A literatura e a universidade
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A LITERATURA E A UNIVERSIDADE
05 DE DEZEMBRO DE 2016 EWERTON MARTINS RIBEIRO
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UFMG lança coletânea representativa da trajetória de sua Revista Literária, cujo advento completa cinquenta anos neste 2016
A UFMG está lançando o volume RL Revista Literária da UFMG 50 anos, publicação comemorativa que reúne cinquenta textos que proporcionam um panorama do que foi a trajetória da revista. A publicação será distribuída gratuitamente em eventos realizados no decorrer do ano no contexto das comemorações dos 90 anos da UFMG, que começaram em setembro deste ano e vão até setembro de 2017. Fundada por Luiz Vilela, Luis Gonzaga Vieira e Plínio Carneiro, a RL teve ao todo 27 edições: 26 publicadas entre 1966 e 1996 e uma última publicada em 2002. No decorrer dessa trajetória, revelou ou ajudou a revelar nomes que se tornaram essenciais no meio artístico e intelectual brasileiro, como, além dos próprios fundadores, Sérgio Sant’Anna, Ronald Claver, Maria Esther Maciel, Lucia Castello Branco, Jovino Machado, Jaime Prado Gouvêa, Humberto Werneck, Henry Corrêa de Araújo, Guiomar de Grammont, Francisco de Morais Mendes, Fabrício Marques, Carlos Herculano Lopes, Antonio Barreto e Adão Ventura, entre outros. A publicação que agora vem a público é fruto do trabalho de um grupo formado por professores, pesquisadores e alunos de pósgraduação e graduação da universidade, que investiu dois anos na curadoria textual dos quase 900 textos publicados pela revista e na formatação editorial do volume. Integro este grupo, que trabalhou no projeto sob a coordenação do escritor Luis Alberto Brandão, que é professor da Faculdade de Letras da UFMG.
Andei conversando com alguns desses autores sobre a relevância da Revista Literária da UFMG em suas trajetórias, já que muitos começaram ali. Muito consonantemente, eles demarcam uma importância fundamental da RL no início de suas carreiras. Conversei por exemplo com Ronald Claver, que participou da revista tanto como escritor iniciante, concorrente aos prêmios literários, quanto como integrante da comissão avaliadora dos originais enviados, anos depois. Para Claver, que me ofereceu recentemente um artigo sobre o assunto, ainda que a RL entregasse significativos prêmios em dinheiro, o prêmio maior era ser publicado. “Era como ganhar o Oscar, o Pulitzer, o Prêmio Nobel, pisar na lua”, escreveume. “Nós, estudantes, nos idos de 1960 para 1970, década que nunca terminou e continuará desafiando o calendário, sonhávamos com a glória. E glória tinha endereço e código postal.” Claver lembra particularmente dos textos produzidos durante a ditadura, que buscavam tocar o tema da repressão indiretamente, de forma a não serem censurados. “A literatura era o nosso palanque e passeata. O inimigo continuava o mesmo, e continuamos desafiando com palavras de rebeldia e metáforas o chumbo daqueles anos. Havia sempre uma segunda leitura”, registrou. O poeta Fabrício Marques também se interessa pelas relações da literatura com esse período de nossa história, ou melhor, com a repressão que é própria de períodos assim. “Estamos em um momento, sob certos aspectos, bastante semelhante àquele em que a Revista Literária da UFMG surgiu, de ares sufocados para nossa jovem e frágil democracia. Todos sabemos o que se seguiu a 1966; pós2016 ainda é uma incógnita”, alerta. Em entrevista à própria RL, em 2002, Sérgio Sant’Anna também demarcou a importância de sua participação no primeiro concurso da revista, em 1966, quando foi premiado com o conto Didática, sob o pseudônimo Martin. “Foi um reconhecimento a um trabalho de um iniciante, que nem sabia se tinha jeito para a coisa." Além desse conto, Sant’Anna teve um segundo texto de prosa publicado na revista dois anos depois, na chamada Segunda seção, em que eram publicados textos não apenas de escritores e intelectuais em início de carreira, mas também de autores experientes. Em Assassino, o protagonista de Sérgio Sant’Anna recupera mentalmente, de forma minuciosa e um tanto incrédula, os detalhes de um crime cometido, tentando explicálo a si. O texto é um dos cinquenta contos e poemas que compõem o volume que agora vem a público. Outro conto que integra a publicação é Acontecimento de família, uma raridade ficcional de Humberto Werneck que foi premiada na segunda edição da Revista Literária da UFMG. No conto, um petardo de forma e conteúdo – ou melhor, um petardo de forma que faz o conteúdo transcender –, o autor de O desatino da rapaziada conta o périplo emocional de um pai que descobre que a filha havia se tornado moçaconhecidapormoço de “olhos verdes, bigodinho, um metro e setenta”. Escreveume Humberto sobre o conto: “Meus pais ficaram orgulhosos – inclusive, desconfio, ou sobretudo,
pelo fato de o filho, aluno relapso do curso de Direito, ter sido premiado num certame que se abrigava sob o guardachuva prestigioso da Universidade Federal de Minas Gerais.” Não apenas os textos selecionados para o volume comemorativo, mas todos os textos publicados nas 27 edições da Revista Literária da UFMG podem ser acessados na internet, pelo portal de periódicos da Faculdade de Letras da universidade.
