A Literatura como forma de Alucinação

June 30, 2017 | Autor: T. Clariano | Categoria: Aesthetics, Literature, Reading, Imagination, Hallucinations, Psychadelics
Share Embed


Descrição do Produto

LÍNGUAS, LITERATURAS E CULTURAS  LITERATURA ESPANHOLA E ARTES A LITERATURA COMO FORMA DE ALUCINAÇÃO D. QUIXOTE, LAS VEGAS E OUTRA HISTÓRIIA Tiago Filipe Clariano Alonso Quijano foi um grande leitor. Tão grande que  transferiu incautamente à vida as qualidades fantasmagóricas da literatura. Entre mecanismo literário e tentativa de ajuizamento quanto ao consumo excessivo de literatura, este será o grande enigma, o momento silencioso entrelinear extraível da obra.  A literatura parece a causa da colisão sintomática entre identidade e alteridade narrativas: Alonso Quijano deixa de ver um mundo a três dimensões para nele contar com uma quarta dimensão poética. De base semiótica, as palavras fazem brotar, quais fogos­de­artifício e constelações, personagens, caminhos, obras de arte, ideologias  e crenças que invadem a mente do leitor com espectros tingidos pela tinta mental do seu autor. A leitura confronta o leitor com dois processos estéticos simultâneos: imaginação e   alucinação.   Os   signos   literários   são   potências   alucinogénicas,   neles   revemos   o potencial   venenoso   (por   pressão   cultural   contra   conceitos   censuráveis   como   o   de alucinação)   da   escrita   do  pharmakon  dúplice   de   Platão   em  Fedro:   entre   remédio   e veneno, Platão vê no material escrito um veneno para a memória, e que Aristóteles reitera, com o conceito de  katharsis  para terapêutico, que Marcel Proust sublinha em Sur la lecture. 

A invasão cultural que a literatura proporciona manifesta­se como experiência de alucinação. A necessidade do sonho que “comanda a vida” e acompanha a nossa espécie   desde   momentos   primevais   e   a   necessidade   do   sentir   da   alteridade   para constituir  uma   identidade  definitivamente  por  definir  são  saciadas   pela   literatura.   O texto (em especial, o literário) é um catalisador, um psicotrópico verbal que ofere ao leitor experiências que seguem um percurso semiótico do textual, ao imagético e ao ideal. Este texto sustém um efeito sobre o seu leitor, altera a sua mundividência (dele decorre   sempre   um   transtorno   nem   que   catártico)   quase   equiparável   aos   inúmeros depoimentos de consumidores de LSDs que viram a sua vida alterada após a primeira experiência.  Oliver   Sacks,   neurologista,   que   estudou   aprofundadamente   o   efeito   dos psicotrópicos na mente estabelece, através do conceito de “intimação da imortalidade” de William Wordsworth, uma analogia entre o psicotrópico e as artes, cito: “Many of us find   Wordsworthian   'intimations   of   immortality'   in   nature,   art,   creative   thinking,   or religion (…) But drugs offer a shortcut, they promise transcendence on demand” (2012: 40). De certo que inclui a literatura no conceito geral de “artes”, o mesmo artigo está contaminado de referências a literatura de alucinação como The Doors of Perception de Aldous Huxley ou Les Paradis Artificiels de Charles Baudelaire.  Em D. Quixote, foi a literatura cavaleiresca que metamorfoseou Alonso Quijano em D. Quixote, perdendo o contacto sóbrio com a realidade­real dos mortais, passando a viver uma vida controlada pelo código da narrativa cavaleiresca. A literatura é apontada como causa primeira dos transtornos (que só em última instância se corrigem). Mas a literatura não foi para Alonso Quijano uma actividade puramente cognoscível, por outro lado, foi sempre puramente estética, na sua forma etimológica do sentir: foram imagens literárias que infectaram a mundividência do protagonista que devém uma personagem cavaleiresca. A experiência do real que D. Quixote passa a sentir é uma experiência alucinogénica.   Realidade   e   ficção   têm   os   seus   limites   distorcidos   dentro   da   própria ficção.  As  saídas   óbvias   e brutais  são  sempre  ignoradas,  desde  a incineração  quase inquisitorial dos livros no capítulo VI da primeira parte,  às constantes chamadas de atenção   de   Sancho   Pança   ao   longo   das   aventuras,   não   é   que   a   noção   do   real   seja 2

ignorada, simplesmente não é tão apelativa como o sonho­literário posto em vida, só no momento terminal pode Alonso Quijano voltar a si, quando já nem a ficção basta. Os objectivos deste ensaio prendem­se com a conceptualização de termos como imaginação e alucinação à luz da fruição estética da literatura. O meu objectivo é o de demonstrar como a experiência literária se afasta do canónico pensar da imaginação para   se   aproximar   do   sentir   da   alucinação.   Samuel   Taylor   Coleridge   refere   a “suspension   of   disbelief”   na   sua  Biographia   Literaria,   mecanismo   de   suspender   a descrença, a incredulidade (como é indicial) naquilo que é lido, e que indubitavelmete é o que ocorre com Alonso Quijano de tal forma que ele próprio requer um novo nome, tal é o extremo desta experiência. Também em  A História Interminável  de Michael Ende, Bastian se apercebe, por outros motivos, porém, de que deve deixar a realidade para entrar no próprio livro e salvar as personagens por quem respirava. E mesmo Jean­ Paul   Sartre   em   “François   Mauriac   e   a   Liberdade”   afirma:   “introduzo­me   n[a personagem] e e eis que ele espera com a minha expectativa, tem medo de si mesmo em mim; vive” (1968: 33).  A   literatura   pode   guiar   o   leitor   ao   abismo   e   fazê­lo   sentir   a   queda   a   uma distância segura o suficiente para dizer “eu passei por isto”, como ocorre em “A descent into the Maelstrom” de Edgar Allan Poe. D. Quixote e Bastian cristalizam a experiência literária.   Bastian   é   um   leitor   tão   apaixonado   que   mergulha   no   universo   literário, encontrando   um   livro   e   adentrando­se   nele.   D.   Quixote,   por   outro   lado,   tem   uma sensibilidade tão exaltada que deixa o seu universo mergulhar no literário.  As fronteiras da ficção Nos seus primórdios, o pensamento da poética veio sempre acompanhado pelo pensamento da sua ética. Uma experiência de fruição de tamanho potencial teria de ter os   seus   limites   –   contemporaneamente,   a   cada   desenvolvimento   no   seu   estudo apercebemo­nos que limites não são de forma alguma tropos na literatura. A literatura é um comprimido de espelhismos que, el último caso, poderia ser dado como desvario ou alucinação. Disso era o que se cria ciente Platão quando, no livro X da República recusa 3

