A LINGUAGEM ABERTA: um estudo sobre o Grande Sertão: Veredas - ALBERTO SARTORELLI

May 25, 2017 | Autor: A. Colosso Sartor... | Categoria: Literatura brasileira, João Guimarães Rosa, Teoría Crítica, Crítica literária
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A LINGUAGEM ABERTA: um estudo sobre o Grande Sertão: Veredas - ALBERTO SARTORELLI

“[…] A máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. […] Olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética, essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo […] A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas.”

- DRUMMOND, A Máquina do Mundo

A LINGUAGEM ABERTA: um estudo sobre o Grande Sertão: Veredas - ALBERTO José Colosso SARTORELLI1

Este texto tem por objetivo apresentar uma interpretação de abordagem dialético-materialista do livro Grande Sertão: Veredas, de 1956, escrito por João Guimarães Rosa. Para tal intento, é necessário esclarecer que não discutiremos os autores utilizados em seus universos teóricos individuais, muitas das vezes diversos e contraditórios; a apropriação de autores de distintas tradições servirá aqui para fundamentar uma organização interpretativa muito pessoal, e por isso assumimos total responsabilidade pela interpretação e ordenamento da crítica que procederá esta incursão inicial, absolvendo os autores utilizados de qualquer culpa pelos equívocos porventura contidos neste texto. A hipótese principal a ser defendida será a de que em Grande Sertão: Veredas há uma inovação na linguagem; Guimarães Rosa escreveu o romance de modo não óbvio, recusando a linguagem “formal” historicamente desgastada e insuficiente para a expressão do conteúdo intencionado; ao recusar a linguagem formal, também recusa sua “antecâmara”, a lógica formal, preocupando-se em seu romance não com a compreensão imediata do que é dito, mas com a expressão adequada de um conteúdo em si mesmo contraditório e fragmentado. Emanando do material, a forma literária encontrada por Guimarães Rosa opera como mímese verdadeira do sertão do Norte de Minas Gerais, palco dos acontecimento do livro, local onde a ordenação racionalizante do Estado e do capitalismo ainda não haviam adentrado totalmente, mantendo estruturas arcaicas de poder e de vida; tais estruturas arcaicas, em nossa compreensão, possibilitaram ainda a Guimarães Rosa, ao menos até 1956 (ano do término da escrita do livro), o aspecto épico da obra, importantíssimo enquanto condição de possibilidade da narração. Foi de extrema importância a familiaridade do autor com seu material: Rosa passou a infância em 1 Estudante graduado em filosofia pela Universidade de São Paulo. É oportuno agradecer ao Prof. Dr. Alex de Campos Moura, que ofereceu a disciplina História da Filosofia Contemporânea III no segundo semestre de 2016; foi ele quem concedeu a liberdade necessária para que o autor pudesse, em meio às atribulações finais do curso de graduação, escrever este texto e apresentá-lo para avaliação final, mesmo que não se tenha trabalhado especificamente com Guimarães Rosa na disciplina.

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Cordisburgo/MG, tendo contato e estruturando seu pensamento também a partir do dialeto daquela região do centro-leste mineiro; além disso, tocou uma boiada, a cavalo, por 200 km pelo sertão do Norte de Minas, ouvindo dos companheiros histórias antigas e anotando o nome de tudo quanto é coisa: plantas, animais, gentes e lugares. Somente essa correlação entre o diplomata erudito na cultura ocidental e o pesquisador que foi a campo buscar aquilo de mais particular do anacrônico sertão mineiro, fez com que fosse possível, mesmo no mundo desencantado, escrever um romance de caráter universal, numa linguagem ao mesmo tempo popular e erudita, oral e escrita, tensa por excelência, por vezes enigmática, exatamente como seu material: o sertão.

