A LITERATURA COMPARADA COMO INSTRUMENTAL PARA O CUMPRIMENTO DAS LEIS 10.639 E 11.645

July 31, 2017 | Autor: Shirley Carreira | Categoria: Literatura Comparada (Comparative Literature)
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A LITERATURA COMPARADA COMO INSTRUMENTAL PARA O CUMPRIMENTO DAS LEIS 10.639 E 11.645

Shirley de Souza Gomes Carreira

Resumo A consciência da diversidade cultural engloba o conhecimento das diferenças culturais que existem entre as pessoas e seus artefatos de informação e comunicação, como a linguagem, a escrita, as tradições, a forma como as sociedades estão organizadas, sua concepção de moral e de religião, e as suas políticas. Assim, não existe estudo sobre a diversidade que não seja feito sob a ótica do comparatismo. O objetivo deste estudo é abordar o método comparatista como um instrumental adequado aos estudos que propiciarão o cumprimento das leis 10.639 e 11.645, em especial no que diz respeito aos estudos literários. Palavras- chave: Leis 10.639 afrodescendentes; indígenas

e

11.645;

literatura

comparada;

Abstract The awareness of cultural diversity encompasses the understanding of the cultural differences that exist between people and their artifacts of information and communication, such as language, writing, tradition, the way societies are organized, their conception of morality and religion, and its policies. Thus, there is no study on the diversity that is not made from the perspective of comparatism. The aim of this study is to address the comparative method as appropriate for studies that will provide compliance with laws 10.639 and 11.645, in particular with regard to literary studies. Key words: Laws 10.639 and 11.645; comparative literature; African descent; indigenous people

Revista Australirica, Vol. 1, N° 1, fevereiro de 2015

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Introdução Nas duas últimas décadas, o combate à intolerância, ao racismo e à xenofobia compareceu às agendas de diferentes países e fóruns mundiais. A edição da lei 10.639/03 foi resultado da demanda da comunidade afro-brasileira pelo reconhecimento e valorização dos negros, bem como de reivindicação de movimentos sociais e da sociedade civil em geral, a fim de garantir que, nas escolas, sejam resgatados

elementos

culturais

dos

afrodescendentes,

os

quais

contribuíram decisivamente para a formação da cultura e identidade nacional. O fato de a Lei 10.639 não contemplar o estudo da cultura dos índios brasileiros tornou-se alvo de críticas da comunidade de grupos indígenas. Assim, a Lei 11.645 veio corrigir essa lacuna tornando obrigatório também o ensino da cultura dos povos indígenas no currículo escolar. Essa obrigatoriedade traz à baila reflexões sobre o instrumental a ser utilizado, haja vista a determinação de que, para seu cumprimento, o conteúdo programático [...] incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. A lei 11.645 determina, ainda, que o conteúdo seja ministrado “no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras”. Revista Australirica, Vol. 1, N° 1, fevereiro de 2015

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A consciência da diversidade cultural, foco das referidas leis, engloba o conhecimento das diferenças culturais que existem entre as pessoas e seus artefatos de informação e comunicação, como a linguagem, a escrita, as tradições, a forma como as sociedades estão organizadas, sua concepção de moral e de religião, e as suas políticas. Assim, não existe estudo sobre a diversidade que não seja feito sob a ótica do comparatismo. Não pretendemos aqui discorrer sobre o surgimento da literatura comparada como disciplina ou sobre o seu percurso desde a origem, mas sobre o seu método e como ele poderá constituir um instrumental adequado aos estudos que propiciarão o cumprimento das leis 10.639 e 11.645, em especial no que diz respeito aos estudos literários.

1.Olhares sobre a diversidade Debruçar-se sobre a história e a cultura dos grupos étnicos que concorreram para a formação da população brasileira, equivale a “assumir

a

responsabilidade

pelos

passados

não

ditos,

não

representados, que assombram o presente histórico” (BHABHA, 1998, p. 34), mas também é parte de um projeto de conscientização do povo brasileiro, em particular da população em idade escolar, de que o Brasil é um país que constitui um mosaico de várias vertentes culturais, a que chamamos de “cultura brasileira”, muito embora, conforme afirma Darcy Ribeiro (1995), o correto seria pensar em “culturas brasileiras”, na medida em que a formação do nosso povo constitui o resultado da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos escravizados, e, posteriormente, da miscigenação com imigrantes de origens diversas, que, a partir do século XIX, para cá vieram em busca de oportunidade de trabalho.