a entrada dos poetas na República por ele idealizada. Era o seu manuseio de uma arte da mentira, de uma arte que sobre­codifica o código real e dele se afasta em três passos (remeta­se aqui à semiótica peirciana) que fizeram crer Platão de que a imitação geraria outras imitações, ou que fosse imitada extra­textualmente pela sua crença 1. Acreditar num registo literário­poético seria viver à margem da margem da realidade, num código que   codifica   de   outro   modo   o   código   da   vida   e   da   actualidade.   Aristóteles   vem posteriormente reabilitar a posição poética através do conceito de mimesis e da aliança que forma entre literatura e filosofia, ambas da ordem da conjectura e da possibilidade, instituindo a literatura como um estar­ao­lado e não como estar­por semiótico.  Dom   Quixote  é   paradigma   dos   receios   platónicos   quanto   à   crença   literária. Verdade e mentira são distorcidas no universo pós­leitura de Dom Quixote, de tal modo que a sua vida é recodificada pela dimensão poética. A sanidade de Dom Quixote é questionada   pela   literatura   que   a   causou.   A   alteração   do   significante   (de   Alonso   a Quixote)   alinha­se   com   um   transtorno   literário.   Uma   catarse   hiperbolizada,   um alinhamento   extremo   de   sensações   entre   leitor   e   lido   que   causou   a   mudança   de comportamentos   e   o   transformou   num   Dom   Quixote   que   ecoa   anacronicamente cavalaria. “La razón de la sinrazón que a mi razón se hace” (Cervantes, 1994: 34) é motto das adaptações inter­artísticas e põe em abismo a ética literária platónica e o seu resultado: Dom Quixote. A “sinrazón” será a ficção e a “razón” a confiança no universo que apreendemos fenomenologicamente despojado do grau literário ou poético.  Uma infecção literária na mundividência de uma personagem só pode advir da leitura. O impacto de  Dom Quixote  pode referir­se à contenção do potencial do livro condensado no transtorno da personagem. Ávido e compulsivo, rapidamente os seus companheiros e empregados fizeram por aniquilar a causa, acreditando assim remover os síntomas. Assim, procede­se a uma queima que ecoa as queimas inquisitoriais dos livros   de   forma   a   exorcizar   os   males   que   assolavam   Dom   Quixote.   O   episódio   é

1 ­ Terá sido deste pensamento que Paul Ricoeur partiu para o seu pensamento do símbolo? O símbolo como junção do bios e do logos, da passagem do discurso à vida pela vivência do discurso? Sobre esta questão leia­se o sub­capítulo “O momento não­semântico do símbolo” em  Teoria da Interpretação.  4

reconhecido,   acima   de   tudo   pelo   potencial   como   aula   de   literatura   cavaleiresca,   de crítica, comentário e assunção2. (…) no hay qué perdonar a ninguno, porque todos han sido los danadores; mejor será arrojarlos por las ventanas al pátio, y hacer un rimero dellos, y pegarles fuego; y si no, llevarlos al corral, y allí se hará la hoguera, y no ofenderá el humo. (idem: 69).  

O decoro do capítulo é feito de ecos inquisitoriais e censórios das queimas de livros indexados. Fosse por Platão e iam todos. Contudo, Jorge Luís Borges, numa das suas  Outras Inquisições  a respeito de Nathaniel Hawthorne cria um jogo metafictício com a própria ideia de queimar livros, criando toda uma história e ciclicidade das ideias literárias, diz ele:  Com efeito, se o mundo  é o sonho de Alguém, se houver Alguém que agora está a sonhar­nos e que sonha a história do universo, (…) o incêndio geral das bibliotecas, não importa muito mais que a destruição dos móveis de um sonho. A mente que uma vez os sonhou voltará a sonhá­los; enquanto a mente continuar a sonhar, nada será perdido. (Borges, 1989: 54­55)

A imaginação que coloca um sujeito único a sonhar um mundo de todos pode ser posta em analogia com a voz que narra  Dom Quixote  (e mesmo com a demiurgia judaico­ cristã e as teorias do solilóquio ontológico), e os livros que foram queimados acabariam por   ser   recuperados3  numa   ciclicidade   lavoisieriana   onde   “nada   se   perde   e   tudo   se transforma”. De facto, a queima não purgou os espíritos literários incrustrados na mente de Dom Quixote, tanto que este se aventura numa segunda saída, onde conhece o seu fiel pajem, Sancho Pança. É   na   segunda   saída   de   Dom   Quixote   que   ocorre   o   talvez   mais   conhecido episódio associado à obra: “[el] buen suceso que el valeroso don Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento, con otros sucesos 2 ­ António Mega Ferreira escreve a este respeito: “este tal capítulo VI convém muito ser retido (…) porque é «crítica literária», e porque na economia narrativa do livro de Cervantes é ele que primeiro surge  a indicar  uma  direção  de  leitura não  menos  apaixonante  que  as  interpretações  romântico­ espiritualistas de Unamuno [que igualmente escreveu sobre este capítulo], inteiramente legítimas, aliás” (2014: 45) 3 ­ E são recuperados, nem que seja pelo uso do monte de livros como cenário na ópera de Christobal Halffter em 2000. O amontoado deorganizado de livros parece­me análogo ao que é feito para os queimar no original de Cervantes, apesar de não servir esse fim na ópera.  5

