽs temos da lei que nos avisou, e quiz fazer acautelados, quem a sua verdade se apegar de todos os erros escapará” (II.2)

Notamos que o discurso dacostiano promove uma desenfatização da dimensão depois-além em detrimento da enfatização do aqui-agora, ou seja, justamente uma ruptura da moralização tradicionalmente impetrada através da doutrina da imortalidade da alma. A justiça dos homens se encarrega dos castigos, e as recompensas se traduzirão neste mundo. A eliminação da dimensão metafísica do além-mundo representa uma guinada de 180 graus no discurso religioso vigente até então, de maneira que toda a atenção, toda a esperança e toda a ação ficam circunscritas a própria vida e não mais à morte. O medo da morte e suas conseqüências, entendido no discurso dacostiano como sentimento criado para ser manipulado pelo mainstream religioso, deve ser eliminado se se quer cumprir a verdadeira lei divina. Nesse sentido, é interessante notar que da Costa traga a seguinte décima de Luís de Camões (1524-1580) para ilustrar a discussão: Os bons vi sempre passar No mundo graves tormentos, E para mais me espantar, Os maos vi sempre nadar Em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim O bem taõ mal ordenado, Fui mao, mas fui castigado, Assi que soo para mim Anda o mundo concertado (II.2)93

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Nota de Salomon & Sassoon (1995: 367): Esta décima de Camões apareceu pela primeira vez na segunda edição das Rimas (Lisboa, 1598).

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Da Costa não menciona o nome de Camões, referindo-se ao autor da décima como çerto Poëta, principal entre os da sua naçam. Através desse circunlóquio, da Costa aparentemente estava respeitando a convenção tácita entre os escritores da Europa ocidental do século XVII de evitar a menção explicita a autores contemporâneos. A décima de Camões é trazida por da Costa para ser refutada: Louco homem, e sam todos os que cuidarem que aos maos acontece sempre bem. Hum dia lhes poderá acontecer, mas o fim delles para destruiçam. Pello contrario aos bons poderá algum dia vir mal, ou por que Deos os quer provar, ou por que nam há homem tam justo que nam mereça algum castigo. Porem o fim delles para paz [...]. (II.2)

Em primeiro lugar, notamos que o universo de referencias de da Costa abre uma exceção para uma fonte contemporânea. Em segundo lugar, o comentário de da Costa encerra uma leitura literalista da décima, sem dar o mínimo espaço para um possível caráter irônico embutido na moral da décima camoniana. Assim, nota-se a tendência de Uriel da Costa de conciliar não só a Bíblia, mas também um texto contemporâneo, à lógica do seu discurso. O “medo e a esperança”, projetados no discurso dacostiano como sentimentos característicos do vulgus, também configuram um leitmotiv tanto no Tractatus theologico-politicus de Spinoza quanto no Tratado dos três impostores (anônimo do séc. XVIII) por exemplo. A exacerbação do papel do vulgus, também chamado por da Costa de “rude povo” (II.3), é fundamental no seu discurso, da mesma maneira que o é no universo discursivo do século XVII europeu, no qual proliferam termos (que se traduziriam em português) como “populacho semi-selvagem, inculto e incauto”, “povo tosco”, “turba” (isto é, “multidão em desordem”), etc. A personificação do vulgos no farisaísmo e vice-versa é um dos motores do discurso dacostiano. Alegando a defesa da “verdade e fundamento da Lei escrita”, a impressão provocada pela leitura do Exame das tradições é a de que os versículos bíblicos lançados por da Costa ao longo do Exame das tradições servem sobretudo como pontos de apoio à serviço da finalidade interpretativa que da Costa propõe. De maneira que o seu discurso, na verdade um contra-discurso, dado que vem contestar o discurso do mainstream judaico, “recorta e cola” a Escritura na finalidade de se provar verdadeiro. O resultado é uma defesa de discurso disfarçada de exame de tradições fariséias à luz

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da Lei escrita. Uma das evidências dessa situação de inversão do suposto foco do discurso é o método exegético dacostiano, cujo critério é a acomodação do texto bíblico à negação da possibilidade de uma lei oral autêntica. A abordagem literalista e a abordagem metafórica se alternam segundo a circunstância, na finalidade de melhor se encaixarem ao fio discursivo delineado por da Costa. As diferentes leituras, literalista e metafórica, se exemplificam respectivamente nos dois excertos a seguir: passa a lei mais adiante, e nam contente com tudo o que avia dito aiunta para mais declararse, e manifestar sua tençam exemplos com que a cousa sinala: olho por olho, dente por dente [Lv 24:20]. E nam fiquavam os exemplos verdadeiros se por hum olho se aviam dedar dez, ou vinte cruzados, nem a lei fez estimaçam dos olhos. (I.2.1) Por que os lugares donde se quer tirar mandamento dos tephilim [filactérios] foraõ ignorante, e indiscretamente entendidos dos expositores, por que a lingoagem da lei naõ he propria, mas trocada, como muitas vezes nella se usa, e assi se deve entender allegoricamente conforme a mente de quem fala: E serão as pelauras [palavras] estas, que eu te encomendo hoie sobre teu coração, etc. E atalas has por sinal sobre tua maõ, se serão por frontaes entre teus olhos [Dt 6:6,8]. (I.8.2)