A FORMA TRADICIONAL DO ROMANCE: NARRATIVA E TOTALIDADE Ao menos desde a Teoria do Romance (1917) de Lukács, a questão da totalidade aparece como intimamente ligada à narrativa do romance. A novidade presente no livro de Lukács foi o diagnóstico de uma crise no romance, que não está isolada da crise da sociedade em geral. Ora, a Teologia não cumpre mais o papel de explicação totalizante do mundo, muito menos a ciência especializada 2. “A totalidade da estrutura transcendental do mundo é um a priori predeterminado, abrangente e doador de sentido para todo o destino individual3.” Sem a totalidade, não há mais um sentido exterior ao sujeito, que fundamente suas ações e justifique seus afetos. À deriva, o sujeito não encontra um nexo profundo e transcendente nos acontecimentos. “Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, 2 É muito provável que Lukács tenha desenvolvido sua teoria da crise da totalidade (e por conseguinte do romance) a partir das leituras de Nietzsche (principalmente o “Deus está morto” em A Gaia Ciência, Livro V, §343) e Weber, que fora seu amigo e orientador em Heidelberg, e desenvolveu a hipótese do desencantamento do mundo. “A intelectualização e a racionalização geral não significam, pois, um maior conhecimento geral das condições da vida, mas algo de muito diverso: o saber ou a crença em que, se alguém simplesmente quisesse, poderia, em qualquer momento, experimentar que, em princípio, não há poderes ocultos e imprevisíveis, que nela interfiram; que, pelo contrário, todas as coisas podem – em princípio – ser dominadas mediante o cálculo. Quer isto dizer: o desencantamento do mundo.” WEBER, Ciência como vocação, p. 13. Tradução de Artur Morão. Consultado em 06/12/16. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf 3 LUKÁCS, Teoria do Romance, p. 59

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não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo.” (GUIMARÃES ROSA, GSV, p. 76)

O desencantamento do mundo, o diagnóstico de que não há segredo nem força que não sejam passíveis de domínio pela técnica, faz com que as histórias não tenham mais um sentido para além de si mesmas: é fracassada de antemão qualquer ambição de universalidade. Para se contar histórias, é preciso que o narrador tenha passado por experiências ou as tenha ouvido; as duas coisas estão em extinção. A experiência, brutalmente empobrecida pela ausência de nexo e pela divisão social do trabalho, que aliena o trabalhador – todos trabalham – de sua produção; veja-se por exemplo as Guerras Mundiais, apoteose do non sense; Benjamin4 diz que os soldados voltavam da Primeira Grande Guerra não com mais histórias para contar, como na época de Bismarck, mas mais calados. O ato de ouvir, praticamente extinto 5, pois só se ouve com atenção em situações de ócio, e o ócio não mais existe; quando não se está trabalhando, se está descansando para o trabalho. “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes.” (BENJAMIN, O narrador, p. 221)

O empobrecimento da experiência e a aniquilação do ócio são duas das condições para o advento do mundo administrado. Não existe mais a totalidade, o nexo profundo entre uma coisa e outra, a articulação a priori do mundo; todavia, foi colocado no lugar um mundo gerido, no qual as ações das pessoas são previstas por avançados dispositivos de controle6, e suas características individuais são tomadas como números e entram na “conta geral”. O mundo administrado opera como ideologia: quer dizer, seus enunciados não são meramente mentirosos, mas falsas verdades, que operam como se 4 BENJAMIN, O narrador, p. 214 5 ver: ADORNO, Tempo livre 6 ver: AGAMBEN, O que é um dispositivo? Tradução de Nilcéia Valdati. Consultado em 06/12/16. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/12576

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fossem verdadeiras. No fundo, o processo é de homogeneização psicológica dos indivíduos, e tanto a razão instrumental quanto a indústria cultural servem a esse maléfico intento, que destrói a individualidade enquanto liberdade. “O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite. […] Pois contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice.” (ADORNO, Posição do narrador no romance contemporâneo, p. 56)

O mundo administrado, a falsa totalidade que opera como verdadeira, inibe a multiplicidade. Sem o “diferente”, não há experiência possível. Pensemos na quantidade ínfima de escritores entre nós, e é menor ainda o número de bons escritores. Ninguém mais tem “experiência” ou fica sabendo de boas histórias; não há mais o viajante que traz informações de localidades longínquas, os Martius e Spix; não há mais gente querendo ouvir o que outras tem a dizer, afinal, tudo que acontece está nos telejornais ou na internet. A informação “mastigada” e “imparcial” acabou com a possibilidade de se contar uma história. Neste sentido nada, além do ego do autor, poderia ser transpassado ao leitor por meio da escrita de um romance: ninguém mais tem uma vida exemplar ou conhece alguma que seja, e leitor nenhum – são poucos os que ainda existem – vai interessar-se pelo percurso isolado de um eu sem experiência alguma num mundo falido e sem sentido. João Guimarães Rosa, não importa se de maneira consciente ou não, enfrentou a questão da fragmentação da vida em muitos de seus contos e em seu único romance, Grande Sertão: Veredas, de 1956. A discussão sobre o fim da totalidade permeou o debate filosófico europeu entre o final do século XIX e a primeira metade do XX. A pergunta a ser respondida é: quais os mecanismos de linguagem que utilizou Rosa para, apesar da crise de totalidade e da forma do romance, escrever o maior romance brasileiro, ápice do modernismo em prosa, nosso épico nacional de todos os tempos?