dignos   de   felice   recordación”   (Cervantes,   1994:   88).   O   episódios   dos   moinhos   é   o grande momento de alucinação quixotesta. Neste capítulo, o nosso protagonista avista moinhos ao longe e descreve­os como gigantes, considerando que o que se vai passar seguidamente é um episódio que marcará para sempre a história e lhes trará renome e glória. O idealismo marcado pelo discurso cavaleiresco de Quixote é retorquido pelo materialismo realista de Sancho Pança que o adverte “mire vuestra merced (…) que aquellos que alli se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas” (idem, 89).  Há uma discrepância causada pelos modos de discurso idealista e realista aliados às personagens e às suas mundividências. Esta antítese causa­nos a ideia de alucinação: onde Quixote descreve gigantes, Sancho vê moinhos, o que é descrito pelo narrador são moinhos, mas Quixote continua a descrever gigantes. Este é o momento de distorção que emblematiza figurativamente a história de  Dom Quixote. Não temos, no entanto, certezas   de   que   aquilo   que   Quixote   via   seriam   mesmo   gigantes,   ou   se   apenas   os descreve como tal: “ves allí, amigo Sancho Panza, donde se descubren treinta o pocos más, desaforados gigantes” (idem). Há uma passagem directa do pensamento poético à vivência do mesmo, e Sancho adverte Dom Quixote que aquilo que ele vê como braços são, na verdade, as pás do moinho, mas com pouca sorte.  Do   nosso   ponto   de   vista,   Quixote   está   louco.   Do   ponto   de   vista   da   ética platónica,   a   literatura   é   de   condenar   por   isto,   estão   a   ser   trazidos   para   a   vida   os apanágios da literatura. A visão de gigantes onde existem moinhos atesta o viver pelo código cavaleiresco determinado pelos romances de cavalaria onde, por exaltação da narrativa, se daria um combate de forças inequacionáveis e onde o cavaleiro ganha, e também   um   pensamento   muito   primordial   sentido   pela   humanidade.   José   Ortega   e Gasset, em Meditaciónes del Quijote, questiona: se podemos censurar Dom Quixote por confundir moinhos com gigantes, quem é que podemos censurar pela ideia de gigantes?: “Siempre se trataria de una cosa que no era gigante, pero que mirada desde su vertiente ideal tendía a hacerse gigante” (1914: 59). De facto, não existem gigantes4, mas a sua 4 ­ Não existem os gigantes mitológicos, desde os titãs gregos ao Golias bíblico, nem Golems nem  uma raça à qual pertença Rubeus Hagrid de J. K. Rowling, contudo, existem casos de gigantismo  6

concepção como monstro ou extrapolação do que é ordeiro no corpo humano, leva a que a ideia, enquanto medo, pese na consciência, como que uma palavra debaixo da língua. Psicanaliticamente, o gigante pode reunir­se com o arquétipo do medo do pai, cuja altura é associada pelas crianças à capacidade de dar ordens ou impôr; porém, em Dom Quixote,  os   gigantes   referem­se   a   moinhos   que,   por   alusão   da   forma   das   pás   se reuniram, no pensar poético de Dom Quixote, com a ideia de gigante.  Duma perspectiva interartística, é interessante pensar que esta alusão da forma que sugeriu a ideia de gigante ressurge como processo estilístico no surrealismo, e em específico   na   obra   de   Dalí   que   se   organiza   em   torno   deste   episódio,   “Visões   de Quixote”. A pintura é composta de anamorfoses, formas que em si mesmas contemplam outras, sugerem outras e são compostas de outras: um grande retrato de Dom Quixote tem os olhos compostos pelos rostos de Dom Quixote e de Sancho Pança a cavalo, formando o resto do rosto, os cabelos constituem moinhos e são também nuvens, e o corpo é feito de caras disformes. O que é mais disfuncional nesta obra é a identificação de Dom Quixote com o moinho, fazendo dos seus cabelos brotar as pás, identificando também   deste   modo,   Dom   Quixote   com   a   alusão   do   gigante,   acabando   por, semioticamente   criar   uma   ideia   de   “medo   do   si”,   identificação   que   me   parece propositada, tendo em conta que foi da sua mente, da sua leitura, que despoletaram os gigantes. Ecoa Camões: “Transforma­se o amador na cousa amada”.  Quixote vive o símbolo poético. Os livros que leu potenciaram a mudança de vida, a inveja que se torna sinónima de ambição posta em movimento: Dom Quixote torna­se numa personagem de ficção cavaleiresca, vê o seu mundo recobrir­se de textos como os Amadises e os ciclos arturiano e carolíngio, concretizados numa dimensão poética que só um grande leitor é capaz de experienciar. Há um indubitável transtorno, catártico ou não, pós­leitura, pós­experiência do trauma, que é o sentir da alteridade através da substituição da linha de raciocínios pela linha do texto. É a isso que se deve este episódio. É aqui que reside a alucinação em  Dom Quixote: na transformação do mundo e da sua fenomenologia, por uma que advém da experiência literária.  explorados por Ieda Tucherman no capítulo “Monstros, freaks e cyborgs – o outro do corpo e o  corpo do outro” em Breve história do corpo e de seus monstros.  7

As distorções da alucinação Por isso eu tomo ópio. É um remédio Sou um convalescente do Momento. Moro no rés­do­chão do pensamento E   ver   passar   a   Vida   faz­me   tédio.   (Álvaro   de Campos, “O Opiário”)

A alucinação, como o sonho, são em forma e conteúdo recorrentes tropos da literatura. A dimensão onírica ou mental, que transcende e descende da realidade ou se projecta nela através do funcionamento mental proporcionam narrativas e possibilidades imagéticas que extrapolam o realismo e se aliam ao poético na condição do possível. A alucinação recodifica sensoriamente o mundo sentido, e é muitas vezes causada por um meio químico. Mas também a literatura aplica uma nova codificação do mundo e tem o seu zigote no formato livresco.  Na sua censura à escrita no  Fedro, Platão descreve a plataforma textual como pharmakon na dupla acepção semântica de remédio e veneno. A escrita, como a pintura, abre   perguntas   sem   deixar   resposta,   concretiza­se   num   meio   estático,   iterável,   não requer a presença nem a explicação do seu autor e parece estar na iminência da causa da desvalorização da memória. O maior paradoxo aqui é o formato textual através do qual é apresentada esta crítica. Platão não pode criticar nem marcar a sua posição sem deixar estes   pensamentos   por   escrito,   de   forma   a   encontrar   gerações   vindouras.  Tal   como pharmakon,   o   termo   português   “droga”   tem   uma   dualidade   semântica   (talvez   em processo de arcaização), sendo que hoje se parece manter apenas o seu uso pejorativo. Droga   referia­se   a   compostos   da   indústria   farmacêutica   ou   estupefacientes psicotrópicos,   ambos   capazes   de   surtir   efeitos   químicos   sobre   o   funcionamento   do corpo.  A reunião destes conceitos surge tanto numa função pragmática – de registo ou cura   para   as   falhas   da   memória   –   e   noutra   estética   –   de   fruição,   como   podemos confirmar com as “intimações da imortalidade wordsworthianas” de que falava Oliver Sacks (op. Cit.), para quem as drogas são dotadas da possibilidade de fazer sentir algo 8

