A LINHA DE FUGA DE KAFKA: SUBVERSÃO DENTRO DA LÍNGUA POR UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA

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A LINHA DE FUGA DE KAFKA: SUBVERSÃO DENTRO DA LÍNGUA POR UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA

Aline Cristiane Nardi

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RESUMO Este trabalho se propõe a apresentar a noção de linha de fuga dentro do conceito de literatura menor criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari com vistas a compreender, ainda que não se aprofunde, a literatura de Fraz Kafka como máquina política dentro da sociedade, na medida em que engendra práticas sociais que, antes de serem simples engajamentos, são a concepção da língua de um povo que falta, cujo discurso jamais poderia ser ouvido de outro modo. Palavras-chave: literatura menor, linha de fuga, Franz Kafka, Deleuze/Guattari. Vários estudos, de filosofia, literatura e psicanálise, se lançaram a estudar a obra de Franz Kafka com objetivos variados e métodos distintos, porém a maioria, pode-se conjecturar, assemelham-se pela busca de significados, interpretações e significantes. Gilles Deleuze e Félix Guattari foram numa espécie de via alternativa. Em vez de se valer da filosofia para empreender uma análise de Kafka, se lançaram em uma jornada tão experimental quanto a própria obra kafkaniana, a qual não é outra coisa que isso mesmo, um experimento. A análise, presente no livro Kafka: por uma literatura menor, a qual Deleuze e Guattari se propõem a empreender, é uma experiência muito pessoal e minuciosa, em que ambos filósofos pegam a máquina do texto, a desmontam para descobrir as peças que a compõem, reencaixam-nas e as testam com objetivo de observar seu *

Acadêmica do 2º período do curso de licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual de Roraima. Email: [email protected]

funcionamento, percorrem os circuitos para verificar conexões e, o mais importante para nosso pequeno artigo, vasculham as linhas que constroem para fazer fugir a realidade, a possível, que só existe no texto e nunca fora dele. Pode-se, atesta Deleuze e Guattari, entrar pela obra de Kafka por quaisquer das múltiplas entradas – e saídas – possíveis, ainda que também se possa considerar laterais, becos e adjacências permitidas. Eis o desafio da empreitada, ser tão experimental quanto a própria obra. O que interessa aos filósofos não é interpretar ou buscar significados, mas surpreender o devir em seu imediato “delito”, o de existir e permitir um “Fora”, um outro, outras múltiplas intensidades que somente se tornam possíveis no texto literário, mas mais que isto, na subversão que o escritor corajosamente decide empreender na língua maior com objetivo de extrair uma língua menor. É importante compreender, neste ínterim, o que Deleuze e Guattari querem dizer com “literatura menor” ou “língua menor” para que nos detenhamos em um de seus aspectos primordiais, a linha de fuga. Segundo o Vocabulário de Deleuze, de François Zourabichvili, não existe um termo denominado literatura menor, mas uma definição de linha de fuga que também significa maior e menor, qualificando desta maneira a noção de literatura que Deleuze e Guattari identificam em Kafka: " A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem do que se trata. Evidentemente, eles fogem como todo mundo, mas acham que fugir é sair do mundo, mística ou arte, ou então que é algo covarde, porque se escapa aos compromissos e às responsabilidades. Fugir não é absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia." (DELEUZE, 1997, p.47, apud ZOURABICHVILLI, 2004, p. 29).

Desse modo, também se faz necessária a definição, pelo mesmo vocabulário, de desterritorialização. Na obra Mil Platôs (Deleuze e Guattari, 1995-1997, 5 vol.), Zourabichvilli cita, a explicação é simples: desterritorialização é o movimento pelo qual 'se' deixa o território. No Anti-Édipo o conceito é sinônimo de decodificação. O que se compreende de ambas as definições é que, na medida que uma desterritorialização se instala há uma perda identitária, uma fuga, um entre a territorialidade e a reterritorialização, dois outros elementos do mesmo conceito. É

neste momento que se inicia a fuga, que não é outra coisa que uma linha alternativa num sistema formal, no caso da literatura de Kafka, uma fuga da própria língua. No artigo Partir, evadir-se, traçar uma linha, Souza Dias afirma que a literatura, para Deleuze, se inicia na criação de vida, não em dar forma ao vivido, mas àquilo que poderia ser vivido e não o pode de outra maneira. (p. 278). É justamente essa partida, evasão, traço de linha de fuga o objetivo primeiro da literatura, o qual nunca foi e nunca será um simples relato mimético da realidade cotidiana. O escritor medíocre concebe essas narrativas igualmente medíocres, cuja única aposta se dá no entretenimento do leitor. O verdadeiro escritor escreve para ser outra coisa que não escritor, algo que passa justamente pela literatura, um vidente, tal como Rimbaud afirmou ser seu verdadeiro ofício (Deleuze, 1997, apud SCHOLLHAMMER, 2001). No capítulo A literatura e a vida, contido na obra Crítica e clínica (1997), Deleuze defende que a literatura é um devir, não é forma de expressão de matéria vivida, antes se encontra no informe ou no inacabamento (p.11). Este devir não é imitação ou imaginação, é zona de vizinhança, uma realidade alternativa que não existe fora do livro. E nunca existirá pois fala de uma realidade possível, não inventada, mas que existe na mente do escritor, que é essencialmente não-literária, mas pintura e música, sem poder ser vista ou ouvida, cujo único objetivo é fazer fugir as limitações da vida. Visões, afectos, perceptos literários são todos criados com a linguagem, são seu material exclusivo, segundo Sousa Dias (2007), mas não acontecem na linguagem, são seu exterior. É especificamente deste exterior que se ocupa toda literatura menor. Ela, que resulta de uma perversão de uma língua maior, cua finalidade é tão somente dar matérias de expressão a um povo ainda inexistente, mas não menos potente enquanto tal, pois existe na mente do autor e é aí que reside todo o seu poder, por não ser o povo escolhido ou adequado, é antes o povo do porvir, bastardo, nômade, desidentificado, sem destino ou localização geográfica. Essa desidentificação é um elemento importante: ela é concebida na medida em que o autor que a cria perde sua autoridade enquanto tal para se tornar anônimo, tanto quanto o povo menor o é. Essa via de mão dupla é uma troca de desidentidades, em que a primeira e segunda pessoa do singular se dissolvem para

