A Literatura como forma de Alucinação
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LÍNGUAS, LITERATURAS E CULTURAS LITERATURA ESPANHOLA E ARTES A LITERATURA COMO FORMA DE ALUCINAÇÃO D. QUIXOTE, LAS VEGAS E OUTRA HISTÓRIIA Tiago Filipe Clariano Alonso Quijano foi um grande leitor. Tão grande que transferiu incautamente à vida as qualidades fantasmagóricas da literatura. Entre mecanismo literário e tentativa de ajuizamento quanto ao consumo excessivo de literatura, este será o grande enigma, o momento silencioso entrelinear extraível da obra. A literatura parece a causa da colisão sintomática entre identidade e alteridade narrativas: Alonso Quijano deixa de ver um mundo a três dimensões para nele contar com uma quarta dimensão poética. De base semiótica, as palavras fazem brotar, quais fogosdeartifício e constelações, personagens, caminhos, obras de arte, ideologias e crenças que invadem a mente do leitor com espectros tingidos pela tinta mental do seu autor. A leitura confronta o leitor com dois processos estéticos simultâneos: imaginação e alucinação. Os signos literários são potências alucinogénicas, neles revemos o potencial venenoso (por pressão cultural contra conceitos censuráveis como o de alucinação) da escrita do pharmakon dúplice de Platão em Fedro: entre remédio e veneno, Platão vê no material escrito um veneno para a memória, e que Aristóteles reitera, com o conceito de katharsis para terapêutico, que Marcel Proust sublinha em Sur la lecture.
A invasão cultural que a literatura proporciona manifestase como experiência de alucinação. A necessidade do sonho que “comanda a vida” e acompanha a nossa espécie desde momentos primevais e a necessidade do sentir da alteridade para constituir uma identidade definitivamente por definir são saciadas pela literatura. O texto (em especial, o literário) é um catalisador, um psicotrópico verbal que ofere ao leitor experiências que seguem um percurso semiótico do textual, ao imagético e ao ideal. Este texto sustém um efeito sobre o seu leitor, altera a sua mundividência (dele decorre sempre um transtorno nem que catártico) quase equiparável aos inúmeros depoimentos de consumidores de LSDs que viram a sua vida alterada após a primeira experiência. Oliver Sacks, neurologista, que estudou aprofundadamente o efeito dos psicotrópicos na mente estabelece, através do conceito de “intimação da imortalidade” de William Wordsworth, uma analogia entre o psicotrópico e as artes, cito: “Many of us find Wordsworthian 'intimations of immortality' in nature, art, creative thinking, or religion (…) But drugs offer a shortcut, they promise transcendence on demand” (2012: 40). De certo que inclui a literatura no conceito geral de “artes”, o mesmo artigo está contaminado de referências a literatura de alucinação como The Doors of Perception de Aldous Huxley ou Les Paradis Artificiels de Charles Baudelaire. Em D. Quixote, foi a literatura cavaleiresca que metamorfoseou Alonso Quijano em D. Quixote, perdendo o contacto sóbrio com a realidadereal dos mortais, passando a viver uma vida controlada pelo código da narrativa cavaleiresca. A literatura é apontada como causa primeira dos transtornos (que só em última instância se corrigem). Mas a literatura não foi para Alonso Quijano uma actividade puramente cognoscível, por outro lado, foi sempre puramente estética, na sua forma etimológica do sentir: foram imagens literárias que infectaram a mundividência do protagonista que devém uma personagem cavaleiresca. A experiência do real que D. Quixote passa a sentir é uma experiência alucinogénica. Realidade e ficção têm os seus limites distorcidos dentro da própria ficção. As saídas óbvias e brutais são sempre ignoradas, desde a incineração quase inquisitorial dos livros no capítulo VI da primeira parte, às constantes chamadas de atenção de Sancho Pança ao longo das aventuras, não é que a noção do real seja 2
ignorada, simplesmente não é tão apelativa como o sonholiterário posto em vida, só no momento terminal pode Alonso Quijano voltar a si, quando já nem a ficção basta. Os objectivos deste ensaio prendemse com a conceptualização de termos como imaginação e alucinação à luz da fruição estética da literatura. O meu objectivo é o de demonstrar como a experiência literária se afasta do canónico pensar da imaginação para se aproximar do sentir da alucinação. Samuel Taylor Coleridge refere a “suspension of disbelief” na sua Biographia Literaria, mecanismo de suspender a descrença, a incredulidade (como é indicial) naquilo que é lido, e que indubitavelmete é o que ocorre com Alonso Quijano de tal forma que ele próprio requer um novo nome, tal é o extremo desta experiência. Também em A História Interminável de Michael Ende, Bastian se apercebe, por outros motivos, porém, de que deve deixar a realidade para entrar no próprio livro e salvar as personagens por quem respirava. E mesmo Jean Paul Sartre em “François Mauriac e a Liberdade” afirma: “introduzome n[a personagem] e e eis que ele espera com a minha expectativa, tem medo de si mesmo em mim; vive” (1968: 33). A literatura pode guiar o leitor ao abismo e fazêlo sentir a queda a uma distância segura o suficiente para dizer “eu passei por isto”, como ocorre em “A descent into the Maelstrom” de Edgar Allan Poe. D. Quixote e Bastian cristalizam a experiência literária. Bastian é um leitor tão apaixonado que mergulha no universo literário, encontrando um livro e adentrandose nele. D. Quixote, por outro lado, tem uma sensibilidade tão exaltada que deixa o seu universo mergulhar no literário. As fronteiras da ficção Nos seus primórdios, o pensamento da poética veio sempre acompanhado pelo pensamento da sua ética. Uma experiência de fruição de tamanho potencial teria de ter os seus limites – contemporaneamente, a cada desenvolvimento no seu estudo apercebemonos que limites não são de forma alguma tropos na literatura. A literatura é um comprimido de espelhismos que, el último caso, poderia ser dado como desvario ou alucinação. Disso era o que se cria ciente Platão quando, no livro X da República recusa 3
