A literatura e a vida: por que estudar literatura?

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A literatura e a vida: por que estudar literatura?

Vitor Cei João Guilherme Dayrell Michel Mingote Ferreira de Azara Organizadores

A literatura e a vida: por que estudar literatura?

(RCG-PRAIA)

VILA VELHA, 2015

Conselho Editorial Gilberto Medeiros Flávio Marcelo Pereira Flávio Borgneth Tarso Brennand Vitor Cei

Comitê Científico Coordenador

Vitor Cei Santos Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

Membros

Andressa Zoi Nathanailidis Universidade Vila Velha (UVV) André Tessaro Pelinser Universidade de Caxias do Sul (UCS) David G. Borges Universidade Federal do Piauí (UFPI) Fábio Goveia Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Paulo Edgar R. Resende Universidade Vila Velha (UVV) Sérgio da Fonseca Amaral Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

© 2015 Os autores É livre a utilização, duplicação, reprodução e distribuição desta edição, no todo ou em parte, por todo aquele que desejar, bastando citar a fonte. Comercialização proibida. Diagramação LABED (FALE/UFMG), Vitor Cei e Giba Capa Alemar Rena Revisão Os autores Edição Gilberto Medeiros Fale com a Praia Editora facebook/praiaeditora praiaeditora.blogspot.com.br email: [email protected] twitter: @praiaeditora

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

L776

A literatura e a vida [recurso eletrônico] : por que estudar literatura? / Vitor Cei, João Guilherme Dayrell, Michel Mingote Ferreira de Azara (orgs.). - Dados eletrônicos. - Vila Velha, ES : Praia Editora/RCG, 2015. 510 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-69472-01-8 Modo de acesso: 1. Literatura - História e crítica - Teoria, etc. 2. Literatura Estética. 3. Literatura comparada. 4. Literatura - Filosofia. I. Cei, Vitor, 1984-. II. Dayrell, João Guilherme, 1984-. III. Azara, Michel Mingote Ferreira de, 1981-. CDU: 821.134.3(81).09

“Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-se, que extravaza toda a matéria vivível ou vivida”. Gilles Deleuze, A literatura e a vida

SUMÁRIO Apresentação Os organizadores

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A pesquisa é uma escrita autonomamente real Raul Antelo

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Poesia e crítica contemporâneas: endogamia e tolerância Ronald Augusto 54 Escrita de si e experiência do mundo: notas sobre o “Ecce Homo” de Friedrich Nietzsche Olímpio Pimenta 71 Esgotar a vida: cenas de leitura Ana Cristina Chiara

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Literatura e Justiça: Julián Axat e os desaparecidos na Argentina Pádua Fernandes 109 A escrita literária em Foucault: da transgressão à assimilação Marco Antônio Sousa Alves 137 Chomón, Pastrone, D’Annunzio e Cabíria: gênese de um épico de transição Paulo Roberto de Carvalho Barbosa 168

Narratividade e temporalidade: o si-mesmo como um texto João B. Botton 190 Literatura e militância: o escritor brasileiro e seu ofício em sociedade nas décadas de 1930-1950 Nathalia de Aguiar Ferreira Campos 202 Controle do imaginário e ficção: o vazio como categoria central da ficcionalidade literária Maria Elvira Malaquias de Carvalho 240 A expressão e a linguagem carnalizada de Maura Lopes Cançado em Hospício é Deus Márcia Moreira Custódio 251 A multiplicidade na obra cosmococa - programa In Progress Marina Andrade Câmara Dayrell 268 A poesia autoral como veículo de composição cênica: uma experiência de dramaturgia de ator Raphaela Silva Ramos Fernandes 282 Apontamentos sobre a crítica literária a Homero no tratado Sobre o estilo de Demétrio Gustavo Araújo de Freitas 302 Trauma Luciana Silviano Brandão Lopes

322

A imagem do autor: um estudo sobre Gustave Flaubert Renata Aiala de Mello 328

A multiplicidade das coisas possíveis: labirintos de Jorge Luis Borges e Italo Calvino Maria Elisa Rodrigues Moreira

341

Regionalidade: entre a influência francesa e a brasilidade André Tessaro Pelinser 356 Deslocamentos e anacronias em Terra Estrangeira Pedro Vaz Perez

369

Livros perdidos, livros escritos: a literatura diante da perda Tiago Lanna Pissolati 398 Poesia, carnaval e outras festas em Saciologia Goiana, de Gilberto Mendonça Teles Damáris de Souza Ramos 412 Configurações do riso carnavalesco em Serafim Ponte Grande Viviane Rodrigues 429 Do peso de viver à leveza das palavras: reflexões sobre a existência em Flor da Morte, de Henriqueta Lisboa Renata Maurício Sampaio 453 Eros e Thânatos: o corpo e suas “cruéis” exigências em A via crucis do corpo de Clarice Lispector Patrícia Lopes da Silva 467 Emoções e a perversidade do barão Belfort: discurso e decursos do sujeito na modernidade Bruno Oliveira Tardin

484

História e literatura em novas formas: cabeza de vaca, o entrecruzar de culturas Márcia de Fátima Xavier 496 Carta do editor

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APRESENTAÇÃO

O tema geral deste livro coletivo, “A literatura e a vida: por que estudar literatura”, nos reúne e convida a pensar, por um lado, as diferenças e semelhanças entre literatura e vida e, por outro, a refletir sobre essa relação em um contexto específico de análise, o dos Estudos Literários. Estudos Literários, aqui, é preciso dizer, está entendido como um campo do saber de perfil multidisciplinar, potencializando a pesquisa em literatura a partir de intersecções com outras esferas do conhecimento e campos discursivos – cinema, artes, filosofia, antropologia, música, mídias – suscitados por ela. Os textos aqui reunidos foram apresentados em 2012 como conferências ou comunicações no II SPLIT – Seminário de Pesquisa Discente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), evento que visou a atender uma demanda dos alunos do Pós-Lit por um amplo espaço de debate dos mesmos com o corpo docente da referida instituição e alunos dos demais cursos de pós-graduação em literatura do país e do exterior. O II SPLIT teve a finalidade de promover o debate presencial cujo escopo é a pesquisa em literatura e áreas adjacentes suscitadas por esta, além de estabelecer um fórum de debate acerca da pesquisa em literatura, buscando fomentar discussões sobre seu ensino, crítica e teoria, sem privilegiar qualquer abordagem crítica ou teoria

11 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

em específico, encorajando a diversidade de enfoques teórico-metodológicos no trato com a literatura. Agradecemos a todos os professores membros do colegiado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, em especial aos professores Marcos Alexandre, Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa e Graciela Ravetti, pelo apoio institucional e financeiro durante a organização do II SPLIT – Seminário de Pesquisa Discente do Pós-Lit – UFMG. Agradecemos aos professores que aceitaram os convites para serem conferencistas do evento: Raúl Antelo, da Universidade Federal de Santa Catarina; Pádua Fernandes, do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais, de São Paulo; Ronald Augusto, da Editora Éblis, de Porto Alegre; Olimpio Pimenta, da Universidade Federal de Ouro Preto e Ana Chiara, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Os temas de suas conferências contribuiram para garantir a pluralidade de visões sobre os Estudos Literários. Agradecemos aos professores que aceitaram os convites para serem debatedores das sessões de projetos de dissertação e tese: Emilio Maciel, da Universidade Federal de Ouro Preto; e Andréa Werkema, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E, por fim, agradecemos a ajuda de todos os que colaboraram conosco nos bastidores do SPLIT e deste livro: Alemar Rena, Alice Barros, Ana Xavier, André Tessaro Pelinser, Carol Oliveira, Clara Vanucci, Fabiano Salazar, Fernanda Mourão, Gilberto Medeiros, Letícia Magalhães

12 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Munaier Teixeira, Marina Câmara, Paula Sollero, Pedro Brito, Yasmin Schiess, CENEX-FALE, Diretório Acadêmico da Faculdade de Letras da UFMG e Praia Editora. Os organizadores

13 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A PESQUISA É UMA ESCRITA AUTONOMAMENTE REAL

Raul Antelo L’université moderne devrait être sans condition. Par « université moderne », entendons celle dont le modèle européen, après une histoire médiévale riche et complexe, est devenu prévalent, c’est-à-dire « classique », depuis deux siècles, dans des États de type démocratique. Cette université exige et devrait se voir reconnaître en principe, outre ce qu’on appelle la liberté académique, une liberté inconditionnelle de questionnement et de proposition, voire, plus encore, le droit de dire publiquement tout ce qu’exigent une recherche, un savoir et une pensée de la vérité. Si énigmatique qu’elle demeure, la référence à la vérité, paraît assez fondamentale pour se trouver, avec la lumière (Lux), sur les insignes symboliques de plus d’une université. L’université fait profession de la vérité.1 Ci-git Piron, qui ne fut rien, Pas même académicien2

1 DERRIDA. L´Université sans condition, p. 11-12. 2 Epitáfio de Alexis Piron (1689-1773) citado por MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles, p. 241. 14 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Ao receber este convite para pensar a pesquisa na pós-graduação em Letras, pensei que, antes de mais nada, era bom sublinhar que essa atividade, mesmo que atravessada por uma ambição de universalidade, nunca é um pressuposto estático, e não é nem mesmo um a priori dado, porque ela deveria ser entendida, pelo contrário, como um processo que nos exige, basicamente, emancipar-nos da essência, desamarrar-nos de vínculos tradicionais, corriqueiros, testados, de tal sorte que a liberdade de pesquisa se redefine como uma liberdade de existência, algo sans condition, como dizia Derrida e, nesses entido, ela aponta uma autonomia da própria vida, algo que se confunde com o êxtase, se por êxtase entendemos um ir para além de nós mesmos. Daí que Jean-Luc Nancy nos diga que, no domínio da ética, a ontologia deve se tornar uma eleuterología,3 um saber que contém a liberdade, porém, sob leis muito precisas, leis ético-práticas extremamente específicas. Surgem daí questões bem concretas. Aquilo que está para ser feito, o que se pesquisa como ato de per quaere, não se situa nunca no registro de uma poiesis, como uma obra cujo esquema já estaria previamente traçado, mas no registro de uma praxis, que, de relevante, só produz mesmo, retrospectivamente, seu próprio agente.4 Não apenas a psicanálise lacaniana, mas também a esquizoanálise deleuziana confluem nesse ponto. Le desir est un exil, le desir est un

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NANCY. L’expérience de la liberté, p. 24. NANCY. L’expérience de la liberté, p. 38. 15 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

desert qui traverse le corps sans organes, et nous fait passer d’une de ses faces a l’autre. Jamais un exil individuel, jamais un desert personnel.5

Deleuze & Guattari dizem, com efeito, que todo desejo é um deserto, quer dizer, todo deserto é um vazio, daí que o desejo seja um vazio ou, com maior precisão, ele nasça de um vazio como desejo de um vazio. A pesquisa não é algo isolado; é, porém, uma praxis que se insere numa comunidade acadêmica e esta comunidade deve ser pensada a partir da emancipação, processo que dissolve os laços tradicionais do sistema, o que marca algo tão problemático quanto inquietante, porque, ao liberar o sujeito de vínculos comuns, herdados, nossa prática de pesquisa emancipa-nos, a rigor, consequentemente, de toda determinação e de toda noção de destinação já dada, sem que, paralelamente, a própria emancipação forneça a si própria um horizonte cabal de sentido, uma vez que não há nada que, podendo ser tomado como destino ou como fim do trabalho, garantisse, de per se, a emancipação. Uma vez emancipado, o estudioso universitário comporta-se como um escravo liberto para quem, à diferença do escravo do mundo, não existe mais espaço algum que possa ser identificado como o espaço específico e próprio para o exercicio dessa sua liberdade, a liberdade de pesquisa e criação que ele reivindicara.6 E isto por um motivo relativamente simples. No Ocidente, o espírito científico desenvolveu-se, em grande parte, graças

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DELEUZE; GUATTARI. L’Anti-Oedipe, p. 452. NANCY. La pensée dérobée, p. 128. 16 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ao direito romano, que foi veículo do princípio técnico de governabilidade, com que a verdade se separou da falsidade. Cabe relembrar, a esse respeito, o que o jurista e psicanalista francês Pierre Legendre desenvolveu, em 2007, em sua palestra A cicatriz (La Balafre. À la jeunesse désireuse… Discours à des jeunes étudiants sur la science et l’ignorance, Paris, Mille et une nuits, 2007), idéias muito pertinentes a esse respeito. Ele parte, por sinal, de um fragmento literário, uma citação de Borges, no conto “A forma da espada”, mas parte também da parábola de Stevenson em Dr Jeckyll e Mr Hyde e passa até mesmo por um escritor japonês, como Tanizaki, na História de Tomoda e Matsunaga. Eis a citação: “Le cruzaba la cara uma cicatriz rencorosa: um arco ceniciento y casi perfecto que de un lado ajaba la sien y del otro el pómulo”.7 A narrativa de Borges, que é uma fala mesclada, em inglês, espanhol e português, organizada como se fosse o relato de alguém traído, é na verdade a história de um traidor: “yo soy los otros”. E a cicatriz é uma mera marca, uma inscrição cuja sobrevivência “me afrenta”, tal como a comunidade, que, segundo Nancy, é sempre affrontée. Tal o uso da metáfora por parte de Legendre. Nosso presente, a situação cindida da nossa comunidade, talvez se expliquem então, mais cabalmente, se levamos em consideração, junto com ele, que Para el laicismo positivista occidental, el Estado no posee ningún espíritu de

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BORGES. La forma de la espada, p. 491. 17 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

tipo animista, como el Tótem, animal o planta, al que se atribuye una voluntad productora de normas. En la práctica, el Estado se ha despegado incluso del juramento de fidelidad a una tradición sagrada para alcanzar ahora otro tipo de existencia, 8 la de un objeto institucional de serie en la nueva Naturaleza engendrada por la tecnociencia-economía: para la civilización del Management generalizado, el Estado habría abandonado la zona oscura del mito (en este caso, del mito genealógico de proveniencia cristiana) y habría entrado definitivamente en un universo de transparencia que lo haría tributario de saberes desprovistos de religiosidad (saberes correspondientes a la objetividad gestionaria). Para discernir ahora el principio estatal en cuanto indicador político-religioso de la modernidad europea y como instrumento institucional estratégico del Occidente expansionista, tendremos que volver a examinar el concepto de Estado, no desde un ángulo operativo necesariamente estrecho, sino en continuidad con las puntualizaciones que preceden, es decir, como producto derivado de un libreto fundacional: el judeo-romanocristiano.9

8 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la ignorancia, p. 66-67. 9 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la ignorancia, p. 66-67. 18 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Como V. devem estar lembrados, ao desenvolver suas considerações acerca do método, Giorgio Agamben associa a arqueologia de Foucault, a genealogia de Nietzsche, a desconstrução de Derrida ou a teoria da imagem dialética de Benjamin à lógica da signatura, ou seja, o timbre ou sinete que sancionam o poder, esclarecendo que a signatura teológica atua como uma sorte de astucioso trompe l´oeil, como esse que revela Vincent Moon ao narrar a origem de sua cicatriz. A secularização do mundo acaba se tornando, graças a essa enganosa inscrição, uma contrassenha de sua inclusão na oikonomia divina. 10 Ora, isso nos leva a concluir que o horizonte da comunidade, até mesmo o da comunidade acadêmica, foi também gradativa e imperceptivelmente substituído pelo management e a efficiency, porque “yo soy los otros”. Senão, reparemos que o conceito de management, aquilo que Legendre chama também de Dominium mundii, conota antigas palavras latinas que, através do francês, chegaram ao inglês: masnage, mesnage, significando o que hoje diríamos maisonnée, conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo teto. O management, portanto, faz referência à família, ao domus, e o management, nesse caso, seria outro nome para a domesticação. Qual é a conclusão que Legendre tira desse processo? En primer lugar, para acceder a los repliegues de la civilización occidental es necesario estudiar la

10 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la ignorancia, p. 66-67. 19 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

protohistoria del Estado y del derecho, indisociable tanto de las prácticas teocráticas ejercidas en Europa como del pensamiento desarrollado por los comentadores medievales, designados con el término genérico de “glosadores” (autores de un equivalente cristiano del Talmud). Después, hay que tomar nota, en la época llamada Tiempos Modernos, del proceso de diversificación del conjunto, repartido ahora en subconjuntos nacionales productores del regímenes jurídicos más o menos compatibles entre sí y que, aun perteneciendo a la misma cepa, reflejan los grandes fenómenos genealógicos de Europa. Por último, tras haber hecho su entrada el Management, la tecnociencia-economía viene a suplantar a los ideales políticos y a imponer un hiper-discurso globalizador, una suerte de sintetizador normativo negador de las divergencias culturales pero dominado, en la vertiente jurídica, por un economicismo anglosajón ligado al espíritu del Common Law. Preso en la red de una tradición que no es la suya, pero enganchado todavía a representaciones no criticadas (notoriamente, el viejo odio a la juridicidad medieval), el sistema institucional francés intenta manifiestamente alinearse, antes que afrontar su propia historicidad.11

Afrontar, fazer face, deparar-se com algo e assumi-

11 LEGENDRE. El tajo: discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la ignorancia, p. 79-80. 20 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

lo como próprio, eis o desafio da pesquisa. Disse, há pouco, que a pesquisa, o per quaere, não se presta a nenhuma determinação externa, a nenhuma atribuição de propriedade.12 E sabemos também, aliás, que toda pesquisa universitária hoje em dia insere-se num universo de management que não deixa de nos afetar e afrontar, já que seu atual processo é idêntico ao désoeuvrement da comunidade, uma comunidade emancipada da essência, do produto, do fim, da origem, da obra, ou seja, inoperante, no que isto tem de neutralidade ativa (momento da contemplação: do cum templum, do traçado de um corte, um talho, uma cicatriz que, embora individual, é coletivamente carregada, mesmo porque ela faz parte da instituição acadêmica). Mas constata-se, ao mesmo tempo, que essa emancipação da tradição, como vemos, não facilita, necessariamente, as coisas porque, embora, graças a Derrida, a Agamben ou a Jean-Luc Nancy, possamos compreender que a comunidade ficou in-operante, ela continua também presente e determinante a toda hora, em cada um de nossos atos institucionais. Ainda falamos em literaturas nacionais, ainda pensamos em escritores como pertencentes a um período, a uma estética históricamente determinadados. Em La communauté désoeuvrée, ao falar do ser-em-comum, Nancy diz que ele é o mais difícil de profetizar, de prever, de planejar. Nós somos pesquisadores. Compartilhamos o fato de sermos pesquisadores. Mas o ser não é alguma coisa que

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NANCY. La pensée dérobée, p. 129. 21 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

possuiríamos todos em comum. O sermos pesquisadores não se diferencia da existência singular de cada um de nós. Sermos pesquisadores não é, portanto, algo que se possui em comum, mas algo que somos em comum, porque “o ser é em comum”. É algo aparentemente trivial, mas, ao mesmo tempo, é algo ignorado pela comunidade universitária.13 A pesquisa, em muitas das nossas Instituições, em nossa tradição acadêmica mesmo, é uma variável de ajuste, é o que sobra das aulas, das orientações, do funcionalismo. Mas, ao mesmo tempo, todos nós somos pesquisadores, para além de produtividades ou competências, dedicações ou habilidades. O sistema tende a universalizar, e consequentemente a homogeneizar, nunca a singularizar. Ignora o omnes et singulatim. Faz pouco caso do um-porum. Nesse sentido, diria que o diagnóstico de nossa situação cai, sem dúvida, na esfera da “biopolítica”. Nossa vida, enquanto forma-de-vida, fundamenta-se na zoé, na vida mais essencial possível, mas há muito ela já se tornou irreversivelmente techné. A política—a política de ascensão funcional, agravada agora pela supressão do concurso para titular; a política de bolsas; a política científica—nada mais são, então, do que a autogestão da ecotécnica. Uma forma de autonomia que já não dispõe das formas tradicionais da política, mas se cumpre por “força-de-lei”. A propósito, Jacques Derrida, analisando o conceito de “força-de-lei”, precisamente, diz que esse conceito nos remete à letra, porque

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NANCY. La communauté désoeuvrée, p. 201. 22 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

no hay derecho que no implique en él mismo, a priori, en la estructura analítica de su concepto, la posibilidad de ser ‘enforced’, aplicado por la fuerza. Kant lo recuerda desde la Introducción a la doctrina del derecho (…). Hay ciertamente leyes que no se aplican, pero no hay ley sin aplicabilidad, y no hay aplicabilidad, o enforceability de la ley, sin fuerza, sea ésta directa o no, física o simbólica, exterior o interior, brutal o sutilmente discursiva—o incluso hermenéutica—, coercitiva o regulativa, etc.¿Cómo distinguir entre, de una parte, esta fuerza de la ley, esta ‘fuerza de ley’ como se dice tanto en francés como en inglés, creo, y de otra, la violencia que se juzga siempre injusta? ¿Qué diferencia existe entre, de una parte, la fuerza que puede ser justa, en todo caso legítima (no solamente el instrumento al servicio del derecho, sino el ejercicio y el cumplimiento mismos, la esencia del derecho) y, de otra parte, la violencia que se juzga siempre injusta? ¿Qué es una fuerza justa o una fuerza no violenta?