extero, estranho, altero ou mesmo transcendental no corpo e na mente. É do ponto de vista da fruição estética que me pretendo colocar para abordar e comparar este termo com ficção, alucinação e imaginação, sendo que todas elas são descritas como passíveis de fazer surtir efeitos nevrálgicos, hápticos e psicológicos.  A experiência do sentir do belo artístico ou natural, a experiência estética, é descrita por Gilles Deleuze como uma fusão das sensações e percepções (perceptos5) do objecto   apreendido   e   das   sensações   e   afecções   (afectos 6)   daquele   que   sente.   Da apreensão do objecto sobressaem percepções que afectam o interpretante, e ambos estes dados   colidem   num   plano   intermédio,   num   “plano   de  consistência”   ou   coexistência virtual   entre   objecto   e   interpretante,   um   plano   em   que   o   leitor   habita   a   obra   e   o espectador   o   filme,   e   o   reverso   em   simultâneo,   inundando­se   mutuamente.   Esta experiência   advém   de   algo   que   Theodor   Adorno   descreve   como   raro   e   equipara   à efemeridade e grandiosidade do fogo­de­artifício.  Em   “Isto”,   Fernando   Pessoa   parece   referir­se,   através   do   pronome demonstrativo, ao inefável que esta experiência delega: “Por isso escrevo em meio / Do que não está ao pé, / Livre do meu enleio, / Sério do que não é. / Sentir! Sinta quem lê!”, colocando­se do lado da produção e não do lado da recepção estética (também aquela catártica pela libertação). Parece reconhecer o meio­termo consistente entre sujeito e objecto, alucinogénico em que se organizam cosmologicamente afecções e percepções. Fernando Pessoa reconhece ainda um háptico nesta experiência, afirma­se “livre do meu enleio” (da condição de sujeito?, da própria corporeidade?), o corpo  é o verdadeiro sensor total do objecto estético, seja ele artístico, natural, ou químico­mental, em plena sinestesia.  5 ­ “É um conjunto de sensações e percepções que vai além daquele que a sente (…) Há um grande complexo de sensações, pois há sensações visuais, auditivas e quase gustativas. Alguma coisa entra na boca. Eles tentam dar a este complexo de sensações uma independência radical em relação àquele que as sentiu.” 6 ­ “ Para mim, os afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles. O afecto é isso. Será que a música não seria a grande   criadora   de   afectos?   Será   que   ela   não   nos   arrasta   para   potências   acima   de   nossa compreensão? É possível.” in Abecedário de Gilles Deleuze, org. Claire Parnet 9

Teresa   Cruz   recorre   a   Maurice   Merleau­Ponty   para   abordar   o   conceito fenomenológico de alucinação em “Da vida das imagens”:  [a   alucinação   é   uma]   produção   artificial   de   experiências   sensíveis   sem   efectivo conteúdo   sensorial   (…)   e   [pode]   aludir   a   todo   o   campo   da   percepção:   visual,   mas também   auditivo,  táctil,   olfactivo,   etc…   Diz   ainda   Merleay­Ponty   que   «o  corpo   do alucinado perdeu a sua inserção no sistema das aparências», «permanecendo capaz de evocar pelas suas próprias montagens uma pseudo­presença deste meio». (Cruz, 2003: 66­67).

Esta descrição não hesita em denominar de “campo da percepção” o campo afectado pela experiência alucinogénica, e  é também este que  é primeiramente afectado pela experiência estética, não fosse a etimologia aesthesis remeter para a própria sensação.  A meu ver, a experiência que aqui tenho vindo a descrever através de teóricos divide­se em três partes: um primeiro rapto em que o sujeito se vê emaranhado na teia do   objecto,   num   transe   mediúnico;   ao   qual   se   segue   uma   ruptura,   uma   espécie   de acordar do sonho, da experiência da sublimidade e, finalmente, um repto em que o sujeito, qual ressaca, procura tornar a sentir a experiência do belo7. Para   melhor   explicitar   a   minha   exposição   da   experiência   estética   processual rapto/ruptura/repto, recorro ao reconhecido livro da literatura de alucinação  Fear and Loathing in Las Vegas  de Hunter S. Thompson, que descreve uma viagem repleta do consumo de estupefacientes, levada a cabo empiricamente pelo seu autor, e codificada no  roman   à   clef.   Esta   novela   acabou   por   cunhar   um   estilo   jornalístico:   o   “Gonzo Journalism”8, onde a ficção se sobrepõe ao facto. Concebe­se, neste livro, uma ponte que desmorona por si mesma entre ficção e realidade. Seria impossível concretizar uma 7 ­ Acerca deste assunto, Theodor Adorno, em  Teoria Estética: “O belo natural é o vestígio do não­ idêntico nas coisas, sob o sortilégio da identidade universal. (…) O belo natural reparte a fraqueza de toda a promessa com a sua inextinguibilidade. Mesmo se as palavras não atingem a natureza e traem a sua linguagem em favor daqueles de que ela se distingue qualitativamente – nenhuma crítica da teleologia natural pode eludir o facto de que os países meridionais conhecem dias sem nuvens que existem como se esperassem ser percepcionados” (20008: 117­118). José Manuel Martins concorda que rasto teria sido uma melhor alternativa na tradução a vestígio, o rasto é indicial, permite uma sequência, um seguimento em torno da renovação da experiência estética. 8 ­ Devendo o seu nome à personagem que reflecte a personalidade o advogado, Dr. Gonzo (um autêntico avatar de Sancho Pança),  10

odisseia jornalística deste timbre sem ter por base a distorção dos limites entre factício e fictício (e por fictício refiro­me, acima de tudo, aos processos mentais delegados pelo consumo de drogas):  We   had   two   bags   of   grass,   seventy­five   pellets   of   mescaline,   five   sheets   of   high­ powered blotter acid, a salt shaker half full of cocaine, and a whole galaxy of multi­ colored uppers, downers, screamers, laughers and also a quart of tequila, a quart of rum, a case of Budweiser, a pint of raw ether and two dozen amyls. (Thompson, 1972: 1)