a entrada dos poetas na República por ele idealizada. Era o seu manuseio de uma arte da mentira, de uma arte que sobrecodifica o código real e dele se afasta em três passos (remetase aqui à semiótica peirciana) que fizeram crer Platão de que a imitação geraria outras imitações, ou que fosse imitada extratextualmente pela sua crença 1. Acreditar num registo literáriopoético seria viver à margem da margem da realidade, num código que codifica de outro modo o código da vida e da actualidade. Aristóteles vem posteriormente reabilitar a posição poética através do conceito de mimesis e da aliança que forma entre literatura e filosofia, ambas da ordem da conjectura e da possibilidade, instituindo a literatura como um estaraolado e não como estarpor semiótico. Dom Quixote é paradigma dos receios platónicos quanto à crença literária. Verdade e mentira são distorcidas no universo pósleitura de Dom Quixote, de tal modo que a sua vida é recodificada pela dimensão poética. A sanidade de Dom Quixote é questionada pela literatura que a causou. A alteração do significante (de Alonso a Quixote) alinhase com um transtorno literário. Uma catarse hiperbolizada, um alinhamento extremo de sensações entre leitor e lido que causou a mudança de comportamentos e o transformou num Dom Quixote que ecoa anacronicamente cavalaria. “La razón de la sinrazón que a mi razón se hace” (Cervantes, 1994: 34) é motto das adaptações interartísticas e põe em abismo a ética literária platónica e o seu resultado: Dom Quixote. A “sinrazón” será a ficção e a “razón” a confiança no universo que apreendemos fenomenologicamente despojado do grau literário ou poético. Uma infecção literária na mundividência de uma personagem só pode advir da leitura. O impacto de Dom Quixote pode referirse à contenção do potencial do livro condensado no transtorno da personagem. Ávido e compulsivo, rapidamente os seus companheiros e empregados fizeram por aniquilar a causa, acreditando assim remover os síntomas. Assim, procedese a uma queima que ecoa as queimas inquisitoriais dos livros de forma a exorcizar os males que assolavam Dom Quixote. O episódio é
1 Terá sido deste pensamento que Paul Ricoeur partiu para o seu pensamento do símbolo? O símbolo como junção do bios e do logos, da passagem do discurso à vida pela vivência do discurso? Sobre esta questão leiase o subcapítulo “O momento nãosemântico do símbolo” em Teoria da Interpretação. 4
reconhecido, acima de tudo pelo potencial como aula de literatura cavaleiresca, de crítica, comentário e assunção2. (…) no hay qué perdonar a ninguno, porque todos han sido los danadores; mejor será arrojarlos por las ventanas al pátio, y hacer un rimero dellos, y pegarles fuego; y si no, llevarlos al corral, y allí se hará la hoguera, y no ofenderá el humo. (idem: 69).
O decoro do capítulo é feito de ecos inquisitoriais e censórios das queimas de livros indexados. Fosse por Platão e iam todos. Contudo, Jorge Luís Borges, numa das suas Outras Inquisições a respeito de Nathaniel Hawthorne cria um jogo metafictício com a própria ideia de queimar livros, criando toda uma história e ciclicidade das ideias literárias, diz ele: Com efeito, se o mundo é o sonho de Alguém, se houver Alguém que agora está a sonharnos e que sonha a história do universo, (…) o incêndio geral das bibliotecas, não importa muito mais que a destruição dos móveis de um sonho. A mente que uma vez os sonhou voltará a sonhálos; enquanto a mente continuar a sonhar, nada será perdido. (Borges, 1989: 5455)
A imaginação que coloca um sujeito único a sonhar um mundo de todos pode ser posta em analogia com a voz que narra Dom Quixote (e mesmo com a demiurgia judaico cristã e as teorias do solilóquio ontológico), e os livros que foram queimados acabariam por ser recuperados3 numa ciclicidade lavoisieriana onde “nada se perde e tudo se transforma”. De facto, a queima não purgou os espíritos literários incrustrados na mente de Dom Quixote, tanto que este se aventura numa segunda saída, onde conhece o seu fiel pajem, Sancho Pança. É na segunda saída de Dom Quixote que ocorre o talvez mais conhecido episódio associado à obra: “[el] buen suceso que el valeroso don Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento, con otros sucesos 2 António Mega Ferreira escreve a este respeito: “este tal capítulo VI convém muito ser retido (…) porque é «crítica literária», e porque na economia narrativa do livro de Cervantes é ele que primeiro surge a indicar uma direção de leitura não menos apaixonante que as interpretações romântico espiritualistas de Unamuno [que igualmente escreveu sobre este capítulo], inteiramente legítimas, aliás” (2014: 45) 3 E são recuperados, nem que seja pelo uso do monte de livros como cenário na ópera de Christobal Halffter em 2000. O amontoado deorganizado de livros pareceme análogo ao que é feito para os queimar no original de Cervantes, apesar de não servir esse fim na ópera. 5