Derrida enfatiza assim o caráter diferencial da força. Em muitos de seus textos, como já no pioneiro “Força e significação”, que abre A escrita e a diferença, reitera que se trata siempre de la fuerza diferencial, de la diferencia como diferencia de fuerza, de la fuerza como diferenzia (…) o fuerza de diferenzia (la diferenzia es una fuerza diferida-difiriente); se trata siempre de la relación entre la

23 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

fuerza y la forma, entre la fuerza y la significación; se trata siempre de fuerza ‘performativa’, fuerza ilocucionaria o perlocucionaria, de fuerza persuasiva y de retórica, de afirmación de la firma, pero también y sobre todo de todas las situaciones paradójicas en las que la mayor fuerza y la mayor debilidad se intercambian extrañamente. Y esto es toda la historia—conclui, porque—los discursos sobre la doble afirmación, sobre el don más allá del intercambio y de la distribución, sobre lo indecidible, lo inconmensurable y lo incalculable, sobre la singularidad, la diferencia y la heterogeneidad, son también discursos al menos oblicuos sobre la justicia.14

Não há, portanto, no marco da Universidade atual, soberania auto-fundadora (não há nada para ser fundado e talvez nem haja muito mesmo para ser tombado, com inocente ilusão cristalizadora), não há discussão sobre a justiça da polis acadêmica (porque já não há polis nem mesmo politesse, só polícia e exclusivamente para os homens-livres, em próprio benefício—não assim para os alunos, que devem comparecer obrigatoriamente às palestras, por exemplo, para completarem currículo, comparecimento desnecessário para os senhoresprofessores, desvinculados do debate propriamente acadêmico). Nem vida como forma-de-vida, nem política como forma-de-coexistência regulam já a ecotécnica do

14 DERRIDA. Fuerza de ley: el fundamento místico de la autoridad, p. 15-20 24 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sistema.15 Atravessamos, portanto, um momento claramente pós-fundacional. As descrições de nosso objeto de estudo e de reflexão já não o colocam como valor superestrutural, determinado pela acumulação material e o desenvolvimento das forças produtivas. Nem mesmo a abordagem histórica pode hoje, em sã consciência, ver a literatura como um processo meramente racional, cujo antagonismo teria sido, senão eliminado, certamente adiado, diferido, até o momento mesmo de sua realização teleológica final. Nem as contradições históricas, nem as oposições reais dão conta da contrariedade insubstituível que alimenta o antagonismo do presente, por uma razão muito simples, porque o antagonismo atual não é fruto de relações objetivas, mas decorre de relações que exibem limites precisos na constituição de toda e qualquer objetividade. A questão da pesquisa, na Universidade, deveria ser pensada então pela impossibilidade de construir uma fórmula de saber que testemunhe a falta no simbólico e, portanto, essa posição de não-saber deveria nos propor, estratégicamente, instalar um excesso que, por sua vez, introduza a própria falta no simbólico. Se não há fórmula de saber, o não-saber consiste apenas numa aventura aleatória que não se reduz à soma de dois termos complementares, sujeito e objeto de saber, porque o suplemento nomeia, a rigor, a impossibilidade de considerar ambas as instâncias

15 NANCY. La création du monde ou la mondialisation, p. 137. 25 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

como unidade coesa e impede até mesmo considerarmos nenhum dos dois como um. O não-saber é antitético aos grupos, porque ele descansa numa interseção que é a própia diferença que viria a ser teorizada por Derrida ou que, como explica a crítica cultural norte-americana Joan Copjec, já não dispõe da função universalizante do eu ideal, que une os membros de uma comunidade em torno de uma relação de equivalência, muito embora ela permaneça em muitos âmbitos. Aliás, bem recentemente, participei de um colóquio de Literatura Brasileira na USP, onde não deixava de chamar a minha atenção a frequência não só dos recortes autonomistas (especialistas em um autor, um gênero, pesquisadores de uma obra, um período literário), mas também das categorias éticas e políticas universais (consciência crítica, populismo), que são todas caudatárias de marcos exclusivamente iluministas e individuais. Eu, em compensação, prefiro pensar que, em tempos do ideal do eu, o que se universaliza é o objeto de pesquisa como objeto amado.16 Por isso vale lembrar das idéias de Copjec e da explicação que, a esse respeito, nos fornece Ernesto Laclau, para quem a posição de Copjec recusa a sublimação e, em vez de pensar uma mudança de objeto, prefere propor uma mudança no objeto. Si la sublimación se redujera a un cambio de objeto, la realidad óntica de los objetos permanecería inalterada y en tal caso no habría suppléance, no habría exceso: el objeto del amor

16 COPJEC. El sexo y la eutanasia de la razón: ensayos sobre el amor y la diferencia, p. 94. 26 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

[o per quaere da pesquisa] sería plena y directamente inscribible en el universo simbólico. Pero lo que la suppléance nombra no es un objeto sino la imposibilidad, el obstáculo a su constitución. El amor, en tal sentido, [a pesquisa] es el nombre de un hiato estructural en lo simbólico. Es por eso que “il y a de l’Un”. La huella de la imposibilidad de la relación sexual se encuentra, por tanto en la representación simbólica de una ausencia qua ausencia.17

A partir dessa premissa lacaniana, Jean-Luc Nancy também postula que, no amor ao saber, na filo-sophia que se traduz como não-saber, não há nenhum todo, já que o todo não define “una carencia ni una ablación, puesto que no hubo todo antes de haber ningún-todo. Esto significa más bien que todo lo que hay no se totaliza, sin que por ello deje de ser todo”.18 E isto por um motivo também muito simples: porque há, de fato, dois modos de concebermos totalidades. “Hay, en efecto, el todo del todo-entero (holon, totum) y el todo de todos los enteros o de todo el mundo (pan, omnis)”. A pesquisa como ato per quaere não passaria então de “dos impulsos, una pareja de fuerzas cuyo juego— la separación en el contacto—es necesario para poner en marcha la maquinaria”.19 Quer dizer, portanto, que o amor ao saber enquanto não-saber é uma interioridade que não

17 13. 18 19

LACLAU. Joan Copjec y las aventuras de lo Real, p. NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 30. NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 31. 27 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

deriva, porém, de nenhuma identidade dada, de nenhuma relação consigo mesmo, isto é, de nenhuma relação em si: aquilo que se (com) partilha e que se difere é precisamente aquilo que não subsiste para si, porque não há nada que seja o aquém da busca per quaere (nem generalidade, nem diferença). Não há nada que seja antes ou além do espaçamento e que constitua talvez a estrutura que Lacan denomina o simbólico, a lei.20 Esse não-saber, claramente excessivo, já não se efetiva através da transcendência ou da transgressão modernistas, mas opera por meio de um esquema além do esquema, em que se atravessam todos os valores, daí que, enquanto no alto modernismo o sentido ainda era um atributo em si ou, mais freqüentemente, fora de si, na Universidade contemporânea, o sentido encontrase, entretanto, nos confins, enquanto rede de confins. Por isso, Nancy considera que o não-saber coloca a questão de uma relação ao objeto enquanto tal, pura e simplesmente. O desejo que, enquanto per quaere, toda pesquisa mobiliza é sempre desejo do Outro, desejo de desejar. Reinterpretado como valor de uso do impossível, o valor desse percurso é o de um desejo elevado ao segundo grau. Consiste no poder de um objeto em manter ativo— potente, ou seja, em movimento—o desejo de desejar. Isso implica admitir que nossa lei é pós-fundacional. Mas não era outra a definição de objeto a, o objeto causa do desejo, elaborada por Lacan, que é um conceito de fontes remotamente literárias. Com efeito, Lacan toma o conceito

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NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 37. 28 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de objeto a da antifilosofia dadaista de Tristan Tzara, uma filosofia dos objetos,21 mas aproveita-se também dos objetos surrealistas de Salvador Dali, eles mesmos objetos psico-atmosféricos-anamórficos, como os chama o artista catalão. Mais perto de nós, ainda, e também na esteira de Lacan, Gérard Wajcman, querendo isolar o objeto do século XX, propôs, entre outros, o quadrado de Malevitch, porque ele ilustraria exemplarmente a estratégia do esvaziamento. Com efeito, assim como Freud, ao analisar o Moisés, nos fala de uma estratégia da pintura, que age per via de porre, e outra da escultura, que se ativa per via de levare, Wajcman vê, no quadrado, um esvaziamento do olhar. Concluímos, a partir de sua análise, que a forma é uma simples aparência, a arte visual é cega (a literatura, gaga), o quadrado é uma obliteração e o zero não é uma abstenção, mas uma rasura.22 Ora, à luz deste debate, ao que deveríamos acrescentar nomes tão decisivos como Marcel Duchamp ou John Cage, caberia ponderar que a literatura contemporânea também não se apreende pela mímesis da História ou pela definição da forma e, retomando o argumento de Jacques Lacan, poderíamos até dizer que a literatura, limitada à mimese, não passa de um trompe l’oeil, porque sempre nos apresentará a pátina de um véu cobrindo algo situado para além do que se pode ver. Ler, entretanto, é sempre ler mais além, justamente porque o gozo, não sendo acessível nem finito, e sendo,

21 TZARA. Manifeste de Monsieur Aa l’antiphilosophe, p. 22-23. 22 WAJCMAN. El objeto del siglo. 29 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

por definição, impossível, nos impede esgotar o todo do objeto. E isto faculta o afastamento, o corte, a cisão da rede simbólica atual, enquanto instância combinada de capitalismo disseminado e tecno-ciência difusa que, enquanto política, decreta a inviabilidade do impossível e, contrariamente, encontramo-nos perante a emergência do político, que consiste no corte que, praticado na rede fusional disseminada, permite o questionamento acerca do lugar que o sujeito ocupa e com o qual opera no discurso. É no discurso, portanto, cercado o tempo todo pelo Real, que se encontra o impossível de dizer; daí que todo ato de dizer o impossível, todo ato poético, todo ato político, enfim, seja, basicamente, um ato consciente de procurar uma emancipação incompleta e inacabada, por definição, em busca de uma causa que não pode estar presente, como fundamento último da ação, e que, mesmo assim, também não dispõe de garantias de sucesso em sua prática. É esse o objeto produzido pelo per quaere. Estejamos então à altura de Clarice Lispector: para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo. Meditação leve e terna sobre o nada. Escrevo quase que totalmente liberto de meu corpo. É como se este estivesse em levitação. Meu espírito está vazio

30 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

por causa de tanta felicidade. Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora. Estou livre de destino. Será o meu destino alcançar a liberdade? não há uma ruga no meu espírito que se espraia em leves espumas. Não estou mais acossado. Isto é a graça.23

O êxtase. A pesquisa. Ângela, o alter-ego de Clarice, sabe, entretanto, que escreve para “salvar do vazio e oco hiato sem fundo que é o vácuo. O que escrevo agora não é para ninguém: é diretamente para o próprio escrever, esse escrever consome o escrever. Este meu livro da noite me nutre de melodia cantabile. O que escrevo é autonomamente real”.24 E o Autor, que é também o narrador de Agua Viva, compreende, finalmente, que “Olhar a coisa na coisa hipnotiza a pessoa que olha o ofuscante objeto olhado. Há um encontro meu e dessa coisa vibrando no ar. Mas o resultado desse olhar é uma sensação de oco, vazio, impenetrável e de plena identificação mútua”.25 Talvez possamos isolar, nessa definição de Clarice Lispector, uma ferramenta poderosa de análise do per quare, da pesquisa, entre nós e dizer que ela cria o vazio. Mas um vazio de tipo muito especial. “Jamais un exil individuel, jamais un desert personnel”—dizia Deleuze.

23 14. 24 25

LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 13LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 77. LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 124. 31 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Permitam-me ilustrar esse modo de ler com um exemplo. Gostaria de mostrar uma estratégia que já não depende nem de conjuntos nacionais autônomos, nem de abordagens diacrónicas evolutivas, que são os dois modos dominantes até 1990, aproximadamente. V. devem relembrar, por exemplo, o argumento de Antonio Candido quanto às relações entre literatura e subdesenvolvimento, associado também, de certa forma, à noção de que as idéias estão fora do lugar. Candido advogava por uma superação do modelo mimético, portadora de certo refinamento técnico que levasse os traços antes pitorescos a se descarnarem e adquirirem universalidade. Descartando o sentimentalismo e a retórica; nutrida de elementos não-realistas, como o absurdo, a magia das situações; ou de técnicas antinaturalistas, como o monólogo interior, a visão simultânea, o escorço, a elipse— ela implica não obstante em aproveitamento do que antes era a própria substância do nativismo, do documentário social.26 V. vêem, contudo, que não está afetada, nessa teoria, a idéia de essência, nem a de identidade, nem mesmo a de finitude ou finalidade. Em função dessas características, Candido propunha então denominar o horizonte da literatura contemporânea de superregionalista, vinculando-o a uma consciência dilacerada de subdesenvolvimento, que operasse uma explosão do naturalismo, da referencialidade, da representação. Desse

26 CANDIDO. Literatura e subdesenvolvimento, p. 140-162. 32 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

super-regionalismo seria tributária, a seu ver, a obra de Guimarães Rosa, de algum modo, associada também à “sobriedade fantasma” de Pedro Páramo. Permanecia intocado, porém, o esquema sucessivo do historicismo. Invertendo o esquema, no entanto, prefiro ler Guimarães Rosa por um desvio, ao mesmo tempo, anatópico e anacrônico. Justamente Anachronisme é o título de um soneto de Alphonsus de Guimarães, dedicado a Paul Verlaine, a quem ele nunca conheceu pessoalmente, e cujo último terceto diz: Et pourtant, si je suis ton fils et ton élève, En te suivant, en te baisant l’âme sans trêve, Je rêve, ami, que toi, tu as rêvé de moi!27

O fantástico de biblioteca, esse novo lugar dos fantasmas que não é mais a noite, nem o vazio incerto aberto pelo desejo; mas, pelo contrário, a vigília e o zelo erudito, faz com que o sentido, sempre enigmático, nasça da superfície dos signos impressos, trêve / rêve, ou seja, da signatura rerum, desdobrando-se na biblioteca aturdida, através do rumor assíduo da repetição, que nos transmite, porém, o que só ocorre uma vez, uma singularidade irrepetível, a de Alphonsus, apaixonado por Verlaine. Como diz Foucault, o imaginário não se constitui contra o real para negá-lo ou compensá-lo; ele se estende entre os signos, de livro a livro, no interstício das repetições e dos comentários; ele nasce e se forma no entremeio

27

GUIMARAENS. Obra completa, p. 373. 33

A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

dos textos, como fenômeno de biblioteca.28 Nesse ponto vertiginoso, portanto, Alphonsus sonha que, podendo ele sonhar com Verlaine, bem poderia Verlaine sonhar com ele, Alphonsus, metáfora anti-hierárquica que denota a própria dinâmica da modernização, sempre em busca daquilo que é impossível de alcançar. Mais bem sucedido, porém, foi outro escritor latino-americano, Lúcio V. Mansilla. Amigo de Robert de Montesquiou, o conde Charlus de Em busca do tempo perdido, Mansilla frequentou Moréas, Proust e conheceu Verlaine, quem, mesmo não assinando o prefácio solicitado por Mansilla, assim o descreveu: “Habla muy bien el francés y es un elegante; nada falta en él: sombrero inclinado, provocativo, guante lila, monóculo, boutonnière fleurie, levita larga color té con leche. Es ya entrado en años y ¡qué joven y fuerte se lo ve!”.29 Sobrinho de Juan Manuel de Rosas, o homemforte do Prata, Mansilla publicou, em 1870, uma sorte de Sertões do pampa, Una excursión a los indios ranqueles, onde narra que, incumbido por Sarmiento de estender a fronteira civilizatória para além das terras indígenas, testemunha a dura negociação pela paz com os habitantes daquele território. O livro é uma singular manifestação do desafio da alteridade, em que o narrador é consciente do caráter plural das determinações do imaginário. Retornam, como verão, a suspensão, a trêve de Alphonsus, mas com outro efeito, que antecipa o “Diadorim é a minha neblina” de Guimarães Rosa.

28 FOUCAULT. Posfácio a Flaubert (A Tentação de Santo Antão), p. 79-80. 29 POPOLIZIO. Vida de Mansilla, p. 309-310. 34 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

La noche y los perros son mis dos grandes pesadillas. Yo amo la luz y a los hombres, aunque he hecho más locuras por las mujeres. No puedo decir lo que me aterra cuando estoy solo en un cuarto obscuro, cuando voy por la calle en tenebrosas horas, cuando cruzo el monte umbrío; como no puedo decir lo que sentía cuando trepaba las laderas resbaladizas de la gran cordillera de los Andes, sobre el seguro lomo de cautelosa mula. Pero siento algo pavoroso, que no está en los sentidos, que está en la imaginación; en esa región poética, mística, fantástica, ardiente, fría, límpida, nebulosa, transparente, opaca, luminosa, sombría, risueña, triste, que es todo y no es nada, que es como los rayos del sol y su penumbra, que cría y destruye, que forja sus propias cadenas y las rompe, que se engendra a sí misma y se devora, que hoy entona tiernas endechas al dolor, que mañana pulsa el plectro aurífero y canta la alegría, que hoy ama la libertad y mañana se inclina sumisa ante la oprobiosa tiranía. ¡Ah!, ¡si pudiéramos darnos cuenta de todo lo que sentimos!30

Ora, o texto do dândi Mansilla, orientado a príncípio, no sentido de anexionar a barbárie à civilização, constata, no final, o paradoxo de Pascal: “El hombre no es un ángel ni una bestia. Es un ser indefinible: hace el mal por placer

30 MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles, p. 368. 35 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

y goza con el bien. En medio de todo es consolador”.31 Vladimir Jankelevitch, pensador desses paradoxos e até mesmo das leis do imprescritível, ativadas no Holocausto, observa, porém, que Entre la inmanencia desesperada y la transcendencia por estaciones, entre la sumersión total y la emergencia sospechosa, persiste un espacio para la relatividad de una búsqueda infinita que mantiene despierta a la conciencia: esta conciencia no es sobre-conciencia confusionista, ni inconsciencia confundida o más bien es a la vez una y otra, pues, como hemos visto, se encuentra a la vez dentro y fuera, ya que no sólo es conciencia del equívoco, sino también ella misma equívoco… La criatura es, pues, bastante, intermediaria, pero en un sentido activo y dinámico. La criatura – explica Pascal – “no es ni ángel ni bestia…” ¿Qué significa esto? Quien no es ni lo uno ni lo otro (neutrum), ¿será acaso un tercerser, una criatura media instalada en el entre-dos, domiciliada en el entresuelo? ¡De ninguna manera! El ni ángel-ni bestia no es un tertium quid, un tercer orden intermedio entre la bestia y el ángel. ¿Hace falta, pues, pensar que es, a la vez, uno y otro (utrumque). Este caso nos remite, por otra parte, al precedente, pues si la criatura es un híbrido de espíritu y materia, por eso mismo representa un

31 MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles, p. 368. 36 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

tercer género de existencia, que no es alma sin cuerpo ni cuerpo sin alma, que es a partes iguales mitad ángel y mitad bestia… La filosofía de la “simbiosis” juega así con los diversos sentidos de la preposición con, y se representa a la pareja psicosomática con gusto como una yunta de dos seres apareados codo a codo bajo el mismo yugo. Al estar ambos juntos, el ser doble, cruce de ángel y bestia, sería algo así como un híbrido, en el sentido de la sirena y del centauro en los que la mujer-pez y el hombre-caballo son híbridos: ángel por sus alas, toro por sus pezuñas; en definitiva, una curiosidad teratológica. Esta imagen del alma-cuerpo es grotesca y absurda: quien no es un tercero tampoco es un híbrido o una mezcla de dos naturalezas, y, por decirle de algún modo, lo llamamos “anfibio”.32

Mansilla compreende, a diferença de Alphonsus, que o amado Verlaine é, no entanto, declaradamente híbrido. Verlaine, por exemplo, escreve, no prólogo a seus últimos poemas, Chair (1896): L’AMOUR est infatigable! Il est ardent comme un diable, Comme un ange il est aimable,

32 33

L’amant est impitoyable, Il est méchant comme un diable, Comme un ange, redoutable.33

JANKÉLÉVITCH. Lo puro y lo impuro, p. 223-225. VERLAINE. Oeuvres Poétiques Completes, p. 749 37 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Chegados neste ponto, não posso menos que explicitar o que todos vocês já devem ter percebido: eis o páramo fantasma do Rosa. Mansilla, transcrevendo a religião ranquel, nos diz que não há para esses nativos uma luta do bem contra o mal; há, porém, apenas o mal, o não-saber, isto é, o gualicho, palavra tehuelche que designa o feitiço. A quien hay que temerle es al diablo – Gualicho. Este caballero, a quien nosotros pintamos con cola y cuernos, desnudo y echando fuego por la boca, no tiene para ellos forma alguna. Gualicho, es indivisible e invisible y está en todas partes, lo mismo que Cuchauentrú. Otro, mientras el uno no piensa en hacerle mal a nadie, el otro anda siempre pensando en el mal del prójimo. Gualicho, ocasiona los malones desgraciados, las invasiones de cristianos, las enfermedades y la muerte, todas las pestes y calamidades que afligen a la humanidad. Gualicho, está en la laguna cuyas aguas son malsanas, en la fruta y en la yerba venenosa; en la punta de la lanza que mata; en el cañón de la pistola que intimida: en las tinieblas de la noche pavorosa; en el reloj que indica las horas, en la aguja de marear que marca el norte; en una palabra, en todo lo que es incomprensible y misterioso. Con Gualicho hay que andar bien: Gualicho se mete en todo: en el vientre y da dolores de barriga; en la cabeza y

38 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

la hace doler; en las piernas y produce la parálisis; en los ojos y deja ciego; en los oídos y deja sordo; en la lengua y hace enmudecer. Gualicho es en extremo ambicioso. Conviene hacerle el gusto en todo. Es menester sacrificar de tiempo en tiempo yeguas, caballos, vacas, cabras y ovejas; por lo menos una vez cada año, una vez cada doce lunas, que es como los indios computan el tiempo. Gualicho, es muy enemigo de las viejas, sobre todo de las viejas feas: se les introduce quién sabe por dónde y en dónde y las maleficía. ¡Ay de aquella que está engualichada!34 La matan. Es la manera de conjurar el espíritu maligno. Las pobres viejas sufren extraordinariamente por esta causa. Cuando no están sentenciadas, andan por sentenciarlas. Basta que en el toldo donde vive una suceda algo, que se enferme un indio, o se muera un caballo; la vieja tiene la culpa; le ha hecho daño; Gualicho no se irá de la casa hasta que la infeliz no muera. Estos sacrificios no se hacen públicamente, ni con ceremonias. El indio que tiene dominio sobre la vieja la inmola a la sordina. En cuanto a los muertos, tienen por ellos el más profundo respeto. Una

34 Na edição Ayacucho se lê, erroneamente, engauchada, o que mostra curioso ato falho de associar o gauchesco com o demoníaco. 39 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sepultura es lo más sagrado. No hay herejía comparable al hecho de desenterrar un cadáver. Como los hindúes, los egipcios y los pitagóricos, creen en la metempsicosis, que el alma abandona la carne después de la muerte, transmigrando en un tiempo más o menos largo a otros países y dándole vida a otros cuerpos racionales o irracionales. Los ricos resucitan generalmente al sur del Río Negro, y de allí han de volver, aunque no hay memoria de que hasta ahora haya vuelto ninguno.35