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No bojo das reflexões que culminaram nas referidas leis está a superação da tradição de negação do outro imposta pela hegemonia eurocêntrica, que, ao longo de nossa história, e sob o mascaramento de um convívio harmônico entre etnias, perpetuou o racismo. A escola, palco conhecido de episódios de racismo e preconceito, hoje em dia pomposamente caracterizados como bullying, é, assim, eleita como órgão multiplicador de saberes que propiciam um olhar igualitário sobre as etnias. Ao determinar que os conteúdos sobre a história e a cultural afrobrasileira e indígena sejam, principalmente, ministrados nas aulas de educação artística, de literatura e história, as leis 10.639 e 11.645 expressam a importância de não apenas conhecer a trajetória e as lutas desses grupos étnicos, mas de resgatar as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, bem como o seu legado nas manifestações artísticas.

1. O comparatismo como instrumental Em um primeiro momento, cabe-nos indagar: por que eleger o instrumental da literatura comparada como o ideal para o cumprimento das leis no que diz respeito à literatura? Importa relembrar que a disciplina de Literatura Comparada se formou a partir do desejo cosmopolita de acolher a diversidade. Como ela sempre esteve atrelada a uma inter-relação entre literaturas e culturas, há que se refletir sobre a forma com que contribuiu para a resolução da problemática da dependência no Brasil e, ao mesmo tempo, sinalizar o papel e a importância da disciplina no século XXI, na medida em que o seu instrumental revela-se essencial ao estudo da diversidade cultural. Pichois e Rousseau assim definem a disciplina:

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A literatura comparada é a arte metódica, pela busca de ligações de analogia, de parentesco e de influência, de aproximar a literatura dos outros domínios da expressão ou do conhecimento, ou então os fatos e os textos literários entre eles, distantes ou não no tempo e no espaço, contanto que eles pertençam a várias línguas ou várias culturas participando de uma mesma tradição, a fim de melhor descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los. (Pichois; Rousseau apud PerroneMoisés, 1990, p. 92).

A busca de analogias, de influências, instituiu, em um primeiro momento, uma prática investigativa condicionada pela assimetria, ou seja, uma relação de débito literário, pressupondo graus diferenciados de importância aos textos e conferindo sempre ao texto fonte a primazia. Essa

assimetria

trazia

no

bojo

relações

de

dependência,

de

subalternidade cultural, que a ótica comparatista de então contribuiu, de certo modo, para sedimentar. Claro está que essa visada não perdurou e importa ressaltar as palavras de Tania Carvalhal, quando afirma que: [...] ao aproximar elementos parecidos ou idênticos e só lidando com eles, o comparativista perde de vista a determinação da peculiaridade de cada autor ou texto e os procedimentos criativos que caracterizam a interação entre eles. (Carvalhal, 1999, p. 31)

Assim, as diferenças assumiram uma importância equivalente às semelhanças, permitindo reflexões outras, só possíveis por meio da percepção da diversidade. Com o passar do tempo, a literatura comparada passou a analisar as relações intersemióticas e, mais recentemente, com a cultura e outros campos, tais como sociologia, psicanálise, filosofia e antropologia, Revista Australirica, Vol. 1, N° 1, fevereiro de 2015

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analisada em pontos que se referem ao significado, à autoria, aos aspectos ideológicos, ao gênero, à identidade cultural e à diferença. Essa nova possibilidade de abordagem literária causou uma cisão entre