dignos de felice recordación” (Cervantes, 1994: 88). O episódios dos moinhos é o grande momento de alucinação quixotesta. Neste capítulo, o nosso protagonista avista moinhos ao longe e descreveos como gigantes, considerando que o que se vai passar seguidamente é um episódio que marcará para sempre a história e lhes trará renome e glória. O idealismo marcado pelo discurso cavaleiresco de Quixote é retorquido pelo materialismo realista de Sancho Pança que o adverte “mire vuestra merced (…) que aquellos que alli se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que en ellos parecen brazos son las aspas” (idem, 89). Há uma discrepância causada pelos modos de discurso idealista e realista aliados às personagens e às suas mundividências. Esta antítese causanos a ideia de alucinação: onde Quixote descreve gigantes, Sancho vê moinhos, o que é descrito pelo narrador são moinhos, mas Quixote continua a descrever gigantes. Este é o momento de distorção que emblematiza figurativamente a história de Dom Quixote. Não temos, no entanto, certezas de que aquilo que Quixote via seriam mesmo gigantes, ou se apenas os descreve como tal: “ves allí, amigo Sancho Panza, donde se descubren treinta o pocos más, desaforados gigantes” (idem). Há uma passagem directa do pensamento poético à vivência do mesmo, e Sancho adverte Dom Quixote que aquilo que ele vê como braços são, na verdade, as pás do moinho, mas com pouca sorte. Do nosso ponto de vista, Quixote está louco. Do ponto de vista da ética platónica, a literatura é de condenar por isto, estão a ser trazidos para a vida os apanágios da literatura. A visão de gigantes onde existem moinhos atesta o viver pelo código cavaleiresco determinado pelos romances de cavalaria onde, por exaltação da narrativa, se daria um combate de forças inequacionáveis e onde o cavaleiro ganha, e também um pensamento muito primordial sentido pela humanidade. José Ortega e Gasset, em Meditaciónes del Quijote, questiona: se podemos censurar Dom Quixote por confundir moinhos com gigantes, quem é que podemos censurar pela ideia de gigantes?: “Siempre se trataria de una cosa que no era gigante, pero que mirada desde su vertiente ideal tendía a hacerse gigante” (1914: 59). De facto, não existem gigantes4, mas a sua 4 Não existem os gigantes mitológicos, desde os titãs gregos ao Golias bíblico, nem Golems nem uma raça à qual pertença Rubeus Hagrid de J. K. Rowling, contudo, existem casos de gigantismo 6
concepção como monstro ou extrapolação do que é ordeiro no corpo humano, leva a que a ideia, enquanto medo, pese na consciência, como que uma palavra debaixo da língua. Psicanaliticamente, o gigante pode reunirse com o arquétipo do medo do pai, cuja altura é associada pelas crianças à capacidade de dar ordens ou impôr; porém, em Dom Quixote, os gigantes referemse a moinhos que, por alusão da forma das pás se reuniram, no pensar poético de Dom Quixote, com a ideia de gigante. Duma perspectiva interartística, é interessante pensar que esta alusão da forma que sugeriu a ideia de gigante ressurge como processo estilístico no surrealismo, e em específico na obra de Dalí que se organiza em torno deste episódio, “Visões de Quixote”. A pintura é composta de anamorfoses, formas que em si mesmas contemplam outras, sugerem outras e são compostas de outras: um grande retrato de Dom Quixote tem os olhos compostos pelos rostos de Dom Quixote e de Sancho Pança a cavalo, formando o resto do rosto, os cabelos constituem moinhos e são também nuvens, e o corpo é feito de caras disformes. O que é mais disfuncional nesta obra é a identificação de Dom Quixote com o moinho, fazendo dos seus cabelos brotar as pás, identificando também deste modo, Dom Quixote com a alusão do gigante, acabando por, semioticamente criar uma ideia de “medo do si”, identificação que me parece propositada, tendo em conta que foi da sua mente, da sua leitura, que despoletaram os gigantes. Ecoa Camões: “Transformase o amador na cousa amada”. Quixote vive o símbolo poético. Os livros que leu potenciaram a mudança de vida, a inveja que se torna sinónima de ambição posta em movimento: Dom Quixote tornase numa personagem de ficção cavaleiresca, vê o seu mundo recobrirse de textos como os Amadises e os ciclos arturiano e carolíngio, concretizados numa dimensão poética que só um grande leitor é capaz de experienciar. Há um indubitável transtorno, catártico ou não, pósleitura, pósexperiência do trauma, que é o sentir da alteridade através da substituição da linha de raciocínios pela linha do texto. É a isso que se deve este episódio. É aqui que reside a alucinação em Dom Quixote: na transformação do mundo e da sua fenomenologia, por uma que advém da experiência literária. explorados por Ieda Tucherman no capítulo “Monstros, freaks e cyborgs – o outro do corpo e o corpo do outro” em Breve história do corpo e de seus monstros. 7
As distorções da alucinação Por isso eu tomo ópio. É um remédio Sou um convalescente do Momento. Moro no résdochão do pensamento E ver passar a Vida fazme tédio. (Álvaro de Campos, “O Opiário”)
A alucinação, como o sonho, são em forma e conteúdo recorrentes tropos da literatura. A dimensão onírica ou mental, que transcende e descende da realidade ou se projecta nela através do funcionamento mental proporcionam narrativas e possibilidades imagéticas que extrapolam o realismo e se aliam ao poético na condição do possível. A alucinação recodifica sensoriamente o mundo sentido, e é muitas vezes causada por um meio químico. Mas também a literatura aplica uma nova codificação do mundo e tem o seu zigote no formato livresco. Na sua censura à escrita no Fedro, Platão descreve a plataforma textual como pharmakon na dupla acepção semântica de remédio e veneno. A escrita, como a pintura, abre perguntas sem deixar resposta, concretizase num meio estático, iterável, não requer a presença nem a explicação do seu autor e parece estar na iminência da causa da desvalorização da memória. O maior paradoxo aqui é o formato textual através do qual é apresentada esta crítica. Platão não pode criticar nem marcar a sua posição sem deixar estes pensamentos por escrito, de forma a encontrar gerações vindouras. Tal como pharmakon, o termo português “droga” tem uma dualidade semântica (talvez em processo de arcaização), sendo que hoje se parece manter apenas o seu uso pejorativo. Droga referiase a compostos da indústria farmacêutica ou estupefacientes psicotrópicos, ambos capazes de surtir efeitos químicos sobre o funcionamento do corpo. A reunião destes conceitos surge tanto numa função pragmática – de registo ou cura para as falhas da memória – e noutra estética – de fruição, como podemos confirmar com as “intimações da imortalidade wordsworthianas” de que falava Oliver Sacks (op. Cit.), para quem as drogas são dotadas da possibilidade de fazer sentir algo 8