Cada elemento desta enumeração potencia uma experiência nevrálgica distinta do outro. Existem,   contudo,   contra­indicações   que   chegam   a   gerar   episódios   da   novela   em questão:   seria   óbvio   não   misturar  uppers  com  downers  pela   sustenção   de   efeitos opostos.   Cada   uma   destas   substâncias   tende   a   concretizar­se   num   sentir   háptico­ neurológico distinto das outras.  A cultura da droga ficou aliada aos Estados Unidos da América, não apenas graças a esta obra, mas também a muitas outras que a antecederam. Não é por acaso que em “O  Opiário”,  Álvaro de  Campos  afirma “Levo  o dia a  fumar, a  beber coisas, / Drogas americanas que entontecem” (1914), apesar do ópio ser associado ao oriente. Ainda nos dias de hoje se mantém uma cultura decadentista do consumo excessivo de drogas, em 2012, Lana Del Rey escreve “National Anthem”, parodiando o patriotismo norte­americano, polvilhando­o de críticas ao sonho duplo de construção e decadência: “Overdose and dying / on our drugs and our love / and our dreams and our rage / Blurring the lines between real and the fake”.  É cedo que se revelam as alucinações na obra: Raoul Duke, no episódio mais popular da obra, afirma ver morcegos rodear o descapotável em que se dirigem a Las Vegas e pede a Dr. Gonzo que tome o volante, apesar de nenhum estar em condições legais de condução. A viagem reveste­se da ideia de trip (viagem): uma viagem exterior em direcção e dentro de Las Vegas, e uma viagem interna potenciada pelos LSDs, e toda   a   colectânea   que   transportavam   na   bagageira.   Uma   descrição   de   uma   viagem dúplice   como   esta   é   o   ideal   simbólico   apresentado   por   Jean   Chevalier   e   Alain Gheerbrant   no  seu  Dicionário   dos   Símbolos:  a  viagem   é  “o   signo  e  símbolo   duma perpétua recusa de si mesmo (…) e seria preciso concluir que a única viagem válida é a

11

que o homem faz ao interior de si mesmo” (1994: 692).  Na viagem duplíce por que passam, o sonho americano é o meio (droga) e o objectivo (Las Vegas), um sonho químico auto­consumptivo que se critica a si mesmo. Uma “savage trip” é também uma dupla viagem cujo veículo não é unicamente um descapotável, mas também os LSDs, e a viagem faz­se emblematizar de si mesma. A alucinação ganha também um potencial simbólico quando, já em Las Vegas e sob o efeito de éter, o protagonista afirma ver répteis num bar cujo chão parece uma piscina de sangue:  Terrible things were  happening  all  around us. Right  next  to me a huge  reptile  was gnawing on a woman’s neck, the carpet was a bloodsoaked sponge – impossible to walk on it, no footing at all. ‘Order some golf shoes’, I whispered. ‘Otherwise we’ll never get out of this place alive’. (Thompson, 1972: 9)

Esta alucinação parece concretizar­se como uma crítica aos movimentos  dos media, “gnawing on a woman's neck” numa “bloodsoaked sponge – impossible to walk on it”. O   dispositivo   alucinogénico   pode   ganhar   um   cunho   de  anagnorisis,    nos   grandes clássicos literários por exemplo na visão do fantasma do pai de Hamlet de Shakespeare, porém,   a   crítica   tecida   em  Fear   and   Loathing   in   Las   Vegas  toma   também   uma proporção metaleptica, referindo­se a um quadro semiótico ulterior ao texto. É isto que Karl Ottesen defende em “Fear and Loathing: A Chemically Enhanced Picaresque”, onde a associação dos répteis que rastejam e sugam o sangue são signos alucinogénicos dos jornalistas. A crítica é feita aos movimentos dos media e à sua incisão na cultura da droga americana, cujos  headliners  se referem sempre ao consumo de drogas pesadas, como a explosão da heroína: In   this   scene   the   “press”   turns   into   a   bunch   of   blood­thirsty   reptiles   that   have   no problem walking through blood and muck. Journalists, perhaps, who would do anything to get their hands on a story. (Ottesen, 2008: 60)

A novela tem como subtítulo uma frase bastante simbólica por si: “A savage trip to   the   heart   of   the   American   Dream”,   sonho   americano   este   que   é   cultivado   em romances   como  The   Great   Gatsby  de   F.   Scott   Fitzgerald   (apesar   da   remissão   aos roaring   twenties),   onde   o   ideário   do   “self­made   man”   se   concretiza   na   figura   do protagonista, Jay Gatsby. Este ideário é desconstruído em  Fear and Loathing in Las 12

Vegas num “self un­made man”, onde dois jornalistas estão “locked into a serious drug­ collection, [whose] tendency is to push it as far as you can” (Thompson, 1972: 1). Na genealogia romanesca da psicadélia entram ainda clássicos como The Doors of Perception  de Aldous Huxley,  On the Road  de Jack Kerouac e  Naked Lunch  de William   Burroughs,   todos   eles   também  romans   à   clef  que   veiculam   o   espírito   do consumo da droga ao retratar eventos reais pelo meio de personagens­avatares dos seus autores.   Em   todos   eles   são   pintadas   paisagens   de   realidade   distorcida   através   do consumo de substâncias feito pelas suas personagens, e em todos se encontram tons distintos,   não   só   ao   nível   estilístico,   como   também   no   decoro   do   texto,   imerso   na referida experiência.  Em The Doors of Perception, a mescalina de peyote é utilizada para registar os pensamentos advindos dos seus efeitos, criando uma mundividência localizada entre o “puramente estético” e a “visão sacramental” (Huxley, 1954: 15), uma realização de que os objectos, quais alucinações, existem autotelicamente e não dependentes da função pragmática que um sujeito humano lhe pode conferir. Já em  On the Road, o aspecto mais relevante parece­me formal, concebendo uma prosa espontânea, similar ao stream of   consciousness  na   madalena   de   Marcel   Proust,   consequencializando   pensamentos numa viagem igualmente duplice. Em Naked Lunch, porém, o consumo é ainda menos canónico, fazendo­se através da “Black Meat”, equiparável à heroína, e que, em termos de narrativa, tende a distorcer noções de tempo e espaço, levando a saltos entre estas dimensões que deslinearizam e desnorteiam o enredo.  Note­se   ainda,   o   valor   catártico   do   consumo   de   psicoactivos:   são   poucos   os consumidores   de   LSDs   que   não   referem   uma   mudança   na   sua   mundividência,   uma abertura das suas próprias “portas da percepção”. Em Drugs of Hallucination, Sydney Cohen   descreve   a   experiência   do   LSD   como   a   de   trazer   de   volta   a   virgindade   da primeira   experiência.   Este   valor   de   renovação   da   experiênvia   torna   inegável   a   aura espiritual que uma experiência deste calibre tem. Em jeito comparativo, note­se o título e o mecanismo de entrada em ficção do segundo livro de Lewis Carroll sobre Alice: Through the Looking­Glass and what Alice found there, onde a ideia de atravessar o espelho traz consigo a ideia de deixar o próprio reflexo atravessar o corpo: um altero 13