dois

paradigmas

distintos

no

interior

das

pesquisas

comparativistas, principalmente no que diz respeito à abordagem tradicional. No entanto, seja sob a égide da literatura comparada ou dos estudos culturais, os estudos comparados do texto literário necessitam de contextualização, de diálogos que transcendem os limites do texto em si. Ao pensar a diversidade, é, sem dúvida, necessário pensar a identidade. Os estudos culturais contemporâneos dedicam-se a investigar e a tentar encontrar respostas para inquietações do homem contemporâneo, que perpassam as noções de identidade, fronteira, limite e trânsito. Ao fazê-lo, adotam o instrumental do comparatismo; a visada que permite o diálogo entre disciplinas. Fazer analogias, comparar são processos inerentes à consciência e à vida humana e o próprio processo de conhecimento do outro e de si próprio, nesse intercâmbio entre realidades culturais diversas, implica um confronto que vai além do mero conhecimento do outro. Implica a comparação de si próprio com aquilo que se vê no outro (Franco, 2000). Enquanto recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de estudo uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe. Assim, os limites que separam os estudos da cultura dos estudos comparados em literatura tornam-se tênues, uma vez que o trânsito de informações assume

uma

característica

intercomplementar.

É

desse

caráter

intercomplementar e interdisciplinar que a escola deve se valer para implementar as leis 10.639 e 11.645 em seu currículo.

1.1 Com que voz as etnias falam?

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Entre nós, a identidade é irrevogavelmente uma questão histórica. Nossas sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas, mas diversas. Aqueles aos quais originalmente a terra pertencia, em geral, pereceram há muito tempo – dizimados pelo trabalho pesado e a doença (Hall, 2003, p. 30). Ao longo da história, os grupamentos étnicos minoritários sofreram uma afasia cultural. A conquista da voz tem sido paulatina e, no caso específico dos indígenas, ainda se encontra em processo e, por que não dizer, incipiente. A voz é, por excelência, o meio de enunciação da identidade. A identidade e a diferença são criaturas da linguagem, o resultado de um processo de produção simbólica e discursiva que define relações sociais sujeitas a vetores de força. A dinâmica do colonialismo instituiu relações assimétricas de poder que dividiram o mundo por meio de binarismos, tais como colonizador/colonizado, centro/periferia, criando uma fronteira de exclusão. A identidade hegemônica alimentava-se da imagem do Outro, para o qual se apresentava como modelo. A atitude etnocêntrica definia o colonizado de dois modos distintos: projetando nele os seus valores, tornando-os idênticos a si mesmos, ou considerando-os como inferiores, justificando a sua subordinação por meio da diferença. Assim, as relações

estabelecidas

na

sociedade

colonial

se

ajustavam

a

determinadas regras que funcionavam como um indicativo da aceitação do colonizado, como, por exemplo, o uso do idioma do colonizador. A dissolução da assimetria cultural implica compreender que a construção da diferença e dos discursos sobre a diferença e a alteridade varia segundo a história cultural de cada país. No Brasil, a mistura cultural engendrou o processo de mestiçagem e seus discursos na construção da nação, sublinhados por uma percepção universalista que,

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de certo modo, contribuiu para a construção do mito da democracia racial. Kabengele Munanga, ainda que reconhecendo a importância de Gilberto Freyre por “ter mostrado que negros, índios e mestiços tiveram contribuições positivas na cultura brasileira”, afirma que o mito da democracia racial “encobre os conflitos raciais”, impedindo que os membros das comunidades não brancas tomem consciência dos “sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade” (Munanga, 2006, p.88) Mas de onde e como se enunciam as vozes dos grupos étnicos minoritários? Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que toda enunciação requer ausculta, e o primeiro passo para a percepção dessas vozes é o conhecimento de que, no processo de formação do povo brasileiro, as trocas simbólicas entre os grupos ocorreram em uma via de mão dupla. Se o colonizador afetou as culturas desses grupos, foi também por elas afetado. Assim, qualquer passo no sentido de implementação das leis nas escolas deve passar necessariamente por essa concepção de trocas culturais. Em um segundo momento, importa demonstrar que um grupo não está apto a falar pelo outro, portanto, como a literatura pode bem demonstrar, a representação do outro não equivale à voz. A representação do indígena na literatura brasileira pode ser o melhor exemplo da disparidade entre a voz representada e a voz enunciada. A construção mítica do índio como representante da nacionalidade brasileira torna-se um malogro ao reconhecermos em Peri a representação de um indígena em perfeita conformidade com o olhar do colonizador, muito embora, o indianismo tenha sido um passo inegável para a configuração de uma literatura nacional. A subalternidade da representação do indígena na obra de Alencar, retomada sob outro ângulo por Oswald de Andrade e Mário de Revista Australirica, Vol. 1, N° 1, fevereiro de 2015