extero, estranho, altero ou mesmo transcendental no corpo e na mente. É do ponto de vista da fruição estética que me pretendo colocar para abordar e comparar este termo com ficção, alucinação e imaginação, sendo que todas elas são descritas como passíveis de fazer surtir efeitos nevrálgicos, hápticos e psicológicos. A experiência do sentir do belo artístico ou natural, a experiência estética, é descrita por Gilles Deleuze como uma fusão das sensações e percepções (perceptos5) do objecto apreendido e das sensações e afecções (afectos 6) daquele que sente. Da apreensão do objecto sobressaem percepções que afectam o interpretante, e ambos estes dados colidem num plano intermédio, num “plano de consistência” ou coexistência virtual entre objecto e interpretante, um plano em que o leitor habita a obra e o espectador o filme, e o reverso em simultâneo, inundandose mutuamente. Esta experiência advém de algo que Theodor Adorno descreve como raro e equipara à efemeridade e grandiosidade do fogodeartifício. Em “Isto”, Fernando Pessoa parece referirse, através do pronome demonstrativo, ao inefável que esta experiência delega: “Por isso escrevo em meio / Do que não está ao pé, / Livre do meu enleio, / Sério do que não é. / Sentir! Sinta quem lê!”, colocandose do lado da produção e não do lado da recepção estética (também aquela catártica pela libertação). Parece reconhecer o meiotermo consistente entre sujeito e objecto, alucinogénico em que se organizam cosmologicamente afecções e percepções. Fernando Pessoa reconhece ainda um háptico nesta experiência, afirmase “livre do meu enleio” (da condição de sujeito?, da própria corporeidade?), o corpo é o verdadeiro sensor total do objecto estético, seja ele artístico, natural, ou químicomental, em plena sinestesia. 5 “É um conjunto de sensações e percepções que vai além daquele que a sente (…) Há um grande complexo de sensações, pois há sensações visuais, auditivas e quase gustativas. Alguma coisa entra na boca. Eles tentam dar a este complexo de sensações uma independência radical em relação àquele que as sentiu.” 6 “ Para mim, os afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles. O afecto é isso. Será que a música não seria a grande criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para potências acima de nossa compreensão? É possível.” in Abecedário de Gilles Deleuze, org. Claire Parnet 9
Teresa Cruz recorre a Maurice MerleauPonty para abordar o conceito fenomenológico de alucinação em “Da vida das imagens”: [a alucinação é uma] produção artificial de experiências sensíveis sem efectivo conteúdo sensorial (…) e [pode] aludir a todo o campo da percepção: visual, mas também auditivo, táctil, olfactivo, etc… Diz ainda MerleayPonty que «o corpo do alucinado perdeu a sua inserção no sistema das aparências», «permanecendo capaz de evocar pelas suas próprias montagens uma pseudopresença deste meio». (Cruz, 2003: 6667).
Esta descrição não hesita em denominar de “campo da percepção” o campo afectado pela experiência alucinogénica, e é também este que é primeiramente afectado pela experiência estética, não fosse a etimologia aesthesis remeter para a própria sensação. A meu ver, a experiência que aqui tenho vindo a descrever através de teóricos dividese em três partes: um primeiro rapto em que o sujeito se vê emaranhado na teia do objecto, num transe mediúnico; ao qual se segue uma ruptura, uma espécie de acordar do sonho, da experiência da sublimidade e, finalmente, um repto em que o sujeito, qual ressaca, procura tornar a sentir a experiência do belo7. Para melhor explicitar a minha exposição da experiência estética processual rapto/ruptura/repto, recorro ao reconhecido livro da literatura de alucinação Fear and Loathing in Las Vegas de Hunter S. Thompson, que descreve uma viagem repleta do consumo de estupefacientes, levada a cabo empiricamente pelo seu autor, e codificada no roman à clef. Esta novela acabou por cunhar um estilo jornalístico: o “Gonzo Journalism”8, onde a ficção se sobrepõe ao facto. Concebese, neste livro, uma ponte que desmorona por si mesma entre ficção e realidade. Seria impossível concretizar uma 7 Acerca deste assunto, Theodor Adorno, em Teoria Estética: “O belo natural é o vestígio do não idêntico nas coisas, sob o sortilégio da identidade universal. (…) O belo natural reparte a fraqueza de toda a promessa com a sua inextinguibilidade. Mesmo se as palavras não atingem a natureza e traem a sua linguagem em favor daqueles de que ela se distingue qualitativamente – nenhuma crítica da teleologia natural pode eludir o facto de que os países meridionais conhecem dias sem nuvens que existem como se esperassem ser percepcionados” (20008: 117118). José Manuel Martins concorda que rasto teria sido uma melhor alternativa na tradução a vestígio, o rasto é indicial, permite uma sequência, um seguimento em torno da renovação da experiência estética. 8 Devendo o seu nome à personagem que reflecte a personalidade o advogado, Dr. Gonzo (um autêntico avatar de Sancho Pança), 10