que pertence à identidade, um outro que não  é nosso mas  nos  perpassa e nos  dá a conhecer o porquê da necessidade de um espelho ou reflexo. Aquilo que não temos mas nos compõe: do outro lado do espelho, Alice localiza­se atrás de nós9.  Tal como os psicotrópicos que anteriormente descrevi e os seus efeitos, também os livros têm tendências que traçam a fruição da sua leitura. Se do lado das drogas podemos chamar a isto de efeitos, na literatura devemos atribuir a culpa à genologia e ao próprio texto. Cada livro fornece também diferentes experiências de síntomas visuais e   hápticos.   Tal   como   cada   psicoativo   cria   a   sua   alucinação,   cada   livro   cria   a   sua imaginação, estabelecem as suas próprias regras de interpretação. Reportam­se ambos às   imagens   vividas   re­misturadas   com   as   da   experiência   do   catalisador   literário   ou psicotrópico.  Podemos  falar  de um  ut  pharmaca poesis?, Horácio, em  Arte  Poética reconhece uma semelhança entre a referencialidade e a recepção da literatura e das artes visuais, falando de um  ut pictura poesis  mas, do mesmo modo, esta semelhança co­ existe nas experiências estéticas mediúnicas dos psicotrópicos e dos livros.  A   alucinação   literária   difere,   tal   como   a   psicotrópica,   consoante   o   género literário consumido, um romance realista será muito mais rígido na sua representação mental,   do   que   um   poema   simbolista   que   dará   muito   mais   espaço   de   manobra   à imaginação   do   leitor.   No   seguinte   capítulo   abordo   a   representação   literária   de   uma recepção e imaginação literárias, sob o signo da imaginação.

9 ­ A respeito da função espelho, Ieda Tucherman, em Breve História do corpo e de seus monstros, cita Ethon Luiz de Sousa (Theatrum do Sentido): “E quando nos vemos no espelho, o que vemos reflectido é a imagem do Narciso que está em nós mas não do vampiro que nos habita: este sempre escapa, mas escapa como viajante nómada (…). O vampiro que somos torna possível a imagem do Narciso que vemos: mas o vampiro é o que não pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz a imagem do vampiro. Drácula contra Narciso. Drácula contra Édipo” (2012: 18­19) 14

As potências da imaginação O senso comum  diz­nos que as coisas da terra só existem um bocado, e que a verdadeira realidade só existe   em   sonhos.   (Charles   Baudelaire,  Paraísos Artificiais)

Quando   lemos   não   nos   apercebemos,   absorvidos   na   experiência,   de   que   é   a própria   linguagem   que   faz   brotar   imagens   e   sensações.   A   ficção   é   a   literatura   que melhor faz uso desta qualidade linguística, explica Maria Augusta Babo, reportando­se a Wolfgang Iser e ao seu L'act de lecture – théorie de l'effet esthétique: (…) como é que o texto produz essas imagens mentais e, por conseguinte, como é que o texto   (...)   envolve   e   arrasta   consigo   uma   elaboração   imaginária.   É   que   a   ficção   é constituída por aquilo a que [Wolfgang Iser] chama  aspectos esquemáticos  que nos conferem,   não   propriamente   imagens,   mas   as   condições   da   sua   construção.   Tais condições podem prefigurar a própria percepção. (Babo, 2011: 35)

Então o texto não tem em si a propriedade de ser animado, mas a de sugerir uma animação à recepção. A este recurso literário chama­se, desde a Antiguidade Clássica, de hipotipose, uma “descrição entusiástica de algo cuja presença é assumida de forma fantástica” conforme considera Carlos Ceia. A animosidade fictícia é composta deste uso entusiástico do discurso que cria ectoplasmas fantásticos, sugestões imagéticas e imaginárias (que são por si da ordem da fantasmagoria, também), recorrendo à memória do leitor e àquilo que a ficção entrega. Michael Ende, ao escrever A História Interminável dota­a de uma clarividência inigualável   da   ideia   de   experiência   estética   literária.   Dividindo­se   em   duas   cores,   a narração cria dois regimes de significação, um em que o protagonista vive e encontra um livro, a vermelho, e outro que descreve o mundo interior ao livro, a verde. O enredo principal é o facto do mundo de Fantasia, um repositório de todas as imaginações da humanidade, é corroído pelo Nada, a doença da imaginação que toma proporções físicas de   apagamento   do   mundo10,   à   medida   que   o   ser   humano   despreza   a   faculdade 10 ­ “Fica­se a modos que cego quando se olha para o local”; “Se alguém, por descuido, lá punha o pé, também o pé desaparecia (…) Ou qualquer outra parte do corpo que penetrasse na zona... Não dói, isso é verdade” (Ende, 1984: 20) 15

imaginativa   no   mundo   real.   À   medida   que   Bastian   lê,   vai­se   apercebendo   de   uma vivacidade   das   personagens   fictícias   diferente   daquelas   que   ocorre   noutros   livros, algumas delas até dotadas de discursos metalépticos. Um destes discursos metalépticos vem da boca de um lobisomem prestes a morrer, quer de fome, quer de cair no abismo do Nada: Perguntas­me o que vais ser? Mas o que és tu agora?  O que são afinal todas as criaturas de Fantasia? Ficções, quimeras do Reino da Poesia, personagens numa história sem fim! Tu consideras­te real? Está bem, és real aqui no teu universo. Mas, se atravessares o Nada, deixarás de existir.  Ficarás irreconhecível. Passarás a outro mundo, onde não terás qualquer semelhança com o que és. Vais levar a ilusão e a cegueira ao mundo dos homens. Tu serás capaz de adivinhar o que acontece aos habitantes da Cidade Fantasma que se precipitaram no nada? Passarão a ser ideias loucas das cabeças dos homens, ideias que farão com que eles tenham medo, que os levarão a cobiçar coisas que os fazem adoecer, ideias que os levarão ao desespero sem motivos que se vejam. (Ende, 1984: 110)

