A linguagem é o limite (?) - sobre as relações entre Arte, Linguagem e Ente

June 15, 2017 | Autor: Bruno Marcondes | Categoria: Artes, Realidade, Linguagem
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INTRODUÇÃO
Balzac, na sua A Obra-prima Ignorada, apresentou importantes questões a respeito do papel do artista e da obra de arte na Modernidade. Essas questões abriram os caminhos por que a arte contemporânea, tanto da parte dos artistas quanto da parte dos teóricos e dos especialistas, se embrenharia, na Modernidade, e até os dias atuais.
De modo sucinto, o papel do artista, representado nessa obra pelo personagem do Mestre Freinhofer, seria o de, pelos próprios meios da arte, implodir esses meios, de modo a fazer aparecer o Absoluto. A linguagem da arte seria o limite para fazer aparecer o real pleno – este sempre aparecerá mediado por aquela – de modo que, para o Real aparecer em sua plenitude, deve-se levar a linguagem ao seu próprio limite. Deve-se fazer o Real aparecer sem linguagem. Esse tipo de artista seria o tipo definido por Paulhan, em citação de Giorgio Agamben, como o tipo do Terrorista. Seriam os artistas que buscariam não a perfeição da forma na arte, mas a sua participação vital.
Já o outro tipo de artista seria aquele cujo objetivo seria atingir a perfeita medida formal de uma obra de arte. Estes buscariam o desenvolvimento da forma, e estariam preocupados não com o aparecimento do Real, mas com a satisfação de um ideal de gosto consensual entre os espectadores que essa arte tinha então. Esses artistas estariam mais afinados com a figura do homem de gosto, que, segundo Paulhan, aparece no Século XVII como o indivíduo capaz de perceber o ponto de perfeição de uma obra. Seriam, assim, os do tipo Retórico.
Como se pode inferir a partir dessa breve exposição, os artistas do primeiro tipo estariam mais ligados à atividade do criador, enquanto que os do segundo estariam mais afinados com a perspectiva do espectador. Na Obra de Balzac, os artistas do segundo tipo estão representados principalmente por Porbus.
O presente trabalho tem como tarefa, a partir d'A Obra-prima Ignorada de Balzac, questionar essas tentativas de se chegar ao Absoluto por meio da arte, e tentar responder se, é forçando a linguagem ao seu limite, que é o silêncio, que se chega ao Absoluto, ou, que não se chega a Absoluto algum e que o silêncio é apenas o modo mais radical de se revolver, ou de se criar uma outra linguagem. A grande questão é: qual é o grande limite? O silêncio, ou a linguagem?





