O SERTÃO: TOTALIDADE E FRAGMENTAÇÃO Deus é grande, mas o mato é maior – provérbio nordestino Indefinível, o “sertão” aparece em Grande Sertão: Veredas como um “algo” que 5

subjaz a todos os acontecimentos narrados, por vezes tendo até “vontade própria”. Seu material provém do sertão real do Norte de Minas, mas também da imaginação do autor, sua virtualidade. Riobaldo conta suas andanças por um mundo ao mesmo tempo encantado e desencantado, verdadeiro e ilusório. O “sertão” de Rosa não é uma totalidade, pois é indefinido no tempo e no espaço, não é fechado em si mesmo e não orienta claramente as ações das personagens, ao mesmo tempo que muitas vezes as condiciona; comporta sua própria contradição – o real e o imaginário. Este “sertão dialético”, apesar de não ser a totalidade fechada, condição da narrativa, opera como se fosse essa totalidade. “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos 7.” Esta “totalidade aberta”, negadora de si mesma por princípio, é o campo de ação do romance de Rosa. Quem magistralmente notou essa característica foi Antonio Candido: “Estas considerações sobre o poder recíproco da terra e do homem nos levam à ideia de que há em Grande Sertão: Veredas uma espécie de grande princípio geral de reversibilidade, dando-lhe um caráter fluido e uma misteriosa eficácia. [...] Ambiguidade da geografia, que desliza para o espaço lendário; ambiguidade dos tipos sociais, que participam da Cavalaria e do banditismo; ambiguidade afetiva, que faz o narrador oscilar, não apenas entre o amor sagrado de Otacília e o amor profano da encantadora “militriz” Nhorinhá, mas entre a face permitida e a face interdita do amor, simbolizada na suprema ambiguidade da mulherhomem que é Diadorim; ambiguidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem. Estes diversos planos de ambiguidade compõem um deslizamento entre os polos, uma fusão de contrários, uma dialética extremamente viva, - que nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir formas mais ricas de integração do ser. E todos se exprimem na ambiguidade inicial e final do estilo, a grande matriz, que é popular e erudito, arcaico e moderno, claro e obscuro, artificial e espontâneo. Assim, vemos misturarem-se em todos os níveis o real e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto. A soberania do romancista, colocado na sua posição-chave, a partir da qual são possíveis todos os desenvolvimentos virtuais, nos faz passar livremente duma esfera à outra; A coerência do livro vem da reunião de ambas, fundindo o homem e a terra e manifestando o caráter uno, total, do Sertão-enquanto-Mundo.” (CANDIDO, O homem dos avessos, p. 134-5)

A estrutura arcaica do sertão é uma das razões dele poder operar como 7 GSV, p. 24

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totalidade, apesar de não sê-la. No sertão da época de Rosa, o braço racionalizado do Estado Democrático de Direito não havia chegado; os quiproquós eram resolvidos, digamos, “como antigamente”. A cultura capitalista predominante é a do latifúndio improdutivo, signo de status, nem sempre conjugado à acumulação de capital. O sertão também é um espaço geográfico seco, chove pouco e poucos são os grandes rios, como o São Francisco; na terra sem irrigação artificial não cresce muita coisa, a maior árvore e fonte de sombra é o buriti; muitas são as distâncias onde não se vê nenhuma alma viva - o sertanejo é obrigado a lidar com a solidão; devido a tudo isso, é um local de difícil habitação: “o sertanejo é antes de tudo um forte”, dizia Euclides da Cunha. É nessa estrutura social e geográfica que Rosa encontrou seu épico 8. Todavia, para além das especificidades, devido ao aspecto indefinido do sertão, esse “sertão” pode tornar-se universal, terreno de acontecimentos da tragédia humana em geral. “O sertão é do tamanho do mundo9.” “Desde sua aparição no título e nas primeiras linhas do texto, essa palavra — sertão — vai se rodeando, pela indeterminação de seus limites e plurivalência de seus significados, das mais fundas e complexas ressonâncias significativas, que só crescem pela recorrência no decorrer do livro, impondo-se como símbolo poderoso, inextricavelmente ligado ao enredo como um todo. Mas, desde que surge, provoca o sentimento épico de que o conteúdo de um vasto assunto com ela se abre à nossa consideração.” (ARRIGUCCI, O mundo misturado, p. 22)