Cegueira, depravação, corrupção, maldade, torpeza, desatino, fabulação, invenção e outros conceitos associados a esses campos semânticos para caracterizar o farisaísmo e seus seguidores, também são explorados dentro do discurso de Samuel da Silva no afã de desestabilizar o exame dacostiano. De maneira que os campos semânticos elegidos para combater o adversário coincidem bastante dentro dos dois discursos. No entanto, chama a atenção uma qualidade que aparece tão somente no discurso dasilvano. Da Silva não se cansa de apresentar da Costa sob o signo da soberba, sinônimo de arrogância, a qualidade daqueles que atribuem a si mesmos direito e poder. Além disso, da Silva também se vale do conceito de contumácia, isto é, desobediência consciente, ou extremamente teimosa, para classificar seu adversário. No caso, o direito em questão é o direito de não aceitar o jugo da tradição, de não submeterse a autoridade milenar do grupo, o direito de desacreditar nas palavras daqueles que foram considerados os sábios de cada geração e geração do povo de Israel. Mais uma vez, é pertinente pensar no judaísmo individualista de que fala Osier, um judaísmo autônomo, independente, desprovido ou “limpo e purificado” da tradição de homens de

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carne e osso, e que portanto se relaciona diretamente com Deus. Soberba e altivez são, aliás, atributos mencionados por Isaac Oróbio de Castro na sua famosa Epistola invectiva contra Prado (1663-4). Nessa epistola, Oróbio de Castro caracteriza com esses adjetivos aqueles conversos que abandonaram o catolicismo e imigraram para terras onde o judaísmo podia ser praticado, mas não acataram a observância dos preceitos rabínicos. Por fim, cabe notar que a metodologia de Samuel da Silva é bastante semelhante a de Uriel da Costa no que diz respeito a apropriação e seleção de versículos bíblicos na finalidade de defender uma posição a priori estabelecida. Assim como da Costa, da Silva também seleciona versículos e os “costura” um no outro, de maneira que pareça um fio coerente, para provar que sua idéia se encontra clara e cristalina na Escritura. Como, por exemplo, no seu capítulo 11 intitulado Da imortalidade de alma e mundo vindouro, refutando a falsa conclusão do contrariador, no qual entrelaça Sl 27:13; ISam 25:29; Is 64:3; Sl 31:20; Dt 22:7 e Nm 15:31 com comentários curtos, na finalidade de provar que a alma humana é imortal. Em conclusão, sob o pano de fundo de um debate acerca do verdadeiro caráter da Escritura e mesmo do judaísmo, por vezes o que se apresenta por trás é um conflito entre o real e o ilusório, entre o puro e o corrupto, e que por vezes beira o binômio realidade-mito. Isso se evidencia através dos campos semânticos diretamente associados a um mainstream apresentado como impostor e associado por da Costa sob o signo de: superstição, vulgaridade, corrupção, abuso, abominação, cegueira, nebulosidade, sonho, devaneio, fabulação, invenção, desatino, desvario, delírio, doidice, loucura, malicia, maldade, perversidade, perversão, impiedade, ganância, torpeza, vaidade, vanidade, ridicularidade, parvoíce, barbarismo, monstruosidade, gentilidade, pecado, sectarismo, infantilismo, meninice, indecência, dúvida, traição, etc.. Como contraponto para todos esses atributos abomináveis despontam as qualidades purificadoras através das quais fluem os argumentos dacostianos em favor de sua causa: verdade, pureza, limpeza, razão, lógica, clareza, perfeição, naturalidade, universalismo, bom senso, polidez e humanismo. As “nações mais políticas”, mencionadas por da Costa, metaforizam essa idéia de luta do civilizado contra a “gente bárbara” (II.5).