Gmork, o lobisomem, não se apercebe só da sua condição enquanto personagem, como também de monstro que vai flutuar recalcado na mente dos humanos que não o soltarem através   da   imaginação.   O   Nada,   enquanto   desvalorização   da   imaginação   na contemporaneidade, relembra a advertência de Ítalo Calvino no capítulo “Visibilidade” de  Seis   propostas   para   o  Novo   Milénio,  onde   teme   que  a   contaminação   da   cultura iconocrata   e   o   advento   do   cinema   constituam   uma   desvalorização   da   faculdade   da imaginação, qual Platão do século XX. Quando os esgares metalépticos chegam ao ponto de citar o próprio início do livro a meio do livro, empírico, a vermelho e, portanto, referente ao encontro de Bastian com o livro, descrevendo o alfarrabista e mesmo o sótão da escola onde Bastian se escondia a ler, Bastian apercebe­se que o livro está a tentar alcançar para fora de si e a pedir a sua participação. É neste momento que Bastian cristaliza a ideia de “suspension of disbelief” de que Samuel Taylor Coleridge falava em Biographia Litteraria:  In this idea originated the plan of the 'Lyrical Ballads'; in which it was agreed, that my endeavours   should   be   directed   to   persons   and   characters   supernatural,   or   at   least romantic, yet so as to transfer from our inward nature a human interest and a semblance

16

of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment, which constitutes poetic faith. (1817)

A experiência estética da literatura pede uma suspensão da incredulidade do mundo descrito   pela   obra.   A   “suspension   of   disbelief”   é   retomada   por   muitos   outros vocabulários,   Adriano   Duarte   Rodrigues   socorre­se   da   pragmática   em   “Ficção   e Realidade” (2003) para referir um acto perlocutório de acordo entre leitor e autor para que ambos acreditem naquilo que lêem e escrevem. Mas uma suspensão não requer um acordo mútuo, assola desde logo como a experiência estética em Deleuze, que é mais da ordem da percepção­reacção do que do acordo.  Note­se,   porém,   que   este   momento   apenas   cristaliza   a   própria   ideia   numa epítome, a suspensão da descrença já tinha começado há muito tempo, quando, por exemplo lê a cena da morte de Artax e chora, provando existir um alinhamento catártico entre as sensações descritas e as emoções sentidas: Atréju cerrou os lábios. Preferia calar­se. Saudou uma vez mais Artax, posto o que se afastou e partiu. Bastian soluçava. Era mais forte do que ele. Tinha os olhos marejados de lágrimas e não conseguia   continuar   a   ler.   Teve   de   tirar   o   lenço   do   bolso   para   se   assoar   antes   de prosseguir. 

(Ende, 1984: 46)

É quando Bastian entra no livro que ele se mostra de tal modo envolto na experiência do livro que  entra  num estado de  transe alucinogénico entre  o mundo real e o mundo proporcionado pelo livro. A imaginação possui uma liberdade de constrangimentos. Quando em estado puro pode assemelhar­se à alucinação, mas a concretização será sempre individual e intransmissível. São criadas geografias próprias de imaginação, quer pelo espectáculo total dos media, quer pela experiência individual de produtos culturais como a literatura e as artes. Ao propor­se a descrever estas geografias, Gonçalo M. Tavares fá­lo dotando a   sua   escrita   de   uma   materialidade   distinta   da   escrita   precedente   no   que   toca   à imaginação. Isto ocorre devido às suas relações com o corpo e o corpo movimenta­se num espaço físico partilhado que é o cenário utilizado por Gonçalo M. Tavares para fazer entender a noção de imaginação. 

17

(…)   a   imaginação   é   produtora   de   metros   quadrados   íntimos,   de   metros   quadrados privados. A imaginação individual produz metros quadrados onde o outro não consegue pousar os pés, metros quadrados subjectivos, propriedade subjectiva, individual: uma riqueza, esta sim, absolutamente privada. (Tavares, 2013: 403).

Esta privacidade em territórios tão vastos parece­me levar a um sentimento geral de solidão que foi colmatado com “intimações da imortalidade wordsworthianas” como a literatura, o cinema, a religião... O que me parece recorrente nestas intimações é o sentir de algo alheio, altero, uma outridade na intimidade mais privada. É por isso que, noutra descrição da imaginação, Gonçalo M. Tavares refere a mescalina:  a imaginação é um instrumento, uma coisa que age sobre as outras, altera­as como a mescalina, a imaginação muda a dimensão dos objectos. (Idem: 383)

A   diferença   entre   alucinação   e   imaginação   é   a   intervenção   de   um   elemento externo   na   criação   de   imagens   ou   sensações.   Tal   como   a   mescalina   tavariana,   a literatura age sobre as recordações, altera as suas dimensões e cria novas justaposições de pensamentos e reminiscências anteriores para tecer o seu mundo ficíticio.

18

Conclusões He who makes a beast out of himself gets rid of the pain of being a man. (Dr. Johnson)

Existe uma ansiedade pelo sentir da alteridade nas obras literárias e artísticas que referi e parece­me ser esse o ponto fulcral desta comparação, e também o da própria aporia comparatista: lado a lado, as obras tecem osmoses e diálogos, acrescentam­se umas às outras e transtornam­se: fazem­se sentir. Este sentir da alteridade manifesta­se pelos consumos feitos, quer da literatura, em D. Quixote e em A História Interminável, quer da droga, em Fear and Loathing in Las Vegas. Note­se também o inusitado que é a comparação destes “catalisadores”, como lhes chamei, mas que posso defender pela crítica clássica de Platão sob o signo duplice do  pharmakon, à escrita (ainda que o problema platónico era de índole mnésica).  A ficção e a imaginação em D. Quixote e em A História Interminável veiculam o sentir   do   outro.   Em   ambas,   existe   um   reconhecimento   da   função   fictícia   dos   seus actantes, mais óbvio em A História Interminável com a colocação de um livro dentro do livro, e mais latente na segunda metade de D. Quixote, quando as personagens já leram o livro que precede aquele em que vivem. Já em  Fear and Loathing in Las Vegas, a alucinação traz a sensação de novidade e outridade que nas outras obras surge pela literatura. Nesta obra não pode existir noção da condição de personagens por ser um roman à clef, em que personalidades reais dão lugar a personagens11. O que se concebe são representações dentro de representações, obras dentro de obras, um discurso que teleologicamente tem de resultar na metalepse e no reconhecimento do devir­ficção.  Tendo por tema as potências imaginais da alucinação e da imaginação, há que notar que estas surgem diferentemente do esperado. Em D. Quixote, a ficção transtorna a vida de Alonso Quijano, proporciona uma mudança de identidade e uma distorção da mundividência: a literatura levou­o a alucinar e estas alucinações servem a temática da distorção   entre   objectividade   e   subjectividade   na   obra,   diz   Jorge   Luís   Borges:   “Na realidade, todo  o romance   é um plano ideal;  Cervantes  compraz­se em  confundir o 11 ­ Epistemologicamente, isto coloca limitações quando tentamos distrinçar o que é real ou fictício, pois esta literatura surge de uma perspectiva jornalística e com uma escrita diarística. Há manchas de autobiografia que não se distinguem da ficção. 19