Esse sertão, que Rosa inventou e também conheceu a fundo 10, transparece em seu romance não somente enquanto terreno, mas na própria linguagem. Rosa opera uma mímese do sertão, transpassando para a linguagem aquilo de indefinido, de vasto, de desordenado. O título Grande Sertão: Veredas talvez signifique que dentro do épico “sertão” 8 No campo da música, podemos destacar as obras do grande violonista Elomar Figueira Mello, do Sul da Bahia, e do Quinteto Armorial, de Pernambuco; tratam de trovadores, menestréis, cavaleiros, donzelas e do próprio demo. O épico está presente no terreno mesmo onde os acontecimentos são imaginados; pressupõe-se um fio tênue e não-cronológico entre o ideário do sertão e o da Península Ibérica na Baixa Idade Média; essa relação só é possível devido ao aspecto arcaico do sertão, ainda que as ações narradas ou sugeridas não aconteçam de fato. 9 GSV, p. 89 10 Para conhecer a jornada do diplomata João Guimarães Rosa quando, em 1952, tocou uma boiada por 200 km pelo Norte de Minas, ver o documentário Sujeito Oculto: na rota do Grande Sertão, de Silvio TENDLER (2013)

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há também as veredas, pequeniníssimos riachozinhos mediatamente interligados a rios maiores. As veredas aludem ao elemento particular, as histórias específicas; o sertão, ao elemento universal, “o mundo”. “O “sertão” acaba sendo toda a confusa e tumultuosa massa do mundo sensível, caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer, precisamente a que se avista ao longo das “veredas”, tênues canais de penetração e comunicação. Assim o sinal -:- entre os dois elementos do título teria valor adversativo, estabelecendo a oposição entre a imensa realidade inabrangível e suas mínimas parcelas acessíveis, ou, noutras palavras, entre o intuível e o conhecível.” (RÓNAI, Três motivos em Grande Sertão: Veredas, p. 17)

Rosa como que “deixou falar” o sertão; não inculcou nenhuma categoria a priori, nem ao sertão e nem à linguagem que expressa os acontecimentos fictícios neste sertão “híbrido”. A mímese de Rosa, então, expressa a verdade daquele conteúdo. Como todo grande artista moderno, foi obcecado na busca pela forma adequada; diversamente de outros, a encontrou. “O sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor11.”

A LINGUAGEM: FRAGMENTAÇÃO E ABERTURA A linguagem de Rosa é adequada ao objeto, pois inadequada à gramática. “A virgulação muito frequente cria uma segmentação desobrigada em face da gramática. […] Trata-se de uma espécie de técnica pontilhista 12.” Os fragmentos rosianos, “veredas” de um “grande sertão” subjacente, afloram como entes fechados em si próprios, todavia entrelaçados numa estrutura transcendente, por onde dançam e se realocam. “O poder do fluxo não lhe limita a força [da palavra], pelo contrário, possibilita que, liberta de conexões gramaticais secundárias, exista mais solitária e apresente mais pleno o seu sentido 13.” Rosa notou uma necessidade de resistir à linguagem desgastada, esvaziada de conteúdo pela sua própria forma engessada; tecnicizada, a língua de Machado de Assis estava muito, mas muito distante, nos anos 1950, de dar conta de um material dialético. Adorno diz que 11 GSV, p. 391 12 SCHWARZ, Grande Sertão: a fala, p. 39-40 13 SCHWARZ, Grande Sertão: a fala, p. 40

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a forma deve emanar do material14, e não ser nele imposta; parece até que Rosa sabia disso. “Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...15” Contra o automatismo da linguagem, uma linguagem desarticulada gramaticalmente, preocupada somente com a expressão adequada, para muito além das normas seculares da língua, que Rosa dominava entre tantas outras. “Zola vinha apenas de São Paulo”, Rosa diz na sua entrevista com Günter Lorenz, ironizando a pretensão de universalidade da razão instrumental capitalista e suas operações e produtos: o racionalismo de uma civilização desoladoramente técnica, a concepção instrumentalista de linguagem que separa “forma” e “conteúdo”, a estupidez da comunicação de massa, o realismo, o naturalismo e a aridez espiritual.” (HANSEN, Forma literária e crítica da lógica racionalista em Guimarães Rosa, p. 126)