Como Michelet,36 como Marechal,37 também Mansilla aborda o Mal em ação, nas bruxas, no ultrassexo. Autêntico espírito informe, o Mal (gualicho) é um neutro que decompõe o binarismo católico entre o Bem e o Mal e marca um novo limiar a partir do qual pensar tudo da capo. V. percebem que estamos no mesmo ponto vertiginoso em que Guimarães Rosa nos diz que o mal, como em Bataille, está associado ao dispêndio. Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da

35 MANSILLA. Uma excursión a los indios ranqueles, p. 224-225. Para o sentido de gualicho, ver FERNANDEZ GARAY. Diccionario tehuelche-español / índice españoltehuelche. 36 BARTHES. Michelet, 1954. 37 No livro III de Adán Buenosayres, em “una región fronteriza donde la urbe y el desierto se juntan en un abrazo combativo, tal dos gigantes empeñados en singular batalla”, isto é, no bairro de Saavedra, a bruxa Tecla também distribui filtros, feitiços e gualichos. 40 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

gente, aos pouquinhos é o razoável sofrer. E a alegria de amor—compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seusamigos! Sei desses. Só que tem os depois e Deus, junto. Vi muitas nuvens.38 Na pós-lógica roseana, como antes dele, em Murilo Mendes, não se trata de ser ou não ser (mineiro, regional, brasileiro, moderno, masculino), mas trata-se de ser e não ser tudo isso, ao mesmo tempo. Rosa não afirma o ser, nem postula o nada abstratos. Aliás, o próprio Hegel já reconhecia que, em particular na metafísica cristã, e graças à recusa da proposição ex nihilo nihil fit, tinha ocorrido a afirmação do trânsito do nada ao ser. Mas essa metafísica não era bem um sistema da identidade, já que não estava fundada no princípio segundo o qual o ser somente é e o nada não é. Hegel admitia, então, que a metafísica cristã supera a suposta posição budista, que fundamentava a realidade em um nada que é apenas nada. E admitia também que essa posição supera até mesmo a atitude logocêntrica e seu esforço por fundar a realidade no ser que somente é ser. Em outras palavras, a metafísica cristã teria superado o que a dialética quis em vão superar, postulando que o não-ser ativo não é mero não-ser, mas um não ser-ativo que trabalha, porém, pela aspiração imanente ao não-ser. Por isso, pode-se dizer que, no não ser-ativo, na in-operância, ocorrem até mesmo o bem e a

38

ROSA. Grande sertão: veredas, p. 13. 41 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

beleza, mas trata-se de uma beleza de baixo materialismo ou convulsiva, como queria Breton. E além do mais, essa inoperância nos mostra que, mesmo no bem e na beleza, acontece, de certa maneira, a força apofática do não-ser, que se traduz como invocação do nada ao ser e vocação do ser em direção ao nada39: Ah, então: mas tem o Outro –o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o mal-encarado, aquele—o que não existe! Que não existe, que não, que não, é o que minha alma soletra. [...] Mas, naquele tempo, eu não sabia. Como é que podia saber? E foram esses monstros, o sobredito. Ele vem no maior e no menor, se diz o grãotinhoso e o cão-miúdo. Não é, mas finge de ser.40

Parti, de início, de um texto de Antonio Candido. Permitam-me agora tomar outro de Beatriz Sarlo. “El saber del texto”, tal o título, insere-se numa série integrada pelo ensaio “Literatura y política”, de dezembro de 1983 (momento da redemocratização com Raul Alfonsiín),41 e da qual faz parte, também, uma colaboração de Sarlo para um volume coletivo, editado por Daniel Balderston, intitulado

39 Poderíamos considerar experiências de teologia apofática a de Malévitch ao propor o quadrado preto sobre fundo preto; a de Duchamp, ao inscrever um urinol como objeto estético ou a de Borges, ao marcar a passagem de alguém a ninguém, em Outras inquisições. 40 ROSA. Grande sertão: veredas, p. 285-286. 41 SARLO. “Literatura y política”; p. 8-11. 42 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Ficción y política, um de cujos fragmentos se reproduz, na sua revista Punto de vista, em abril de 1986, como fruto de um debate no Clube Socialista. Nele, apoiada em Adorno e Martin Jay, Sarlo afirma que Especialmente en un período donde se había suprimido ‘la heterogeneidad en nombre de la identidad’, la literatura pareció en condiciones de proponer ‘una restauración de la diferencia y de la no-identidad’. En esta colocación, sin duda difícil y a menudo peligrosa, la literatura puede leerse como discurso crítico aunque adopte (o precisamente porque adopta) la forma de la elipsis, la alusión y la figuración como estrategias para el ejercicio de una perspectiva sobre la diferencia.42

A partir desses conceitos, Sarlo analisa a literatura da incipiente redemocratização como aquelas ficções para as quais a verdade repousa tanto “en el pasado cultural y político”; quanto na noção de que o nacional é “una afirmación problemática”; as que propõem “una literatura de la deriva y del viaje”; as que assumem “los itinerarios del exilio” e as que abordam “el poder y la violencia”.43 Conhecemos esse dignóstico.44

42 SARLO. “El saber del texto”, p. 6-7. 43 SARLO. “Política, ideología y figuración literaria” in BALDERSTON. Ficción y política: la narrativa argentina durante el proceso militar, p. 30-59. 44 As categorias de Sarlo antecipam o diagnóstico da inviabilidade nacional de Roberto Schwarz. O autor de Sequências brasileiras aventa várias cenas. “Uma é de que 43 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ela (a formação), que é também um ideal, perdeu o sentido, des­qualificada pelo rumo da história. A nação não vai se formar, as suas partes vão se desligar umas das outras, o setor ‘avançado’ da socieda­de brasileira já se integrou à dinâmica mais moderna da ordem interna­cional e deixará cair o resto. Enfim, à vista da nação que não vai se inte­grar, o próprio processo formativo terá sido uma miragem que a bem do realismo é melhor abandonar. Entre o que prometia e o que cumpriu a distância é grande. Outra perspectiva possível: suponhamos que a economia deixou de empurrar em direção da integração nacional e da formação de um todo relativamente auto-regulado e auto-suficiente (aliás, ela está empurrando em direção oposta). Se a pressão for esta, a única instância que continua dizendo que isso aqui é um todo e que é preciso lhe dar um futuro é a unidade cultural que mal ou bem se formou historicamente, e que na literatura se completou. Nessa linha, a cultura formada, que alcançou uma certa organicidade, funciona como um antídoto para a tendência dissociadora da economia. Contudo vocês não deixem de notar o idealismo dessa posição defensiva. Toda pessoa com algum tino materialista sabe que a economia está no comando e que o âmbito cul­tural sobretudo acompanha. Entretanto, é preciso reconhecer que nos­sa unidade cultural mais ou menos realizada é um elemento de antibar­bárie, na medida em que diz que aqui se formou um todo, e que esse todo existe e faz parte interior de todos nós que nos ocupamos do assun­to, e também de muitos outros que não se ocupam dele. Outra hipótese ainda: despregado de um projeto econômico nacional, que deixou de existir em sentido forte, o desejo de formação fica esvaziado e sem dinâmica própria. Entretanto, nem por isso ele deixa de existir, sendo um elemento que pode ser utilizado no mercado das diferenças culturais, e até do 44 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Ora, em contraponto, caberia lembrar que, tanto Fredric Jameson, analisando o cinema de Sokhurov, quanto Susan Buck Morss, ao estudar as instalações de Ilia Kabakov, marcaram, quase paralelamente, o abandono de uma estética materialista em benefício de formas menos imediatas de percepção que, mesmo quando já não busquem uma arte ideológica, pautam-se, entretanto, por uma arte política, de fundo ainda mimético.45 Mas há um ponto que o próprio Kabakov reivindica e que, me parece, ilumina a questão do tertium: o conceitualismo é uma estratégia de esvaziamento, de profanação (avacalhação) da instituição artística, que já não admite ser pensada com os parâmetros iluministas do passado. Não é mais mímese, mas pantomima.46

turismo. A formação nacional pode ter deixado de ser uma perspectiva de realização substantiva, centrada numa certa autonomia político-econômica, mas pode não ter deixado de existir como feição histórica e de ser talvez um trunfo comercial em toda linha, no âmbito da comercialização internacional da cultura. Enfim, ao desligar-se do processo de auto-realização social e econômi­ca do país, que incluía tarefas de relevância máxima para a humanida­de, tais como a superação histórica das desigualdades coloniais, a for­ mação não deixa de ser mercadoria. E ela pode inclusive, no momento presente, estar tendo um grande futuro nesse plano” (SCHWARZ. Sequências brasileiras, p. 57-58). 45 JAMESON. History and Elegy in Sokurov, p. 1-12; BUCK-MORSS. Dreamworld and Catastrophe: The Passing of Mass Utopia in East and West. 46 Murilo Mendes define a ficção de Borges como pantomima cósmica. Sobre o particular, ver LADDAGA. La estrategia del paroxismo; FOSTER. Diseño y delito; FOSTER. 45 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Num manifesto de 1990, contemporâneo, portanto, ao fim da União Soviética, Kabakov define o trauma de um modo que nos serve para repensar a tradição com que também, na cultura latino-americana, foram pensados o deserto e a importação cultural, de Sarmiento a las vanguardias, para retomarmos o título de um conjunto de ensaios de Sarlo e Altamirano. El vacío (…) no puede ser descrito en términos de apropiación, de población, de empleo de trabajo o de economía, es decir, en términos de la conciencia racionalista europea. Este vacío se presenta como un volumen extraordinariamente activo, como un depósito de vacío, como una especial “ontocidad” [bytiistvennost’] vacía, extraordinariamente activa, pero contrapuesta al auténtico ser, a la auténtica vida, y que es la antípoda absoluta de toda existencia viva. “La Naturaleza no soporta el vacío”. Pero desearía agregar que, igualmente, “el vacío no soporta la Naturaleza”. El vacío del que hablo, no es el cero, no es simplemente “nada”; el vacío del que hablo no es una frontera nula, neutralmente cargada, pasiva. En absoluto. El “vacío” es tremendamente activo, su actividad es igual a la del ser positivo, ya se trate de la actividad de la Naturaleza, de la del hombre o de la de fuerzas superiores. Pero su actividad presenta un signo contrario, está dirigida en sentido opuesto, y

Dioses prostéticos; FOSTER . Dada Mime; FOSTER . Amour Fou. 46 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

actúa con la misma energía y fuerza que la aspiración de la existencia viva, la aspiración de ser, devenir, crecer, construir, existir. Con la misma indestructible actividad, fuerza y constancia, el vacío “vive”, convirtiendo el ser en su contrario, destruyendo la construcción, mistificando la realidad, convirtiendo todo en polvo y oquedad. El vacío, repito, es la conversión del ser activo en no-ser activo y, lo más importante y sobre lo que quisiéramos llamar la atención en especial, ese vacío vive, existe, no en sí mismo, sino con la vida, con el ser, a su alrededor; vida que él elabora, que muele, que hace caer dentro de sí. En eso veo una función, una propiedad especial del vacío, fatal para la vida. Se ha pegado, se ha unido indisolublemente a ella y le succiona el ser; su poderosa, pegajosa, nauseabunda antienergía la adquiere el vacío apropiándose – como en el vampirismo – de la energía que le resta, le sustrae, al ser que lo rodea. (…) El vacío es precisamente el otro lado, lo opuesto, de toda pregunta, es el forro, el contrario, el “no” constante que se halla bajo todo, lo pequeño y lo grande, lo total y lo particular, lo racional y lo insensato, todo lo que no podemos nombrar y lo que tiene sentido y nombre.47

Kabakov notabiliza-se, nesses mesmos anos, por um conjunto de instalações ou obras gráficas em que a praça permanece vazia, figurando a multidão como um

47 KABAKOV. Sobre el vacío, p. 23-24; GROYS. El arte conceptual del comunismo, p. 359-360. 47 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

conjunto de silhuetas vistas do alto, minúsculas, nas bordas desse espaço vago, desse tertium que não é passivo, mas poderosamente ativo, uma vez que ele é e não é, como o demo sertanejo. Mas aí, se retornamos ao texto de Sarlo, “El saber del texto”, constatamos que, como sempre, a leitura é maior que o texto porque ele sempre diz mais do que afirma. Com efeito, o ensaio de Sarlo foi ilustrado, invadido até, por desenhos de León Ferrari e a disposição desses bonecos, quase como figurinhas de Playmobil, vincula-se a outros modos de figuração da política, semelhantes aos explorados por um filme como Los rubios (2003), de Albertina Carri, com roteiro em coautoria com Alan Pauls, onde aqueles que desafiavam o consenso eram vistos pelas maiorias normais como bonecos de ficção científica, tão canhestra quanto doméstica, ridículas figuras de uma pantomima cósmica acerca da qual, aliás, o coletivo Punto de vista, segundo Daniel Link, nada teve para dizer. Não há, a rigor, grandes diferenças, portanto, entre a demora do Instituto de Cinema (kirchnerista) em conceder ao filme o caráter “de interesse público” e a apatia do clube socialista (anti-kirchnerista) em avaliar o testemunho de Carri. A diferença não é, portanto, ideológica, mas política. A explicação deveria ser buscada no fato de que a estratégia do esvaziamento do filme opera, decididamente, não só nas figuras, como reivindicava Sarlo, mas na figuração; não só nas imagens, como diria Schwarz, mas na imaginação; não só no que vemos, mas no próprio olhar. Fica claro então (e isto talvez ilumine, por exemplo, certa reconversão políticamente

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neoconservadora de Sarlo, nos anos mais recentes) que a forma é uma simples aparência; a arte visual é cega; e a literatura define-se como uma obliteração e uma rasura, uma diferença que nunca se capta em simultâneo, mas sempre em diferido, em fusão temporal. A crítica, como a de Antonio Candido ou Beatriz Sarlo, limitada à mimese, não passa, portanto, de um trompe l’oeil, porque, quando muito, ela consegue descerrar o véu que cobre algo situado para além do que se pode ver. Capta o mistério, mas não o enigma. Giorgio Agamben nos fornece, aliás, um último elemento para pensarmos o ser e não-ser coexistentes à maneira de Guimarães Rosa. Trata-se de uma fórmula que poderia ser filiada ao sintagma regula et vita de Francisco de Assis. Nela, conjuga-se, mas também separa-se, uma tensão recíproca entre a regra e a vida. Em outras palavras, não há mais espaço para a aplicação da regra (evangelicum canon) aos poderes mundanos, entre os quais, os da própria Igreja, assim como o cânone ocidental, à maneira de Bloom, não dá mais conta das pesquisas na Universidade. A fórmula franciscana regula et vita e, na sequência, a idéia muriliana ou roseana, em uma palavra, a imagem pós-lógica, inserida, em suma, no Real, de ser e não-ser, não significam confusão entre os dois termos, mas neutralização e transformação de ambos como formasde-vida. Na emergência de uma exceção—a janela do caos, o infinito-mundo—regra e vida se separam: o estado normal não se apresenta mais, então, como aplicação da regra à bios, mas como “forma-de-vida”, praticamente zoé,

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ao passo em que, simultâneamente, a exceção aparece como dispensatio regulae.48 É a chave do contemporâneo, a cicatriz do moderno. Refletir sobre esse tópico talvez nos ajude a melhor entender a situação de nosso trabalho crítico no âmbito da Universidade. Retomo aqui parcialmente as idéias desenvolvidas em “A pesquisa como desejo de vazio”, em: SCRAMIM, Susana (Ed.). O contemporâneo na critica literária. São Paulo: Iluminuras, 2012. p. 15-34.

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48 AGAMBEN. Altissima povertà: regole monastiche e forma di vita, p. 126-134. A tese, que como o último Oswald se questiona acerca do uso, oposto à propriedade, conclui que “l´altissima povertà, col suo uso delle cose, è la forma-di-vita che comincia quando tutte le forme di vita dell´Occidente sono giunte alla loro consumazione storica”, p. 171. 50 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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POESIA E CRÍTICA CONTEMPORÂNEAS: ENDOGAMIA E TOLERÂNCIA Ronald Augusto

O fato de nos depararmos com uma produção poética “ainda sendo feita”, um gesto, por assim dizer, “em tempo real”, fugaz e live, isto é, que não se estabeleceu, não justifica o silêncio, nem a esquiva crítica a contragosto a seu respeito. Em outras palavras, insiste-se na alegação de que devido a sua condição de fenômeno in progress, a poesia atual acabaria por impor um óbice à tarefa crítica, visto que, por definição, esta atividade teria a função de regular e julgar, calcada sobre certa estabilidade de valores, apenas aquele objeto cuja trajetória pudesse ser abarcada desde o ponto-zero do seu impulso, passando por suas correções de rota e chegando até o seu provável termo de repouso. Portanto, uma experiência tão fugidia, como essa que aqui se discute, talvez não permitisse a prospecção judicativa de seu conjunto. Por causa de sua base larga; sua radicalidade que atinge os antros da terra; suas ferramentas argênteas, a crítica se mostraria, supostamente, sem condições de perscrutar semelhante alvo em movimento, esse ser transitório. Vantajosa inadequação da crítica, às vezes tão fora do lugar! O mundo é leviano demais para a sua lerdeza

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magnânima. Mas, o crítico está (ou deveria se sentir) implicado nas imposturas e nos dilemas que denuncia e anuncia. Portanto, a poesia contemporânea, como fenômeno inconcluso, filha e protagonista de um presente contínuo, signagem manifestada dentro do “horizonte do provável” do nosso tempo, não estaria em situação de ser mapeada “cabalmente”, pois como coisa viva, algo de sua efemeridade escaparia pelas beiradas do escalpelo crítico consagrado. No entanto, há aí um problema de distorção, melhor, de superestimação. Parece estar-se exigindo, para o caso, uma crítica monumental, ou um olhar telescópico que, enquadrando o mais ínfimo e distante exemplar dessa poesia, capturasse num mesmo golpe o mundo e o tempo conhecidos que o envolvem. Mas, o fazer, o saber e o julgar inextrincáveis à atividade crítica, devem ser colocados numa perspectiva provisória, menor. Em outras palavras, crítica é leitura aplicada; uma forma de interpretação ou de abordagem. Isto nos faz supor que tal atividade também se relaciona ao possível, ao impermanente das limitações e das parcialidades do sujeito. Desta maneira, a leitura, ou a crítica, condizente com a poesia contemporânea, deve ser, tal como ela, uma expressão em construção, ainda não canônica e não canonizada. Sequência de interpretações e uma constante confrontação entre elas. Uma crítica, por assim dizer, “câmera-na-mão”, ou para usar outro lugarcomum, crítica mais como transpiração do que como inspiração. Leitura interessada, severa e experimental embrenhada na nervura do dissenso.

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Ao almejarmos e superestimarmos uma crítica totalizadora que “de fato” venha a dizer, quem sabe um dia — pois estranhamente ela não se encontra aqui entre nós — aquilo que queremos e merecemos (ou necessitamos) ouvir acerca da produção poética atual, acabamos também reservando um espaço excessivamente pernóstico, cheio de dedos, para os deslocamentos desta mesma poesia perante a nossa recepção. Às vezes fala-se a propósito da poesia contemporânea em termos de que tratar-se-ia de uma experiência capaz de provocar um estranhamento e um incômodo em determinadas zonas da audiência similares àqueles causados, por exemplo, pela arte contemporânea. Isto é um absurdo. A produção poética de agora-agora passa longe de qualquer gesto iconoclasta, não põe em cheque os próprios limites, não tem sequer a ousadia da frivolidade que, diga-se de passagem, sobra à anti-arte. Então, por que reivindicar para a produção contemporânea um discurso crítico sobrenatural, que fale a língua do “meu tio iauaretê”, na presunção de glosá-la eruditamente e de uma vez por todas? Desde a realidade insossa das manifestações poéticas atuais, talvez se possa arrancar uma resposta cínica para o caso: a expectativa ansiosa pelo advento dessa crítica-para-acabar-com-todas-as-críticas, que faça justiça à pretendida originalidade da poesia atual, não passa de uma tentativa de niquelar a irritante normalidade e eficiência dessa mesma poesia por meio da chantagem cult de um metadiscurso que assomaria para “pôr as coisas

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em ordem”, problematizando uma farsa com outra. Assim, desde um ponto de vista fatalmente precário, pretendo destacar alguns aspectos do estado de espírito dessa poesia. Figuras de sua verdade cambiante. Primeiro aspecto: a) os poetas de agora-agora, grosso modo, dominam desde tenra idade os repertórios da linguagem poética; eles demonstram conhecer os pontos cruciais da tradição literária do ocidente; estar familiarizados com a voz dos mestres do modernismo; prestar atenção aos recursos da versificação quer seja livre, quer seja metrificada; e, por fim, simpatizar, naturalmente, com proposições das vanguardas de quatro décadas atrás. A sofisticação, no caso deles, beira o lugar-comum. Não praticam mais uma poesia ingênua, de coração, confessional. Todos têm uma consciência de linguagem de causar inveja (aos seus pares, naturalmente). A propósito disso, Heloisa Buarque de Hollanda publicou um estudo-antologia (26 Poetas Hoje) em que discute, entre outras, essa questão. Seu recorte tem um cunho multicultural. Mas a autora avança na contramão daqueles que denunciam na poesia contemporânea um pendor para a alienação, para a fuga da realidade, sintomas que, de acordo com esses críticos, seriam resultantes dessa opção pela extrema sofisticação. A autora não nega a existência desse traço requintado, algo emasculado, mas no recorte que nos apresenta, fica demonstrado que esses poetas não participam inteiramente de um estado de espírito neutro ou indiferente em relação ao que os cerca. Isto é, o requinte, a erudição intertextual não estão necessariamente em contradição

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com a consciência política e social e também histórica. Vejamos outro aspecto: b) a poesia atual se acomoda muito bem dentro da moldura do ecletismo. Haroldo de Campos chegou a cunhar a expressão “ecletismo retrô” para provocar ironicamente essa geração que lhe sucede. Com efeito, tudo agora parece possível depois das vanguardas históricas das décadas de 1950/60. A tolerância poeticamente correta permite desde o soneto camoniano até o poema concreto strictu sensu. É como se os poetas contemporâneos quisessem resgatar das zonas do limbo aqueles exemplares excluídos pelo afã talibanesco do alto modernismo. As vanguardas tão esclarecidas quanto totalitárias (porque indecorosamente utópicas) da virada do século 19 para o século 20, talvez tenham jogado fora o bebê junto com a água do banho. O poeta carioca Alexei Bueno, defende essa tese pós-moderna de revisão do legado. Ele reivindica toda uma tradição e um repertório deixados de lado pela parelha dicotômica novo-velho, suportada pelos diversos discursos do modernismo (que serve de escopo a eles, que os informa). O poeta-crítico repropõe os nomes de, por exemplo, Gonçalves Dias e Castro Alves. Há alguns anos, Alexei Bueno também chegou a publicar uma carta aberta criticando o que chamou de “uma apropriação midiática e totalitária do neoconcretismo” e dos seus epígonos, entre eles é mencionado o poeta Nelson Ascher. Não obstante o tom algo tresloucado e mesmo ofensivo – motivado talvez pela provinciana rivalidade Rio-São Paulo – o conteúdo da carta foi e é importante na medida em que mexe com