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Na Obra de Balzac, somos apresentados a um jovem aspirante a pintor, Nicolas Poussin. Não se pode perceber claramente, a princípio, qual o objetivo dele com a pintura, se ele quer ser bem-sucedido socialmente, ou se quer ser um grande artista (quando sua amada Gillette afirma que teme que o seu sucesso o faça esquecê-la, não está claro se o sucesso é social ou se é o artístico). Ele procura o artista mais bem sucedido de sua cidade, que é Porbus, para lhe pedir que seja o seu tutor. Porém, entra, junto com ele, na morada de Porbus, um senhor de idade avançada, que é o Mestre Freinhofer. Nas discussões que ele presencia entre Freinhofer e Porbus, em que o primeiro ataca a concepção de arte do segundo, na qual impera o rigor formal, e defende a sua concepção, na qual a arte deveria não imitar a natureza, mas expressá-la; que a arte não deveria reproduzir, mas gerar vida, ele termina por reconhecer a concepção de arte de Freinhofer como superior à de Porbus, e toma um grande interesse em conhecer o ateliê e a obra do velho. E toma conhecimento da Catherine Lescault, obra em que o velho passou dez anos estudando todas as minúcias da arte da pintura para concebê-la. Para criar uma mulher, não uma pintura, nas palavras do próprio Freinhofer. Uma última incerteza de Freinhofer, a de que se haveria uma mulher mais perfeita que sua Catherine Lescault, faz Porbus e Poussin combinarem de levar Gillette como modelo para o velho estudar, com o objetivo, da parte dos dois, de ver a obra. Da parte de Gillette, há uma resistência em posar para Freinhofer, pois ela tem medo de ser trocada por uma imagem e, no processo, deixar de amar o próprio Poussin. No ateliê, o velho faz um estudo da moça, compara-a com a sua obra, e deixa os dois verem Catherine Lescault. E há uma grande decepção, porque o que eles vêem são vários borrões de cores, em várias camadas, cobertos por uma muralha de tinta. No entanto, notam um pé saindo dos borrões, que era o pé mais perfeito que já haviam visto em pintura. Ao fazerem o velho notar que tudo isso era absolutamente nada, fazem com que o próprio Freinhofer passe a concordar com eles e reconheça que todo o seu esforço fora em vão. O limite da linguagem mostrou-se, no fim, como outra linguagem, e sua pretensão de atingir o Absoluto pela arte fracassou. E, à madrugada, ele se mata, ao queimar toda sua obra.
Essa exposição do enredo básico d'A Obra-prima Ignorada, de Balzac, mostra o destino do artista Terrorista. Como coloca Agamben, "O sonho do terror é a criação de obras que estejam no mundo como nele está o bloco de pedra ou a gota d'água, de um produto que exista segundo o estatuto da coisa." Freinhofer é posto pelo filósofo como o tipo perfeito do Terrorista, porque "tentou criar sobre a tela algo que não fosse apenas uma obra de arte, mesmo que genial", quis apagar a arte pela própria arte para fazer de sua obra uma realidade vivente de seu pensamento e de sua imaginação. No entanto, nessa busca pelo significado absoluto, o pintor acabou por devorar completamente o significado, para deixar apenas formas sem sentido. Sua procura pelo Absoluto aniquilou o significado, e acabou por criar uma outra forma. "Fugir da Retórica o conduziu ao Terror, mas o Terror o reconduz ao seu oposto, isto é, mais uma vez à Retórica."
Não nos cabe aqui continuar essa discussão de Agamben, por razões óbvias. O que nos cabe questionar, nesse momento, é a possibilidade da existência de uma realidade que possa ser alcançada sem a linguagem, de uma coisa-em-si, que foi algo tão visado pelos filósofos ao longo da História, uma realidade que apareça sem linguagem. Como nos mostra esse discurso de Freinhofer:
"Ao contrário dessa turba de ignorantes que pensam desenhar corretamente apenas por serem capazes de fazer um traço correto, nunca acentuei cruamente os limites externos de meus rostos e nunca ressaltei os pequenos detalhes anatômicos, já que o corpo humano não termina numa linha. Nisso os escultores se aproximam mais da realidade do que nós, pintores. A natureza comporta uma série de curvas que se prolongam umas nas outras. A rigor, o desenho não existe! (...) A linha é o meio pelo qual o homem representa o efeito da luz sobre os objetos. Mas na natureza, onde tudo é plenitude, não existem linhas; é modelando que se desenha, quer dizer, que se isola uma coisa do meio onde ela está. A distribuição da luz é que dá forma ao corpo! Assim, não fixo o delineamento dos rostos, espalho sobre os contornos uma nuvem de semitons amarelados e quentes que tornam impossível colocar com exatidão o dedo ali onde os contornos mesclam-se com o fundo. De perto, o trabalho parece borrado e carente de precisão mas a dois passos de distância tudo se reforça, se imobiliza e se destaca; o corpo gira, as formas tornam-se salientes, sente-se o ar circulando ao redor do rosto. Mesmo assim, não me contento, ainda tenho dúvidas. Talvez fosse o caso de não desenhar um único traço, melhor seria atacar um rosto a partir de seu centro, começando pelas partes salientes que recebem mais luz para em seguida passar às zonas mais sombrias. Não é assim que faz o sol, divino pintor do universo? Natureza, natureza, quem conseguiu surpreender-te em teus mistérios? É assim, muito conhecimento, tanto quanto a ignorância, leva ao nada. Duvido de minha obra!"