Resistindo aos imperativos da comunicabilidade, Guimarães Rosa optou pelo risco do novo, ainda que obscuro, em relação ao sebo brilhoso do velho; o resultado foi, digamos, “brilhante”. Sabia o escritor que um conteúdo novo, apesar de devedor da erudição na cultura, teria de ser expressado também de maneira “moderna”. O sertão de Rosa, arcaico e moderníssimo, figura dialética subjacente, opera como contradição viva, que dá vazão às mais variadas interpretações; no fim, a ambiguidade não só do conteúdo, mas da forma, foi o modo de Rosa dizer não às convenções e fundar sua literatura sobre as raízes pouco sólidas, porém muito amplas, da contradição imanente. “Se a opinião pública atingiu um estado em que o pensamento inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem em seu encarecimento, então a tentativa de pôr a nu semelhante depravação tem de recusar lealdade às convenções linguísticas e conceituais em vigor.” (ADORNO, Dialética do Esclarecimento, p. 11-2)

Ora, a língua “culta” está baseada, em sua estrutura, na lógica formal. Para que se negue as estruturas da língua, é preciso negar as estruturas da lógica. Optando pelo princípio de multiplicidade, Rosa nega a identidade, de Aristóteles a Frege. Em Rosa, o conjunto A contém dentro de si todos os predicados de A, inclusive não-A. Como muito 14 “A forma, a qual é devida ao conteúdo, é em si mesma um conteúdo sedimentado.” ADORNO, Teoria Estética, p. 166 15 GSV, p. 31

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bem notou João Adolfo Hansen: “A negação da “lógica” é, porém, um procedimento crítico que também é comunicado funcionalmente ao leitor como avaliação da forma. Rosa insiste na superioridade artística da enunciação feita por meio de paradoxos que afirmam dois sentidos contrários simultaneamente válidos, por oposição à enunciação “lógica”, que pressupõe a contradição e o princípio do 3º excluído como critérios de determinação da verdade e da verossimilhança: “Deus existe mesmo quando não há”, lemos em Grande sertão: veredas.” (HANSEN, Forma literária e crítica da lógica racionalista em Guimarães Rosa, p. 127)

Eis que por isso a obra pode ter de enfrentar uma sinuca de bico. Primeiro, não comunica imediatamente, pode ser tratada como elitista; depois, não apresenta princípios claros de adequação à estruturação gramatical vigente, sendo supostamente passível da qualidade de “irracional”. Em verdade, nenhuma dessas duas críticas são pertinentes. Ao estabelecer um tipo de escrita de difícil acesso ao leitor comum, Rosa aposta num pacto de inteligência com o leitor: esboça-se uma história, que depende da persistência do leitor em continuar a ouvi-la (lê-la) para continuar contando. Para tal pacto, é preciso tratar o leitor como um indivíduo de vontade própria, livre para aceitar ou não a proposta, e não como um sujeito passivo que só recebe informações do escritor “iluminado” pelo saber. “A indecisão do começo, em que lembranças fragmentadas se sucedem ao sabor das associações, corresponde à hesitação do narrador, que só depõe as reservas depois de ver fixo o interesse do ouvinte, o qual não somente desiste da intenção de prosseguir viagem no mesmo dia, mas anota a relação em sua caderneta.” (RÓNAI, Três motivos em Grande Sertão: Veredas, p. 17)

Em relação à possível acusação de irracionalismo, a réplica é evidente: Rosa abre a razão ao discurso da multiplicidade, expandindo-a em vez de limitá-la. Por trabalhar com o elemento contraditório de seu conteúdo, Rosa faz uso de uma razão dialética, em contraposição à razão instrumental, que só vê o outro, homem ou coisa, enquanto utilidade; a razão de Rosa é para além da razão instrumental, suas palavras são abertas, suas expressões são ricas, sua língua é vivaz. “A negação da lógica feita por um intelectual não é um anti-intelectualismo obscurantista, mas afirmação de outro

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pressuposto poético que pluraliza a racionalidade 16.” Rosa não toma as coisas por determinados predicados que servem à utilidade, e sim as circunda, tentando dar conta de sua contradição imanente. “A utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual com conceitos, sem equipará-lo a esses conceitos17.”