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um estado de coisas relativo a certa apologia acrítica em torno do valor e das consequências da poesia concreta – apologia que, se de fato existe, não condiz, em fim de contas, com o radicalismo desse movimento – e que, por tabela, denuncia na espinha do sistema literário esse constante risco de estagnação a que está sujeito. Um terceiro aspecto também interessante da poesia atual é o seguinte: c) nunca, como hoje, vimos os poetas tão entranhados nas regras de eficiência e competência exigidas pelo sistema literário que, como costumo dizer, se configura em representação especular, embora com suas particularidades, dos imperativos sócio-econômicos abrigados sob o arco ideológico do livre mercado. E que outra razão haveria para a grande presença de poetas dentro dos muros da academia? O meio social nos cobra filiações consagradas e consagradoras. Alexei Bueno pergunta pelos poetas engenheiros; pelos poetas médicos; pelos poetas sem profissão; enfim, pelos poetas “à margem da margem”: onde estão eles? Isso parece coisa de outro tempo. Uma parcela significativa dos poetas vivos, isto é, nascidos no século passado, se formam ou se formarão no interior dos muros acadêmicos. Mestrandos e doutorandos em Letras. Isso pode ser um problema. No entanto, não faço aqui a defesa do poeta romântico ou inspirado, o gênio monstruoso cuja originalidade sem começo nem fim ofusca a nossa compreensão. Por outro lado, a poesia demanda anos de estudo vagabundo, de leitura de prazer e uma constante prática corpo a corpo com a linguagem. O poeta precisa distinguir,

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por exemplo, uma sextina de um soneto, identificar tanto nos traços fonológicos quanto nos grafológicos, insumos estéticos. Um poeta está sempre in progress. É neste sentido que uma formação burocratizante numa atividade equívoca como a poesia, termina sendo, ao fim e ao cabo, deformante. A (de)formação acadêmica talvez seja útil apenas para ratificar a existência ou a importância do nosso “censor interno” (W. H. Auden dixit) numa situação que nos seja exigido um ato de julgamento. Jorge Luis Borges diz que “o poeta não condena nem absolve”. Mas qual seria a qualidade de um juízo condicionado por cânones hegemônicos, por pontos de vista superciliosos quanto à informação nova, por discursos presunçosamente totalizadores? Esses questionamentos precisam ser feitos para que a poesia e a literatura-arte (e não o “literário” do mercado livreiro-editorial) não restem tãosó a serviço do “controle institucional da interpretação” (Frank Kermode dixit), representado pela universidade, pela crítica especializada, pelos grupelhos de poetas bem relacionados, pelos ocupantes de órgãos públicos e/ou privados ligados à cultura. Dentro desse panorama pluralista, o quarto aspecto que identifico na atualidade da produção poética, diz respeito ao espaço para o exercício da experimentação: d) a bem da verdade, um espaço reconhecido um pouco a contragosto. Mas essa poesia experimental ou vanguardista, se assim pudéssemos nomeá-la, se mostra ainda bastante epigonal. Ou seja, opera num registro virtuosístico, tendo como base as rupturas que a poesia de

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vanguarda das décadas de 1950/60 levou quase ao limite da aporia. Ainda é interessante experimentar uma suspeita reflexiva com relação a uma ideia que, aqui e acolá, insiste em aparecer em alguns textos críticos. Trata-se da ideia que estabelece similitudes entre vanguarda e progresso. Um vício diacrônico, além de messiânico, serve de nutrimento a uma noção de vanguarda que busca conquistar territórios, acúmulo de feitos num “ensaio de totalizações”. Movimento que visa a uma “etapa final” ou um éden. Vanguarda que se apresenta como “ponto de otimização da história”. Devir utópico calcado sobre linearidade progressiva, causal. Um dogma: a vanguarda não corre o risco de infectar-se com o vírus do retrocesso. Talvez no âmbito da estratégia dos exercícios de guerra, ou mesmo na arena da “politicagem literária”, tudo isso faça algum sentido, pois aperfeiçoamento pressupõe a aceitação de exclusões e obsolescências cujo questionamento — a bem de “um mundo transformado”, digamos, para melhor —, é deixado de lado “por tempo indeterminado”. Prefiro imaginar um quadro de tensões de perspectivas, propostas de linguagem em confronto. Formas e poesias em “conjunções e disjunções” sincrônicas. Não existe progresso. O limbo experimentado pela poesia de Jorge de Lima (que considero um fato lamentável) pode ser revogado a qualquer momento. Outros aguardam o retorno triunfal ao nosso convívio da obra de Cassiano Ricardo. E se isso vier a acontecer, não significará, necessariamente, involução. A poesia se

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desdobra numa rede de conotações e o leitor-poeta se comporta como o administrador das intraduzibilidades e das eventuais reabilitações inerentes à tarefa da leitura criativa e desobediente. Com relação à dialética das consagrações e revisões alguns poetas-críticos de agoraagora buscam, através de textos e publicações, entronizar outros artistas e mestres, fazendo-os ocupar um lugar de proeminência e destituindo, por consequência, outros que com o passar dos anos começaram a representar, segundo seus simpatizantes, influência supostamente nociva para a formação do nosso repertório. Sou forçado a fazer essa consideração, pois, nos últimos anos, tenho notado aqui e ali (a percepção é empírica, sem nenhum método) manifestações cujo teor, grosso modo, é acusatório a propósito de uma tradição “muito cerebral” que seria, por assim dizer, predominante em nossa poesia e, por sua vez, imporia interdições às linguagens mais emocionadas, imagéticas e descomprimidas. Os “seguidores” da juvenília presente e os retardatários da beat generation e de uma escrita delirante e magmática vêm, nos últimos anos, chamando a atenção para a poesia de Roberto Piva como uma espécie de “solução para o problema”. Roberto Piva parece ter sido também a prefiguração de toda uma poesia que, hoje, se beneficia cada vez mais de aspectos exteriores ao próprio poema, o que, aliás, reflete uma espécie de preferência cultural contemporânea no que respeita ao gênero. Preferência que pretende farejar nas roupas de baixo da poesia, aspectos, por assim dizer, mais curiosos e existenciais. Com efeito, situações

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de significação antes secundária, tais como, se o poeta é dublê de xamã, se é gay, se é suicida, se representa a poesia afro-brasileira, se vive socado no pantanal, se é da periferia, se foi abusado na infância, se o uso de drogas o fez perambular pelas estradas tornando-o uma espécie de monge, se a iluminação súbita do haicai o converteu ao zenbudismo, enfim, todos esses elementos de catalogação que compareciam sempre após a vírgula, justificam e tornam pertinente a maior parte da poesia aceita hoje. Não basta procurar e reconhecer o bom poeta, tornou-se imperativo que ele(a) diga coisas contundentes desde o lugar de sua diferença social, sexual e antropológica. As considerações acima me obrigam a evocar um episódio que vivi há mais de duas décadas e que diz respeito ao debate da literatura negra ou afro-descendente. No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário

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um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verbal. Com um misto de desconfiança e inquietação, parecia procurar na folha de papel a porta de entrada ou, desesperadamente, a primeira fresta por onde escapar. Não demorou muito para que ela, erguendo a cabeça loira, me fizesse a seguinte indagação. Onde está o Negro neste poema? Com efeito, até hoje não sei ao certo a que negro a loira estudante quis se referir. No entanto, sua indagação me forneceu algum material para reflexão. Assim, cheguei à conclusão de que tal pergunta traz em seu bojo algo como uma expectativa ready-made no que diz respeito às constantes que, supostamente, deveriam servir de marca, de escopo a uma poética negra. Apresento agora ao leitor algumas variantes que talvez traduzam ou, melhor, que talvez façam vir à tona aquilo que restava subjacente ao questionamento da minha entrevistadora: (1) onde está o típico?; (2) onde estão as palavras chibata, tronco, quilombo, liberdade?; (3) o que é feito do Lamento, da Dor, da Magia Negra?; (4) onde está o almost extinct?. Pois bem, esta expectativa consagrada à força da repetição, e que sobrevive sob o véu esbranquiçado desta(s) pergunta(s) constitui a matéria que pretendo discutir aqui. Felizmente, uma parcela pequena, porém viva, de escritores negros vem nos oferecendo, há algum tempo, outros e necessários escurecimentos. Por meio de suas obras, conseguimos vislumbrar o posicionamento mais

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radical ou plural da idéia de transnegressão. Atentos ao risco da diluição - os esclarecimentos do controle institucional da interpretação -, que acompanha como sombra os bemintencionados defensores de uma “verdadeira” literatura negra; estes autores transnegressores e seus poemas vão, aos poucos, tornando cada vez mais complexa qualquer definição pretensamente consistente e acabada a respeito das linhas de força do total desta escritura. Semelhante tomada de posição nos permite detectar o seguinte: a pergunta angustiada da estudante germânica também comparece com um peso considerável nos critérios de gosto e de valoração da maior parte daqueles que têm fundamentado o seu sucesso debruçando-se sobre o caso ímpar dessa literatura, quer seja através da organização de antologias fortemente temáticas, onde os conteúdos inessenciais se sobrepõem à realização poética mais penetrante, quer seja através da publicação de ensaios que investigam estes objetos literários tão só como exemplos de uma afirmação identitária, cuja função básica consistiria em amplificar e dar nobreza documental aos anseios de uma coletividade ou segmento étnico. Em outras palavras, toda essa fortuna crítica aponta para a responsabilidade social do escritor; o compromisso histórico do poeta como porta-voz de questões situadas aquém ou além do âmbito mesmo da invenção verbal. E segundo estes intérpretes, almas quase renomadas, tal literatura, para fazer jus ao apodo negro, precisa dar mostras claras, incontestes da presença do Negro. Ou seja, o texto examinado (“a patient etherised upon a table”,

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T. S. Eliot) precisa responder afirmativamente e com provas cabais àquela pergunta da estudante estrangeira; deve sustentar o paradigma imaginado, promovê-lo à verdade irretocável, que possa ser reificada ao longo de um discurso-livro de, pelo menos, umas duzentas páginas e que, por um efeito dominó, faça escola e granjeie defensores argutos e/ou indignados. As provas de que há um negro entremeado ao texto, insuflando-lhe vida, são identificadas pela frequência com que aparecem, por exemplo, além daquelas palavras já mencionadas acima, as de origem africana que adoçam e singularizam a fala do brasileiro, tais como: moleque, bunda, cachaça, empate, etc. Ou ainda, outra prova, por uma insistente reiteração de um nós negros, ideologicamente correto, indicando uma espécie de irredutível essência negra que cumpriria, principalmente ao criador e complementarmente ao exegeta, preservar a todo custo, como se tal essência fora um santuário repleto de ex-votos curiosos ou uma reserva natural ameaçada. Como consequência, temos a literatura feita pelos negros comodamente atada ao tronco da temática transitiva ou circulando livremente pela senzala de um estreito ismo. O grande dano deste traçado programático, delimitador e, de resto, extremamente eficaz para confinar esta prática poética dentro do universo dos estudos culturais e das literaturas de testemunho, é a exclusão sumária de outros textos/autores que apontam hoje – ou que apontaram no passado – para zonas limiares, imprecisas, abertas à sedução da instabilidade dos

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significados, onde a inteligência em movimento costuma puxar o tapete à mediocridade conformadora; o esforço dos poetas/escritores que focalizam a sua atenção mais no como dizer e menos, bem menos, no que é urgente dizer talvez ao ouvido do pesadelo da História. Mas, por fim, todos os dilemas, ou os vícios e virtudes da poesia moderna e contemporânea, poderiam ser resumidos ou ter sua origem num ponto apenas, que é o que concerne ao verso livre. Embora seja um exagero insistir em dizer que o “ciclo histórico do verso está encerrado”, parece ficar cada vez mais claro que o verso livre modernista — que, diga-se de passagem, a maioria pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades constitutivas — experimenta um momento de estagnação. Em artigo publicado recentemente, Paulo Franchetti estuda na versificação contemporânea a “crise de verso” ou “crise do verso” na linguagem de alguns poetas. De acordo com o crítico, tornou-se já prática consagrada a “quebra arbitrária da frase, sem que se perceba na quebra mais do que o desígnio de quebrar”. Há algum tempo, num artigo publicado em Sibila, onde avaliava a cena das revistas literárias, me referi a esses poetas que operam sobre o verso a partir tão-só do corte como “convencionais versemakers da fratura, da fragmentação”. Para Franchetti, uma parcela da poesia de hoje representa um “atestado de recusa do verso livre, ou de desconfiança nele como eficácia poética”. Enquanto isso, irmandades de poetas apuram suas ferramentas no aproveitamento acrítico desse verso fake resolvido na

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estabilidade de uma sempre e afetada elipse sintática. Nem mesmo as vanguardas, que inventaram a “música sem-versista”: o poema como uma constelação suspensa na página; nem mesmo elas conseguiram mudar o quadro. É como se as coisas atinentes ao verso e seus modais corressem num trilho à parte. Talvez isso se deva, em alguma medida, à precoce canonização do versilibrismo. O verso livre da fase áurea do modernismo representou uma possibilidade expressiva mais afim àquele momento histórico e ao que viria a seguir. O soneto, essa máquina parnasiana onde os poetas-medalhões se refestelavam com seu virtuosismo métrico, começara a emperrar. Em contrapartida, a defesa do verso nãometrificado, em alguns casos, foi tão dogmática quanto a dos que o repudiavam. A verdade é que o verso livre — mais como prática inercial do que como afirmação ou ensaio inventivo de um modelo conquistado — ainda tem muita coisa a ver com o verso metrificado que pretendeu substituir. Ou seja, embora pareça, o debate não se encerra aqui. Em resposta à poesia “em greve”, isto é, negativa, daquelas vanguardas, a poesia de invenção desse século pós-utópico confina com um cinismo fashion e não tem compromisso com uma poética progressiva. A vanguarda (e principalmente como movimento coletivo) deixa de ser uma bandeira. O experimentalismo, como conceito, perde força. Agora, não é senão uma possibilidade de performance dentro de um determinado repertório oferecido pela tradição. A este propósito caberia dizer uma ou duas

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palavras sobre o tema da “poesia em meios não impressos” que, hoje, parece fazer as vezes de uma vanguarda. Segundo as boas almas envolvidas direta ou indiretamente com a coisa, a poesia digital representa o último refúgio da experimentação na literatura contemporânea. A “arteinicial” da poesia não-verbal e pós-tipográfica de algumas décadas atrás sucumbe frente à arte-final high-tech, finalista e financista das práticas poéticas de hoje. Os poetas de tal vertente fazem uso pesado da tecnologia digital. Os recursos computacionais, de simples ferramentas para a otimização e a realização de projetos editoriais, de uma hora para a outra passaram a lançar os dados disso que (com a permissão de Mallarmé) talvez se converta em nada ou quase em uma arte. Pode-se dizer que para a preguiça vigente, esses recursos foram investidos de um poder criativo graças à sua capacidade de manipulação e deformação de fontes, imagens e sons retocados virtualmente por meio de distorções, animações, fusões e animações em 3D. Se, até a pouco, para fazer chover no piquenique dominical da poesia bastavam papel, cola e tesoura (ver, por exemplo, o poema “Organismo” de Décio Pignatari, publicado em 1960), agora sequer se imagina a fatura de um poema intersemiótico sem a parceria de computadores, celulares de última geração, câmeras digitais, enfim, desses videogames adultescentes onde o letrismo sem fundo dos caracteres luta consigo mesmo: ferramentas-mercadorias típicas de uma confiança ou de um entusiasmo, ao fim e ao cabo, naïf com relação aos poderes e avanços que marcam a ultramodernidade

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narcisista. Vírus da virtualândia. Joan Brossa (1919-1998), com seu sorriso esturricado à la Buster Keaton, dizia que a nossa não é uma época multimídia, mas “multimerda”.

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ESCRITA DE SI E EXPERIÊNCIA DO MUNDO: NOTAS SOBRE O “ECCE HOMO” DE FRIEDRICH NIETZSCHE

Olímpio Pimenta

Bem feitas as contas, sempre escrevemos sobre o mundo em nós, vale dizer, sobre nós no mundo—mais precisamente, sobre a passagem disso por aquilo. Para esta apresentação, interessa acompanhar o caso criado por Nietzsche a respeito do tema, tendo em vista o Prólogo e as três primeiras seções de “Ecce Homo”. Pretendemos surpreender ali determinados aspectos-chave de seu pensamento, evidenciando algumas razões a favor da continuidade entre nós e o mundo enunciada acima. Se tudo correr bem, isso nos permitirá, também, atender à questão que deu o mote às discussões desta edição do SPLIT. Antes de tudo: a forma escolhida para esta exposição é mais próxima de uma aula do que de uma conferência, pois quero menos argumentar do que propor uma conversa. Isto implica anunciar de início alguns temas presentes no livro em foco e em sua fortuna crítica para, em seguida, buscar esclarecê-los variando os pontos de acesso a eles, como ocorre durante uma palestra que envolve um ou mais interlocutores. O tom é de prosa,

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enfim. Assim, para começar interessa cogitar um pouco sobre o que é este livro, o “Ecce Homo”. O título, uma dentre tantas brincadeiras do erudito Nietzsche, repete as palavras de Pilatos ao apresentar Jesus ao povo depois da flagelação. Trata-se, nos dois casos, da exibição pública de alguém. Nesse primeiro sentido, tomado enquanto projeto editorial, o livro consiste em uma autobiografia intelectual que, mesmo sendo bastante heterodoxa, deveria prestarse para a divulgação de um autor cujas demais obras começavam a encontrar repercussão no mundo culto. Entretanto, a coisa muda de figura ao considerá-lo em sua dimensão filosófico-literária. De imediato, entre os mais próximos do autor, as impressões de leitura foram bastante desfavoráveis. Recriminou-se o que soava como ambição desmedida, e também a grandiloqüência. A opinião posterior dos biógrafos é também reticente, vinculando o escrito à loucura que se manifestaria pouco tempo depois. Para eles, apreciado à luz do esquema vida e obra, o livro peca por ser pobre em material factual, restando buscar nele apenas elucidações psicológicas sobre os estados internos do filósofo—nada que seja dotado de maior apelo filosófico. Entre os intérpretes e comentaristas, por sua vez, nenhum consenso: há quem goste, quem desgoste e quem lhe seja indiferente. Mas para nós, secundando, por exemplo, Rosa Dias e Sandro Kobol—respectivamente: Nietzsche, vida como obra de arte, Civilização Brasileira/2011 e Sobre o suposto autor da autobiografia

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de Nietzsche, Discurso/2004, aos quais devo muito do que digo aqui—um tesouro, enquanto reapresentação de pensamentos e teses centrais da filosofia de Nietzsche do ponto de vista privilegiado das condições existenciais que facultaram a emergência desses mesmos pensamentos e teses. Uma espécie de coroamento de um percurso filosófico-vital, prova provada de que quase nada do que importa na obra nietzschiana é postiço ou arbitrário mas, muito ao contrário, atende à exigência mais difícil que a filosofia e a vida filosófica põem para seus adeptos, a da coerência entre o que se vive e o que se pensa. Mas cabe logo uma advertência: não convém confundir tal preceito com integrismo literal, sistematicidade, homogeneidade entre princípios e resultados ou qualquer outro critério que depende apenas da lógica estrutural da escrita. Na direção sublinhada por Pierre Hadot, “a teoria por ela mesma não é considerada como um fim em si. Ou ela é clara e decididamente posta a serviço da prática”, o que inclui, evidentemente, a prática inventiva de quem conta sua história. Aliás, vem a calhar um outro parêntese. Tenho insistentemente me perguntado, e também aos colegas, se nosso magistério pode se resumir às tarefas técnicoacadêmicas, a chamada “transmissão de competências”, ou se há imperativos próprios, no mínimo no campo das humanidades, a serem observados—que dizem respeito à formação pelo exemplo. Ficam duas pistas: se se é estudioso de Nietzsche, parece que uma postura assim é desautorizada pelo próprio “objeto” de estudo; além disso,

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não dá para escapar à questão pleiteando a suspensão de juízo, pois essa atitude é fruto de outros tantos juízos, todos engajados na realização de alguma prática de vida. Assim, uma postura a favor da especialização e do academicismo já é, por si só, indício bastante eloqüente do que se quer com os estudos e de como se pensa sua relação com a vida. Dito isso, os objetivos da nossa leitura são os seguintes. Um primeiro, escolar, é reconhecer a continuidade subjacente ao desenvolvimento do que Nietzsche escreve nas seções em foco, muito despistada à primeira vista, mostrando a ordem em que as ideias, impressões e comentários estão dispostos. O segundo é mais ambicioso: referenciar o que vai sendo lido a alguns aspectos mais notáveis do pensamento nietzschiano e a outros momentos da sua obra, tomada em conjunto. A combinação entre os dois objetivos aspira a mostrar que este livro é tremendamente conseqüente, na medida em que, ao repertoriar as realizações filosóficas de uma obra complexa, corrobora o laço constitutivo entre o teor dessas realizações e a trajetória existencial de quem a deu à luz. Prevendo, a partir de alguns indícios— principalmente um curso de introdução ao seu pensamento, ministrado por um respeitado scholar na Escandinávia, além de certas correspondências muito elogiosas vindas da França e da América—uma virada no status de sua obra, então cercada de um silêncio incômodo, nosso autor decide se dar a conhecer, falando do que escrevera e, principalmente, de como o fizera. Numa direção parecida,