Encontro de gerações O poeta Jovino Machado, que foi se relacionar com a revista mais de vinte anos após o colega de ofício e referência, corrobora a percepção de Sérgio SantAnna sobre a importância da publicação para os planos de um pretenso literato da segunda metade do século 20. “Ela foi muito importante para os escritores e para os leitores. Fui premiado com uma menção honrosa pela Revista Literária, que publicou cinco poemas meus. Foi maravilhoso. O prêmio me deu certa visibilidade entre os coleguinhas e serviu de cartão de visitas para a minha obra, diante da comunidade literária da UFMG e da cidade como um todo”, afirma. “Me sinto honrado de ter participado de um momento tão importante dentro da comunidade acadêmica. Foi incrível publicar ao lado de autores que até hoje são meus ídolos, como Sérgio SantAnna”, escreveume o poeta, que publicou na revista no início da década de 1990. “Toda a Geração Suplemento publicou na revista, e me arrisco a dizer que houve uma Geração Revista Literária.” Acrescenta Fabrício Marques sobre o prêmio que também recebeu da publicação já nos anos 1990: “Todo prêmio é um estímulo para o escritor, e esse foi especial porque foi um dos primeiros que recebi, e num gênero – a prosa – um pouco estranho para mim, já que nadava na praia da poesia. O que me marcou também em relação à RL foi a de ser um espaço para a produção discente.” Jaime Prado Gouvêa teve contos premiados e escolhidos para a publicação em diferentes edições, de 1968 a 1973. “O ‘Concurso da Reitoria’, que era como chamávamos o prêmio da Revista Literária, era o mais importante para nós, estudantes, naquela época, e foi durante essas premiações que estreei em livro, com Areia tornando em pedra, em 1970.” Jaime também lembrou a importância que as premiações tiveram para que houvesse contexto favorável à sua estreia em livro. “Essas distinções, então, formavam meu currículo, a que se somou um prêmio na categoria estudante do Concurso de Contos do Paraná, que era o grande concurso de contos do Brasil, em 1969. Foi nesse clima de vitórias que entrei para valer na vida literária.” A poeta e hoje professora da Faculdade de Letras da UFMG, Sônia Queiroz, lembrase muito positivamente da importância que a publicação tinha para os alunos da universidade que se pretendiam literatos. “A Revista Literária da UFMG criou um ambiente literário para nós. Era um contexto diverso. Se tínhamos vocação, encontrávamos na universidade o ambiente de acolhimento e incentivo para essas vocações. Sentíamos que a instituição tinha uma expectativa com relação aos estudantes escritores: uma
expectativa de que existissem”, demarca. “Em minha juventude a gente tinha esse ambiente [de fomento à literatura] não apenas na UFMG, mas em Minas, em geral; no país. Em razão de tudo isso, era mais fácil que a gente visse sentido em escrever literatura – e poesia. É difícil encontrar lugar para a poesia em nossa sociedade de consumo atual, voltada para a matéria. A questão da poesia está muito além – ou aquém – da matéria.”