odisseia jornalística deste timbre sem ter por base a distorção dos limites entre factício e fictício (e por fictício refirome, acima de tudo, aos processos mentais delegados pelo consumo de drogas): We had two bags of grass, seventyfive pellets of mescaline, five sheets of high powered blotter acid, a salt shaker half full of cocaine, and a whole galaxy of multi colored uppers, downers, screamers, laughers and also a quart of tequila, a quart of rum, a case of Budweiser, a pint of raw ether and two dozen amyls. (Thompson, 1972: 1)
Cada elemento desta enumeração potencia uma experiência nevrálgica distinta do outro. Existem, contudo, contraindicações que chegam a gerar episódios da novela em questão: seria óbvio não misturar uppers com downers pela sustenção de efeitos opostos. Cada uma destas substâncias tende a concretizarse num sentir háptico neurológico distinto das outras. A cultura da droga ficou aliada aos Estados Unidos da América, não apenas graças a esta obra, mas também a muitas outras que a antecederam. Não é por acaso que em “O Opiário”, Álvaro de Campos afirma “Levo o dia a fumar, a beber coisas, / Drogas americanas que entontecem” (1914), apesar do ópio ser associado ao oriente. Ainda nos dias de hoje se mantém uma cultura decadentista do consumo excessivo de drogas, em 2012, Lana Del Rey escreve “National Anthem”, parodiando o patriotismo norteamericano, polvilhandoo de críticas ao sonho duplo de construção e decadência: “Overdose and dying / on our drugs and our love / and our dreams and our rage / Blurring the lines between real and the fake”. É cedo que se revelam as alucinações na obra: Raoul Duke, no episódio mais popular da obra, afirma ver morcegos rodear o descapotável em que se dirigem a Las Vegas e pede a Dr. Gonzo que tome o volante, apesar de nenhum estar em condições legais de condução. A viagem revestese da ideia de trip (viagem): uma viagem exterior em direcção e dentro de Las Vegas, e uma viagem interna potenciada pelos LSDs, e toda a colectânea que transportavam na bagageira. Uma descrição de uma viagem dúplice como esta é o ideal simbólico apresentado por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant no seu Dicionário dos Símbolos: a viagem é “o signo e símbolo duma perpétua recusa de si mesmo (…) e seria preciso concluir que a única viagem válida é a
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que o homem faz ao interior de si mesmo” (1994: 692). Na viagem duplíce por que passam, o sonho americano é o meio (droga) e o objectivo (Las Vegas), um sonho químico autoconsumptivo que se critica a si mesmo. Uma “savage trip” é também uma dupla viagem cujo veículo não é unicamente um descapotável, mas também os LSDs, e a viagem fazse emblematizar de si mesma. A alucinação ganha também um potencial simbólico quando, já em Las Vegas e sob o efeito de éter, o protagonista afirma ver répteis num bar cujo chão parece uma piscina de sangue: Terrible things were happening all around us. Right next to me a huge reptile was gnawing on a woman’s neck, the carpet was a bloodsoaked sponge – impossible to walk on it, no footing at all. ‘Order some golf shoes’, I whispered. ‘Otherwise we’ll never get out of this place alive’. (Thompson, 1972: 9)
Esta alucinação parece concretizarse como uma crítica aos movimentos dos media, “gnawing on a woman's neck” numa “bloodsoaked sponge – impossible to walk on it”. O dispositivo alucinogénico pode ganhar um cunho de anagnorisis, nos grandes clássicos literários por exemplo na visão do fantasma do pai de Hamlet de Shakespeare, porém, a crítica tecida em Fear and Loathing in Las Vegas toma também uma proporção metaleptica, referindose a um quadro semiótico ulterior ao texto. É isto que Karl Ottesen defende em “Fear and Loathing: A Chemically Enhanced Picaresque”, onde a associação dos répteis que rastejam e sugam o sangue são signos alucinogénicos dos jornalistas. A crítica é feita aos movimentos dos media e à sua incisão na cultura da droga americana, cujos headliners se referem sempre ao consumo de drogas pesadas, como a explosão da heroína: In this scene the “press” turns into a bunch of bloodthirsty reptiles that have no problem walking through blood and muck. Journalists, perhaps, who would do anything to get their hands on a story. (Ottesen, 2008: 60)
A novela tem como subtítulo uma frase bastante simbólica por si: “A savage trip to the heart of the American Dream”, sonho americano este que é cultivado em romances como The Great Gatsby de F. Scott Fitzgerald (apesar da remissão aos roaring twenties), onde o ideário do “selfmade man” se concretiza na figura do protagonista, Jay Gatsby. Este ideário é desconstruído em Fear and Loathing in Las 12
Vegas num “self unmade man”, onde dois jornalistas estão “locked into a serious drug collection, [whose] tendency is to push it as far as you can” (Thompson, 1972: 1). Na genealogia romanesca da psicadélia entram ainda clássicos como The Doors of Perception de Aldous Huxley, On the Road de Jack Kerouac e Naked Lunch de William Burroughs, todos eles também romans à clef que veiculam o espírito do consumo da droga ao retratar eventos reais pelo meio de personagensavatares dos seus autores. Em todos eles são pintadas paisagens de realidade distorcida através do consumo de substâncias feito pelas suas personagens, e em todos se encontram tons distintos, não só ao nível estilístico, como também no decoro do texto, imerso na referida experiência. Em The Doors of Perception, a mescalina de peyote é utilizada para registar os pensamentos advindos dos seus efeitos, criando uma mundividência localizada entre o “puramente estético” e a “visão sacramental” (Huxley, 1954: 15), uma realização de que os objectos, quais alucinações, existem autotelicamente