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Considerações finais Depois de percorrer o texto e o contexto de Uriel da Costa e seu Exame das tradicoẽs Phariseas conferidas com á lei escrita, e analisá-los sob as perspectivas identitária, lingüística e discursiva, chegamos a algumas considerações que trataremos de reunir nas páginas seguintes. Em primeiro lugar, notamos que a não-resolução de um “estado liminar”, conforme discutido no primeiro capítulo da dissertação, é um conflito que marca toda a trajetória intelectual de da Costa. Alguns ex-cristãos-novos célebres acabaram resolvendo o problema implicado no estado de liminaridade, entre outras maneiras, através da adesão ao único judaísmo sistematizado que se oferecia àquela altura do século XVII, de maneira que puderam encontrar uma nova e reconfortante identidade, mesmo que por vezes filtrada pelo crivo do relativismo fideísta. No caso de Uriel da Costa, devido a uma espécie de continuidade ou constância do estado liminar, o conflito não pode ser resolvido tão imediatamente ou, de outra maneira, a nova identidade judaica que se lhe ofereceu não bastou para resolver seu estado liminar, agravado (ou quiçá causado) por sucessivas excomunhões. Para da Costa, a verdadeira eliminação das liminaridades só se encontraria nos campos semânticos centrais do seu discurso, a saber, verdade, pureza, justiça, universalismo, etc.. Por isso a opção sectarista e excludente oferecida pela comunidade judaica de Amsterdam não lhe serviu. Ao mesmo tempo, o descartar de toda e qualquer opção religioso-identitária de modo a se viver simplesmente como um judeu sem sinagoga não resolveria, mas perpetuaria o seu problema liminar, dado que àquela altura do século XVII as formas de pertinência ainda passavam via de regra pelo crivo da comunidade religiosa. Uma análise cronológica da sua trajetória intelectual e espiritual colabora para corroborar a idéia de uma tentativa constante de resolução de estados liminares, desde a sua condição de cristão-novo/converso em Portugal, passando pela experiência de judeu-novo inconformado e excomungado em Hamburgo e Amsterdam, de modo a desembocar na negação da religião revelada, conforme atestado na etapa final do seu pensamento, isto é, o Exemplar Humanae Vitae. Apesar de não termos abordado especificamente esta obra, devemos considerar-la em perspectiva caso queiramos delimitar o andamento do pensamento dacostiano na direção do particularismo ao universalismo. De qualquer modo, essa última etapa do pensamento dacostiano merece

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um estudo a parte. Podemos, contudo, comentar que se trata de uma linha coerente, onde o elã pela dissolução dos estados liminares encontra bom termo na eliminação do caráter revelado da religião e adoção de uma abordagem universal da natureza humana e do caráter divino. Conforme costumam assinalar, o universalismo de da Costa foi prematuro e incompreensível para o seu tempo e espaço específicos. Nossa discussão do caráter liminar em si, bem como seu reflexo na personalidade de da Costa em particular, amparou-se também em pontos-chave dentro desse discurso, a saber, o ritual da circuncisão e a mudança de nome. Cabe ressaltar que o estado liminar aqui discutido pode parecer banal para o homem do século XXI, já tão acostumado a um dos traços determinantes da condição moderna. Não obstante, no século XVII a liminaridade vivenciada por certos conversos e ex-conversos, de modo geral, e por da Costa em particular, não deve ter sido algo corriqueiro, mas novo. A respeito da identidade lingüística dos ex-conversos aderidos ao judaísmo, de um modo geral, e de Uriel da Costa, em particular, tratamos primeiramente de discorrer de forma sucinta acerca das circunstâncias sociolingüísticas dos cristãos-novos portugueses da geração de Uriel da Costa. Concluímos que a principio a identidade lingüística dessa camada social não deve ter sido diferente da identidade lingüística da classe dos cristãos-velhos. Contudo, especulamos acerca da identidade lingüística dos judeus portugueses da pré-conversão, a qual, à semelhança do que ocorreu junto aos correligionários espanhóis, também pôde possuir traços lingüísticos singularmente judaicos. Não obstante, a improbabilidade de uma continuidade lingüística entre a época do judaísmo português e a época da geração cristã-nova de da Costa nos fez concluir que dificilmente se poderiam achar traços do impacto da primeira época sobre a segunda. Notamos o papel do latim na formação religiosa e intelectual de da Costa, e especulamos acerca do seu conhecimento de hebraico, idioma que veio a aprender tão somente na segunda fase de sua vida (a qual coincide aproximadamente com a segunda metade cronológica de sua vida). Também analisamos sucintamente a dinâmica entre o português e o espanhol no marco da comunidade de da Costa, e o papel da Bíblia de Ferrara na determinação da hierarquia entre essas duas línguas. Notamos que o apogeu e o início do declínio do uso das línguas ibéricas entre os sefaraditas da Europa ocidental ocorreu no século XVII. Isso se deu devido a fatores sociais como o fim das ondas de imigração desde Portugal e