Suplementos à literatura Desde 2009, Jaime Prado Gouvêa é o diretor do Suplemento Literário de Minas Gerais, periódico inventado pela mente fantástica de Murilo Rubião no mesmo ano da criação da Revista Literária da UFMG. Para o autor do romance O altar das montanhas de Minas, a importância das duas publicações também se relaciona com a sua contemporaneidade. “Esses veículos ajudaram a motivar a molecada que se iniciava na literatura e eram espaços onde publicar nossos trabalhos, sem esquecer, é claro, da grana das premiações, pois éramos todos estudantes e as farras eram muito caras para nossas posses”, escreveume. “Junto com os cursos em que nos formamos na Faculdade”, registrou, “essas publicações e esses incentivos formaram a base dos que seguiram tentando a carreira de escritor.” Carlos Herculano Lopes concorda com o amigo. “É impossível se falar na literatura brasileira dos anos 70 e 80, no tocante à formação de novos autores, sem citar a importância da RL. Pessoalmente”, escreveume o autor do inquietantemente expressionista O sol nas paredes, “também me sinto orgulhoso por ter participado em alguns números, o que aconteceu num momento de afirmação humana e intelectual para mim: não poderia ter sido melhor, e esse continua sendo um marco na minha modesta carreira de escritor; já com 15 livros publicados.” Fabrício Marques, que também dirigiu o Suplemento Literário de Minas Gerais, reforça a relação entre os periódicos. “O ano de 1966 foi especial para a literatura e as artes em geral, com o surgimento das duas publicações. Ambas representam um projeto modernizador no âmbito da literatura ao funcionarem como espaço acolhedor da produção de novos talentos, ‘a quente’. É uma aposta bem sucedida em nomes que até então eram desconhecidos dos leitores.” Ao todo, Carlos Herculano Lopes publicou seis contos em diferentes edições da revista, de 1980 a 1994, sempre na Segunda seção. “Publicar nessa revista foi de grande importância para mim, que dava meus primeiros passos na literatura, e para toda a minha geração: Antonio Barreto, Francisco de Morais Mendes, Maria Esther Maciel e alguns outros colegas, que também estavam começando. Ter feito parte desse time, que continua firme na literatura brasileira, foi uma das melhores coisas que poderiam ter acontecido no início da minha carreira como escritor”. Lucia Castello Branco pensa de forma parecida e também lembra nomes que despontaram ou reverberaram ali: “Adão Ventura, Antonio Barreto, Paulinho Assunção”. Escreveume Lucia: “a importância da revista foi grande, na minha formação como
escritora, pois eu estava começando a participar dos concursos e a ser editada”, percepção comum aos demais entrevistados. “Quase todo ano eu concorria, nos concursos, e era classificada. Era um convite à escrita, sempre.”
Lobby pela arte Após esses dois anos de desafiadora curadoria, os integrantes do grupo de trabalho restamos desejosos de ver a Revista Literária da UFMG novamente em atividade, circulando regularmente e premiando escritores. Nesse sentido, começamos um lobby (na falta de palavra melhor, que não aluda ao mundo do capital; não custa lembrar que a RL sempre circulou gratuitamente) pelos gabinetes da universidade em prol do retorno da publicação, sabendo o quão utópico é pensar em algo desse tipo em um tempo em que a administração pública nacional se assume diariamente interessada em estrangular ainda mais as verbas destinadas à educação e à cultura nacionais nas próximas duas décadas. De fato, se há alguns anos ocorre de faltar papel até nos banheiros da universidade, qual é a medida da viabilidade de se destinar papel para a impressão de poemas? Como pensar em transcendência quando nossos governantes estão dispostos a não garantir nem mesmo o mínimo necessário para as nossas mais elementares imanências? Positivamente, não sou capaz de pensar em outra resposta para a pergunta senão que é mesmo do métier literário a propriedade de se investir contra o absurdo. “Se a UFMG retomar o projeto, e a nova revista tiver ao menos a metade da importância que teve para nós, abrirá oportunidade para que surja uma nova geração”, animase Jaime Prado Gouvêa. “Precisamos