A literatura de polémica judaico-religiosa em Portugal no século XV

July 18, 2017 | Autor: Alice Tavares | Categoria: Jewish Studies, Jewish History
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A literatura de polémica judaico-religiosa em Portugal no século XV

Alice Tavares

A literatura portuguesa de polémica judaico-religiosa constituiu um fenómeno de reduzida expressão ao longo da Idade Média, em contraste com os demais reinos da Península Ibérica – principalmente, Castela, Aragão e Catalunha -, onde os debates filosófico-teológicos e a redação de obras deste género literário foram uma realidade bastante generalizada.1 Este tipo de literatura desenvolveu-se a par de vários acontecimentos, de instabilidade social, hostilidade e intolerância contra a comunidade hebraica. Este tipo de eventos faziam-se notar cada vez mais, desencadeando situações de conflito e de revolta, como aconteceu em Sevilha, com os progroms, em 1391, que se alastraram a diversas cidades e vilas castelhanas, aragonesas e catalãs. Estas problemáticas são já conhecidas, remontando ao tempo dos visigodos até um “siglo después de la expulsión de los judios en 1492” (López Martínez, 1992: 39), pelos Reis Católicos. A existência de poucos exemplares de literatura de apologética em Portugal deve-se possivelmente à ausência de episódios de discussão teológica (ou pelo menos que se encontrem registados) entre representantes das duas religiões monoteístas, cristianismo e judaísmo, tal como as Disputas de Barcelona (1263) e de Tortosa (1413), e à convivência de certa forma pacífica entre as ambas as comunidades étnicoreligiosas, até aos finais do século XIV. A partir da conjura política de 1383-85, que marcou um momento de viragem dinástica, culminando na ascensão ao trono de D. João I, seguiram-se ainda que de forma paulatina, uma sucessão de momentos de tensão e conflito, ainda que de “pequena dimensão”, mais relacionados com casos de criminalidade urbana, facilmente aplacados pelo poder régio, em comparação com a realidade vivida nas Coroas de Castela e Aragão. Os levantamentos contra a população judaica agudizaram-se também com a chegada de famílias hebraicas, provenientes de Castela, em busca de uma nova vida em Portugal, na sequência do decreto de expulsão dos Reis Católicos, em 1492. Todos estes acontecimentos culminaram com a expulsão 1

Agradeço o apoio e a colaboração da Prof. Doutora Manuela Santos Silva na revisão

científica ao longo da elaboração deste texto.

dos judeus do reino, decretada por D. Manuel I, em 1498 e, anos mais tarde, no massacre de Lisboa, em 1506. Diante destas circunstâncias sociopolíticas e religiosas, chegaram até aos nossos dias, algumas obras portuguesas de literatura de polémica. Desde o século XIII, são já conhecidos alguns exemplares, tais como sermões de Frei Paio de Coimbra, o Colírio da Fé de Frei Álvaro Pais Gomes Charinho e o Espelho dos Hebreus de Frei João de Alcobaça. A partir dos finais do século XIV, podemos encontrar O Livro da Corte Imperial, conhecido também por Corte Imperial. Já as obras, Horologium Fidei (Relógio da Fé), do franciscano eborense, André do Prado e a Adjutorium Fidei (Ajuda da Fé), de Mestre António e, por fim, os sermões de Mestre Paulo que remontam ao século XV. Somente, estas últimas serão objeto de consideração. Em traços gerais, as obras de polémica judaico-religiosa tinham o objetivo de defender o cristianismo em detrimento das demais religiões. Ou seja, estas tinham a finalidade de garantir a conversão dos judeus à fé cristã e assegurar a vigência dos princípios cristãos entre os conversos que constituíam um problema sócio religioso, sobretudo, a partir do reinado de D. Manuel. A população conversa via-se assim numa situação ambígua e dual, visto que nem sempre era sincera e à doutrina cristã, fazendo da sua nova religião um modo de sobrevivência e de dissimulação das práticas judaicas. Neste sentido, os textos de polémica apresentam algumas novidades, a partir dos finais do século XIV, com a Corte Imperial.