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Andrade no modernismo, configura a condição do sujeito pós-colonial, ou seja, o sentir-se estrangeiro em seu próprio território. No Brasil do século XX, são dados os primeiros passos para que o índio venha a ser sujeito de sua própria enunciação, ao invés de objeto no enunciado do colonizador. A produção literária indígena— associada à etnopoética, não só no sentido de estar à margem da poética hegemônica, de tradição europeia, mas em função do fato de que todas as poéticas são também etnopoéticas, na medida em que se configuram segundo culturas produtoras de textualidade—, busca encontrar o seu caminho de afirmação no panorama literário nacional. Como em outros países, o ex-colonizado (ainda culturalmente colonizado), escreve na língua do colonizador e, por meio dela, tenta afirmar a sua individualidade. A adoção do idioma do colonizador permite que a sua cultura original seja reinterpretada por meio de um processo de tradução cultural. As textualidades indígenas têm um caráter híbrido, estando não só vinculadas à grafia pictórica ou táctil, mas também à tradição oral e a elementos de performance. Assim, os textos indígenas são prolíferos em ilustrações que não apenas revelam a diversidade cultural das tribos indígenas, mas colaboram para a ressignificação da escrita como expressão de seu universo cultural. A “ausculta” das vozes que eclodem dos textos desses grupos étnicos exige, igualmente, o instrumental comparatista, pois implica ler e refletir sobre a localização sócio-político-cultural do narrador e também do leitor, confrontando as cosmovisões em diálogo, assim como os contextos de produção e recepção desses textos. Kaka Werá Jecupé em seu livro A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio (1998) afirma que a obra foi escrita para resgatar e difundir a sabedoria ancestral indígena brasileira, isto é, ele define exatamente de onde a sua voz se enuncia. Índio tapuia, ou txucarramãe, nascido em aldeia guarani, no sul de São Paulo, ele Revista Australirica, Vol. 1, N° 1, fevereiro de 2015

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estudou em escola pública, onde conheceu a história oficial do Brasil, que jamais incluiu as culturas indígenas, o que o levou a mergulhar em sua ancestralidade e escrever o livro. Percebe-se, assim, que o local de enunciação é um entrelugar, de onde se vislumbra e testemunha a ancestralidade, de onde se reinvindica o direito à voz. A voz do indígena no panorama da literatura brasileira tem a característica de denúncia, tomando para si a tarefa de narrar não apenas a situação do índio, mas também de representar com propriedade a herança étnica. Dentre os autores mais conhecidos, Daniel Munduruku, Eliana Potiguar, Olívio Jekupé e Graça Graúna vivem em grandes centros, onde, cada um a seu modo, tentam resgatar as culturas indígenas. Em relação à representação do negro na literatura, observa-se processo similar à representação do indígena, à medida que, em muitas obras em que o sofrimento e a melancolia do escravo são representados, ouve-se uma voz alheia ao negro, que fala por ele, que o tutela, mas que em nenhum momento questiona a legitimidade da escravidão. É de especial relevância que, na implementação da lei no âmbito dos estudos literários, que se trace um paralelo entre a forma como o negro era mostrado na literatura brasileira desde seus primórdios e a maneira como essa figuração foi se transformando, na medida em que os movimentos pela igualdade étnica e social foram se fortalecendo, e o afrodescendente pôde assumir a narração de sua própria história. A matéria negra, embora só ganhe presença mais significativa a partir do século XIX, surge na literatura brasileira já no século XVII, nos versos satíricos e demolidores de Gregório de Matos. No Brasil, a literatura escrita por negros surge no século XVIII, o que se pode comprovar pelos textos de Domingos Caldas Barbosa, Lima Barreto, Solano Trindade, Luís Gama e Maria Firmina dos Reis, porém, só a partir da década de 50, sob a inspiração pelos movimentos negros dos Estados Unidos e da França, passa a ter maior visibilidade na Revista Australirica, Vol. 1, N° 1, fevereiro de 2015