CONCLUINDO SEM ENCERRAR Abordamos neste texto somente alguns poucos aspectos entre os muitos possíveis no Grande Sertão. Primeiramente, discutimos a crise do romance, atrelada à crise da possibilidade de uma visão totalizante do mundo, capaz de orientar as ações e conduzir as experiências, devido a um suposto nexo geral entre os acontecimentos; só isso garantiria a possibilidade de narrar e escrever um romance. O desencantamento do mundo, conjugado à visão científica, determinou a razão instrumental como meio eficaz de conhecimento; como a razão instrumental não cumpriu sua promessa totalizante, os indivíduos ficaram desamparados, desnorteados, numa sociedade calcada na divisão social do trabalho. A experiência estava empobrecida; o ato de ouvir tornou-se inexistente no capitalismo avançado; portanto, sua comunicabilidade, interditada. “O todo da vida não permite nela indicar um centro transcendental e não tolera que uma de suas células arvore-se em sua dominadora18.” Rosa encontrou uma forma de, mesmo e devido a essa crise, escrever um romance, o grande romance brasileiro. Rosa encontrou no sertão, local de estrutura social arcaica e características geográficas que dificultam a sobrevivência, a figura dialética que subjaz a todos os acontecimentos do romance; o sertão, ele mesmo contraditório, real e inventado, oral e escrito, por definição indefinido, possibilita a narrativa épica e, por consequência, a escrita de um romance, operando como “totalidade aberta”. Pensamos que um romance dessa magnitude, nos anos 1950, só fosse mesmo possível de advir da região menos “desenvolvida” de um país do Terceiro Mundo. “As interrogações que [Riobaldo] formula sobre o sentido de sua 16 HANSEN, Forma literária e crítica da lógica racionalista em Guimarães Rosa, p. 127 17 ADORNO, Dialética Negativa, p. 17 18 LUKÁCS, Teoria do Romance, p. 53

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experiência configuram a pergunta pelo sentido da vida típica do romance burguês, voltado para os significados da experiência individual no espaço moderno do trabalho e da cidade capitalista. Aqui, no entanto, a questão brota do sertão e dos avatares de um narrador proverbial em sua travessia em busca do sentido do que viveu.” (ARRIGUCCI, O mundo misturado, p. 19)

Ao representar linguisticamente esse “sertão”, Rosa utiliza-se de uma linguagem inteiramente nova, não subordinada à gramática e à lógica, preocupada com a expressão mais do que com a adequação a normas preestabelecidas. “Muita coisa importante falta nome19.” Recusando e resistindo à língua engessada, Rosa abre uma possibilidade enorme de interpretações, afinal, sua obra é mímese do sertão, e seu sertão é um conjunto indefinido e contraditório, muito distante da harmonia dissimulada da língua culta. “Pois o verdadeiro é apenas o que não se harmoniza com este mundo 20.” Rosa supera a língua portuguesa, libertando as línguas presas dentro da língua. A leitura do Grande Sertão: Veredas é um exercício de liberdade, liberdade esta que muitos, na sociedade industrial globalizada, estão desacostumados. Rosa enfrentou a crítica europeia e escreveu um romance, o maior romance brasileiro, quando diziam que isso não era mais possível. A pergunta que persiste é se hoje, no século XXI, ainda é possível escrever um romance que seja mímese verdadeira da realidade social.

19 GSV, p. 125 20 ADORNO, Teoria Estética, p. 96

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BIBLIOGRAFIA - ADORNO, Th. & HORKHEIMER, M., Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. ADORNO. Th., Dialética Negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. - ADORNO, Th., “Posição do narrador no romance contemporâneo” in Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2012. - ADORNO, Th., Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008. - ARRIGUCCI JR., D., “O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa” in Novos Estudos CEBRAP. Consultado em 06/12/16. Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/v1/files/uploads/contents/74/20080626_o_mundo_mistura do.pdf - BENJAMIN, W., “O narrador: Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov” in Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. - CANDIDO, A., “O homem dos avessos” in Tese e Antítese. São Paulo: Editora Nacional, 1978. - HANSEN, J. A., “Forma literária e crítica da lógica racionalista em Guimarães Rosa” in Letras de Hoje v. 47, n° 2. Consultado em 06/12/16. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/11308/7713 - LUKÁCS, G., Teoria do Romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2012. - ROSA, J. G., Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. - RÓNAI, P., “Três motivos em Grande Sertão: Veredas” in ROSA, J. G., Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. - SCHWARZ, R., “Grande Sertão: a fala” in A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

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