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Espanha, e a integração às paisagens lingüísticas locais, decorrente do prestígio dos idiomas holandês, alemão e francês. Quanto a análise propriamente textual, listamos algumas singularidades esporádicas ou recorrentes no idioma vernacular de Uriel da Costa. A título de comparação, trouxemos Camões e Vicente da Costa Mattos como parâmetro diacrônico e diatópico respectivamente. Essa análise mostrou que algumas das variações em relação à norma encontradas no idioma vernacular de da Costa, sobretudo manifestas no campo morfológico, não necessariamente transformam seu idioma numa variedade judaica exatamente singular. O que pudemos apontar foi o caráter oral da escrita vulgar dacostiana. Um dos primeiros fatores que impede a inserção do idioma português de da Costa no marco das línguas judaicas é o próprio fator extra-textual de Uriel não estar se dirigindo exatamente a judeus, mas a indivíduos cujo status religioso frágil os torna indivíduos liminares, divididos entre um velho-novo cristianismo e um novo-velho judaísmo adotado ou latente. Essa conclusão, aliás, já estava prevista pelas próprias circunstancias sócio-historicas da escrita dacostiana, quer dizer, uma escrita não suficientemente desconectada de Portugal nem no tempo nem em termos de público leitor ou de redes de contatos. A Amsterdam judaica, na altura da década de 1620, ainda é, no caso dos ex-converso que lá habitam, de certa maneira uma extensão lingüística de Portugal. A linguagem de da Costa se mostrou tanto ou quiçá um pouco mais espanholizada em comparação com as páginas de Vicente da Costa Mattos analisadas, mas se trataram de detalhes que não podem fornecer conclusões sólidas, de maneira que a analise oferecida constitui tão somente um marco inicial. De certa maneira, o amplo conhecimento sincrônico, diacrônico e diatópico necessário para amparar uma análise profunda acerca da espanholização do português dos ex-conversos em geral, e do português de da Costa em particular, constituiu uma limitação no marco desta dissertação no que diz respeito à analise lingüística. De modo que acabamos por privilegiar a análise discursiva em detrimento da lingüística. O elemento judaico da linguagem do Exame das tradições mais evidente é o seu substrato bíblico citado no português calcado na sintaxe do original hebraico, mas nesse caso já não de trata propriamente da linguagem vernacular do texto senão de sua tradução bíblica. A diglossia entre o português da tradução e a própria língua santa (leshon ha-kodesh) não está pautada por um canal direto, mas está intermediada tanto 56

pela tradição judaico-sefaradita da Bíblia de Ferrara quanto pela tradição latino-cristã. Conforme notamos, da Costa critica e se apropria da Bíblia de Ferrara simultaneamente. Essa contradição ocorre porque a Bíblia de Ferrara é a única opção de tradução judaica da Escritura que lhe é totalmente compreensível, muito embora questionável dentro da lógica dacostiana, já que se trata de uma tradução rabínica. Através de exemplos, notamos o quanto a tradução feita por da Costa hibridiza as influências da Bíblia de Ferrara e da tradução latina da Bíblia hebraica. Além disso notamos, com a ajuda da edição crítica de Salomon e Sassoon (1995), que o Pentateuco de Constantinopla e a Septuaginta também marcaram, ainda que de maneira muito discreta, a tradução bíblica portuguesa de da Costa. Essa aproximação ao que chamamos de Bíblia dacostiana nos mostrou que ela também reflete o estado liminar de da Costa. Isso porque, sob o pano de fundo da tradição hebraica, num primeiro plano da Costa segue as tradições judaico-sefaradita e latino-cristã. Dividido entre estas duas grandes tradições, inserido em ambas, da Costa ao mesmo tempo não se encontra em nenhuma. Gostaríamos de tecer algumas considerações finais acerca do discurso dacostiano. Em primeiro lugar, destacamos que um dos vetores do discurso dacostiano é o “silêncio da Escritura”. Esse vetor se aplica tanto à suposta existência de uma tradição oral sinaítica, revelada paralelamente à entrega do texto escrito, quanto ao tema do mundo vindouro e seus conseqüentes desdobramentos para a alma humana. Como é sabido, estes dois tópicos não estão explícitos na Escritura. Uma vez que da Costa propõe uma leitura que de certa maneira pode ser chamada de “biblicista”, lacunas dessa natureza ou não serão admitidas ou serão exploradas como argumentos a favor do leitmotiv dacostiano, isto é, negar a autenticidade da lei oral e a doutrina da imortalidade da alma. A hermenêutica do divino, puro, verdadeiro e original proposta por da Costa para abordar o texto bíblico torna impossível que um texto pós-bíblico como o Talmud esteja investido da mesma sacralidade do texto bíblico, principalmente porque o Talmud é claramente colocado como um construto humano, portanto corruptível. De maneira que o tratamento sacral dado ao Talmud será considerado abusivo e supersticioso, entre vários outros adjetivos, dentro do discurso dacostiano. Conforme assinalamos, a continuidade e a seqüencialidade que o Talmud advoga para si é renegada por da Costa em termos de verossimilhança e pureza. De maneira que a hermetização do texto bíblico é um epicentro do discurso dacostiano. 57