Ele parece acreditar, nessa espécie de manifesto artístico, que, levando a linguagem ao seu limite, ao silêncio, o Real apareceria tal como é, sem mediações. Que, apagando a linha e modelando a coisa pela distribuição da luz, cria-se a própria coisa tal como ela está na natureza. Mas, como já dissemos, no fim da Obra, ele descobriu apenas uma outra linguagem.
Retomando a discussão anterior de Agamben, pode-se afirmar que os artistas do tipo Terrorista, ao tentarem superar o complexo significante/significado pela via da dicotomia forma/matéria, como se a matéria fosse o real sem o molde humano, esbarram ainda no campo da metafísica e, assim, ficam aquém do seu objetivo. Na próxima parte, tentaremos pensar com Nietzsche um possível caminho para que as tentativas de levar a linguagem artística ao seu limite não resultem em mero jogo retórico.






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Nietzsche, em uma coletânea de manuscritos póstumos, intitulada A Vontade de Poder, faz uma crítica à tentativa dos filósofos de conhecerem a coisa-em-si, isto é, uma instância de realidade sem relação, fora de toda perspectiva e de todo sentido. Isto aparece na seção I-i do Terceiro Livro: Princípio de Uma Nova Valoração. O que o filósofo quer dizer, grosso modo, é que não existe realidade que apareça fora de um sentido, fora de uma linguagem.
Isso pode se estender para uma crítica aos artistas do tipo Terrorista: uma realidade a que eles pretendam alcançar, ou criar, por levar a linguagem ao limite, vai fazer com que apareça não a natureza, ou a matéria, tal como ela é, mas sim vai fazer com que surja outro modo de falar. Mas, para além de colocar o artista do tipo Terrorista em um círculo vicioso que faz com que ele se torne, no fim, um Retórico, pode-se defender esse tipo de atividade como uma atividade, uma vez que não chegue de fato ao Absoluto, desbanalizadora da linguagem artística e ampliadora de possibilidades, de sentidos, que a Arte possa alcançar. Como uma atividade que crie e consolide realidades. O levar a linguagem ao limite talvez seja a tarefa dos artistas comprometidos com o seu fazer próprio, e não com um ideal de gosto que satifaz a um espectador acomodado a este. O silêncio, visto dessa forma, dá azo ao dizer. Porque, se a Arte é tão somente uma exibição de técnicas executadas com perfeição, é um falar sem vigor. Mas, levada aos seus limites, se torna um dizer, porque mostra outras possibilidades e outros mundos. O silêncio passa a ser, assim, um revolver radical da linguagem.






BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, G. O Homem sem Qualidades. São Paulo: Autêntica, 2012.
BALZAC, H. A Obra-prima Ignorada. São Paulo: Iluminuras, 2012.
HEIDEGGER, M. A Caminho da Linguagem. Petrópolis/RJ: Vozes, 2003.
NIETZSCHE, F. A Vontade de Poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.












Em AGAMBEN, G. O Homem sem Qualidades. São Paulo: Autêntica, 2012, pp. 29. Em Idem, pp. 18, a participação vital pode ser entendida como "uma promessa de felicidade". Na mesma página: "(...) tendo alcançado o limite extremo do seu destino, a arte sai do horizonte neutro da esteticidade para se reconhecer na 'esfera de ouro' da vontade de potência.
Ibidem, pp. 29.
BALZAC, H. A Obra-prima Ignorada. São Paulo: Iluminuras, 2012.
AGAMBEN, G. Ibidem, pp. 30-31.
Ibidem, pp. 31-32.
NIETZSCHE, F. A Vontade de Poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, pp. 290: "Uma 'coisa em si' é tão absurda quanto um 'sentido em si', um 'significado em si'. Não há nenhum 'fato em si', mas antes um sentido há de sempre ser primeiramente intrometido para que um fato possa haver." (sublinhado pelo autor). E em Idem, pp. 292: "Que as coisas tenham uma constituição em si, completamente abstraída da interpretação e da subjetividade, é uma hipótese inteiramente ociosa: seria pressupor que o interpretar e o ser sujeito não sejam essenciais, que uma coisa desligada de todas as relações ainda seja coisa.
BALZAC, H. Idem, pp. 26-27.
AGAMBEN, G. Ibidem, pp. 32.
NIETZSCHE, F. Ibidem, pp. 289-293.
Não se pode deixar de citar aqui a palestra de Martin Heidegger, intitulada O Caminho para a Linguagem e sua definição da essência, do vigor da linguagem como "saga do dizer". Em HEIDEGGER, M. A Caminho da Linguagem. Petrópolis/RJ: Vozes, 2003.



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