objectivo e o subjectivo, o mundo do leitor e o mundo do livro” (1998: 42). Se um cenário é descrito objectivamente por uma personagem e subjectivamente por outra, há uma quebra e o leitor confunde­se. Por segurança, parecemos agarrar­nos à visão de Quixote, quer por ser a mais interessante, quer por ser o protagonista que nos vai guiar ao longo da leitura. Mas Quixote é o descritor subjectivo, influenciado pelas suas ideias, pelo que não vê mas sente. A literatura cavaleiresca teve um grande papel a moldar a mundividência de Quixote, servindo o papel da droga alucinogénia.  Em  Fear   and   Loathing   in   Las   Vegas,   a   alucinação,   apesar   de   causada   por drogas, parece distanciar­se do seu rumo natural, tomando um papel crítico, conforme o refere Karl Ottesen na sua tese. Os morcegos que surgem no início da obra parecem contextualizar a assombração inicial de uma experiência alucinogénica, porém, esta é a alucinação mais inocente. As restantes alucinações distorcem realidade e ficção, mas sempre em função dos mass media, transformando jornalistas em répteis sanguinários e distorcendo o mundo real e o mundo televisivo quando uma televisão mostra imagens da guerra do Vietnam. Estas alucinações  só se podem considerar críticas, servem o papel do sonho que dava a  anagnorisis  que recorre como mecanismo literário. Mas também   a   viagem   revestida   de   si   mesma   parece   revelar   esta   função   crítica.   Os protagonistas viajam duplamente, quer pelas alucinações interiores, quer em direcção a Las Vegas no exterior:  A   viagem   exprime   um   desejo   profundo   de   mudança   interior,   uma   necessidade   de experiências   novas,   mais   do   que   de   deslocação   local.   Segundo   Jung,   indica   uma insatisfação, que leva à procura e à descoberta de novos horizontes. (Chevalier, 1994: 691)

De facto, o decoro temático da viagem, do sonho e da alucinação parecem­me ser o que reveste de literariedade esta novela.  N'A História Interminável, a coexistência de ficção e alucinação no momento da entrada   do   livro   parece­me   ter   a   pretensão   estética   de   sublimar   a   experiência   da literatura. Porém, inserindo­se no género fantástico, o livro dentro do livro não é um livro normal, mas mágico, detentor da imaginação de todos os homens e portal para esse mundo de Fantasia. Novamente, o género impõe regras, o livro é revelador mas não

20

segue o mesmo mecanismo de revelação que a viagem ou o sonho na restante literatura. O   livro   revela   porque   Bastian   inicialmente   vê   pela   fechadura   o   que   se   passa   em Fantasia, qual Alice em frente à porta para o País das Maravilhas, mas ao realmente abrir o livro, ele abre a porta para o mundo de Fantasia. De facto, as vivências que ele tem no livro são vivências que se mantém no final da leitura, ao passo que D. Quixote simplesmente ficava afectado pela colisão de valores do mundo real com o mundo do livro. No final de A História Interminável, Bastian sai do livro e volta para o seu pai.  Alucinações,   sonhos,   viagens,   leituras,   todos   estes   mecanismos   servem   ao sujeito contemporâneo de sensações de alteridade. A literatura parece ser a mais segura, cómoda e, ao mesmo tempo, a mais impregnada de uma presença real, utilizando o conceito de George Steiner. A literatura parece transmitir a voz de um autor que pode já ter morrido ou não, mas perpassa­a sempre no formato de fala morta, que é a escrita. Há, portanto, um tanto quanto de transcendental na leitura, nem que seja nesta visão de comunicação com uma morte.  Em jeito de conclusão, quando Platão critica a literatura, quer pelo seu grau de mentira   (República),   quer   pela   dependência   que   dele   pode   advir   (Fedro),   é   a personagens como Alonso Quijano que ele se refere, criticando a distorção e os seus efeitos. Todos os protagonistas destas obras são vítimas de variações daquilo que Platão criticava, os seus mundos confundem­se com outros e, no caso das alucinações, podem levar a um comportamento primal. Porém, a literatura apenas se faz mediar pela escrita, não procurando instituir­se como memória, como tal, não deve ser vista como mentira à maneira platónica. A literatura não é arte da mentira, mas da possibilidade, e sobre aquilo   que   nela   é   punível   “essa   é   outra   história,   que   ficará   para   uma   próxima oportunidade” (Ende, 1984: 318).

21

Bibliografia ADORNO,  Theodor,  Teoria   Estética,   Lisboa,   Edições   70,   2008,   tradução   de   Artur Morão. BABO,   Maria   Augusta,   “Da   imagem   da   linguagem”   in  Imagem   e   Pensamento,   org. Moisés de Lemos Martins et. al., Coimbra, Grácio, 2011.  BORGES, Jorge Luís, Outras Inquisições, in Obras Completas – Volume II – 1952­1972, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, tradução de José Colaço Barreiros. CERVANTES, Miguel de, Don Quijote de la Mancha, Barcelona, Planeta, 1994. CHEVALIER, Jean e  GHEERBRANT, Alain,  Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1994, tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra.  COLERIDGE, Samuel Taylor,  Biographia Literaria, conforme consultado a 26 de Abril de 2015 em . CRUZ, Teresa, “Da vida das imagens” in Revista de Comunicação e Linguagens N.º 31 – Imagem e Vida, org. José Gil e Teresa Cruz, Lisboa, Relógio d’Água, 2013.  ENDE, Michael, A História Interminável, Círculo de Leitores, 1984. GASSET, José Ortega y, Meditaciones del Quijoete, conforme consultado a 15 de Março de   2015   em   . SACKS,   Oliver,   “Altered   States”,   conforme   consultado   a   24   de   Março   de   2015   em . SARTRE, Jean Paul, Situações I, Lisboa, Europa­América, 1968. TAVARES, Gonçalo M., Atlas do Corpo e da Imaginação, Lisboa, Caminho, 2013. THOMPSON, Hunter S., Fear and Loathing in Las Vegas, conforme consultado a 28 de  Fevereiro de 2015 em em  .  TUCHERMAN, Ieda,  Breve história do corpo e de seus monstros, Lisboa, Nova Vega, 2012. 

22

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.