Em segundo lugar, notamos que uma das chaves da lógica dacostiana é criar uma associação direta e uma simbiose inextricável entre farisaísmo e vulgaridade. Não a vulgaridade no seu sentido não pejorativo, conforme o uso de Tertuliano, isto é, comum e natural, mas a vulgaridade nas suas acepções mais pejorativas e depreciativas. A raiz do problema se encontra, conforme a narrativa dacostiana, num capítulo bem conhecido da história judaica. A cisma entre saduceus e fariseus representou a primeira significativa divisão do povo. Como a maioria da humanidade é naturalmente vulgar, logo o lado vulgar da cisma foi aquele que angariou mais adeptos. Assim, da Costa cria, a partir de bases históricas, a infra-estrutura mais elementar do seu discurso. O saduceismo se projeta portanto como a alternativa correta, muito embora não concretizada precisamente devido ao caráter vulgar da maioria das pessoas. A vulgaridade alias tem uma dupla face dentro desse discurso: ora os rabinos é que são vulgares, por criarem uma parafernália legislativa com a finalidade de alimentar sua vil ganância, ora o povo é quem entre em cena com a sua vulgaridade inerente, de maneira que, vivendo entre a esperança e o medo, se deixa enganar por manipulações desbragadas. Os saduceus por sua vez, que segundo consta não acreditavam na imortalidade da alma, se tornam portanto a alternativa histórica ideal para ilustrar a narrativa dacostiana, muito embora (ou principalmente devido ao fato de que) não tenham sobrevivido historicamente enquanto grupo coeso, nem terem deixado escritos específicos ou sacramentado um cânone alternativo próprio. Os saduceus, a “parte mais nobre do povo” (I.1.12), representam aquele “bom judaísmo” que poderia ter sido, mas não foi, e Uriel, como bom jurista hebreu que é, vem tentar fazer uma justiça histórica, antes tarde do que nunca. Esse epíteto, para o qual não se chamou muito a atenção dentro da pesquisa dacostiana, reflete o espírito embutido no discurso dacostiano: devolver à verdadeira lei o status que lhe corresponde. Partindo desse ponto, o embate histórico, situado no tempo e no espaço, entre saduceus e fariseus, ganha caráter a-histórico e atemporal, de maneira a se tornar uma metáfora de uma luta maior de: esclarecidos contra ignorantes, racionais contra apaixonados/supersticiosos, puros contra corruptos, civilizados contra bárbaros, lúcidos contra loucos/desatinados, espertos contra parvos, coerentes contra fabuladores, leais contra traidores, etc.. Tratar-se-ia portanto de um combate cíclico que se repetiu ao longo da história, sem tréguas nem exceções, e que não se desenrola especificamente dentro do judaísmo, mas é universal.

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Aliás, a idéia de nobreza também aparece em outros lugares do texto dacostiano enquanto vetor positivo. Seria essa uma herança ou eco de uma visão de mundo impregnada do universo dos valores ibéricos? Em contrapartida, notamos uma verve de humildade no contra-discurso dasilvano, que associa mais de uma vez o autor Uriel da Costa à idéia de “soberba”. A questão da imortalidade da alma, tema central da segunda parte do Exame das tradições, também é abordada por da Costa segundo o princípio lacunar que serve para refutar a lei oral. Segundo da Costa, um tema dessa magnitude, se acaso fosse verdadeiro, não poderia deixar de ser mencionado pela Escritura (II.1; II.3, etc.). A doutrina que parte do princípio de que há um mundo vindouro só pode ser, portanto, fraudulenta. A alma portanto só pode ser corporal, e fenece juntamente com o corpo. Para provar esse princípio, da Costa pode até mesmo contestar a legitimidade do cânone hebraico tradicional. Conforme vimos, trechos de Eclesiastes e Salmos que dão margem a interpretações a favor da imortalidade da alma são questionados por da Costa quanto ao seu possível caráter apócrifo. Livros mais recentes como os de Daniel e Esther também são relativizados pelo discurso dacostiano, o que mostra sua tendência de “purificação” do cânone e de seu viés de aprendiz de criticista bíblico. No rastro dessa contenda, desencadear-se-á a discussão sobre “recompensa e castigo”, que da Costa tratará de provar que se reserva a “este mundo”, e não a um mundo vindouro, inexistente em seu discurso. Conforme da Costa assinala, por exemplo, amparado em Gn 15:2, Abraão indaga por recompensa através de descendência, e não no mundo vindouro (II.1.3). Através da discussão acerca da imortalidade, o discurso dacostiano aproveita para retirar a tradicional ênfase do “ládepois”, e propor uma ênfase total no “aqui-agora”, expressa abertamente, entre outros vários lugares, no exemplo a seguir: Naõ lhe resta ao homem outra vida para viver, desta que presente tem há de fazer conta, e cabedal. Se a quer guardada, tema a Deos, e guarde Seus preçeitos; assi gozará o fruito de seu trabalho. (II.1.4)

Assim, retoma-se uma já mencionada faceta do discurso dacostiano: a crítica à manipulação do vulgus, ao medo incutido nos homens pelo aparato religioso, à perturbação diante de ameaça de um castigo real ou imaginado. A tradição oral se desenha como uma fabrica de pecadores, assim como de certa maneira a Inquisição