Literatura de polémica judaico-religiosa de quatrocentos Este texto de polémica é uma obra anónima do final do século XIV ou dos princípios do século XV, embora a sua datação seja um tema passível de discussão, assim como a sua origem. Desta obra conhece-se um códice. Conserva-se uma “única cópia apógrafa en la Biblioteca Pública Municipal de Oporto, en un manuscrito membranáceo de letra gótica” (Díaz Marcillla, 2012: 82). Este manuscrito datado do século XVIII, esteve na posse na Afonso Vasques de Calvos, morador na referida cidade e criado do Duque de Bragança. O Livro da Corte Imperial teve vários proprietários, pertencendo inicialmente ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Fez também parte da biblioteca do Rei D. Duarte e é provável que a Infanta D. Beatriz, sua nora, tivesse outro exemplar. Este último espécime foi doado ao cenóbio de Santo António de Beja, no Alentejo, por Atão de Oliveira, através do porteiro Luís d’ Atouguia de Ruy Paes, a 21 de Dezembro de 1507. Levanta-se porém a questão da

origem da Corte Imperial. Segundo Adel Sidarius, este tratado fosse talvez proveniente da Catalunha, a quando da Disputa de Barcelona, em 1263, chegando assim a Portugal, com o casamento de D. Dinis com Isabel de Aragão (Sidarius, 1994: 148). Assim, esta obra teria sido posteriormente traduzida do catalão para português. Da primeira metade do século XV, data também o Relógio da Fé, isto é, o Horologium Fidei. Sobre ele, conhecemos a sua origem e dispomos de informações sobre o seu autor. Trata-se igualmente de um debate teológico, redigido pelo frade franciscano, André do Prado, nascido em Évora, provavelmente, antes de 1385. Este estudou filosofia e teologia nas Universidades de Paris e Bolonha, tornando-se, anos mais tarde, responsável da Cátedra de Teologia na Universidade da Cúria Pontifícia, por volta de 1425-1426. Em Roma, foi também procurador do Arcebispo de Braga, D. Fernando Pires da Guerra e, no pontificado de Eugênio IV, foi representante de Fernando Gonçalves, Reitor da Igreja de Santa Cruz de Torre da Maia, da diocese do Porto. Durante a sua estadia em Itália, este manteve contatos com os humanistas italianos, principalmente, com Poggio Bracciolini, também secretário da Cúria. Pensa-se ainda que o franciscano tivesse participado Concilio de Basileia, entre 1431-1438. André do Prado regressou posteriormente a Portugal, talvez um pouco antes de 1450, com a função de vigário da Ordem franciscana. Desconhece-se porém se exerceu o ofício de professor de teologia na Universidade de Lisboa ou no Estudo Geral do Convento de São Francisco, associado à mesma instituição. É possível que o franciscano escrevesse a obra Horologium Fidei, em Portugal, a pedido do Infante D. Henrique, enquanto Prado aproveitava a sua instância no seu país natal. Segundo Aires Nascimento, o texto não foi redigido em Itália, mas sim em terras portuguesas, devido às caraterísticas codicológicas do manuscrito. Posteriormente foi levado posteriormente para a Biblioteca da Curia Pontifícia, em Roma, onde Prado foi professor. E, é aqui, onde se encontra atualmente. (Nascimento, 1994: 86) O Livro da Corte Imperial e o Horologium Fidei apresentam caraterísticas pioneiras, tais como o uso do diálogo em português entre vários personagens. Estas obras consistem em debates inter-religiosos, com o fim de evangelizar e de levar a fé cristã aos outros povos, combatendo assim as heresias e ressaltando, ao mesmo tempo, a importância dos princípios cristãos, a partir do diálogo, em detrimento dos seguidores das outras religiões. O diálogo facilitava a exposição de ideias e fundamentos teológicos, tornando-os mais acessíveis, ajudando assim a tarefa de defesa e de corroboração dos interlocutores, como acontecia, por exemplo, com a Igreja Militante,