e não dependentes da função pragmática que um sujeito humano lhe pode conferir. Já em On the Road, o aspecto mais relevante pareceme formal, concebendo uma prosa espontânea, similar ao stream of consciousness na madalena de Marcel Proust, consequencializando pensamentos numa viagem igualmente duplice. Em Naked Lunch, porém, o consumo é ainda menos canónico, fazendose através da “Black Meat”, equiparável à heroína, e que, em termos de narrativa, tende a distorcer noções de tempo e espaço, levando a saltos entre estas dimensões que deslinearizam e desnorteiam o enredo. Notese ainda, o valor catártico do consumo de psicoactivos: são poucos os consumidores de LSDs que não referem uma mudança na sua mundividência, uma abertura das suas próprias “portas da percepção”. Em Drugs of Hallucination, Sydney Cohen descreve a experiência do LSD como a de trazer de volta a virgindade da primeira experiência. Este valor de renovação da experiênvia torna inegável a aura espiritual que uma experiência deste calibre tem. Em jeito comparativo, notese o título e o mecanismo de entrada em ficção do segundo livro de Lewis Carroll sobre Alice: Through the LookingGlass and what Alice found there, onde a ideia de atravessar o espelho traz consigo a ideia de deixar o próprio reflexo atravessar o corpo: um altero 13
que pertence à identidade, um outro que não é nosso mas nos perpassa e nos dá a conhecer o porquê da necessidade de um espelho ou reflexo. Aquilo que não temos mas nos compõe: do outro lado do espelho, Alice localizase atrás de nós9. Tal como os psicotrópicos que anteriormente descrevi e os seus efeitos, também os livros têm tendências que traçam a fruição da sua leitura. Se do lado das drogas podemos chamar a isto de efeitos, na literatura devemos atribuir a culpa à genologia e ao próprio texto. Cada livro fornece também diferentes experiências de síntomas visuais e hápticos. Tal como cada psicoativo cria a sua alucinação, cada livro cria a sua imaginação, estabelecem as suas próprias regras de interpretação. Reportamse ambos às imagens vividas remisturadas com as da experiência do catalisador literário ou psicotrópico. Podemos falar de um ut pharmaca poesis?, Horácio, em Arte Poética reconhece uma semelhança entre a referencialidade e a recepção da literatura e das artes visuais, falando de um ut pictura poesis mas, do mesmo modo, esta semelhança co existe nas experiências estéticas mediúnicas dos psicotrópicos e dos livros. A alucinação literária difere, tal como a psicotrópica, consoante o género literário consumido, um romance realista será muito mais rígido na sua representação mental, do que um poema simbolista que dará muito mais espaço de manobra à imaginação do leitor. No seguinte capítulo abordo a representação literária de uma recepção e imaginação literárias, sob o signo da imaginação.
9 A respeito da função espelho, Ieda Tucherman, em Breve História do corpo e de seus monstros, cita Ethon Luiz de Sousa (Theatrum do Sentido): “E quando nos vemos no espelho, o que vemos reflectido é a imagem do Narciso que está em nós mas não do vampiro que nos habita: este sempre escapa, mas escapa como viajante nómada (…). O vampiro que somos torna possível a imagem do Narciso que vemos: mas o vampiro é o que não pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz a imagem do vampiro. Drácula contra Narciso. Drácula contra Édipo” (2012: 1819) 14
As potências da imaginação O senso comum diznos que as coisas da terra só existem um bocado, e que a verdadeira realidade só existe em sonhos. (Charles Baudelaire, Paraísos Artificiais)
Quando lemos não nos apercebemos, absorvidos na experiência, de que é a própria linguagem que faz brotar imagens e sensações. A ficção é a literatura que melhor faz uso desta qualidade linguística, explica Maria Augusta Babo, reportandose a Wolfgang Iser e ao seu L'act de lecture – théorie de l'effet esthétique: (…) como é que o texto produz essas imagens mentais e, por conseguinte, como é que o texto (...) envolve e arrasta consigo uma elaboração imaginária. É que a ficção é constituída por aquilo a que [Wolfgang Iser] chama aspectos esquemáticos que nos conferem, não propriamente imagens, mas as condições da sua construção. Tais condições podem prefigurar a própria percepção. (Babo, 2011: 35)
Então o texto não tem em si a propriedade de ser animado, mas a de sugerir uma animação à recepção. A este recurso literário chamase, desde a Antiguidade Clássica, de hipotipose, uma “descrição entusiástica de algo cuja presença é assumida de forma fantástica” conforme considera Carlos Ceia. A animosidade fictícia é composta deste uso entusiástico do discurso que cria ectoplasmas fantásticos, sugestões imagéticas e imaginárias (que são por si da ordem da fantasmagoria, também), recorrendo à memória do leitor e àquilo que a ficção entrega. Michael Ende, ao escrever A História Interminável dotaa de uma clarividência inigualável da ideia de experiência estética literária. Dividindose em duas cores, a narração cria dois regimes de significação, um em que o protagonista vive e encontra um livro, a vermelho, e outro que descreve o mundo interior ao livro, a verde. O enredo principal é o facto do mundo de Fantasia, um repositório de todas as imaginações da humanidade, é corroído pelo Nada, a doença da imaginação que toma proporções físicas de apagamento do mundo10, à medida que o ser humano despreza a faculdade 10 “Ficase a modos que cego quando se olha para o local”; “Se alguém, por descuido, lá punha o pé, também o pé desaparecia (…) Ou qualquer outra parte do corpo que penetrasse na zona... Não dói, isso é verdade” (Ende, 1984: 20) 15