dar lugar a uma terceira: não mais o homem, a mulher ou o animal, mas um homem, uma mulher e um animal, cujas individualidades são ainda mais acentuadas pela impessoalidade da indefinição que qualquer outra coisa. (DELEUZE, 1997). Nesse contexto pode-se concluir que uma literatura nômade, estrangeira, é a literatura por excelência, pois fala de um povo igualmente nômade que não fala, mas grita, geme, assobia, produz um bloco sonoro assignificante, cuja potência se dá na sua informidade, em seu inacabamento, num devir eterno. Assim, em Kafka, autor que sabe se dissolver para fazer crescer o seu povo desterritorializado – enquanto ele próprio se desterritorializa – produz uma máquina de texto, cuja estrutura é não ter estrutura, mas uma multiplicidade orgânica de rizomas que se interconectam levando, trazendo, expulsando a minoridade. Fazer a língua gemer é pura experimentação, é uma blasfêmia tal com a língua majoritária de um povo também maior que nunca poderia notar este povo menor em seu meio. Porque o menor inexiste, ele apenas é na literatura. No paralelo com a vida ele seria tão nômade quanto os reais indivíduos nômades o são: aquele que é invisível, que é diferente, supõe-se sua existência – ou não – mas ela só é evidenciada com a literatura experimental de autores igualmente experimentais. Em Kafka, Deleuze e Guattari apontam duas formas fundamentais da máquina: forma de conteúdo “cabeça inclinada”, forma de expressão “retrato-foto”. Elas, apesar de independentes se interconectam e se relacionam. Representam o bloqueio funcional do desejo e estão em toda parte. Por exemplo, o retrato do guardião no Castelo que evocava o campanário natal, a lembrança de infância como desejo submetido ao submissor. Essa lembrança, após, não age mais assim, se torna bloco de infância na medida em que o desejo se ergue. Para demonstrar tal situação surge outra forma de conteúdo, “cabeça erguida”, e outra forma de expressão, “som musical”. Por exemplo, a irmã de Gregor, na Metamorfose, que emana uma música não se sabe de onde e que faz o coleóptero se erguer e quase querer reivindicar algo que já foi seu, mas que agora se perde. É em seu deviranimal, sua desidentificação humana, que a personagem se ergue, se desenfia e se abre a novas conexões, ainda que resulte o fim de sua vida. Mas o que importa é o bloco sonoro, disforme, inacabado, gemido, grito, assobio, sussurro, assignificante, mas que evidencia a cabeça se erguendo.

Desta forma, é possível compreender que a cabeça que se ergue não tem valor em si mesma nem como algo que desbloqueia um desejo, antes seu valor se encontra em sua substância deformável carreada pela expressão sonora (DELEUZE, GUATTARI, 1977). Levantar a cabeça não tem a ver com liberdade, oposição à submissão, trata apenas de uma linha de fuga, uma saída, à direita, à esquerda, onde quer que seja, a menos significante possível. Logo, deduz Deleuze e Guattari, identifica-se a máquina política de Kafka formada por conteúdos e expressões formalizados em diferentes graus e matérias não formadas, pelas quais se entra e se sai e se atinge todos os estados possíveis. Um escritor não é um homem escritor, é um homem político, e é um homem máquina, e é um homem experimental, que devém animal, molécula e inumano (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p.12). Finalmente, o que se nota com tamanha força na análise experimental da igualmente experimental obra de Kafka, é também uma paixão comovente que levou ambos filósofos a se embrenharem no rizoma de Kafka e perseguirem seus devires com obsessão. Tal empreendimento só seria possível se feito desta maneira, sendo ele mesmo um devir-outro que não a própria análise literária, uma experimentação afinal. É sabido que Deleuze, bem como Guattari, são pensadores do devir, do porvir, da experimentação e tudo quanto botam em sua “máquina criadora” (de conceitos) se torna em novo ponto de conexão do rizoma, com novas possibilidades, multiplicidades e interstícios por onde se engendram e conectam as intensidades. Numa sociedade múltipla, nômade, inacabada, bem como numa arte igualmente experimental, o pensamento filosófico não poderia ser de outra maneira.

REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Conteúdo e Expressão. In: Kafka: Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1977. DIAS, Sousa. “Partir, evadir-se, traçar uma linha”: Deleuze e a literatura. Educação, vol. XXX, núm. 62, maio-agosto, 2007, pp. 277-285, Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. SCHOLLHAMMER, Karl Erick. As práticas de uma língua menor: reflexões sobre um tema de Deleuze e Guattari. Revista Ipotesi de Estudos Literários: Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora ,v. 5, n. 2, p. 59 a 70, 2001. Disponível em: http://www.ufjf.br/revistaipotesi/edicoes-anteriores/volume-5-numero-2/. Acesso em 04 jun. 14. ZOURABICHVILI, François. Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Centro Interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação da Unicamp, 2004.

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