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produziu em série seus próprios hereges. A anulação dos aparatos de repressão e atemorização involucrados no arcabouço ritualístico da tradição oral é uma das metas do que da Costa projeta como a sua nobre causa. Seu ideal é retirar as difficuldades e pezos incutidos pela tradição, e que na verdade não aparecem na Lei escrita. De maneira que o jugo das mitzvot é apresentado como uma armadilha criada para que aos homens se dem occasiões de peccar (I.11). Esse aspecto do discurso dacostiano parece estar no cerne do que podemos considerar uma transição da Moral à Ética. O verdadeiro amor a Deus deixa de necessariamente trilhar a via do temor e passa a estar de acordo com um tipo de religião naturalmente incutida no homem, capaz de guiar pelo bom senso do coração e pela faculdade da razão. Contudo, a dissociação entre crença na imortalidade da alma e crença em Deus estava fora dos padrões morais da época. Àquela altura, conforme atesta o discurso do oponente da Silva, a eliminação da crença na imortalidade da alma beiraria a negação do próprio Deus (Tratado da Imortalidade, cap.5). Conforme visto, o discurso dacostiano supostamente condiciona o critério de leitura, literal ou alegórico, à busca da Verdade. Entretanto, notamos que por trás dessa busca pela Verdade se esconde a intenção de negar a Lei oral. Nos capítulos I.2 a I.7, onde estão em pauta questões legais de Êxodo e Levítico, da Costa propõe uma leitura ao pé da letra do versículo bíblico na finalidade de encontrar discrepâncias entre a tradição rabínica e o Pentateuco. Entretanto, para deslegitimizar rituais como o uso dos filactérios, da Costa propõe uma leitura alegórica da Escritura (I.8). Outro exemplo de transição de uma leitura literalista por uma metafórica se expressa na interpretação do famoso verso “[...] viveraõ teus mortos, etc. (Isaias 26,19), (II.2; II.17) por exemplo, para o qual da Costa propõe uma leitura alegórica: respondemos que nam fala o propheta dos verdadeiros mortos, dos que acabaram o curso natural da vida, nem diz que esses se levantariaõ; mas os mortos de que fala, saõ o povo de Israel espalhado pellas terras, e nellas quasi contado por morto, e tam morto que ninguem cuida delle que tornará mais a ser gente, mas sempre iazerá no chaõ, abatido, vil, mirrado, e seco, da mesma maneira que delle fala por semelhança o propheta Iechezchel no cap. 37 onde declara que os ossos secos eraõ a casa de Israel (37,11-12). (II.2)

De maneira que se decreta: “Assim que um lugar é semelhante ao outro e ambos falam parabólica, e não propriamente”. E mais adiante, citando Is 27:6, assinala: “Tudo são semelhanças e modos de falar com figuras, que é necessário entender com juízo de 60

homens, e não tomar as palavras como soam”. Portanto, como nesses e outros exemplos, conclui-se que os “fariseus” são desenhados como “usurpadores” da verdadeira tradição hebraica, impostores que se aproveitaram (e se aproveitam) da ingenuidade e caráter supersticioso do povo (no prólogo “Ao leitor”) para favorecer seus próprios interesses pessoais e sectários. Com seu método exegético, Uriel paradoxalmente submete a Escritura a um princípio estranho à Escritura, a um hermetismo absoluto que é mais resultado ideológico, se podemos assim dizer, do que da própria mensagem da Escritura. Uriel da Costa acaba submetendo a Escritura ao imperativo de leitura que ele mesmo criou na finalidade de impor uma volta radical às fontes primevas, à natureza perdida do judaísmo antigo. É notório portanto que da Costa, bem como da Silva, fazem uma leitura tendenciosa do verso bíblico, leitura que tem a priori a finalidade de provar suas posições. De maneira que o que acaba ficando em disputa é menos “a verdade e fundamento da Lei” (II.1) do que a posição discursiva dos oponentes. Da Costa e da Silva acabam assumindo uma espécie de condição de comentadores modernos, cada um orientado numa direção específica determinadora de sua exegese. Samuel da Silva adota o mesmo procedimento para argumentar por sua causa. Ele também joga com versículos, cria seqüências e combinações e interpreta a Escritura com o objetivo de conciliá-la com seu ideal proposto, que é mostrar ao falso contrariador de então que a tradições e lei orais são autênticas, e que quem quiser buscar o bem não vai deixar de encontrar na própria Escritura aquilo que a tradição prega: a imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos. Significativamente, há uma ligação semântica entre a imagética criada pelo discurso dacostiano para representar a tradição farisaica e seus seguidores, e o universo estilístico ligado ao barroco: sonho, ilusão, loucura, devaneio, distorção, etc.. A definitiva eliminação de liminaridades, ludibriada pela “distorção” farisaicorabínica, seria naquele momento a própria “superação” (na falta de uma palavra melhor) do obscurantismo embriagante e ilusório de seitas, castas, divergências, etc. Trata-se de um combate cíclico, travado então e sempre, entre vulgares e sofisticados, corruptos e autênticos, ímpios e sinceros, etc.. Por isso não são fortuitos os paralelismos entre o tempo bíblico e o tempo do próprio da Costa, que permeiam toda a obra, desde sua abertura “Ao leitor” até a aparição simbólica, anacrônica e a-historicizada, de fariseus e saduceus. Esse é um dos motes do discurso dacostiano.

