A Linguística Moderna e o progresso científico: ruptura e continuidade na retórica chomskyana

July 11, 2017 | Autor: Tarcisio Dias | Categoria: Lingüística, Noam Chomsky, Gramática Gerativa, Historiografia Linguística
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A Linguística Moderna e o progresso científico: ruptura e continuidade na retórica chomskyana Tarcisio Antonio Dias (2015) Universidade de São Paulo Graduação em Letras Michel Lahud (2003), em seu artigo sobre a historiografia da linguística feita por Noam Chomsky no livro Cartesian Linguistics: A Chapter in the History of Rationalistic Thought, publicado na segunda metade do século XX, sistematiza um conjunto de críticas à ideia chomskyana acerca da existência de uma linguística cartesiana nos séculos XVII, XVIII e no começo do século XIX. Seja pelo fato de que "Descartes não disse nada de importante nem de novo sobre a linguagem" (LAHUD, 2003: 65), seja por que a "noção de linguística cartesiana abrange obras e autores que nada devem ao pensamento de Descartes" (Op. cit.: 65), ou mesmo pela "identificação de raízes quer de toda a gramática universal, quer, mais especificamente, da gramática de Port-Royal, numa tradição pré-cartesiana" (Op. cit.: 66), diversos estudiosos avaliaram a versão de Chomsky sobre a história do pensamento linguístico como distorciva, de caráter anedótico, isenta de seriedade, e até mesmo como falsa. Mas o que viria a ser, de fato, a "Linguística Cartesiana"? Através deste rótulo, Chomsky (1972) almejou subsumir um conjunto de ideias acerca da linguagem presentes nos séculos XVII, XVIII e início do XIX. Elencou, ao longo de seu estudo, autores de tal período (como Descartes, Cordemoy, Herder, Schlegel, Humboldt, etc.) que registraram comentários acerca da língua(gem) que, de alguma forma, mantêm paralelos com as noções norteadoras dos estudos em gramática gerativa na segunda metade do século XX. Ele irá identificar uma concepção básica comum entre estes diversos autores, que, de uma forma ou de outra, teriam discorrido sobre uma "'noção de estrutura' na mente da pessoa" (CHOMSKY, 1997: 05)1. Dessa forma, Chomsky irá promover uma retórica de continuidade da linguística moderna (teoria gerativo-transformacional, gramática explicativa) ao “corpo de ideias e conclusões referentes à natureza da linguagem” (Chomsky, 1972: 11) que o linguista norte-americano identifica no período retratado, junto a uma retórica de ruptura em relação à linguística que era feita até então (século XIX e a primeira metade do XX, mais especificamente, o descritivismo bloomfieldiano). Interpondo-se entre duas retóricas, uma de continuidade em relação a uma tradição de pesquisa, e outra de ruptura em relação à tradição cronologicamente anterior, Chomsky constrói sua argumentação no sentido de demonstrar que a Linguística praticada na modernidade (o Gerativismo) respalda-se (i) pela importância superior dos problemas levantados em relação ao Estruturalismo, que, segundo ele, metaforicamente "era o estudo da forma dos flocos de neve, porém não dos princípios que fazem as coisas serem flocos de neve." (CHOSMKY, 1997: 10), bem como (ii) pelo fato de retomar problemas levantados no período da Revolução Científica dos