imaginativa no mundo real. À medida que Bastian lê, vaise apercebendo de uma vivacidade das personagens fictícias diferente daquelas que ocorre noutros livros, algumas delas até dotadas de discursos metalépticos. Um destes discursos metalépticos vem da boca de um lobisomem prestes a morrer, quer de fome, quer de cair no abismo do Nada: Perguntasme o que vais ser? Mas o que és tu agora? O que são afinal todas as criaturas de Fantasia? Ficções, quimeras do Reino da Poesia, personagens numa história sem fim! Tu consideraste real? Está bem, és real aqui no teu universo. Mas, se atravessares o Nada, deixarás de existir. Ficarás irreconhecível. Passarás a outro mundo, onde não terás qualquer semelhança com o que és. Vais levar a ilusão e a cegueira ao mundo dos homens. Tu serás capaz de adivinhar o que acontece aos habitantes da Cidade Fantasma que se precipitaram no nada? Passarão a ser ideias loucas das cabeças dos homens, ideias que farão com que eles tenham medo, que os levarão a cobiçar coisas que os fazem adoecer, ideias que os levarão ao desespero sem motivos que se vejam. (Ende, 1984: 110)
Gmork, o lobisomem, não se apercebe só da sua condição enquanto personagem, como também de monstro que vai flutuar recalcado na mente dos humanos que não o soltarem através da imaginação. O Nada, enquanto desvalorização da imaginação na contemporaneidade, relembra a advertência de Ítalo Calvino no capítulo “Visibilidade” de Seis propostas para o Novo Milénio, onde teme que a contaminação da cultura iconocrata e o advento do cinema constituam uma desvalorização da faculdade da imaginação, qual Platão do século XX. Quando os esgares metalépticos chegam ao ponto de citar o próprio início do livro a meio do livro, empírico, a vermelho e, portanto, referente ao encontro de Bastian com o livro, descrevendo o alfarrabista e mesmo o sótão da escola onde Bastian se escondia a ler, Bastian apercebese que o livro está a tentar alcançar para fora de si e a pedir a sua participação. É neste momento que Bastian cristaliza a ideia de “suspension of disbelief” de que Samuel Taylor Coleridge falava em Biographia Litteraria: In this idea originated the plan of the 'Lyrical Ballads'; in which it was agreed, that my endeavours should be directed to persons and characters supernatural, or at least romantic, yet so as to transfer from our inward nature a human interest and a semblance
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of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment, which constitutes poetic faith. (1817)
A experiência estética da literatura pede uma suspensão da incredulidade do mundo descrito pela obra. A “suspension of disbelief” é retomada por muitos outros vocabulários, Adriano Duarte Rodrigues socorrese da pragmática em “Ficção e Realidade” (2003) para referir um acto perlocutório de acordo entre leitor e autor para que ambos acreditem naquilo que lêem e escrevem. Mas uma suspensão não requer um acordo mútuo, assola desde logo como a experiência estética em Deleuze, que é mais da ordem da percepçãoreacção do que do acordo. Notese, porém, que este momento apenas cristaliza a própria ideia numa epítome, a suspensão da descrença já tinha começado há muito tempo, quando, por exemplo lê a cena da morte de Artax e chora, provando existir um alinhamento catártico entre as sensações descritas e as emoções sentidas: Atréju cerrou os lábios. Preferia calarse. Saudou uma vez mais Artax, posto o que se afastou e partiu. Bastian soluçava. Era mais forte do que ele. Tinha os olhos marejados de lágrimas e não conseguia continuar a ler. Teve de tirar o lenço do bolso para se assoar antes de prosseguir.
(Ende, 1984: 46)
É quando Bastian entra no livro que ele se mostra de tal modo envolto na experiência do livro que entra num estado de transe alucinogénico entre o mundo real e o mundo proporcionado pelo livro. A imaginação possui uma liberdade de constrangimentos. Quando em estado puro pode assemelharse à alucinação, mas a concretização será sempre individual e intransmissível. São criadas geografias próprias de imaginação, quer pelo espectáculo total dos media, quer pela experiência individual de produtos culturais como a literatura e as artes. Ao proporse a descrever estas geografias, Gonçalo M. Tavares fálo dotando a sua escrita de uma materialidade distinta da escrita precedente no que toca à imaginação. Isto ocorre devido às suas relações com o corpo e o corpo movimentase num espaço físico partilhado que é o cenário utilizado por Gonçalo M. Tavares para fazer entender a noção de imaginação.
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(…) a imaginação é produtora de metros quadrados íntimos, de metros quadrados privados. A imaginação individual produz metros quadrados onde o outro não consegue pousar os pés, metros quadrados subjectivos, propriedade subjectiva, individual: uma riqueza, esta sim, absolutamente privada. (Tavares, 2013: 403).
Esta privacidade em territórios tão vastos pareceme levar a um sentimento geral de solidão que foi colmatado com “intimações da imortalidade wordsworthianas” como a literatura, o cinema, a religião... O que me parece recorrente nestas intimações é o sentir de algo alheio, altero, uma outridade na intimidade mais privada. É por isso que, noutra descrição da imaginação, Gonçalo M. Tavares refere a mescalina: a imaginação é um instrumento, uma coisa que age sobre as outras, alteraas como a mescalina, a imaginação muda a dimensão dos objectos. (Idem: 383)
A diferença entre alucinação e imaginação é a intervenção de um elemento externo na criação de imagens ou sensações. Tal como a mescalina tavariana, a literatura age sobre as recordações, altera as suas dimensões e cria novas justaposições de pensamentos e reminiscências anteriores para tecer o seu mundo ficíticio.