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já havia preparado, dois anos antes, uma série de cinco prefácios para as segundas edições de Nascimento da tragédia, Humano, demasiado humano I e II, Aurora e Gaia ciência. Apesar da convergência de propósitos— tornar as obras mais acessíveis, evidenciando o caráter contínuo de seu desenvolvimento a fim de promover o debate das ideias que as constituem, além de desencalhálas nas livrarias—esses escritos têm um caráter diferente do Ecce Homo. Nos prefácios, é como se estivéssemos a um grau de distância dos respectivos livros, contemplando a encenação do que transcorre em cada um deles desde um primeiro bastidor. No livro de 1888, nos afastamos mais um grau, contemplando a cena a partir de um segundo bastidor, cuja perspectiva abrange a arte geral que pôs todo o conjunto da obra em movimento. Mas isto, a perspectiva mais afastada, é anunciada de um modo nada singelo—e menos ainda isento de desafios para o leitor. A seguir, passamos à apresentação dos aspectos principais do Prólogo e das duas primeiras seções, com a qual esperamos recuperar tal ponto de vista geral de maneira linear. Já adianto, para quem não conhece, seus títulos; diante da etiqueta mais costumeira entre filósofos, tendem a provocar curiosidade, senão espanto: Porque sou tão sábio e Por que sou tão esperto. As dúvidas mais imediatas são do tipo: será mesmo? Como assim? Vejamos o Prólogo, primeiro parágrafo: “Prevendo que dentro em pouco deverei me dirigir à humanidade com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada,

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parece-me indispensável dizer quem sou”. O que significa isso? Qual é o alcance exato desta “mais séria exigência”? Em primeiro lugar, uma campanha sem descanso contra o ideal, contra a duplicação da realidade em “essência” e “aparência”, que resultou em depreciação completa do que nos é mais próprio—nossos corpos, nossa condição natural, as coisas que nos são mais próximas. Pois, afinal, “a realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal”. Ora: logo nesta abertura está reiterado o núcleo de toda a empresa filosófica nietzschiana. Se falamos em apolíneo e dionisíaco, vontade de potência, além do bem e do mal, perspectivismo, genealogias, gaia ciência, amor fati, morte de Deus, espírito livre, eterno retorno, inversão do platonismo, moral de senhores e moral de escravos, superhomem, transvaloração de todos os valores, falamos, no fundo, de afirmação da existência, contrapartida propositiva da crítica filosófica finalmente bem sucedida do ideal. Mas por que este privilégio, o que justifica esta presunção? Aí entra um dos segredos deste Ecce Homo: o esvaziamento da metafísica não é uma coisa pensada em abstrato dentro da cabeça de alguém, um projeto teórico-conceitual, mas a conquista de uma forma de vida inteiramente nova, até então experimentada nos termos referidos acima apenas pelo indivíduo Friedrich Nietzsche. É dessa forma de vida que se fala de ponta a ponta no livro. Em suma: trata-se, ali, de narrar o amálgama criado entre pensamento e vivências, corpo e espírito,

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possibilidade e necessidade, filosofia e existência, a partir das singularidades da trajetória única do personagem Friedrich Nietzsche. Ou, como dissemos no título, valendo justamente para este livro extraordinário, o que entra em cena é o amálgama entre narrativa de si e experiência do mundo. E que não haja engano: logo no próximo parágrafo encontra-se uma chamada direta, a favor da diferença em relação a qualquer mestre, pois só se torna o que se é tomando distância, largando noções e doutrina alheias, provando a solidão. Citando seu Zaratustra, Nietzsche diz: “Retribui-se mal a um mestre, continuando-se sempre apenas aluno... Agora ordeno que me percais e vos encontreis; e somente quando me tiverdes todos renegados voltarei a vós”. Chegamos, por essa via, à seção Por que sou tão sábio. Por que? O primeiro parágrafo o indica: ausência de partidarismo em relação ao problema global da vida. Ora, isto é filosofia em sentido estrito, isto é socrático “por definição”, pois remete ao “sem lugar”, àquele que não fala de nenhum lugar específico. Mais precisamente: a construção do que é mais próprio e peculiar, do que é a própria singularidade, como o mais impessoal, livre de idiossincrasia. Ou, de novo, as vivências como eventos do mundo, implicando a escrita de si como um experimento, uma jogada do mundo consigo mesmo através de alguém. Nesse sentido, a lição dada de graça ensina que conta demais para qualquer um investido em filosofia saber ficar na sua, explorar ao máximo as circunstâncias

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da própria existência, se dar ao mundo para que o mundo se abra e o acolha. Mas não custa repetir: não é o caso de se firmar um caráter íntegro e unívoco, mas de se abrir para a seleção do que se dá conta de provar. Não resulta daí um ego consolidado, mas um personagem à altura de viver aqui, no tempo e no espaço e entre os eventos que constituem a sua cota. Uma tal disposição para o instante evidencia a distância em relação à grande maioria, sempre agarrada aos seus bens e posses e tralhas—e isto, não obstante a primeira impressão, não significa ingratidão, recusa da chamada realidade imediata, mas o máximo de boa vontade com ela, embora num nível de vínculo super expandido e elaborado. Disso tudo decorre a conclusão seguinte: o mais fundamental é a conquista da liberdade em relação ao ressentimento, essa doença dos excessos de memória, responsável pelo desgosto diante da existência dada. Sua cura passa por não mais reagir, impermeabilizar-se, nada mais receber de fora pelo tempo que for necessário e, com isso, despedir de si toda fraqueza, raiz única do próprio mal do ressentimento. Moral da história: bom é aqui, onde quer que isto seja, onde quer que o fado nos tenha lançado, ao contrário do que preconiza o proverbial pessimismo à moda russa, não isento de influência cristã, que ensina que “bom é onde não estamos”. O que não implica, claro, acomodação, conformismo: quem diz isso é um mestre da guerra, que apresenta então as suas regras para essa arte. A distinção

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entre compromisso e partidarismo ajuda a esclarecer o passo, confirmando este modo de guerrear sem nunca se misturar ou confundir com o antagonista, se servindo do exercício como caminho para uma perfeita solidão, em um movimento antidialético por excelência. O saldo é uma forma de viver muito diversa daquela que é prezada pelo consenso das gentes e que traz consigo uma espécie de nova sabedoria—que por sua vez se ergue contra o consenso dos sábios de outrora, para quem a vida não presta. Conhece-se suas palavras: “ofereçam um galo a Esculápio por esse dia”, “a vida de um homem é curta e cheia de aborrecimentos”, e por aí vai. Só para reiterar: nos termos desta seção, o vivente se reconhece como um pedaço da vida, e é nisso que suas atividades encontram referência e limite dignos de consideração. Quando escrevo, por exemplo, quem escreve é a vida— ou, no dizer de um samba também conhecido “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar.” A próxima seção se chama Por que sou tão esperto. Por que será? Trata-se do lugar em que o filósofo cuida da exploração daquilo que, na prática, intervém para favorecer a sabedoria referida antes, ao mesmo tempo em que se serve dela. O primeiro passo nessa direção registra uma completa inapetência para questões religiosas, contrabalançada pelo grande interesse em encontrar e cultivar os regimes de vida mais convenientes para si próprio. A questão de fundo é a seguinte: a observação indica que os tenebrosos problemas da teologia moral— culpa, pecado, arrependimento, penitência, salvação—

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estão invariavelmente associados a más escolhas quanto à dieta e à culinária. Os maus tratos dedicados ao corpo numa dimensão tão primordial de sua existência trazem conseqüências funestas: “Todos os preconceitos vêm das vísceras”. Uma coisa puxa outra, da alimentação Nietzsche passa a considerar clima e lugar. O que melhor convém a cada um nesses termos é também questão fundamental, elaborada à luz de observações sobre metabolismo e atmosfera. Segue valendo a lição: continuidade entre quem se é, onde se está e como se escreve, para bem e para mal. Mas uma cautela teórica se impõe ao leitor apressado: o grau das determinações e reciprocidades deve sempre ser investigado caso a caso, no velho sentido da “mathesis particularis”, evitando que se tirem conclusões universais a partir de um quadro de referências tão cheio de sutilezas e meios tons. Seguem-se ponderações a respeito de distração, divertimento e passatempos. Uma nos concerne de perto aqui, pois situa em primeiro plano as leituras. As estratégias principais repercutem a opção pela solidão: quanto mais trabalho, menos livros em volta—o exato oposto do treinamento para especialistas que ministramos em nosso magistério. Depois da gravidez levada a termo, aí sim, alguma companhia literária, preferencialmente a mais leve e ligeira, exemplificada para o alemão por uma constelação de franceses. Da prosa passa-se à poesia, desta à música e, nessa levada, aparecem diversas notas de caráter biográfico, relativas aos tempos passados pelo

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filósofo junto a Wagner. Aproveita-se para o comentário mais uma vez depreciativo sobre o ser alemão, sua falta de malícia e finura. Toda essa preparação permite, por fim, que venha à baila o miolo do problema, a reflexão sobre “como alguém se torna o que é”. O resultado é mais ou menos o seguinte: interessa destravar o trânsito entre os impulsos, facilitando as chances de acontecerem combinações melhores entre eles, sem que se recorra às ideias solenes de finalidade ou destinação. Por hipótese, o que existe e constitui a nós e ao mundo são impulsos, forças, energia em fluxo. Qual deve ser a hierarquia entre tais forças, que nos permitiria falar do melhor e do pior no domínio das coisas humanas? Aquela que sirva ao vivente no que mais importa, a fruição de sua condição presente, dada na imanência. Não como o tirano infantil, mas como o adulto esclarecido sobre sua situação no mundo—parte dele e não seu dono, limitado por leis, tanto naturais quanto sociais, embora apto a jogar com tais leis em posição criativa. Eis aí o lance decisivo: fazer mais acessível a disposição para criar—inventar, exercitar, arranjar, ordenar, trocar de lugar, dar nome, enfrentar, recuar, enfim, jogar com o que estiver à mão, a partir do amor de si, par perfeito do amor fati. Para arrematar esta visita sumária à seção, cabe perguntar qual é o segredo disso tudo. Respondendo de maneira também sumária: aprender a gostar da própria existência a ponto de nos tornarmos capazes de afirmá-la, mesmo em seus aspectos mais difíceis e problemáticos. Aprender a viver sob a formidável perspectiva do

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dionisíaco, cuja paixão não é a do sofredor, mas a do que se regozija com o espetáculo da existência, infinitamente mais desejável do que a segurança do nada. Em suma: “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo—todo idealismo é mendacidade ante o necessário—mas amá-lo...”. Para efeito de arremate, interessa aludir a algo da terceira seção do livro, em vista de sua proximidade com o tema geral desta semana de estudos. Trata-se de pensar com Nietzsche sobre a escrita, tema que ali aparece sob o título “Porque escrevo livros tão bons”. Peço licença para fazer um recorte e tratar pontualmente de um tópico apenas: a questão do estilo. Antes de mais: a abordagem da questão não é feita, como de costume, em chave estritamente estética. A ausência de clivagens entre os assuntos com que se ocupa Ecce Homo não autoriza a vigências das divisões tradicionais, separando o que é metafísico ou moral do que é epistemológico ou estético. Na vida as coisas não são assim, e isto é o que foi captado e configurado pelo pensador nessa reconstrução de sua obra. Assim, o cultivo da “arte do estilo” não é um negócio descontínuo em relação a quem se é, como se vive, o que se entende sob o nome de realidade, como e porque se conhece. A oposição matricial entre fisiologia e idealismo alude à imagem do mundo como vontade de potência, na mesma medida em que os cuidados dietéticos substituem as receitas éticas

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e que as noções de lisura e higiene remetem a virtudes epistêmicas centrais. O mais importante em relação ao estilo é ter algo a dizer. Quem se cria no amor fati inicia-se no cultivo do estilo, pois se torna palco e cenário para a circulação das forças que constituem o mundo. Sem essas, nada há a fazer. A partir delas, todavia, tudo o que já foi mobilizado antes— um corpo saneado dos ideais, física e psicologicamente flexível, uma consciência honesta e satisfeita com seu caráter instrumental e uma sensibilidade trabalhada pela experiência—pode florescer e frutificar, dando vazão a feitos e obras que poderão aspirar ao estado da arte. Com isso fechamos o círculo, voltando ao mote “porque pesquisar literatura?” em condição de dar nosso palpite. Pesquisar literatura para aumentar um ponto, isto é, para acrescentar mais um capítulo à literatura e ao mundo, planos diferentes de uma realidade só, aquela que amamos livres do ideal.

REFERÊNCIAS DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. FORNAZARI, Sandro Kobol. Sobre o suposto autor da autobiografia de Nietzsche: reflexões sobre Ecce Homo. São Paulo: Discurso, 2004. HADOT, Pierre. Elogio da filosofia antiga. Tradução de Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. São Paulo: Loyola, 2012. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São

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Paulo: Schwarcz, 2004. NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril, 1974. (Coleção “Os Pensadores”).

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ESGOTAR A VIDA: CENAS DE LEITURA

Ana Cristina Chiara

Fui um dia cantar em Belo Horizonte e não tirei o boné de Milton da cabeça e chamei Milton de Milton Renascimento porque parecia ter havido uma revolução sexual em Minas, uma virada da era astral, novo horizonte. (Caetano Veloso) A dança existe como perpétuo ponto de fuga. Desaparece no próprio momento de sua criação (André Lepecki)

Vida, esse assombro, esse assomo de experiências desconjuntadas, de flashes, de frames, de cortes. Vida, experiência do corte. Cortar umbigo, cortar tarefas, cortar calorias, cortar pessoas, amores e amizades. Vida, uma palavra grande demais em sua justeza de duas sílabas, extensa demais para se dar conta, prestar contas, fazer contas. Ao contrário de falar sobre a vida, trato aqui da leitura como modo de esgotar a vida. Como um vaqueiro nas grandes tetas de uma vaca, ou uma criança no seio oferecido da mãe. Esgotar a vida nas tetas da literatura. Fazer da literatura um fortificante no sentido nietzscheano da palavra. Aprender com Nietzsche a

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ler como Nietzsche. Adoecendo na saúde. Ganhando forças na doença. Explodindo as carapaças do ser para atingir um “não ser mais aquilo”, o estado violento da vontade de potência. Aprender a ler com a alegria difícil de Clarice Lispector anunciada em Paixão Segundo GH: “A mim, por exemplo, o personagem GH foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria”.49 Imolar-se na vivência de uma subjetividade sacrificial, de uma subjetividade abstrata, ectoplasma de sensações, lembranças entrecruzadas, ficções: corpo recriado que se gasta numa economia de presença/ausência que é a do tempo da leitura como um existir num “ punto abstracto, matemático, de uma singularidad virtual”.50 Ler para limpar os olhos com Macabéa. Aprender com Lourenço Mutarelli a escorregar pelo furo da paranoia delirante de um desejo que escoa sem encontrar o limite do possível. Estar com Mutarelli no descontrole. Ler então para perceber o que Raúl Antelo define como “vida ali embaixo. Isso não é bom nem ruim. Simplesmente é.” Não tratarei, portanto, da leitura edificante, da educação pela leitura, da formação do leitor, nem da cidadania, examino possibilidades de associar vida e leitura, em movimentos de abalo, de lembrança e esquecimento, de gasto e de perdas, de reprodução e desaparecimento,51 gozo, ferida, morte. Ler como “dançar

49 LISPECTOR. A Paixão segundo GH, p. 5 50 LEPECKI. Agotar La danza: performance y política del movimiento, p. 224 51 A partir da sugestão do título “Esgotar a vida: cenas de leitura” tomado de empréstimo do livro de LEPECKI. 86 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

em cadeias”, experimentar a “jouissance” barthesiana, que, ao contrário do “plaisir” não é posse, mas “pura perda”: “Il se dépense’ que deve ser lido como “ele se gasta”, tanto quanto ele se “des-pensa”,52 ou seja, como quem pensa fora de si em ambos os sentidos.

Nietzsche A leitura de Nietzsche é um repelão. Submeter a cerviz à ferocidade de sua pata-língua de fogo é doloroso. A cabeça dói continuadamente. Ler Nietzsche é adoecer esperando a convalescença: sentir as extremidades frias do corpo febril, a contração do estômago, a náusea, a sonolência letárgica. Nietzsche nos atinge em cheio no que nos é mais caro: toda a arquitetura dos valores que nos puseram de pé, que levantaram nossa face em direção a um Deus, valores que nos fizeram “humanos”: Foi o minuto mais arrogante e mais enganoso da história universal; mas foi apenas um minuto;53 valores, como crosta de poeira, depositados em nossa pele de tal modo que se fundiram ao que julgávamos nosso próprio ser. Portanto, não é sem pena que experimentamos, quando o lemos, a esfoladura da carne viva, sem a proteção que a recobria. E, por isso, adoecemos. Em nós essa doença é força reativa, uma derrota dos nervos diante do que nos parece uma absurda heresia: a destruição de nossos álibis. Nietzsche, por seu lado, também adoece. Contudo,

Agotar La danza: performance y política del movimiento. 52 PERRONE-MOISÉS. Com Roland Barthes, p. 74. 53 NIETZCHE. O livro do filósofo, p. 89. 87 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

nele a doença não é doentia, manifesta-se como pathos afirmativo, quando o corpo, em estado de alerta, concentrase na vontade de superar o estado mórbido, interregno quando tudo parece falhar. O metabolismo se desorganiza com o rodopio louco das forças dionisíacas na tensão criativa (conferir seus prefácios). É dos períodos de doença que surgem seus livros: a experiência da doença pode leválo à experiência da saúde: Um ser tipicamente mórbido não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente são,ao contrário, o estar enfermo pode ser até um enérgico estimulante ao viver, ao maisviver. De fato, assim me parece agora aquele longo tempo de doença [...] fiz da minha vontade de saúde, e de vida, a minha filosofia [...] o instinto de auto-restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo...54 A leitura será, então, enfrentar o labirinto onde prolifera o sentido-máscara de outra máscara que mascara outra. Adotar a atitude de recusa, não acreditar que algo se esconde atrás da máscara, desencadeia a potência de metamorfose (detrás da máscara, Zaratustra ri). Não querer deter a massa discursiva do filósofo, pois nela sopra o vento quente do deserto, de onde, o pensador incendia valores, apontando-lhes a baixa origem humana, demasiada, humana. O leitor oferece-lhe, ainda ressentido, a outra face à bofetada colérica: E tapando as narinas atravessei com desalento todo o ontem e o hoje; na verdade, o ontem e o hoje empestam o populacho

54

NIETZCHE. Ecce Homo, p. 25. 88 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de pena.55 Riscos de afogamento. O leitor deve superar sua condição, deve exceder-se, abandonar o vale da lamentação, e subir à montanha de ar rarefeito. Tornarse um dos pares. Para tanto, exercitar duas qualidades essenciais: a altivez da águia e a prudência da serpente, animais diletos do filósofo bailarino. Nietzsche ensina a ler. E como Nietzsche lê? Lê aos solavancos (como quem morde e cospe fogo...). Os famosos parágrafos curtos — na impaciência contra a mediania. Numa segunda apreciação (tomando-se distância), verifica-se que nele se exerce a leitura como um jogo de desmontagens, deslocamentos, cruzamentos, subordinações, hierarquização, valoração: a leitura ativa. A ferocidade de Nietzsche volta-se contra a leitura passiva. Aquela que lê em conformidade com aquilo que lê. Seu rechaço — detesto todos os ociosos que lêem56 — deve ser entendido como recusa à passividade. Campo de leitura onde o leitor está submisso a uma hierarquia já conferida de valores: O erudito que no fundo não faz senão “revirar” livros [...] acaba por perder totalmente a faculdade de pensar por si. Se não revira, não pensa. Ele responde a um estímulo (- a um pensamento lido), quando pensa — por fim reage somente. O erudito dedica sua inteira energia ao aprovar e reprovar, à crítica ao já pensado — ele próprio já não pensa... O instinto de autodefesa embotou-se nele; de outro

55 56

NIETZCHE. Assim falava Zaratustra, p. 73. NIETZCHE. Assim falava Zaratustra, p. 30. 89 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

modo se protegeria dos livros [...]57.

Para Nietzsche, a leitura ativa reconhece a instabilidade da verdade na natureza metafórica do conceito: O que é então a verdade? Uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, [...] as verdades são ilusões que nós esquecemos que o são, metáforas que foram usadas e que perderam sua força sensível, moedas que perderam seu cunho e que a partir de então entram em consideração, já não como moeda, mas apenas como metal.58

A prudência na atividade ledora deve, então, revelar o modo pelo qual se faz a cunhagem e recuperar o caminho de volta do conceito à imagem, da imagem à perspectiva pela qual foi tomada. É esse o sentido de sua genealogia. Ao desvelar, portanto, a natureza metafórica da linguagem conceitual, ao desmitificar sua operação legisladora que transmuda “interpretações” em “verdades”; Nietzsche, com a leveza de Zaratustra, dará o salto mortal, constituindo a linguagem filosófica como linguagem artística, arrebentando-lhes os limites, confundindo-lhes os “corpus”: a alegria de mentir é estética.59 A capacidade de leitura ativa vive da dupla condição destruição/construção. Destruição dos pressupostos

57 58 59

NIETZCHE. Ecce Homo, p. 48. NIETZCHE. O livro do filósofo, p. 94. NIETZCHE. O livro do filósofo, p. 107. 90 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

anteriores, a recusa da repetição opera, por cortes, na história do pensamento. Construção, através da produção ativadora da diferença. E a diferença em Nietzsche é linguagem, é forma (Zaratustra, esse admirador das aparências). Nietzsche é um escritor. Ele demanda um leitor escritor, portanto. Segundo Leon Kossovitch (1979), Nietzsche liberta a Filosofia dos signos servis pela inauguração dos signos alegres — sua metamorfose metafórica. O uso das metáforas em Nietzsche é crítico, a coisa inesperada, era realmente a coisa mais inesperada.60 Variam, podendo ser topológicas (o alto e o baixo), zoomórficas (a serpente, a águia, o macaco, o leão, o camelo, a aranha, a rã), do domínio da Física (força, energia, reação), ou epifânicas (Dionísios, Apolo, o Crucificado), formando uma floresta de signos onde o leitor deve penetrar com prudência e alegria. Prudência (e não medo) para não se deixar paralisar pela beleza, a beleza é difícil: defendamo-nos da beleza.61 Alegria que nasce da superação do aturdimento inicial e prepara o espírito livre. Altivez feroz: da luta pela existência com os cornos e os dentes de um predador.62 Texto e leitor formam um campo de forças, tensões, em que as vontades em ação, num e noutro, são flechas disparadas em conflito, interagem, criando instabilidades violentas, possibilitando novos horizontes. Abalo, matiz, acréscimo, suplemento, violência, deturpação, produção de outras metáforas. A leitura ativa é um manancial

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NIETZCHE. A gaia ciência, p. 7. NIETZCHE. O caso Wagner, p. 19-20. NIETZCHE. O livro do filósofo, p. 90. 91 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de signos alegres que superaram a servidão. O leitor reconhece, então, que a leitura não prescinde de escritura, não prescinde de singularidade. A leitura também é a inscrição de um corpo, “suas algias”: é preciso não ter nervos, é preciso ter um ventre feliz.63 A leitura ativa — que deixou de lado o mito do desinteresse e da finalidade, o mito do idêntico, da manifestação da coisa em-si — reconhece-se como linguagem e, como linguagem, é diferença. Ler, portanto, na diferença, com a diferença, com os diferentes, sem indiferença — “a gaia ciência”. A “bela diacronia” dos textos: prazer refinado que é acompanhar a fala de um esteta faz avançar o pensamento. Estados tensos do corpo - Nietzsche. Pôr Nietzsche em perspectiva é situálo numa Alemanha combalida moralmente, aburguesada, flácida, onde essa voz de fogo atuava. Trazê-lo para os nossos dias é perguntar como a razão apaixonada pode atuar num universo obtuso — cenário da desertificação da alma. Nietzsche vocifera. Nietzsche escandaliza (Basta!). Nietzsche repudia.