séculos XVII e XVIII. A esse respeito, diz Lahud que é bastamente comum que autores da Ciência recuem no tempo histórico a fim de retomar problemas científicos do passado como forma de legitimar os atuais: "Essa obra [Cartesian Linguistics] apenas inscreve seu autor no vasto rol dos linguistas que, ao se voltarem para a história de sua disciplina, procederam à maneira dos (...) historiadores positivistas da ciência" (LAHUD, 2003: 76). Em uma tentativa de conhecer melhor o posicionamento de Noam Chomsky acerca da existência da Linguística Cartesiana, noção importante para entendermos a duplicidade de sua retórica, recorreremos ao estudo de Larry Laudan (2011), filósofo das ciências naturais, sobre o progresso científico. De acordo com o filósofo, "a ciência visa fundamentalmente à solução de problemas" (LAUDAN, 2011: 09), de modo que é possível comparar diferentes tradições de pesquisa e decidir qual é mais progressiva com base em critérios racionais, em que apresentará maior progresso a ciência que solucionar o maior número de problemas. Nesse sentido, o autor levanta questões que devem ser respondidas a fim de que o debate sobre critérios de escolhas entre teorias rivais avance, como "quais são os diferentes tipos de problemas" e "o que torna um mais importante que outro" (Op. cit.: 09). Chomsky, em sua versão da história da Linguística, parece responder a estas perguntas. Ao recuperar as ideias de autores do período da linguística dita cartesiana, Chomsky busca mostrar que os problemas por eles levantados emparelham-se a problemas recentes da Linguística Moderna ("a Gramática Racional e Filosófica preocupava-se com (...) a noção de estrutura da mente, sua origem, sua natureza, a forma como é usada para construir expressões livres" (CHOMSKY, 1997: 06)), deixando clara a necessidade de continuidade da Gramática Gerativa em relação a tal tradição de pesquisa: "Nela [Na história ideal], a Gramática Gerativa dos anos 40 e 50 deveria ter sido uma espécie de agrupamento, uma confluência das visões tradicionais" (Op. cit.: 07; grifo nosso). Por "visões tradicionais", o autor refere-se à Linguística Cartesiana. A retórica de continuidade pode ser observada em outras passagens, como quando Chomsky diz que "a Gramática Gerativa reviveu e remodelou ideias que se desenvolveram na revolução científica do século XVII" (Op. cit.: 04). Delimitamos, assim, um tipo de problema, que, segundo o linguista norte-americano, esteve presente na época da Revolução Científica e foi recuperado pela tradição gerativista de estudos da linguagem. Tal problemática é defendida como legítima, na medida em que se opõe ao tipo de problema caro aos linguistas do século XIX e início do XX, que será deslegitimado por Chomsky, na medida em que ele constrói uma retórica de ruptura em relação aos estudiosos da cronologia anterior (estruturalistas). A Linguística [estruturalista] investigava um corpus de textos reais que eram analisados por partes e suas distribuições, concentrando-se em coisas observáveis. Isso era, supostamente, bastante lógico e científico, o que é

muito curioso, já que as ciências não fazem nada disso, e na verdade, talvez não façam isso desde a Astronomia Babilônica. O que as ciências estudam são os mecanismos interiores, as estruturas ocultas, que explicam alguns dos fenômenos observados. Mas os fenômenos observados em si não tem interesse. A razão pela qual as pessoas fazem experimentos, e há fenômenos observáveis suficientes no mundo para que pudéssemos descrevê-los eternamente, é porque os fenômenos observáveis são na sua maioria inúteis, nao dizem nada. (CHOMSKY, 1997: 09; grifo nosso)

No trecho citado, Chomsky problematiza a metodologia de trabalho da linguística estruturalista, evidenciando a sua não cientificidade, deslegitimando-a. Ao tornar desimportante o problema da tradição estruturalista, Chomsky reitera sua retórica de ruptura, evidenciando qual deve ser o verdadeiro modus operandi da Linguística Moderna: "Se você quiser obter respostas específicas para questões teóricas específicas, isso implica em que você deve inventar os fenômenos que tentará explicar." (CHOMSKY, 1997: 09). Nos termos de Laudan, podemos dizer que Noam Chomsky considera a tradição de pesquisa gerativista como mais progressiva, racional, em relação à tradição estruturalista, na medida em que é mais efetiva na solução de problemas, já que lida, verdadeiramente, com problemas dignos de cientificidade: "Por muitos milhares de anos, as ciências não procuraram o caminho que foi considerado como científico e tomado como modelo (...) pelo estruturalismo" (CHOMSKY, 1997: 09-10). Além disso, Chomsky descaracteriza o tema de estudos da tradição anterior, dizendo que "o que antes era o tema agora são apenas os dados" (Op. cit.: 10; grifo nosso). Assim, o "modo Chomsky" de fazer historiografia parece ter semelhanças com as concepções de Laudan, na medida em que este tem como objetivo "explicar como as teorias científicas são (ou deveriam ser) avaliadas" (LAUDAN, 2011: 178; grifo nosso). Ora, Chomsky deixa bem claro que a abordagem mais interessante da história da Linguística é, para ele, aquela em que se indaga "como as coisas deveriam ter ocorrido num mundo mais racional" (CHOMSKY, 1997: 01), o que vai ao encontro do pensamento de Laudan, que aponta a racionalidade como fator essencial do progresso científico. Também, Chomsky evidentemente compara diferentes tradições de pesquisa, o que é desejável no modelo de Laudan, em que a comparação de teorias visa a um "desempate": qual delas é mais racional, ou seja, soluciona um maior número de problemas? É possível, inclusive, caracterizar Chomsky como parte do que Laudan chama de "pensadores gradualistas", uma vez que "eles (...) ressaltam que muitas inovações conceituais aparentemente radicais muitas vezes são uma sutil justaposição ou um realinhamento de elementos tradicionais" (LAUDAN, 2011: 195). O importante aqui não é atribuir uma categoria ao linguista norte-americano, mas mostrar que é justamente nessa direção que ele parece argumentar no Cartesian Linguistics, ao justificar a pesquisa gerativista.