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De maneira que aparentemente pode-se concluir que há por trás do discurso dacostiano um pouco daquilo que foi chamado civilizing process, 94 dada a tentativa dacostiana de aclimatar o judaísmo à tradição humanista da modernidade nascente, via o resgate de uma hebraicidade pura e nostálgica e idealizadamente perdida no tempo – cujos restos, estilhaçados, da Costa busca remontar. Conforme alguns autores costumam assinalar, a tentativa de da Costa foi prematura para seu tempo, não tendo resultado em nenhum movimento organizado. As tentativas sefaraditas de contestar o establishment judaico durante o século XVII foram geralmente classificadas como um tipo de abortive moviment, ou nem mesmo chegaram ao ponto de poder ser consideradas um movimento.95 No século XVIII, entretanto, o movimento “iluminista” judaico-alemão se beneficiaria das sementes lançadas um século antes pelos correligionários sefaraditas. A presença da figura de da Costa no cenário humanista alemão do século XIX é resultado direto desse interesse. A referência de Freud à peça Uriel Akosta de Karl Gutzkow é por enquanto só um indício hipotético do papel que a condição liminar, dividida entre o cristianismo e o judaísmo, pode ter jogado na cristalização da teoria do subconsciente freudiano.96 O discurso dacostiano parte de uma tabula rasa, a interpretação da Escritura começa com ele e toda a tradição anterior está tacitamente invalidada. E aqui podemos extrapolar e aventar a hipótese de que o texto dacostiano encerra a “doutrina” (na falta de uma palavra melhor) que resultou do quase um século de consciência de uma herança judaica, somada à falta de conexão com o judaísmo normativo, à crítica anti-Contrareforma e à tradição laica dos judeus ibéricos da pré-expulsão/conversão. A interpretação do caráter ceticista do discurso dacostiano como um eco da tradição laica dos judeus ibéricos da pré-expulsão é o argumento central de um artigo de Shepard. 97 Ao mesmo tempo, num artigo de Skalli que se ampara em epístolas consolatórias de Isaac Abravanel, nota-se que apesar do tema em questão ser justamente a morte, Abravanel não faz nenhuma alusão à imortalidade da alma. 98 A leitura desses dois estudos favorece, portanto, uma aproximação ao ponto de vista defendido pelo 94

Conforme discutido no curso “‘Tratado Teológico-Político de Spinoza’ e o seu tempo”, ministrado pelo prof. Yosef Kaplan em 2009-2010. 95 Cf. Rosenberg, Shalom, “Emunat Ḥakhamim” (1987: 286-9). 96 Cf. Kobrin, N. H., op.cit.. 97 Shepard, Sanford; “The Background of Uriel da Costa’s Heresy – Marranism, Scepticism, Karaism” (1971). 98 Cohen-Skalli, Cédric, “The dual humanism of Don Isaac Abravanel” (2004).

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primeiro investigador, quer dizer, a de um eco da tradição não propriamente laica, senão humanista, de alguns representantes principais do pensamento judaico ibérico de fins do século 15 e princípios do século 16, no pensamento dacostiano. O que permitiria ver também, dentro do discurso dacostiano, uma crítica ao que ele entende como sendo um judaísmo crivado de cristianismo, e não leal à verdadeira tradição humanista judaica, uma vez que se traça um paralelismo entre a corrupção tanto da instituição religiosa eclesiástica quanto da instituição rabínica. A crítica contra a verve escolásticoaristotélica, comumente aplicada à primeira, é aplicada à segunda por da Costa. Se no soneto final endereçado aos rebeldes porfiosos do povo ecoam, conforme nota Salomon,99 versículos de Mateus, Lucas e João, e suas críticas ao farisaísmo, não significa que o discurso dacostiano corrobore com a parafernália institucional eclesiástica criada posteriormente à existência desses apóstolos. Nesse caso, a voz (ou ressonância) dos apóstolos é validada pelo discurso dacostiano porque foi contemporânea dos fatos e percebeu o potencial do equivoco farisaico. Mas, além disso, e mais importante, a figura apostólica também pode funcionar dentro do discurso dacostiano como representante de uma época na qual o cristianismo nascente ainda era incorrupto. De maneira que da Costa pode desassociar os apóstolos da tradição católica subsequentemente desenvolvida, porque o discurso dacostiano realiza uma leitura da História de frente para trás, cronológica, e não incorre no anacronismo de observar a História de trás para frente. Um dos epicentros do discurso dacostiano pode ser mesmo essa idealização de uma época pura da religião, em contraste com a corrupção futura empreendida por suas instituições sectárias, com a ganância e maldade de seus lideres e com a torpeza do povo inculto e incauto. Guardadas as proporções e anacronismos à parte, o discurso dacostiano também pode ser lido numa chave clássico-barroca aplicada ao marco judaico moderno. Sua crítica enxerga na tradição oral um barroquismo, quer dizer, distorção e ilusão e, não contente, propõe a regularidade, a harmonia e ancestralidade do hebraísmo supostamente original, puro, belo e justo. É possível que a hermenêutica dacostiana, levada às últimas conseqüências, tenha ecoado no Tractactus theologico-politicus, do seu contemporâneo tardio Spinoza, ou no Tratado dos três impostores, anônimo do século XVIII. Nessas obras, o mesmo tipo de crítica destinada aos fariseus desenvolvida no Exame das tradições se vê

99

Salomon, H. P., (1990: 165).