na Corte Imperial. Esta personagem desenvolve um papel chave no Livro da Corte Imperial, uma vez que estava encarregada de conduzir a discussão filosófico-teológica com os demais membros das outras confissões religiosas. Entre eles, estavam presentes representantes das três religiões monoteístas – cristianismo, islamismo e judaísmo - , um bispo grego e os gentios. Já no Horologium Fidei, o diálogo filosófico e teológico estabelece-se somente entre duas personagens: o próprio autor, André do Prado, e o Infante D. Henrique, baseado no Símbolo dos Apóstolos (o Credo). Por outro lado, a técnica do diálogo permite aos autores o confronto de diversas posturas e opiniões entre os personagens, dando-lhes amplitude na exposição das suas ideias. A redação em português em detrimento do latim é uma outra novidade nestes tratados de polémica. Este facto permitiu uma melhor difusão e compreensão da doutrina cristã da parte dos indivíduos, fazendo das línguas vernaculares um instrumento importante na pregação, com o fim de fazer frente às heresias, que eram facilmente associadas às outras religiões, como o judaísmo. Ambas as obras apresentam traços comuns quanto às temáticas abordadas. Centram-se principalmente na discussão dos princípios do cristianismo, como o Credo, como já se disse anteriormente. São portanto debatidos o nascimento de Jesus Cristo, fruto da conceção da Virgem Maria pelo Espírito Santo; a existência de um Deus único, a Santíssima Trindade, o Sacramento da Eucaristia, a Encarnação, o pecado original, entre outros pontos da doutrina cristã. No entanto, a chegada do Messias foi só alvo de discussão na Corte Imperial, com o fim de convencer a comunidade judaica, dizendo melhor, os rabis, de que o seu ansiado Redentor já tinha chegado na figura de Cristo para os libertar, uma vez que no Antigo Testamento já estava especificado o momento, o tempo e o lugar do seu nascimento. Como já dissemos antes, estes dogmas eram comentados entre os diversos personagens, com o intuito de expor as heresias dos outros povos, como o caso dos judeus, ao mesmo tempo que são expostos os seus princípios, provando que eram falsos. Pretendia-se assim demonstrar que os judeus estavam equivocados, devendo ser encaminhados e fazer-lhes descobrir o sentido da fé verdadeira, a cristã. Nos dois tratados, os autores serviram-se portanto de vários recursos e argumentos para fazer prevalecer as doutrinas do cristianismo, com o objetivo de os tornar compreensíveis, através de exemplos. As Sagradas Escrituras, sobretudo, os textos do Antigo Testamento, são as fontes mais utilizadas pelos interlocutores para refutar o pensamento teológico dos hebreus, confundindo os “adversários judeus pelas