disso”, escreveume, feliz com a ideia. Concordei, pensando na necessária posição de resistência que os que atuam no campo das ideias precisam manter em qualquer tempo e, particularmente, no controverso momento político atual. “Acho importante que se recupere a história da RL, sobretudo se a edição comemorativa puder recompor e consolidar, para o leitor de hoje (e, por que não, do futuro) um tanto do panorama e da atividade literária em Minas naquele tempo já distante”, acrescentou Humberto Werneck, lembrando nomes como os de Sérgio Sant’Anna, Luiz Vilela, Duílio Gomes e o do próprio Jaime: “gente que engatinhou ali e depois se consagrou”, escreveu me. “Para mim”, demarcou Werneck, “e creio que também para outros frangotes da minha geração literária, a premiação e a publicação significaram um reconhecimento além e acima das revistas pobrinhas, marginais, em que todos nós desovávamos nossos incipientes venenos literários.” Completou Fabrício Marques: “A efeméride é muito bemvinda, pois repõe em circulação, na memória afetiva da universidade e de todos que se importam com a literatura, essa importante revista. Se a UFMG retomar ou iniciar projeto semelhante à RL, é provável que seja um espaço de resistência e contradita, absolutamente necessários para o que está por vir.”
Conversando comigo, Lucia Castello Branco já se pôs a pensar a publicação em termos editoriais. “Deveríamos ressuscitar a revista em novo formato, com novas propostas e incluindo os variados gêneros e estilos da contemporaneidade: o testemunho, o ensaio contemporâneo, textos publicados por blogueiros”, animouse. “Talvez fazer também a revista em publicação eletrônica, como epub, o que pode incluir ‘leituras brancas’, feitas pelos autores dos textos, na modalidade que temos feito no programa ‘Migalhas Literárias’, na Rádio UFMG Educativa”. Sônia Queiroz, cujas investigações teóricas têm como um dos focos a edição de periódicos, concorda com essa necessidade de se pensar um novo projeto, e não um simples resgate. “Eu tenho um pouco de medo de retorno de publicações. Hoje, por exemplo, há essa alternativa do meio digital. Mas sou a favor da retomada, claro: ainda muito jovem eu aprendi o valor de haver [no âmbito da universidade] uma revista literária institucional”, diz, destacando a importância de se manter uma premiação financeira relevante. Jovino Machado também endossa a ideia do retorno – “acho fundamental que a universidade tenha uma publicação literária de alto nível, como foi a Revista Literária da UFMG” –, ideia que também parece ser a de Sérgio Sant’Anna, para quem é “inegável” o valor de uma publicação do tipo ser empreendida especificamente no âmbito universitário: “Numa universidade do porte da UFMG, sempre existem vários talentos literários que, com uma publicação na revista, podem se motivar mais para a literatura.” Por ora, nós, do grupo responsável pela publicação da edição comemorativa RL Revista Literária da UFMG 50 anos, limitamonos a comemorar o seu lançamento – uma espécie de “apuração de haveres” da história da publicação, para lembrar uma expressão de uma das referências da literatura mineira na segunda metade do século 20, Fernando Sabino. Mas nem por isso deixamos de sonhar. Como registramos na introdução do volume que ora vem a público, “os desejos não cessaram de vibrar. Desejo de literatura. Desejo de arte. Desejo de pensamento livre. Desejo de todas as formas de conhecimento. Desejo de todas as formas de história. Desejo de que reflexão e criação não se separem”, escrevemos. A publicação da edição comemorativa dos 50 anos de criação da Revista Literária da UFMG é, nesse sentido, um convite “para que desejos antigos e novos se manifestem e se realizem”. Para nós, do campo (e dos campi) da arte, o trabalho (de resistência) está apenas (e novamente) começando.
RL Revista Literária da UFMG 50 anos Organizadores: Fernanda Goulart e Luis Alberto Brandão FALE/UFMG 252 páginas Distribuição gratuita
EWERTON MARTINS RIBEIRO Ewerton Martins Ribeiro é escritor, jornalista da UFMG e doutorando em Estudos Literários na própria universidade. Publicou A Grande Marcha (ficção, 2014).
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