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sociedade, sendo valorizada na sua qualidade literária e usada também como instrumento de denúncia contra o desrespeito aos direitos sociais dos afrodescendentes. No âmago da afasia cultural do negro está o fato de que o processo da

diáspora

africana

implicou

dispersão,

desterritorialização

e

expropriação o que gerou uma séria crise de identidade. Em O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência, Paul Giroy (2001) apresenta o resultado de seus estudos sobre a diáspora negra, e propõe uma mudança de paradigma para se pensar a inserção da cultura negra na modernidade não mais a partir da ideia de raça, mas sim da ideia de “diáspora”. A situação diaspórica não apenas é responsável pelo silenciamento,

mas

também

pela

ambivalência

identitária

dos

afrodescendentes, pela crise do “pertencimento”. A representação do negro pela ótica do branco é passível de detecção em obras como Caramuru, de Santa Rita Durão, onde o herói negro é personificado na figura de Henrique Dias, que luta bravamente na guerra contra a dominação holandesa, e em Quitúbia, de Basílio da Gama, em que o herói é Domingos Ferreira da Assunção, capitão angolano que luta na Guerra Preta. Nas duas obras, o homem negro somente assume um papel de destaque na medida em que luta a favor dos portugueses. Outra imagem é a do escravo nobre, que vence por força de seu branqueamento, embora a custo de muito sacrifício e humilhação, caso, por exemplo, da escrava Isaura, na obra homônima de Bernardo Guimarães e de Raimundo, em O mulato, de Aluisio de Azevedo. A figura do negro vítima é a que predomina na obra de Castro Alves, que, como bem recordou Merquior, não busca a especificidade cultural e psicológica do negro; ao contrário, assimilando-lhe o caráter aos ideais de comportamento da raça dominante, branqueia a figura moral do preto, Revista Australirica, Vol. 1, N° 1, fevereiro de 2015

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facilitando-lhe assim a identificação simpática das plateias burguesas com os sofrimentos dos escravos. (Merquior, 1977, pp. 92-93) Embora seja inegável a importância de o poeta abordar a condição humana do negro em um momento histórico em que este é coisificado, não é a voz do negro que se ouve. A herança cultural africana, como toda manifestação cultural, especialmente aquelas cujas bases de transmissão são orais, passou por vários processos de ressignificação, mesclou-se a outras influências culturais, transformou-se, sobreviveu, mas ainda hoje é possível sentir os efeitos das estratégias de dominação do homem branco. Essas estratégias são amplamente perceptíveis no que diz respeito à autoria, isto é, no “domínio da voz”. A produção literária de autores e autoras negras vive em verdadeiros sacos de varas. Primeiro é acusada de essencialismo, depois é punida com o anonimato. Trata-se de um anonimato complexo, que retira a legitimidade do negro como escritor. A esse escritor é reservado um lugar de objeto de estudos no discurso dos pesquisadores, ou seja, alguém que só tem existência através do agenciamento do outro [...] Na verdade, existe a prática de defender o status quo da literatura e a visão de que é um lugar reservado a determinados assuntos, específicos das suas formas de abordagens. (Alves, 2002, p. 235)

Ao escrever sobre a vida de Carolina Maria de Jesus, José Carlos Sebe Meihy chama a atenção para o fato de que é a ótica hegemônica que concede “licenças democráticas” que permitem ou não a permanência de um escritor negro:

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O alcance de seu livro mais importante, Quarto de despejo, colocado a público em 1960, projetou-a como sucesso inquestionável, ainda que fátuo marcante. A glória de Carolina era perturbadora, mas, dadas as sequentes ondas de apagamento de sua produção publicada, o sucesso funcionou-lhe como contraponto intermitente no céu nacional prenhe de literatura de mulheres bem nascidas. Neste sentido, o aparecimento de Carolina no mundo reconhecido e público dos brancos era uma licença democrática. O discreto charme da burguesia nascente, contudo, não continha o mau cheiro de lixos alimentadores de misérias escondidas em favelas que inchavam as promessas de megalópoles. Explicitação disto é dada pelo tratamento crítico-literário e historiográfico legado à obra da escritora que, depois de figurar como ‘estrela de um novo tempo’, foi apagada, sendo esquecida porque sua história se desbastou entre nós arredondando diferenças. Enfim, a lógica do tempo mostrou-se senhora da razão: o silêncio colocou todas as coisas (e pessoas) no lugar devido. (Apud Jesus, 1996, 9) Para Sebe, a autora produziu uma obra que, segundo o impulso inicialmente dado, seria uma promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural, não fosse o ostracismo a que foi quase que de imediato relegada. O silenciamento que, em tempos modernos, ainda mantém a sua operação. Se a cultura é a esfera na qual se naturalizam e se representam as desigualdades sociais, ao mesmo tempo, ela é também o meio através do qual os diferentes grupos subordinados vivem e opõem resistência a essa subordinação. A percepção das diferenças e o reconhecimento da dominação e das resistências contra a dominação são elementos importantes para a identificação dos problemas e de suas fontes de origem. Mas, do ponto de vista político, este reconhecimento não é suficiente se não contribuir para o conhecimento histórico dos processos e para sua transformação.