autoridades por eles admitida” (Nascimento, 1994: 94). Prado, assim como o autor anónimo do Livro da Corte Imperial, recorre também a citações dos Santos Padres e dos Mestres da Igreja; e aos textos de outros autores, como por exemplo, as obras de Raimundo Martí, Raimundo Lulo e Nicolau de Lira. Sobre a Ajuda da Fé (Adjutorium Fidei), de Mestre António, judeu converso, médico e afilhado de D. João II, pouco se sabe. Trata-se de um diálogo entre um judeu e o próprio Mestre António, baseado também na metodologia seguida pelo converso, Jerónimo de Santa Fé, outrora médico de Alcañiz, Yehosua ha-Lorki e participante na Disputa de Tortosa. O objetivo desta obra, tal como as suas antecessoras, consiste em refutar os argumentos do judeu, através dos textos do “Talmud, do Midrash, dos profetas e dos seus glosadores como mestre Moisés do Egito, rabi Menahem da Galileia, rabi Salomão, Rabi Aquiba” (Tavares, 1995:30). Atualmente, o manuscrito conserva-se no Colégio de Évora dos Padres Jesuítas (Kayserling, 1971:75). No século XV, não se produziram apenas obras de polémica. Os sermões de Mestre Paulo de Braga proferidos na sua cidade natal são um caso particular. Pouco se sabe sobre as suas pregações e as suas motivações contra os judeus, uma vez que, em Braga, não se registaram indícios de conflitos entre ambas as comunidades, como chegou acontecer, de forma residual, nas cidades de Lisboa e Porto. Desconhece-se porém o conteúdo dos sermões, embora se possam encontrar informações indiretas, dos sentimentos e comportamentos antijudaicos do converso Mestre Paulo, através de epístolas régias encontradas no Arquivo Distrital de Braga (Moreno, 1976: 11), constituindo assim uma “novidade em Portugal na época medieval” (idem, 6). Os sermões de Mestre Paulo tinham a finalidade de incitar e forçar os cristãos a marginalizar os judeus, apartando-os, “através da negação dos bens essenciais para a sua subsistência” (idem, 8). Estas informações chegaram até nós, graças a uma carta régia do Rei D. Afonso V, dirigida ao Deão e ao Cabido da Sé de Braga. Este documento expressa as queixas da população hebraica contra as atitudes do clérigo menor, obrigando os seus membros a assistir às suas predicações. Os sermões incitavam ainda a revolta dos cristãos, que eram ameaçados de excomunhão, no caso de manterem qualquer tipo de convivência com os judeus. Joaquim de Assunção Ferreira vai ainda mais longe ao comparar Mestre Paulo com o dominicano de origem valenciana, Vicente Ferrer (Ferreira, 2006: 353). Face a estes acontecimentos, temos também notícias da defesa e proteção da comunidade judaica de Braga, mediante uma carta do monarca, D. Afonso V, que

contou com o apoio do Deão e do Cabido da Sé da referida cidade. O documento tinha o objetivo de proibir Mestre Paulo de falar mal dos judeus, de os ameaçar, promovendo o desprezo contra eles, da parte da maioria cristã. Além disso, o clérigo foi obrigado a comparecer diante da corte, apesar de se desconhecerem os resultados de tal encontro com o rei. Deste modo, foi possível findar os distúrbios levados a cabo pelos cristãos, restringidos a uma zona do reino, como Braga, que foi “contrariada pela política protecionista dispensada por D. Afonso V aos judeus portugueses.” (idem, 8).

Conclusão

Em suma, apesar de a literatura de polémica judaico-cristã portuguesa ser escassa e carecer de originalidade, temos notícia de obras teológicas deste tipo desde o século XIII. É, no entanto, a partir dos finais do século XIV, que podemos encontrar caraterísticas peculiares neste tipo de obras, tais como o diálogo entre várias personagens e o uso do português na redação dos textos em detrimento do latim, com o fim de explicar e tornar acessíveis a doutrina cristã, provando que os infiéis, como os judeus, estavam errados em seguir os seus preceitos religiosos. A ideia do diálogo funcionava portanto como um veículo para alcançar a salvação e de missionação da fé cristã. A escassa difusão deste género literário em Portugal prende-se talvez com o “silêncio das fontes mais diversas sobre as disposições, havidas no reino, entre membros dos dois credos religiosos, levam-nos a concluir pela sua irrelevância, ou por uma caráter amigável de discussão filosófico-religiosa” (Tavares, 1982: 439). As obras portuguesas de apologética não acompanham assim, de certa forma, o curso dos acontecimentos de intolerância e agressividade contra os judeus, que começam a fazerse notar nos finais do século XIV. No entanto, desconhece-se o impacto e as consequências dos textos de controvérsia na sociedade portuguesa, exceto, quando se trata do caso de Mestre Paulo com os sermões proferidos em Braga, sendo facilmente aplacados por D. Afonso V e pela comunidade judaica ao pedir ajuda régia.

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