II. Lispector Ler Clarice com Clarice, como aventurar-se no silêncio. Trata-se de desapego à expressão para penetrar no desconhecido da palavra, metamorfose do leitor na substância branca da palavra. Em Paixão segundo GH, Clarice Lispector afronta ao limite o apego ao individualismo

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NIETZCHE. Ecce Homo, p. 56. 92 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

do Ocidente, não é à toa que convoca o leitor para entrar num minarete (o quarto de/ da empregada) onde transcorre a cena de leitura por um ritual de cortes das camadas superficiais do ego até atingir a idéia de neutro (a substância branca), a idéia de (con) fusão com o exterior. Carlos Mendes de Sousa aponta nessa escritura uma “infinita circularidade em todas as categorizações do dentro e do fora”.64 GH está revirada por dentro no fora, no exterior, na circunstância. O exterior, por sua vez, é canibalizado na forma da barata. A idéia do sacrifício do em si -mesmo no êxtase (relembro Bataille em seu livro A Experiência Interior) pode ser aliada à estranha metamorfose da mulher na substância extraída do corpo da barata. Esse devir in-significância consome o tempo da enunciação, homólogo ao tempo da leitura. Também o leitor precisa sucumbir à catábase da personagem. Livrarse de si mesmo, do em si mesmo, do “inútil de si mesmo”, do apego ególatra à opinião, para afinal fazer a vida neutra assomar: “A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro,----“.65 A paixão de GH é passar a faca, zerar a reza, comer a barata, enquanto se gasta numa cena extática, a vida se esgotando em grito mudo. Como quem pare a si mesmo num parto contínuo, água viva escorrendo, água de placenta, plâncton, no seu sentido lato, de organismo vagabundo que segue a corrente. GH está se entregando, a narração executa a reunião da experiência

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SOUSA. Clarice Lispector: figuras da escrita, p. 590. LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 217. 93 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

com o conhecimento, é, nesse sentido, retomado depois em Agamben, que alguns críticos apontavam o caráter epifânico de seus textos mais extremos. Experiência de um contato sem anteparos com o deslimitado da vida: “Tal contato intenso lhe proporciona a sacralização do tempo e do espaço, da natureza e da própria existência humana, fazendo que na presença hoc tempore da horizontalidade concreta e histórica se instaure exatamente a presença in illo tempore da verticalidade mítica das origens”.66 Na cena de leitura do romance, performatiza-se a vertigem da queda motivo constante da literatura de Clarice, queda sem fim (nem finalidade), a mulher está se perdendo nas “evidências da visão”,67 sem evitar a brecha e o erro: E não me esquecer ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que o erro muitas vezes se havia tornado meu caminho. Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia – é que se fazia enfim uma brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, já teria entrado por ela. 68

Ler com Clarice para atingir o “invisível histórico” (de Barthes) quando ela costura surdamente a luta de classes (patrão X empregado), escamoteada também nas cartas-cartomantes lidas para Macabéa, a vida invisível,

66 BASTOS. Escatologia e soteriologia no paganismo mítico-poética e ontoteo-lógico de Eudoro de Sousa, p. 223. 67 LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 108 68 LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 109 94 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

a vida nua. David Lapoujade, ao estudar a relação de imbricação da religiosidade no mundo laico capitalista dos Estados Unidos, afirma: “[...] a caridade não supõe nenhuma simpatia por um sujeito, mas faz do outro o objeto de um cuidado. [...] ela se pretende medicinal ou curativa, pois só pode ter acesso a objetos que reclamam sua ‘força de trabalho’.69 No entanto, Clarice, ao encenar n´A hora da Estrela um narrador homem que não vai “lacrimejar piegas”, recusa a caridade para vivenciar o confronto agônico entre a repulsa e a simpatia, entre a crueldade e o amor diante da pobreza e do desamparo de Macabéa, sem se deixar capturar numa rede de bons sentimentos. Isto porque a nordestina deve permanecer como espanto para o pensamento. Ao se perguntar sobre Macabéa, o narrador não poderá fechá-la num conceito apenas: se a pobreza dela era “feia e promíscua”,70 ela também “vivia de si mesma”,71 o que provoca inevitável desconcerto diante dessa alteridade irredutível, pois a nordestina tinha em si mesma uma certa “flor fresca”.72 A perplexidade do narrador diante da possibilidade de momentos gloriosos em meio a toda mesquinhez de um cotidiano apagado, sujo, pobre, pode passar a ser a perplexidade do leitor: “quem sabe achava que havia uma gloriazinha em viver?”73 Clarice Lispector coloca o leitor não diante de

69 p. 77. 70 71 72 73

LAPOUJADE. Cinismo e piedade (Made in USA), LISPECTOR. A hora da estrela, p. 28. LISPECTOR. A hora da estrela, p. 45. LISPECTOR. A hora da estrela, p. 47. LISPECTOR. A hora da estrela, p. 34. 95 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

uma pobreza que iguala a todos, mas dobra-o à evidência de uma subjetividade como frágil flor, e esse olhar trocado com a moça agonizante volta-se para a própria fragilidade de quem lê, a fragilidade dos que possuem muito. Mas, deixemos, a nordestina ouvindo músicas clássicas na rádio MEC. Ao leitor de Clarice cabe também tomar distância do apelo sedutor de Clarice para não cair de boca no limite tênue entre abalo, perda de si e auto-ajuda Cabe a tarefa quase heróica de não sucumbir ao chamamento amoroso, ao endereçamento sedutor: “enquanto escrever e falar vou ter de fingir que alguém está segurando a minha mão”.74 O efeito-personagem pede a mão de alguém para segurar porque sabe a iminência de morrer. O leitor deve recusar a mão estendida para conseguir, sem consolo, chegar com ela ao gozo neutro, sem ter para aonde voltar. O sentido dessa leitura seria então “arrebent(o)ar com a vida diária”,75 gasto sem utilidade. GH oferta um pecado inútil: “Toma o que vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado inútil.”76

III. Mutarelli Evoco o nome tesarac, a partir da definição do poeta que cunhou a palavra (Shel Silverstein), no sentido de “vácuo. Um evento tão brutal e aterrador que transforma a vida”. O efeito tesarac nos compromete colocando-

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LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 16. LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 15. LISPECTOR. A paixão segundo GH, p. 15. 96 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

nos como objetos de um vazio caótico preenchido de fantasmas materiais. Tesarac decorre do fato que a realidade contemporânea está recoberta da pátina do artificial, vazio prenhe de imagens, de onde insurge o acaso como sintoma do absurdo, num clima paranóico que leva o indivíduo ao exercício de decifração de modo obsessivo, esgotante e tendente ao fracasso. A cena de leitura de Lourenço Mutarelli com diferentes modulações põe em xeque essas emergências do artifício em narrativas presas ao ranger de dentes do maquinismo da vida presente, são cenas que esbarram no absurdo e na paranóia, quando os dentes da máquina gripam desarranjados por uma ocorrência do acaso, um “furo” na rotina, compondo uma das obras mais interessantes e bem escritas da literatura brasileira recente. As personagens de Mutarelli são, em sua maioria, leitores paranóicos. Frequentemente submetidas ao esforço de leitura de uma mensagem criptografada, que nada lhes revela dos seus impasses existenciais, desestabilizadas em mais e mais dúvidas e impotentes diante do desmascaramento de uma rotina que só faz recobrir de aparente lógica o absurdo real, expõem em seus corpos e mentes infelicitados a inversão que converte o realismo convencional em cruel realismo: “são as emergências do artificial no natural que configuram a vitória do real [proliferante] sobre o fictício e o fracasso do mascaramento do artifício em natureza”.77

77 ROSSET. A anti natureza: elementos para uma filosofia trágica, p. 80. 97 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Desenhista de histórias em quadrinhos, o universo ficcional de Lourenço Mutarelli mistura imaginário urbano aos cacoetes das narrativas juvenis contemporâneas. Trata-se, se posso dizer assim, da “arte de (re)produzir efeitos sem causa”. Suas histórias são urdidas com temas estranhos de invasões de corpos, aliens, ETs e/ ou clones das personagens e de fenômenos “científicossobrenaturais”, narradas com melancolia disfarçada por uma ironia “tarja preta”, dores agudas, sentimento do evanescer da experiência. Uma espécie de tesarac ao infinito arrasta o leitor para o limiar de uma cena, onde nem entra, nem sai, tornando-se um voyeur ameaçado. O leitor de Mutarelli defronta-se deste modo com catárticos processos de liberação de energia mental e afetiva engolido nesta máquina de linguagem acionada por uma consciência aguda e desenfreada, por citações literárias, cinematográficas, da cultura de massa e dos hábitos mentais contemporâneos. “Fotorrealismo fantástico”, como Diego Assis afirma na contracapa de O Astronauta ou livre associação de um homem no espaço, enigmas sem solução, humor e derrisão cyberpunk são os componentes desta cena de escrita. Muitas narrativas de Mutarelli trabalham com uma situação pós-traumática trampolim para o desencadeamento de um delírio paranóico. No romance, A arte de produzir efeito sem causa, José Lopes Rodrigues Jr. retorna à casa do pai, depois de ter sido traído pela esposa com um amigo do filho adolescente. Na casa do pai, com todas as ressonâncias possíveis de um entrecruzamento

98 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

com A Metamorfose e Carta ao pai, de Kafka, também com Burroughs,78 que aparece criptografado no fait divers de um assassinato, Jr. vai-se metamorfoseando de homem adulto em espécie larvar, quase um natimorto (título de outro romance do autor) com todos os sintomas corporais da psicose paranóica: extrema sudorese, taquicardia, dores de cabeça, prostração, insônia, a sensação do corpo cindido,79 tremores, percepção distorcida.80 A ficção de Mutarelli expõe cartas (de baralho, de tarô, de mensagens dos maços de cigarro) que confundem o real com a projeção inesgotável de imagens aparentemente sem controle, mas paranoicamente encadeadas com lógica de modo a criar a ilusão de uma totalidade fechada e absurda, falsa coerência cuja

78 Burroughs (aparentemente embriagado, matou Joan Vollmer com um tiro na cabeça no que teria sido uma tentativa de brincar de Guilherme Tell) disse que o tiro em Vollmer, no dia 6 de setembro de 1951, foi um evento crucial na sua vida, e que o provocou a escrever: “Eu sou forçado à terrível conclusão que eu nunca teria me tornado um escritor, a não ser pela morte de Joan, e nunca teria uma compreensão da extensão em que este evento tem motivado e formulado a minha escrita. Eu vivo com a ameaça constante de posse, e um constante necessidade de escapar da posse, do controle. Assim, a morte de Joan trouxe-me em contato com o invasor, a Alma Suja, e manobrou-me para uma longa luta na vida, em que não tive escolha a não ser escrever a minha saída dela”. WILLIAM S. Burroughts. Wikipedia. 79 MUTARELLI. A arte de produzir efeito sem causa, p. 62. 80 MUTARELLI. A arte de produzir efeito sem causa, p. 119. 99 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

força constrói uma parábola infinita e circular como as imagens dos suplícios do mundo ctônico. Não se trata de associações livres como nos programas surrealistas, aqui herança aleatória paranóico-dada transtorna tudo. Um ‘Fort- Da’, um esconde-mostra, uma construção rigorosa e anárquica. Loucura programada por softwares demoníacos. Em Lourenço Mutarelli as personagens, quando não espiam pelos buracos, enfiam-se neles. Quando o leitor é exposto a esse contágio com a miséria dos transtornos mentais contemporâneos (e mais comuns do que se pode pensar), também ele pode escorregar por um furo, ao entrar nessa cabeça decorada por uma imaginação estranha e inquietante, podendo dizer junto com o próprio quadrinista: “Aí ele começa (ou) a bagunçar a minha cabeça e a foder com meus pensamentos...”.81 O leitor pode arriscar o método crítico-paranóico de um modo mais consciente para poder vivenciar a miséria-tesarac reproduzida nas narrativas. Experimentar essa imaginação delirante como se experimenta a dor de terminações nervosas inflamadas, deixando que a lucidez –paranóica descortine a cena contemporânea como punctum bartesiano, como um feixe de luz e dor agudas. Em 1933, Salvador Dali leu a tese de Jacques Lacan que aparecera no ano precedente, um texto árduo, consagrado ao estudo da paranóia. Desta leitura iria nascer o método crítico-paranóico, que Dali apresenta em dois escritos fundamentais “A conquista do irracional”

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MUTARELLI. Mundo pet, p. 99. 100 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e “Novas considerações gerais a respeito do fenômeno paranóico do ponto de vista surrealista”.82 Se Freud reconhece que a paranóia não é demência, mas integra a categoria de “loucuras”, a crítica da literatura, depois de Maurice Blanchot, parte da premissa de que, como corpo doente, digo, perverso, a literatura pode integrar, como irmã siamesa da paranóia, a lista aberta destas “loucuras”. A crítica da literatura pode escorregar de modo eufórico pela paranóia quando se obriga a restabelecer uma rede de significados onde tudo está ligado ao discurso anterior e “de fora”, como vozes anteriores à escritura, experimentando certo prazer petrificado. Ou ficar presa dentro da máquina da ficção e sustentar visões internas, fraturas ósseas, abscessos que forçam de dentro para fora, fisgam a membrana realidade/ficção sem arrebentar, gozo histérico. De um modo ou de outro, a crítica estará sempre condenada ao fracasso da decifração total da rede interna ou externa da escritura. As palavras colamse umas às outras, como frames numa edição. O esforço em apagar o nome da coisa desgasta enormemente. Ou o apego ao nome da coisa desgasta enormemente. A crítica acorda, afinal, do delírio sem janelas ou portas para abrir, presa dentro de sua própria ficção. Salvador Dali exorta: “Peço ao crítico de arte: o que acha de tal ou tal obra no momento do seu êxtase? Mas, primeiramente, coloque-se em êxtase para responderme.”83 Eis a terceira via do método crítico-paranóico. A

82 DALI. Sim ou a paranóia: método críticoparanóico e outros textos. 83 DALI. Sim ou a paranóia: método crítico101 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

cadeia de significantes que levaram Dali ao método crítico– paranóico pode ser resumida: migalhas de pão machucam o cotovelo do menino Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali i Domènech, enquanto ele mira o quadro A Rendeira de Vermeer,84 cuja agulha, manuseada pela jovem retratada, é o objeto perfurante-concreto numa cena cheia de curvas abstrato-ornamentais. Adulto, Salvador Dali vai buscar o mesmo gozo perfurante no chifre do rinoceronte, pintará uma série deles, num deslocamento que foi da agulha da rendeira ao chifre do rinoceronte de Dürer (Dürer, Rhinoceros, gravure, 1515), o método, gerado da agudeza desse significante perfurante, recupera onde dói o dodói, recupera o balbucio contra o apagamento total do sentido, contra a grande negrura, a escuridão total, a lesão do luminoso, o “pas de pas”, o não do não. A perfuração da pele constitui um dos signos nodais do método crítico paranóico. As imagens da perfuração, os furos, criam uma cadeia associativa cuja renda tecida envolve a possibilidade de desdobramentos, de dobras, de tranças, de transes. A obsessão pelos logaritmos, em Lacan e em Dali,

paranóico e outros textos, p. 88. 84 No quadro de Vermeer, a rendeira é retratada absolutamente absorvida em seu trabalho minucioso, manipulando cuidadosamente pinos e fios coloridos. Este pequeno quadro do Museu do Louvre, de apenas 21 x 24cm, foi considerado por Renoir a pintura mais bela do mundo: os vários pontos de luz desfocados são um dos melhores exemplos da interpretação da luz conduzida por Vermeer e que tanto agradou os impressionistas. 102 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

assim como as mensagens criptografadas de Lourenço Mutarelli, comprovam a estrutura lógico-delirante de suas ficções perfurantes. Chifre agudo do monstruoso animal, o rinoceronte-eleito, o objeto perfurante, fere a retina do leitor das narrativas desoladas de Mutarelli. No entanto, não se trata, como adverte Salvador Dali sobre o seu método, de delírios oníricos, passíveis de serem interpretados à luz das combinações associativas da psicologia dos sonhos, trata-se, ao contrário, de uma concretude resistente, uma materialidade paquidérmica de desolação e dor. O realismo, neste caso, não recobre de pátina ilusionista o corpo escrito, antes deixa brotarem as feridas abertas, a carne exposta a e “a fissura do desejo”. Sade convoca o leitor a um esforço ainda. Mais ainda, diria Lacan do desejo, fundado numa “não reciprocidade absoluta”.85 A leitura crítico-paranóica criptografa-se “delirante”, sobre os restos dejetados pelo grande gozo da escritura. Eis aqui uma questão, uma provocação: o que pode a escritura excretada se não fazer a crítica regurgitar a massa empurrada goela abaixo pelas formas do falso? Pelo falo/ mão/ escrita do artista, do autor? E, por conseguinte de um leitor? São o esgoto e o esgotamento de nossos belos edifícios de palavras: a crise da crítica. Implosão das leituras interpretativas e das possibilidades de interações intelectuais. Enlouqueçamos de vez, sejamos paranóicos ou pornográficos, como queria o poeta, até a última gota do sangue da criação. Lúcifer abanará o rabo contente.

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LACAN. Kant com Sade, p. 785. 103 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Transluciferações nos campos do saber-doutor. Brilhos sutis, afogamentos, golfadas, vômitos, paradas cardíacas. Repetir e repartir o “gozo manco” do “fetiche negro”.86 Quando a vida se transforma em “Escotomas. Formas abstratas”.87 Aquilo tudo que era arte verbal, literatura, concretude e afeto, alta potência do amor ao nome, aquilo que queria “mapear a dor e o descontrole” perde o sentido, por força das conexões abstrato-teóricas da rede de leituras, da superposição de hipóteses, de citações, de projeções narcísicas, de impressionismos, de rigor teórico, eis a fratura paranóica exposta pela ficção, eis a impossibilidade da crítica, seu tesarac caótico. E os nomes das coisas com que o autor batizou a criação vão sendo esquecidos aos poucos, em favor de um nome só, o nome coiso em substituição à coisa, captura na linguagem afásica da infelicitada personagem do livro A Arte de produzir efeitos sem causas que tendo dificuldades em se lembrar dos nomes das coisas, contenta-se com a palavraúnica coisa(o). A perda da especificidade e singularidade de cada nome, a função de nomear, dar nomes aos bois, torna-se a caricatura de um sorriso, um esgar de morte por engasgo. Regurtofagia. Morte da criação. “Existem muitas formas de afasia. A afasia é a surdez e a cegueira às palavras”.88

86 LACAN. Kant com Sade. 87 MUTARELLI. A Arte de produzir efeitos sem causa, p. 156. 88 MUTARELLI. A Arte de produzir efeitos sem causa, p. 156. 104 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

V. Final Quem é você meu hipócrita leitor, meu semelhante, meu irmão como no verso de Baudelaire? Nietzsche, Clarice, Lourenço sabem que esse leitor não nasceu ainda. E, nesse sentido, obra deles é propedêutica: a obra criará seu próprio leitor.89 Leitor capaz de abandonar o manto de crenças antigas e, superando o caos inicial — momento de catástrofe —, é capaz de reescrever a história da sua leitura. Aquele que preferir as robustas (alegres) entranhas às entranhas frigorificadas das rãs pensadoras e opuser o movimento à paralisia, e a dança à ciência, que souber ler tendo pedras sob a língua, quem puder passar pelo sabbat, escorregar na vertigem tesarac, quem souber dançar em cadeias. Leitor que descarnou a carapaça psicológica e transvirou barata, ou se deixou escorrer pelo furo do real esfolando a superfície da pele. Leitor que, segundo Raúl Antelo, saberá mover-se com soberana elegância “na medida em que a elegância soberana é amar a singularidade, ponto extremo em que elegância e liberdade civil tornam-se sinônimos, forças enfrentadas ao totalitarismo...”90 Compreenderam-me?

REFERÊNCIAS ANTELO, Raúl. Maria com Marcel: Duchamp nos trópicos.