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Cabe igualmente observar que não há especificamente uma literatura negra, mas negros que fazem literatura. São autores que despontaram no mercado editorial brasileiro no momento em que os movimentos de ativismo político e social em defesa dos direitos civis dos negros começaram a ganhar força e as questões abordadas nessas obras começaram a ser discutidas mais profundamente em áreas como a Sociologia e a Antropologia. Suas obras refletem sobre a sociedade brasileira do ponto de vista de suas condições étnica e social e de quem vive e vivencia a realidade das periferias urbanas brasileiras. Autores, como Conceição Evaristo e Paulo Lins, para quem as próprias experiências são motivações para a produção literária, assumem a função social da literatura, ainda que não desconsiderem a importância de essa função estar sempre relacionada com o trabalho criativo da linguagem. Entretanto, criar um nicho para a produção literária do negro equivale a continuar a conferir-lhe um tratamento discriminatório. Como bem aponta Domício Proença Filho (2004): O resgate dos mitos, a proximidade cultural com a África, mas sem distorções nostálgicas, e com outros países em que a discriminação existe, o tempo escravo repensado, as revoltas, a situação do negro e de seus descendentes na construção socioeconômica do país e sua marcada participação nos tempos heroicos da formação da nacionalidade, as contribuições linguísticas colocadas em evidência na nossa língua portuguesa do Brasil, podem, entre outros traços, contribuir, através da transfiguração na literatura, para o melhor conhecimento e o redimensionamento da presença do negro na sociedade brasileira. São verdades e valores capazes de se opor vigorosamente aos estereótipos e preconceitos ainda vigentes no comportamento de muitos brasileiros.

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Os estudos históricos e artísticos sobre as duas etnias devem ser entrecruzados com as formas de representação literária desses grupos ao longo do tempo, revestidos do cuidado de não lhes conferir o lugar do outro, do excêntrico, mas de compreender as suas contribuições sociais, econômicas e políticas à história do Brasil.

Considerações finais Os estudos literários comparados no âmbito das leis 10.639 e 11.645 devem estar voltados para a análise de como o indígena e o negro são representados e se autorrepresentam, a fim de promover a compreensão de como a cultura africana e indígena se amalgamaram à cultura do colonizador português, deixando-nos um vasto legado. As diferenças entre a voz representada, ou seja, as representações do índio e do negro segundo a ótica do branco, e a voz enunciada, dos autores que reivindicam para si o direito de se autorrepresentarem, devem ser compreendidas segundo os seus contextos de enunciação e em diálogo com outras disciplinas, como a História e a Educação artística. A inserção de conteúdos via literatura apresenta outras nuances, como, por exemplo, o trabalho a ser desenvolvido por meio de livros infantis e infanto-juvenis, para os quais há de ser desenvolvido outro tipo de abordagem, adequado à idade dos estudantes, e que merece uma análise à parte, que não é o foco deste artigo, uma vez que a abordagem aqui proposta envolve obras de nossa literatura como um todo e destinase ao ensino médio. Sem dúvida alguma a leitura de obras de autores pertencentes a esses grupos étnicos e a percepção de sua abordagem da diversidade cultural permite uma aproximação às histórias de vida de boa parte da população brasileira. Nesse sentido, permitirá que os estudantes não apenas desenvolvam o respeito pela diversidade, mas também que Revista Australirica, Vol. 1, N° 1, fevereiro de 2015

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valorizem o percurso percorrido por esses grupos étnicos e a sua luta para tornar a sua voz audível.

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