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Conclusões He who makes a beast out of himself gets rid of the pain of being a man. (Dr. Johnson)
Existe uma ansiedade pelo sentir da alteridade nas obras literárias e artísticas que referi e pareceme ser esse o ponto fulcral desta comparação, e também o da própria aporia comparatista: lado a lado, as obras tecem osmoses e diálogos, acrescentamse umas às outras e transtornamse: fazemse sentir. Este sentir da alteridade manifestase pelos consumos feitos, quer da literatura, em D. Quixote e em A História Interminável, quer da droga, em Fear and Loathing in Las Vegas. Notese também o inusitado que é a comparação destes “catalisadores”, como lhes chamei, mas que posso defender pela crítica clássica de Platão sob o signo duplice do pharmakon, à escrita (ainda que o problema platónico era de índole mnésica). A ficção e a imaginação em D. Quixote e em A História Interminável veiculam o sentir do outro. Em ambas, existe um reconhecimento da função fictícia dos seus actantes, mais óbvio em A História Interminável com a colocação de um livro dentro do livro, e mais latente na segunda metade de D. Quixote, quando as personagens já leram o livro que precede aquele em que vivem. Já em Fear and Loathing in Las Vegas, a alucinação traz a sensação de novidade e outridade que nas outras obras surge pela literatura. Nesta obra não pode existir noção da condição de personagens por ser um roman à clef, em que personalidades reais dão lugar a personagens11. O que se concebe são representações dentro de representações, obras dentro de obras, um discurso que teleologicamente tem de resultar na metalepse e no reconhecimento do devirficção. Tendo por tema as potências imaginais da alucinação e da imaginação, há que notar que estas surgem diferentemente do esperado. Em D. Quixote, a ficção transtorna a vida de Alonso Quijano, proporciona uma mudança de identidade e uma distorção da mundividência: a literatura levouo a alucinar e estas alucinações servem a temática da distorção entre objectividade e subjectividade na obra, diz Jorge Luís Borges: “Na realidade, todo o romance é um plano ideal; Cervantes comprazse em confundir o 11 Epistemologicamente, isto coloca limitações quando tentamos distrinçar o que é real ou fictício, pois esta literatura surge de uma perspectiva jornalística e com uma escrita diarística. Há manchas de autobiografia que não se distinguem da ficção. 19
objectivo e o subjectivo, o mundo do leitor e o mundo do livro” (1998: 42). Se um cenário é descrito objectivamente por uma personagem e subjectivamente por outra, há uma quebra e o leitor confundese. Por segurança, parecemos agarrarnos à visão de Quixote, quer por ser a mais interessante, quer por ser o protagonista que nos vai guiar ao longo da leitura. Mas Quixote é o descritor subjectivo, influenciado pelas suas ideias, pelo que não vê mas sente. A literatura cavaleiresca teve um grande papel a moldar a mundividência de Quixote, servindo o papel da droga alucinogénia. Em Fear and Loathing in Las Vegas, a alucinação, apesar de causada por drogas, parece distanciarse do seu rumo natural, tomando um papel crítico, conforme o refere Karl Ottesen na sua tese. Os morcegos que surgem no início da obra parecem contextualizar a assombração inicial de uma experiência alucinogénica, porém, esta é a alucinação mais inocente. As restantes alucinações distorcem realidade e ficção, mas sempre em função dos mass media, transformando jornalistas em répteis sanguinários e distorcendo o mundo real e o mundo televisivo quando uma televisão mostra imagens da guerra do Vietnam. Estas alucinações só se podem considerar críticas, servem o papel do sonho que dava a anagnorisis que recorre como mecanismo literário. Mas também a viagem revestida de si mesma parece revelar esta função crítica. Os protagonistas viajam duplamente, quer pelas alucinações interiores, quer em direcção a Las Vegas no exterior: A viagem exprime um desejo profundo de mudança interior, uma necessidade de experiências novas, mais do que de deslocação local. Segundo Jung, indica uma insatisfação, que leva à procura e à descoberta de novos horizontes. (Chevalier, 1994: 691)
De facto, o decoro temático da viagem, do sonho e da alucinação parecemme ser o que reveste de literariedade esta novela. N'A História Interminável, a coexistência de ficção e alucinação no momento da entrada do livro pareceme ter a pretensão estética de sublimar a experiência da literatura. Porém, inserindose no género fantástico, o livro dentro do livro não é um livro normal, mas mágico, detentor da imaginação de todos os homens e portal para esse mundo de Fantasia. Novamente, o género impõe regras, o livro é revelador mas não
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segue o mesmo mecanismo de revelação que a viagem ou o sonho na restante literatura. O livro revela porque Bastian inicialmente vê pela fechadura o que se passa em Fantasia, qual Alice em frente à porta para o País das Maravilhas, mas ao realmente abrir o livro, ele abre a porta para o mundo de Fantasia. De facto, as vivências que ele tem no livro são vivências que se mantém no final da leitura, ao passo que D. Quixote simplesmente ficava afectado pela colisão de valores do mundo real com o mundo do livro. No final de A História Interminável, Bastian sai do livro e volta para o seu pai. Alucinações, sonhos, viagens, leituras, todos estes mecanismos servem ao sujeito contemporâneo de sensações de alteridade. A literatura parece ser a mais segura, cómoda e, ao mesmo tempo, a mais impregnada de uma presença real, utilizando o conceito de George Steiner. A literatura parece transmitir a voz de um autor que pode já ter morrido ou não, mas perpassaa sempre no formato de fala morta, que é a escrita. Há, portanto, um tanto quanto de transcendental na leitura, nem que seja nesta visão de comunicação com uma morte. Em jeito de conclusão, quando Platão critica a literatura, quer pelo seu grau de mentira (República), quer pela dependência que dele pode advir (Fedro), é a personagens como Alonso Quijano que ele se refere, criticando a distorção e os seus efeitos. Todos os protagonistas destas obras são vítimas de variações daquilo que Platão criticava, os seus mundos confundemse com outros e, no caso das alucinações, podem levar a um comportamento primal. Porém, a literatura apenas se faz mediar pela escrita, não procurando instituirse como memória, como tal, não deve ser vista como mentira à maneira platónica. A literatura não é arte da mentira, mas da possibilidade, e sobre aquilo que nela é punível “essa é outra história, que ficará para uma próxima oportunidade” (Ende, 1984: 318).
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