89 NIETZCHE. Assim falava Zaratustra, p. 171. 90 ANTELO. Maria com Marcel Duchamp nos trópicos, p. 16. 105 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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108 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

LITERATURA E JUSTIÇA: JULIÁN AXAT E OS DESAPARECIDOS NA ARGENTINA Pádua Fernandes

Introdução: literatura, aspirações de justiça

desaparecimentos

e

O poeta argentino Julián Axat (La Plata, 1976) tem construído uma obra única na poesia latino-americana, e incluo nessa observação a América Latina de língua portuguesa. Desde o primeiro livro, Peso formidable (2003), sua poesia dedica-se ao combate ao terror de Estado com soluções formais muito originais. Ele mesmo é um filho de desaparecidos: seus pais, Ana Inés della Croce e Rodolfo Jorge Axat, foram sequestrados em abril de 1977 (o golpe militar que derrubou Isabelita Perón havia sido dado em 24 de março de 1976), quando ele era um bebê. Axat, que foi criado pelos avós, tornou-se um dos fundadores da organização H.I.J.O.S. (Hijos por La Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio), nascida em 199591, que congrega os filhos de desaparecidos 91 A organização tem um portal na internet: http:// www.hijos.org.ar. 109 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e realizou escrachos contra os assassinos e torturadores da ditadura, antes que as leis de anistia fossem finalmente anuladas neste século. Uma das divisas do movimento era a de que se não há justiça, haverá escracho. Axat também intervém neste campo de interseção explícita de poesia e política como editor; com Juan Aiub (filho do desaparecido Carlos Aiub92), fundou a coleção Los detectives salvajes, já com vários números, de literatura de vítimas do terror de Estado (que revelou autores inéditos como Rosa María Pargas93) e escritores contemporâneos comprometidos com esse tema. Publica-a a editora Libros de la talita dorada, do poeta José María Pallaoro. A última ditadura militar argentina teria produzido, segundo o famoso relatório Nunca más, 8960 pessoas que foram vítimas de desaparecimento forçado94; esse número foi ampliado por pesquisas 92 O primeiro volume da coleção foi o de Carlos Aiub, Versos aparecidos (City Bell: De la talita dorada, 2007. Disponível em ). 93 O volumen Hubiera querido (City Bell: De La Talita Dorada, 2011) reúne seus poemas. 94 ARGENTINA. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS (CONADEP). Nunca Más. 8ª. ed. Buenos Aires: Eudeba, 2009, p. 479. Esse número apurado pela CONADEP é bastante inferior, porém, ao 110 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

posteriores; ela era um pouco superior ao de 8350 vítimas que, no Brasil, a Comissão Nacional da Verdade apurou apenas a respeito de dez das etnias indígenas que foram alvo de genocídio durante a ditadura militar95. Em outro artigo, comentei a especificidade desse crime, que se caracteriza como uma grave violação de direitos humanos, e foi uma das práticas recorrentes das ditaduras militares latino-americanas: No conhecido texto “Negação do esquecimento”, Cortázar trata dos

total de desaparecidos, que provavelmente nunca poderá ser precisado exatamente. Em 1979, já se podia calcular que pelo menos entre doze e quinze mil (NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. La dictadura militar (1976-1983): Del golpe de Estado a la restauración democrática. Paidós: Buenos Aires, 2006, p. 123). Certamente o total ultrapassa vinte mil. 95 A Comissão Nacional da Verdade, por falta de meios, não logrou realizar uma pesquisa completa e apurou as graves violações de direitos humanos somente contra menos de um décimo das etnias indígenas, pelo que o número de vítimas deve ser muito superior a dez mil somente no tocante aos índios. Ela conseguiu apurar o massacre de “Cerca de 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 CintaLarga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédé.” (BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE (CNV). Relatório. Brasília: CNV, vol. II, 2014, p. 248). Em relação a camponeses, o total foi de 1996 mortos, também num levantamento bastante incompleto. 111 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

desaparecidos na Argentina e chega a uma interessante formulação: com eles, teríamos uma espécie de “presença abstrata”, uma “obstinada negação da ausência final”. Eles estariam, pois, em um círculo infernal que o próprio Dante não imaginou, mas que a ditadura militar argentina criou e povoou [...] A imagem de Cortázar é significativa, porém geograficamente limitada: o fenômeno não se limitou à Argentina, e sim ocorreu em toda América Latina na onda de ditaduras que surgiram nos anos 1960 e 1970 no contexto da Guerra Fria. Dessa forma, não é estranho que o direito à verdade institucionalize-se pioneiramente em 1988 na Corte Interamericana de Direitos Humanos, com o caso Velázquez Rodríguez, estudante hondurenho que desapareceu nas mãos do Exército de seu país. Foi o primeiro caso de desaparecimento forçado que foi objeto de um tribunal internacional [...]96

Associações como as Mães da Praça de Maio e as Avós da Praça de Maio foram pioneiras na luta pela justiça e pelo resgate da geração de desaparecidos pelo terror de Estado da última ditadura militar na Argentina, que durou de 1976 96 FERNANDES, Pádua. Dar voz aos ossos: justiça de transição e a poesia de Julián Axat. OLIVO, Luis Carlos Cancellier de (org.) Anais do I Simpósio Direito e Literatura. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2011, vol. II, p. 163-164. 112 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

a 1983. No fim do século passado, os filhos dessa geração começaram a despontar como agente político e criaram a organização H.I.J.O.S. contra a impunidade dos torturadores da ditadura, propiciada pelos indultos do presidente Menem e pelas leis de Ponto Final e Obediência Devida aprovadas durante o governo de Alfonsín. Entre as ações de protesto, estavam os escrachos, como parte do repertório de ação do movimento para a construção social da justiça, sob a divisa: se não há justiça, há escracho. Os escrachos, pois, eram movidos por aspirações sociais à justiça, bloqueadas, nos anos 1990, pelos três Poderes políticos (Executivo, Legislativo, Judiciário). As aspirações bloqueadas buscaram outros canais de manifestação pública, na rua e nos livros; os discursos literários ocuparam tanto as ruas (em recitais e em inscrições no espaço público) quanto o papel e a internet. Criou-se uma literatura que se insurge contra o terror do Estado, especialmente vigorosa no campo da poesia, de que Julián Axat é um exemplo. Já na época do golpe, verificou-se a necessidade de usar a informação contra a ditadura: um dos assassinados dessa época, Rodolfo Walsh, ainda em 1976, escreveu a “Crônica do terror” em que pediu o rompimento do “bloqueio de comunicação” e a criação de uma “Cadeia informativa”; os leitores 113 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

deveriam fazer cópias de sua denúncia contra a ditadura e diseminá-las: “O Terror se baseia na incomunicação”97. Beatriz Sarlo, em “Os militares e a história”, texto dos anos 1990, época dos indultos aos agentes da ditadura, escreveu que a pretensão dos militares de apagar a história não seria acatada na literatura: as palavras eram “testemunhas informantes” e a literatura dos últimos tempos estava “em contato com a ordem de uma biografia coletiva”98. Certos poetas da geração dos hijos participam dessa construção social da memória no campo da literatura e, ao fazê-lo, entram em uma postura de combate a boa parte da poesia argentina dos anos 1990. Para Emiliano Bustos (filho do poeta desaparecido Miguel Ángel Bustos, cujos restos só foram encontrados em 2014), essa poesia que os precede caracteriza-se por um vazio cultural, político e ético99. Axat também critica essa poesia e, por ocasião 97 WALSH, Rodolfo. El violento oficio de escribir. 2ª. ed. Buenos Aires: Planeta, 1998, p. 247. 98 SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. Trad. Rubia Prates Goldoni; Sérgio Molina. São Paulo: Edusp, 2005, p. 33. 99 BUSTOS, Emiliano. 30 años, anotaciones, reposiciones. In: FONDEBRIDER, Jorge. Buenos Aires: Libros del Rojas, 2006, p. 251-256. 114 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

do lançamento da antologia que, em 2010, organizou, congregando alguns dos hijos e outros poetas, Si Hamlet duda le daremos muerte: Antología de poesía salvaje, literalmente guilhotinou um livro de Fabián Casas, da geração anterior. Neste breve artigo, tentar-se-á apresentar esta poesia, ainda inédita no Brasil, do ponto de vista da memória e da justiça.

1. Do peso íntimo ao poeta detetive selvagem Peso formidable [PF, 2003] apresenta formas que emulavam escritos íntimos, como cartas, para dar conta da história privada de uma família atingida pelos desaparecimentos forçados. Pais e avós são personagens do livro, e a história do terror de Estado é vista por meio do microcosmo familiar: “Hay en mi sangre/ tragedia que irrumpe” (“Há em meu sangue/ tragédia que irrompe”, poema XIII, p. 29). O poema XXX, uma carta ao pai desaparecido, revela desde o início a marca da derrota histórica dessa geração, que, no entanto, apesar de ter sido sacrificada, continuava se mostrando capaz de inspirar novos discursos: Te espero: Pai

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os ruídos causados pela derrota não conseguem quebrar-nos embora seja por um instante essa incrível luz de teus olhos esperança ou fulgor de a cada instante ser grito100

A ausência dos corpos, paradoxalmente, foi capaz de tornar presente essa geração por meio desses discursos de justiça. Os corpos dos desaparecidos tornam-se grito, que os HIJOS se encarregam de transmitir, já que haviam crescido o suficiente para terem a mesma idade que os pais tinham ao serem sequestrados, como se ressalta no final do poema XI: a morte que não termina, porque os espero cada manhã, ao meio-dia, nos sonhos, em minhas ideias, em cada palavra que pronuncio, passa o tempo, e não me restam mais do que essas fotos gastas e amarelas em que estou em seus braços e têm a mesma idade que eu tenho agora101

100 As traduções neste artigo são de minha autoria. “Te espero:/ Padre/ los ruidos causados por la derrota/ no alcanzan a quebrarnos/ aunque sea por un instante/ esa increíble luz de tus ojos/ esperanza o fulgor de a cada instante ser grito” (PF, p. 67). 101 “la muerte que no cierra,/ porque los espero cada 116 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

O desaparecimento deixa em aberto o trabalho da morte, pois o luto entra em suspenso com a ausência dos corpos e a incerteza sobre o seu destino. Ademais, o crime de desaparecimento forçado tinha, no seu cerne, uma finalidade política sobre os discursos na esfera pública, o que foi constatado, no governo subsequente à ditadura, o de Raúl Alfonsín, pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP): “impedir por todos os meios que se manifestasse a solidariedade da população e, com isso, a sequela de protestos e reclamações que geraria no país e no exterior o conhecimento de que, atrás do alegado propósito de combater a subversão, se consumou um verdadeiro genocídio”102. Essa “morte que não termina” é o tema mañana,/ al mediodía,/ en los sueños,/ en mis ideas,/ en cada palabra que pronuncio,/ pasa el tiempo,/ y no me quedan más que esas fotos roídas y amarillas/ en las que estoy en sus brazos,/ y tienen la misma edad que yo tengo ahora.” (PF, p. 26). 102 “[…] impedir por todos los medios que se manifestara la solidariedad de la población y, con ello, la secuela de protestas y reclamos que generaría en el país y en el exterior el conocimiento de que, detrás Del alegado propósito de combatir a la minoría terrorista, se consumó un verdadero genocidio”. ARGENTINA. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 8ª. ed. Buenos Aires: Eudeba, 2009, p. 249-250. 117 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

predominante do primeiro livro, em uma série de 46 poemas sem título, com versos livres e brancos, ou poemas em prosa, como o XXVII, em que o tema do xadrez, típico de Jorge Luis Borges (um apoiador do golpe militar) é usado como imagem de um encontro passageiro entre hijos. Servarios [S, 2005] vai adiante, formal e politicamente, na tarefa de transmitir o grito dos desaparecidos, que é tratada como missão coletiva, que vai além da esfera familiar, e como trabalho de linguagem: há que se reinventar esse grito, buscando uma nova justiça na distribuição dos discursos na esfera pública. A poesia, por levar-nos a ver o que não era visível, quer desarranjar essas fronteiras na linguagem. Tal é sua dimensão política. No começo do poema “mallarmé”, que usa o nome do poeta que alguns acham apolítico, a tarefa impossível de salvar os pais (o “peso formidável” do livro anterior) já é encarada como uma ação dedicada a transformar o presente e sua própria geração, isto é, como revolução: 1. a rosa um raio arsenal latente prepara espinhos

118 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

que se cravam em nós ou por acaso os incrustamos para fazer a revolução salvar nossos pais de sua derrota não sei realmente se penso em salvá-los a eles ou a nós mesmos103

Não se trata de uma poesia panfletária ou ingênua, porém. A tarefa da revolução, Axat, dialeticamente, trata-a do ponto de vista da servidão desde o título do livro, o neologismo servarios, que remete a servidumbre (servidão) e a varios. No poema em prosa “escenario. (monólogo sobre siervos expresivos)”, um homem seminu, com medo, está numa sala em que um gravador repete palavras de ordem tiradas de Deleuze, Foucault, Sartre e outros; repete-se três vezes, em ideia que remonta a La Boétie: “Por que lutam os homens para defender sua servidão com tanta obstinação, como se ela fosse 103 “la rosa/ um rayo/ arsenal/ latente/ prepara espinas/ que se nos clavan/ o acaso/ las incrustamos/ para hacer/ la revolución/ salvar/ a nuestros padres/ de su derrota/ no sé/ em realidad/ si pienso/ em salvarlos/ e ellos/ o a nosostros/ mismos” [S, p. 15]. 119 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sua salvação?104”. O poema não chega a nenhuma resposta, o que seria fácil demais, e o senhor acaba por vestir-se e a voltar a sua postura segura. Em Médium (poética belli) [M, 2006], as estratégias da justiça de transição estão encenadas na poesia, e assume-se uma poética inspirada nos detetives selvagens de Roberto Bolaño. O eu lírico passa a buscar os mortos em ossários clandestinos. O problema dos desaparecidos e dos corpos NN acaba por modificar o papel do poeta, que se torna “detetive”, o que logo evoca o romance de Bolaño Os detetives selvagens. No romance, cuja história se passa principalmente no México, poetas da linha “real-visceralista” (personagens que estão, em sua maioria, à margem da sociedade burguesa) acabam procurando uma poeta de geração anterior, que escreveu pouquíssimo, abandonou o meio literário, e em quem reconhecem sua predecessora: Cesárea Tinajero. A busca, entremeada a diversas tramas, acaba por levá-la à morte. No romance, bem como nos contos de Putas assassinas, a poesia tem que ver com o desaparecimento e a morte.105

104 “¿Porqué luchan los hombres para defender su servidumbre con tanta obstinación, como si ella fuera su salvación?” [S, p. 37]. 105 FERNANDES, Pádua. Biopoder e biopoética 120 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Na nota que escreveu com Juan Aiub para apresentar o livro da desaparecida Rosa María Pargas, o “ensinamento” de Bolaño é assumido: os detetives selvagens buscam a sua Cesárea Tinajero106. Axat encena essa busca tornando o eu lírico um antropólogo forense, como no “diário de viaje v”, que descreve uma ida ao ossários para buscar os pais desaparecidos. Os ossos não conseguem formar um esqueleto completo, a busca não é bem sucedida, no entanto: porém antes de converter-me na fracassada “equipe-de-mim-mesmo-legista” deixo os ossos de lado e escrevo um poema que me devolve a pele viva de sua voz 107

na poesia de Julián Axat: Ylumynarya e o genocídio na Argentina. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê, Junho de 2012, p. 51-52. Disponível em http:// w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie08/ . Acesso em 30 jun. 2013. 106 AXAT, Julián; AIUB, Juan. Nota del Editor: Tras la búsqueda de la Rosa. PARGAS, Rosa María. Hubiera querido. City Bell: De la Talita Dorada, 2011, p. 14. 107 “pero antes de convertirme/ en el fracasado “equipo-de-mimismo-forense”/ dejo los huesos a un lado/ y escribo un poema/ que me devuelve/ la piel viva de su voz” [M, p. 34].

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Essa operação arqueológica resolve-se na poesia. O fracasso no resgate dos corpos torna-se o encontro de uma poética nova. No “diario ii.”, essa poética assume-se como de combate: os pedaços do poeta são repartidos entre os jovens; mas este Orfeu inspira cantos que são armas, fuzis nas bocas: ao fechar os olhos escutei a voz: ... e os pedaços do poeta repartidos para alimentar meninos com fuzis na boca108

Depois desses livros, Axat passa a buscar maior experimentação formal, o que ocorre nas obras subsequentes, sem a perda da inquietação social.

2. Os poetas menores e dos dentes do discurso Ylumynarya [Y, 2008] remete, desde seu título, às Iluminações de Rimbaud. A primeira parte do livro é composta de poemas em prosa. A segunda, porém, é superior, e apresenta um poema longo em versos 108

“al cerrar los ojos/ escuché la voz:/ … y los pedazos/ del poeta/ repartidos/ para alimentar niños/ con fusiles en la boca” [M, p. 74].

122 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

livres e brancos em que a poética detetive selvagem é desenvolvida além de Médium. Como escrevi em outro artigo, O poema descende explicitamente de Bolaño pela referência a Gui Rosey e pela busca dos poetas menores – o que é também a questão de Os detetives selvagens. Rosey desapareceu durante a Segunda Guerra Mundial, em Marselha. Esse acontecimento está no centro do conto “Últimos entardeceres na terra”, de Putas assassinas. Nessa história, “B” e seu pai, habitantes da Cidade do México, partem de férias para Acapulco. A convivência não é boa. O pai gosta de sair à noite e vai a lugares perigosos. B desperta à noite e vê a cama do pai vazia. Enquanto isso, descobre, em uma antologia de poesia surrealista (que fornece a epígrafe para o poema de Axat), Rosey: “De início, ninguém sentiu sua falta. É um poeta menor e os poetas menores passam despercebidos” (Bolaño, 2008, p. 41). Ele foi um poeta de menor importância, e isso, bem como o desaparecimento, torna-o um símbolo ainda mais pungente para Bolaño e para Axat109.

O compromisso ético desta poesia passa a ser 109 FERNANDES, Pádua. Biopoder e biopoética na poesia de Julián Axat: Ylumynarya e o genocídio na Argentina. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê, Junho de 2012, p. 56. Disponível em http://w3.ufsm. br/grpesqla/revista/dossie08/ . Acesso em 30 jun. 2013. 123 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

explicitamente o da busca das vítimas desconhecidas, e não o de lamentar, os grandes nomes, o que seria uma tarefa de uma história monumental, que, além de conservadora, jamais seria capaz de dar conta do impacto genocida da ditadura no cotidiano das pessoas comuns: Penso em Gui Rosey e evoco os nossos que também foram tragados pela terra ou a terra que sobre eles jogaram sem saber se estavam mortos aos contratados para achar seu túmulo penso em Bolaño que também buscou Gui Rosey e nós o imitamos para buscar os túmulos dos nossos110

O papel geracional dos hijos sofre diversos questionamentos: um filho chega a fumar o poema de um pai desaparecido; seria possível escrever o romance da ditadura? Em revanche, um poema sobre o assunto seria insignificante: Que faz um Filho? filma seu rosto ou o pinta tira uma foto e a põe junto de seus pais fica com a insignificância de um poema 110 “Pienso en Gui Rosey/ y evoco a los nuestros que también se los tragó la tierra/ o la tierra que les tiraron encima/ sin saber si habían muerto/ a los contratados para encontrar su tumba/ pienso en Bolaño que también buscó a Gui Rosey/ y nosotros lo copiamos para buscar las tumbas de los/ nuestros” [Y, p. 51].

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formas de regressar ao instante que reluz de perigo [...] N-ÓS sim escrevemos o romance aquilo - o grande romance da ditadura?

O poema culmina na imagem dos ossos dos desaparecidos erguendo-se para chegar, talvez, ao poema: Caveiras com olho vazio à frente canto ou lamento fuzilado do ultratúmulo julgam-se celebram-se lembram-se e entregam-se à muralha da noite que nunca os esquece que sempre os faz aparecer em emissários disfarçados filamentos que viajam para mim de manhã para serem poema

A imagem que resta nítida, no entanto, pertence ao terror, e com essa consciência o poema termina. Neo [N, 2012], seu livro seguinte, faz referência ao filme hollywoodiano “Matrix”: a luta pelo resgate do mundo real, enquanto tantos preferem um mundo dominado e confortável, remete ao universo dos detetives selvagens e sua retomada da ditadura. Este livro, reafirmando a tarefa de resgatar 125 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

os anônimos e os desconhecidos (em “Bolaño & co.”, lemos que “anoche soñé / en nuestra fuga / visitábamos poetas / menores”), revisita a obra anterior e a reelabora. Em “nosotros 2011”, temos a transformação do mencionado “diário de viaje v”: e antes de ser a fracassada equipe de-nós-legista deixamos os ossos escrevemos um poema nos devolve a pele viva da voz111

A voz deixa de ser a fala dos pais desaparecidos: trata-se do encontro de uma poética, em vez do resgate de um determinado morto. O poema “nosotros 2012” enfatiza essa poética que não pode ser caracterizada como de simples reconstituição dos discursos da geração que desapareceu sob o terror de Estado: Os pais são os ossos a ausência do osso e sua busca perdido ou achados Os pais são os ossos onde os filhos

111 “y antes de ser/ el fracaso equipo/ de-nosotrosforense/ dejamos los huesos/ escribimos un poema/ nos devuelve/ la piel viva/ de su voz” [N, p. 30]. 126 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

afiamos nossos dentes112

O afiar dos dentes corresponde a constituir essa poética nova, de reação ao terror de Estado, mas sem ser imitativa dos modelos das gerações anteriores, em uma nova relação com a memória social da ditadura.

Memória e justiça: o papel desta poesia É tentador identificar nesta poesia um dever de memória, a que estão vinculadas as aspirações sociais da justiça de transição na Argentina e em outros países da América Latina. Beatriz Sarlo identifica o caráter central desse dever para o fim da impunidade dos crimes da ditadura: A memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura militar e o é na maioria dos países da América Latina. O testemunho possibilitou a condenação do terrorismo de Estado; [...] Como instrumento jurídico e como modo de reconstituição do passado, ali donde outras fontes foram destruídas pelos responsáveis, os atos de memória foram uma peça central da transição democrática [...] Nenhuma

112 “Los padres son los huesos/ la ausencia Del hueso y su búsqueda/ perdido o hallados/ Los padres son los huesos/ donde los hijos/ afilamos nuestros dientes” [N, p. 30]. 127 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

condenação teria sido possível se esses atos de memória, manifestados nos relatos de testemunhas e vítimas, não tivessem acontecido113.

Falta identificar de que tipo se memória se trata. O próprio Axat, consciente desse papel, reivindica para si e os H.I.J.O.S. a categoria de “pós-memória”, segundo a análise de Beatriz Sarlo: Como considera Beatriz Sarlo, enquanto toda experiência do passado resulta vicária (na medida que sempre está mediada pela interpretação ou por um relato), os hij@s vivem esse passado com uma intensidade vicária muito maior que seus padres, no sentido de uma “pós-memória” e a necessidade de narrar a história. Pós-memória: como memória da geração seguinte à que padeceu ou protagonizou os acontecimentos (memória dos hij@s sobre a memória dos pais). Trata-se de formas da memória que não podem ser atribuídas diretamente a uma divisão simples entre a memória dos que viveram os fatos e a memória dos que são seus hij@s, é claro que ter vivido um acontecimento e reconstruí-lo através de informações não é o mesmo114.