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expandida a toda a religião de um modo geral, e toda a atribuição reservada ao sectarismo fariseu em da Costa se torna atribuição geral dos próprios lideres das religiões. Se no discurso dacostiano a esperança e o temor são manipulados particularmente pelos fariseus, numa etapa posterior, como o mostra o Tratado dos três impostores, por exemplo, todo líder religioso se projeta enquanto aproveitador e manipulador, ao mesmo tempo em que não só os seguidores do farisaísmo senão todo seguidor das religiões reveladas é, de maneira generalizada, desenhado como pessoa vulgar e supersticiosa. O discurso dacostiano pode ser lido, portanto, como uma etapa de transição, de uma concepção de religião revelada e de um Deus providencial a uma depuração dos textos canônicos, vistos não mais como divinos, mas humanos, e da quintessência da religião. Nesse sentido, da Costa também esteve de certa maneira numa situação liminar, no limiar de uma significativa transição. Isso nos mostra o desenrolar de um processo, e faz lembrar ao homem do século XXI, já acostumado com a secularização e o livre-pensamento, que as transformações de mentalidade não são repentinas, mas necessitam de tempo e não pouco sofrimento para amadurecer.

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Anexo

Uriel da Costa em Tel Aviv

Em Florentin, bairro ora boêmio situado na zona sul de Tel Aviv, entre as ruas que levam o nome de sábios judeus ibéricos como Don Itzhak Abravanel (1437-1508), Haim Vital (1543-1620), Moises Cordovero (1522-1570) e outros, há uma pacata e discreta ruela nomeada Uriel Akosta (“Da Costa”, latinizado). O personagem histórico pouco conhecido do grande público israelense contemporâneo, sobre o qual nos debruçamos nesta dissertação, entrou no panteão de figuras da história judaica incorporadas na dupla face de ruptura e continuidade da narrativa sionista em relação ao seu passado judaico-diaspórico. O curioso que busca saber quem foi tal figura se aproxima da placa e assim lê: “Uriel Akosta. Filósofo. Descendente de conversos que voltou ao judaísmo”. Se o transeunte está familiarizado com a biografia do ex-converso do Porto (o que é pouco provável), então deveria perguntar se “acaso a pequena apresentação explicativa não está contada pela metade (?). Não ficaram faltando a crítica ao judaísmo normativo, as excomunhões, o dramático suicídio (?)”. Na verdade, mesmo que contada pela metade, a explicação não deixa de ser coerente dentro da sua incoerência lacunar. Porque a resignificação do judaísmo dentro da narrativa sionista passou diretamente pelo crivo da hebraicidade moderna, laicizada, mais universalista do que sectária, da qual Uriel da Costa foi um précursor, um pioneiro, é verdade que mais individualista do que institucionalizado. O fato de ser apresentado como filósofo reforça o aspecto laicizante da sua pouco conhecida figura. Há uma passagem do Exame das tradições que, numa leitura tendenciosamente bem intencionada, permitiria projetar Uriel da Costa como um proto-sionista moderno ou, se assim se quiser, um herói sionista retroativado. Num dos últimos capítulos do Exame das tradições, Uriel da Costa sugere uma malfadada conexão entre o judaísmo rabínico e a situação exílica do povo judeu: Em fim perguntamos a todo o seu povo, por que rezaõ naõ torna a Deos, e se deixa perecer pellas terras alheas, e já quem tem lei, por que a naõ sabe ter com o fruito della? [II.18]

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Curiosamente, a profecia teológico-política dacostiana de que os judeus deixariam de vagar por terras alheias quando abandonassem a tradição rabínica (“seu povo”, ironicamente empregado contra Samuel da Silva, denota “farisaísmo”) em troca do retorno à lei, isto é, às fontes bíblicas antigas (ainda que resignificadas), coincide parcialmente com o processo da moderna laicização judaica. Esse movimento, cujo inicio remete ao século XIX, priorizou as fontes bíblicas em detrimento das talmúdicas, e um de seus desdobramentos foi o nacionalismo judaico moderno, através do qual judeus não deixaram totalmente de viver “em terras alheias”, mas também passaram a habitar em Eretz Israel em grande número e alcançaram soberania política na região. Não foi por acaso, portanto, que a peça Uriel Akosta de Gutzkow fez tanto sucesso na Palestina judaica das primeiras décadas do século XX, e que Uriel da Costa tenha sido incorporado à toponímica urbana do Estado de Israel. A presença de Uriel da Costa no horizonte cultural israelense praticamente já não é mais percebida no século XXI, mas seu impacto na cultura israelense nas primeiras décadas do século XX merece ser melhor pesquisado.

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Placa da Rua Uriel Akosta no bairro Florentin, Tel Aviv

Rua Uriel Akosta vista desde a Rua HaKishon (fotografado em janeiro de 2011)

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Bibliografia 1.

A obra analisada

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http://www.mechon-

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.‫מנוקד‬

‫המסורה‬

‫בכתיב‬

-

‫תורה נביאים וכתובים‬ mamre.org/i/t/t01.htm

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