Estabelecemos, assim, qual é a defesa que Noam Chomsky faz de uma Linguística Cartesiana, mostrando sua importância na delimitação de duas retóricas, uma de ruptura em relação à Linguística Estruturalista do período da cronologia anterior ao Gerativismo, e outra de continuidade em relação ao pensamento dito cartesiano presente nos séculos XVII, XVIII e início do XIX. Retomando o conjunto de críticas sistematizadas por Laudan (2003), parece que o foco delas é no próprio termo ("Linguística Cartesiana") utilizado por Chomsky. A discordância incide sobre a nomenclatura designada por ele ao período em que as ideias que percorre são verificadas. Dessa forma, Chomsky admite que a expressão não é a mais adequada, inclusive concorda com as críticas que lhe foram direcionadas. Entretanto, diz estar interessado nas ideias correspondentes aos filósofos, cientistas e até românticos que elencou em sua versão da História: "se você observar as ideias, encontrará uma continuidade relevante" (CHOMSKY, 1997: 02; grifo nosso). Assumindo que "1647 poderia ser considerado como a origem da Linguística Moderna" (Op. cit.: 14), em que a primeira gramática propondo explicações por princípios foi publicada, Chomsky identifica um período de vácuo na História da Linguística (século XIX e início do XX), a ser recuperado pela emergência da gramática gerativa, responsável por retomar o fio científico perdido no século XIX. Assim, parece evidente que a História da Linguística não é contínua, nem cumulativa, visto que pode haver longos períodos no tempo histórico de suspensão de uma determinada tradição de pensamento, cuja retomada não se dá via continuidade a partir "do ponto em que se parou", pois mudam-se as condições tecnológicas, culturais, intelectuais e sociais do mundo. Ou seja, não se retoma toda uma tradição de pensamento após mais de um século sem reorientar, modificar o que era feito, mesmo que seja com fins de adaptação à contemporaneidade. Dessa forma, mesmo que Chomsky afirme uma retórica de continuidade em relação à Linguística Cartesiana do período passado, isso não quer dizer que a Linguística Gerativa de hoje seja uma mera continuação direta do que era feito. A ideia de acúmulo também é complicada, visto que muito da problemática do passado teve de ser repensada, reformulada, o que indica que não houve um simples acréscimo às ideias anteriores. Nota 1 O texto desta referência foi consultado em suporte online, em que não havia numeração de páginas. A numeração presente nas "Referências" refere-se ao volume impresso do periódico. A fim de facilitar possíveis buscas das citações, propus uma paginação de 01 a 18 do texto impresso.

Referências Chomsky, Noam. 1997. Conhecimento da História e construção teórica na linguística moderna. D.E.L.T.A 13: 129-152.

__________. 1972 [1966]. O Aspecto Criador do Uso da Linguagem. In Linguística Cartesiana: um capítulo da história do pensamento racionalista. Petrópolis: Vozes, 13-41. Lahud. 2003. Chomsky Historiador. In: ALBANO, E. et al. (orgs.). Saudades da língua: a Linguística e os 25 anos do IEL da Unicamp. Campinas: Mercado de Letras. Laudan, Larry. 2011. O progresso e seus problemas. Rumo a uma teoria do crescimento científico. São Paulo: Editora UNESP, 3-13; 171-213.  

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