113 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo; Belo Horizonte: Companhia das Letras, Editora UFMG, 2007, p. 20. 114 “Como plantea Beatriz Sarlo, en tanto toda experiencia 128 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Com efeito, Sarlo critica o conceito de pósmemória, afirmando que o que existem são “formas de memória que não podem ser atribuídas diretamente a uma divisão simples entre memória dos que viveram os fatos e memórias do que são seus filhos”115. Se se reservasse o termo para a memória da “primeira geração depois dos fatos”, “a pós-memória é tanto um efeito do discurso como uma relação particular com os materiais da reconstituição; com os mesmos materiais se fazem relatos decepcionantes e cheios de furos ou reconstituições precárias que, no entanto, sustentam algumas certezas”116. No entanto, a obra de Julián Axat é, realmente, um exercício de pós-memória? Ele está realmente a del pasado resulta vicaria (en tanto siempre está mediada por la interpretación o un relato), los hij@s viven ese pasado con una intensidad vicaria mucho mayor que sus padres, en el sentido de una “pos-memoria” y la necesidad de narrar la historia. Pos-memoria: como memoria de la generación siguiente a la que padeció o protagonizó los acontecimientos (memoria de los hij@s sobre la memoria de los padres). Se trata de formas de la memoria que no pueden ser atribuidas directamente a una división sencilla entre la memoria de quienes vivieron los hechos y la memoria de quienes son sus hij@s, por supuesto que haber vivido un acontecimiento y reconstruirlo a través de informaciones no es lo mismo.” AXAT, Julián.

Ponencia en San Pablo. 2 jul. 2010. Disponível em . Acesso em 12 jan. 2013. 115 SARLO, Beatriz, op. cit, p. 112. 116 SARLO, Beatriz, op. cit, p. 113. 129 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

fazer esse tipo de reconstituição da história dos pais, a tornar as difíceis e fragmentárias reconstituições do passado em poesia? Parece-me que não. O poeta Emiliano Bustos, em texto que escreveu em apresentação da antologia que Axat organizou de sua própria geração (Si Hamlet duda le daremos muerte), e que o incluem, como a alguns outros hijos, bem caracterizou que para esses poetas “a política, por exemplo, já não é uma paisagem”; “A política e a história ingressam pela própria experiência de muitos dos poetas aqui reunidos”117. De um lado, a experiência dos hijos permitelhes dizer que apresentam suas próprias memórias sobre o terror de Estado: o fato de terem perdido os pais e outros parentes, de terem tido, muitas vezes, sua identidade negada ou subtraída marcou-lhes a infância e representa a marca do terror de Estado em sua história pessoal, inscrita nessa história coletiva. Nesse sentido, suas subjetividades também foram configuradas pelo terror, e isso os autoriza a falar como testemunhas diretas da ditadura. Por outro lado, a obra de Axat não se limita a reconstituir relatos e a revisitar a ditadura: em seu caso, configuram-se poéticas que constituem 117 BUSTOS, Emiliano. Papel picado, Kerouac y Hamlet. In: AXAT, Julián. Si Hamlet duda le daremos muerte: Antología de poesía salvaje. City Bell: Libros de la talita dorada, 2010, p. 16. 130 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

narrativas novas, seja sobre fatos do passado, seja do presente, movidas pela criação literária de aspirações sociais de justiça. O papel desta poesia passa a ser de criar símbolos eficientes para o desbloqueio das imaginações jurídica e política.

À guisa de conclusão: Após a palestra no SPLIT, Julián Axat publicou mais dois livros de poesia: Musulmán o biopoética (City Bell: Livros de la Talita dorada, 2013) e Rimbaud en la CGT (City Bell: Livros de la Talita dorada, 2014), e organizou uma antologia de poesia, La Plata Spoon River (City Bell: Livros de la Talita dorada, 2013), toda composta de poemas novos, especialmente escritos para os mortos em grande inundação em La Plata. Musulmán o biopoética surpreende pelo seu perfil bipartido: a primeira metade corresponde a poemas, em versos brancos e livres ou em prosa, sobre menores pobres em conflito com as instituições; a segunda parte apresenta os materiais de que os poemas da primeira foram elaborados: trechos de processos judiciais, recortes de jornais, falas de diversas fontes, em uma forma que remete ao Livro das Passagens de Walter Benjamin. As duas metades realizam-se igualmente como poesia: a disposição 131 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

das fontes materiais do poema funciona como poema e cumpre o papel de denunciar as instituições seja por meio de seus próprios documentos, seja pela fala desses menores ou de seus parentes. Rimbaud en la CGT (City Bell: Livros de la Talita dorada, 2014), ao apresentar em conjunto o poeta do século XIX e a Confederação Geral dos Trabalhadores argentina, ideia menos inusitada se lembrarmos o que Rimbaud escreveu sobre o mundo do trabalho e se recordamos seu interesse engajado pela Comuna de Paris, logra transformar esse escritor em um princípio poético de rebelião, em crítica de esquerda ao próprio peronismo. Termino este breve artigo mencionando uma obra editada por Axat. Em 2 de abril de 2013, dois dos rios da cidade transbordaram e a inundação chegou a dois metros de altura. O governo local subestimou as dimensões da catástrofe e divulgou um número de mortes inferior ao acontecido: Logo no 2 de abril o governo provincial oficializou uma lista com o nome e sobrenome de 51 pessoas falecidas em consequencia da inundação. Com o decorrer dos dias, o mesmo governo iria dar por fechado aquele número. O certo é que, um mês mais tarde, a justiça computava 78 vítimas, número que – a esta altura – não foi fechado, pois resta investigar um procedimento espúrio de ocultamento-adulteração

132 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

dos falecimentos118.

Julián Axat, como defensor judicial, tentou investigar as mortes e foi, em represália, afastado do caso, bem como o juiz, e sofreu ameaça de impeachment. A antologia organizada, que remete ao conhecido Spoon River de Edgar Lee Masters, também se compõe de epitáfios; desta vez, ele se dedicam aos mortos na inundação, inclusive aos que o governo local tentou ocultar. O próprio livro foi uma intervenção pública marcante, e foi lançado em uma leitura pública com grande público, e foi um exemplo da literatura não apenas como expressão, e sim também como fonte de aspirações sociais de justiça.

Referências: 1. Obras poéticas de Julián Axat: Peso formidable. Buenos Aires: Zama, 2003. 118

“Luego del 2 de abril el gobierno provincial oficializó un listado con el nombre y apellido de 51 personas fallecidas como consecuencia de la inundación. Con el correr de los días, el mismo gobierno iba a dar por clausurada aquella cifra. Lo cierto es que, un mes más tarde, la justicia computaba 78 víctimas, número que –a esta altura– no ha sido clausurado, pues resta investigar un procedimiento espurio de ocultamiento-adulteración de las defunciones.” AXAT, Julián. Prólogo. In: AXAT, J. (org.) La Plata Spoon River (City Bell: Libros de la talita dorada, 2013, p. 6.

133 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Servarios. Buenos Aires: Zama, 2005. Médium (poética belli). Buenos Aires: Zama, 2006. Ylumynarya. City Bell: Libros de La talita dorada, 2008. Neo. Buenos Aires: El surí porfiado, 2012. 2. Outras referências: ARGENTINA. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 8ª. ed. Buenos Aires: Eudeba, 2009. AXAT, Julián. Ponencia en San Pablo. 2 jul. 2010. Disponível em < http://coleccionlosdetectivessalvajes. blogspot.com.br/2010/07/ponencia-en-san-pablo. html>. Acesso em 12 jan. 2013. AXAT, Julián; AIUB, Juan. Nota del Editor: Tras la búsqueda de la Rosa. PARGAS, Rosa María. Hubiera querido. City Bell: De la Talita Dorada, 2011, p. 14. AXAT, Julián. Prólogo. In: AXAT, J. (org.) La Plata Spoon River. City Bell: Livros de la Talita dorada, 2013, p. 5-8. BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Brasília, 2014. BUSTOS, Emiliano. 30 años, anotaciones, reposiciones. In: FONDEBRIDER, Jorge. Buenos Aires: Libros del Rojas, 2006, p. 251-256. BUSTOS, Emiliano. Papel picado, Kerouac y Hamlet. In: AXAT, Julián. Si Hamlet duda le daremos muerte: Antología

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de poesía salvaje. City Bell: Libros de la talita dorada, 2010, p. 13-19. FERNANDES, Pádua. Dar voz aos ossos: justiça de transição e a poesia de Julián Axat. OLIVO, Luis Carlos Cancellier de (org.). Anais do I Simpósio Direito e Literatura. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2011, vol. II, p. 163-164. FERNANDES, Pádua. Biopoder e biopoética na poesia de Julián Axat: Ylumynarya e o genocídio na Argentina. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê, Junho de 2012, p. 51-52. Disponível em http://w3.ufsm.br/ grpesqla/revista/dossie08/ . Acesso em 30 jun. 2013. NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. La dictadura militar (1976-1983): Del golpe de Estado a la restauración democrática. Paidós: Buenos Aires, 2006. SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. Trad. Rubia Prates Goldoni; Sérgio Molina. São Paulo: Edusp, 2005. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo; Belo Horizonte: Companhia das Letras, Editora UFMG, 2007. WALSH, Rodolfo. El violento oficio de escribir. 2ª. ed. Buenos Aires: Planeta, 1998.

135 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

136 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A ESCRITA LITERÁRIA EM FOUCAULT: DA TRANSGRESSÃO À ASSIMILAÇÃO

Marco Antônio Sousa Alves

Qu’est-ce que c’est que penser, qu’estce que c’est que cette expérience extraordinaire de la pensée? FOUCAULT. Débat sur le roman, 1964.

A literatura pode mudar nossas vidas e nossa maneira de pensar? Qual o poder transgressivo da escrita literária? Seria ela capaz de subverter a ordem e propiciar novas experiências de pensamento? Essas questões tiveram um lugar de destaque no pensamento de Foucault e receberam um tratamento bem diverso em seu itinerário intelectual. No início dos anos sessenta, a literatura exercia um grande fascínio, servindo-lhe de contraponto ao marasmo da fala institucionalizada da filosofia universitária. Era na experiência literária que Foucault encontrava novas formas de pensar, propriamente transgressoras e capazes de, nas margens da ordem estabelecida, instaurar um “pensamento do lado de fora” (pensée du dehors). Esse entusiasmo, contudo, foi problematizado nos anos setenta,

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quando Foucault passou a demonstrar grande desinteresse e mesmo rejeição à “escrita institucionalizada sob a forma da literatura”. São os discursos anônimos, tomados como falas propriamente infames e marginais, que despertarão o interesse de Foucault nessa época. Neste artigo, pretendo analisar os motivos que provocaram essa mudança. Entendo que ela reflete uma nova concepção de poder, na qual não há mais espaço para oposições simples, entre discurso/contradiscurso, ordem/ transgressão ou dentro/fora. Toda resistência, como foi a experiência literária em um curto período, assume formas provisórias e regionais, que produzem sem cessar novos procedimentos de institucionalização, sendo, mais cedo ou mais tarde, integrada e assimilada. Em suma, este estudo encontra seu lugar no interior desse grande problema que é a relação entre literatura e vida, e, mais especificamente, entre a escrita literária e seu poder de transgredir ou de instaurar algo novo capaz de transformar nossas maneiras de pensar. Para tratar (ou tatear) essa questão complexa e multifacetada, gostaria de oferecer uma pequena contribuição, partindo de Foucault e, especialmente, de como se deu no seio de seu pensamento uma mudança de perspectiva quanto ao lugar ocupado pela escrita literária como uma experiência transgressora. Acredito que essa análise poderá contribuir para uma compreensão mais adequada da força e dos limites que a literatura possui como um meio de resistência e de produção de novas e radicais experiências de pensamento. Convém ressaltar que o foco do presente estudo

138 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

limita-se ao pensamento de Foucault dos anos sessenta e setenta, deixando de lado os desenvolvimentos posteriores que marcaram o “último Foucault”. No seio de seus estudos dos anos oitenta sobre a constituição de si, Foucault dedicou uma nova atenção à escrita literária, em particular à chamada “escrita de si” (diários, confissões, anotações pessoais, etc.). Contudo, mais do que uma “volta”, entendo que há um deslizamento ou desdobramento em seu pensamento sobre a literatura a partir de outro ângulo, de modo que permanecem válidas (ao menos parcialmente) sua visão crítica e sua concepção de poder dos anos setenta. Com certeza a análise desse período final do pensamento de Foucault constitui um interessante canteiro de pesquisa, que escapa, contudo, ao modesto objetivo deste texto. O presente artigo está divido em três partes. Primeiro (I), será analisado o interesse que Foucault demonstrava pela escrita literária nos anos sessenta, na tentativa de esclarecer qual o lugar da literatura e o que exatamente entusiasmava Foucault. Em segundo lugar (II), a análise recairá sobre o desinteresse que Foucault passa a demonstrar pela questão da linguagem e da escrita literária a partir dos anos setenta, procurando explicitar as razões que o conduziram a essa mudança de perspectiva. Por fim, na terceira e última parte (III), procurar-se-á abordar, no seio desse desencanto com a literatura, a emergência de um novo e diverso fascínio, dirigido aos “discursos anônimos”, esses textos marginais e não domesticados que servem de contraponto ao mundo

139 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

das belles lettres.

I É inegável que a linguagem literária é um tema recorrente nos primeiros textos de Foucault. Entre 1961 e 1970, ou seja, entre História da loucura e A ordem do discurso, há mais de vinte textos de Foucault sobre escritores ou entrevistas que abordam temas literários. É preciso reconhecer, contudo, que a questão da literatura aparece em diferentes momentos nos textos de Foucault, com múltiplos significados e servindo a fins diversos. Como é característico em Foucault, ele está sempre redimensionando suas análises, sua metodologia, seus objetos de investigação e seus pressupostos. Mas, ainda assim, é possível afirmar que o início dos anos sessenta é o momento de maior proximidade de Foucault com a literatura. Apesar de ser visível nos textos de Foucault do início dos anos sessenta uma grande atração pela experiência literária, é preciso deixar mais claro o que exatamente interessa Foucault. Mais do que a literatura, como gênero ou forma de expressão artística, o que atrai Foucault é a experiência de linguagem, ou, em outras palavras, as experiências transgressoras de pensamento que transitam nos limites da linguagem. Essas experiências não remetem a algo pessoal e privado, inscrito no domínio da interioridade, mas, ao contrário, colocam a própria unidade do sujeito em questão e o pressionam para fora

140 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de si mesmo. Sendo assim, já nesse período, vemos em Foucault um interesse pelas experiências de pensamento que colocam em questão a linguagem e a posição do sujeito. O interesse por outras formas de pensar acompanha, de certa maneira, todo percurso foucaultiano. Ele se manifesta, nesse primeiro momento, como um grande entusiasmo pela escrita literária, assim como por alguns temas tradicionais, quando se trata de pensar o limite do pensamento, como a loucura e a morte. Em uma conferência intitulada Literatura e linguagem, proferida em Bruxelas em 1964 (que só veio a ser publicada postumamente), Foucault deixou claro que a transgressão ou a fala transgressiva (parole transgressive) é uma figura exemplar e paradigmática daquilo que é a literatura.119 Outra advertência importante merece ser feita. Essa forma de pensar transgressiva que encontra seu lugar na literatura não deve ser compreendida em termos políticopartidários. É importante ressaltar que o caráter subversivo ou transgressor que Foucault, nos anos sessenta, acredita encontrar na literatura, não está associado a uma escrita engajada, comprometida diretamente com uma causa revolucionária. O “ato de escrever” (l’acte d’écrire) como uma força de contestação nada tem a ver com a posição política daquele que escreve. Tal possibilidade seria visível, por exemplo, em Blanchot, cuja postura conservadora de extrema direita nada teria diminuído da força transgressora de sua escrita. Em suma, é a escrita que mantém, em si

119

Ver FOUCAULT. Littérature et langage, p. 104. 141 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

mesma, a função subversiva.120 Associado ao interesse pela literatura está o desinteresse que Foucault nutria pela “grande Filosofia”. O que incomodava Foucault era a assimilação da filosofia a uma disciplina universitária que teria deixado de realizar novas experiências de pensamento, perdendo assim sua atitude crítica. Foucault acusa a reflexão filosófica de seu tempo de permanecer presa a uma linguagem dialética, fenomenológica e antropocêntrica, de modo a perder sua capacidade contestatória e transgressora. Esse desapontamento é a principal razão que fez com que Foucault fosse buscar fora da filosofia, especialmente na literatura, outras e novas experiências de pensamento. Nessa postura, mais uma vez, a influência nietzschiana é claramente sentida. Segundo Foucault, Nietzsche serviria de inspiração para essa nova atividade filosófica, posto que ele teria “multiplicado os gestos filosóficos”, indo buscar a filosofia na literatura, na história ou na política.121 Em certo sentido, o interesse pela literatura não deve ser entendido como um desinteresse pela filosofia, posto que essas atividades são (para além de qualquer arbitrária distinção institucional) intrinsecamente misturadas. O que está no centro do debate, segundo Pierre MACHEREY (1990), é o uso transgressivo da linguagem, o que pode encontrar seu lugar em uma “filosofia literária” ou em uma “literatura que pensa”. Levar a literatura a sério, como teria

120 Ver FOUCAULT. Folie, littérature, société, p. 982983. 121 Ver FOUCAULT. Michel Foucault et Gilles Deleuze veulent rendre à Nietzsche son vrai visage, p. 580. 142 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

feito Blanchot e Bataille, é fazê-la sair da esfera da arte, à qual ela está tradicionalmente vinculada, fazendo dela uma forma de pensamento por excelência. Nesses termos, o interesse de Foucault, quando olha para a experiência literária, permanece sendo propriamente filosófico. Pode-se dizer que há em Foucault uma espécie de jogo entre a literatura e a filosofia. Nesse jogo, ele se diz, por vezes, filósofo (tomando a filosofia em sentido mais amplo, como uma experiência de pensamento), e, outras vezes, ele enfatiza sua distância com relação à filosofia (tomada em sentido estrito, como uma disciplina universitária marcada pela forma historicista hegemônica na França da época). Ao se relacionar com o grupo Tel quel, Foucault, embora ressaltasse freqüentemente a extraordinária convergência e ressonância existente entre eles, não deixava também de observar a especificidade de sua empreitada, que ele qualificava, ironicamente, de “sem talento” (sans talent), e que consistia, basicamente, em buscar na experiência da linguagem novas formas de pensamento.122 Diante desse grupo de literatos e críticos, Foucault mostrava-se um pouco sem jeito e assumia, geralmente, uma posição de filósofo, mas sempre com certa ironia, dizendo, por exemplo, que era um homem ingênuo e desajeitado com sua “botina pesada de filósofo” (gros sabots de philosophe).123 Em uma entrevista realizada alguns anos depois no Japão, Foucault volta a insistir no fato de que seu interesse estaria localizado na prática

122 123

Ver FOUCAULT. Débat sur la poésie, p. 423. Ver FOUCAULT. Débat sur le roman, p. 366-367. 143 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

do filosofar, que ele qualifica então como a realização de certas “escolhas originais” (choix originels), entendidas como um pensamento mais fundamental em nossa cultura. Tais escolhas, segundo Foucault, seriam mais visíveis, em seu tempo, fora da filosofia, sobretudo na literatura, na ciência ou na política, o que explica a extensão de seus “gestos filosóficos” para além dos muros tradicionais da disciplina-filosofia.124 Sobre essa relação entre filosofia e literatura, é conveniente mencionar ainda a análise que Foucault realizou de Bataille em um texto intitulado Prefácio à transgressão, publicado em 1963 na revista Critique. Mais do que um escrito sobre literatura, o ensaio apresenta uma singular interpretação de Bataille como filósofo. Segundo Foucault, Bataille teria pretendido, com sua escrita fragmentária (que transita pelo ensaio, novela, poesia e aforismos), fundar uma heterologia, ou seja, uma ciência da experiência-limite, da transgressão dos limites. Em sua leitura, Foucault situa a linguagem filosófica de Bataille na “noite ensurdecedora”, no vazio deixado pela experiência da finitude e da morte de Deus. É nesse vazio que a linguagem de Bataille expande-se e perdese sem nunca cessar de falar. Contrariamente à “filosofia dos nossos dias”, que é descrita por Foucault como um “deserto” e uma “fala embaraçada”, a linguagem de Bataille seria não-dialética, não-fenomenológica e nãoantropocêntrica, responsável por um desmoronamento do sujeito, que, ao invés de expressar-se, vai ao encontro de

124

Ver FOUCAULT. Folie, littérature, société, p. 975. 144 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sua própria finitude, de sua morte. É nesse contexto de desmoronamento e de morte que a experiência singular da transgressão encontra seu lugar, como um gesto que concerne o limite e que é regido por uma obstinação, indo em direção a uma linha que recua sempre, um horizonte inalcançável.125 No coração da reflexão de Foucault sobre a literatura nos anos sessenta está o problema do “ser da linguagem” (être du langage). Essa expressão aparece pela primeira no texto analisado acima, sobre Bataille e terá seu apogeu em As palavras e as coisas e no famoso artigo de Foucault sobre Blanchot que apareceu na revista Critique com o título de O pensamento do lado de fora, ambos publicados em 1966. O problema do ser da linguagem, ou seja, da linguagem colocada em questão por si mesma, emerge no seio da reflexão sobre o pensamento transgressivo, entendido como aquele que transita perigosamente nos limites da linguagem. De acordo com Foucault, as formas extremas de linguagem que surgem, por exemplo, em Bataille e Blanchot, atingindo os “pontos mais altos do pensamento” (les sommets de la pensée), devem ser reconhecidas em sua soberania e acolhidas de modo a permitir a libertação de nossa linguagem.126 Vemos, nesse momento, um Foucault extremamente entusiasmado pelo potencial transgressor da experiência literária e por sua capacidade privilegiada de atingir o ser da linguagem.

125 Ver FOUCAULT. Préface à la transgression (en hommage à Georges Bataille), p. 263-265, 269, 277. 126 Ver FOUCAULT. Préface à la transgression (en hommage à Georges Bataille), p. 268, 276. 145 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Mas que ser da linguagem é esse? Não se trata, em absoluto, de algo fixo, estável, tido como uma essência invariável que a literatura teria sido capaz de captar. Ao invés disso, o ser da linguagem deve ser pensado como um espaço vazio que nunca será preenchido e objetivado, estando sempre em devir. No artigo dedicado a Blanchot, Foucault ressalta que o ser da linguagem, que se mostra no “pensamento do lado de fora”, não revela jamais sua essência e nem pode ser tratado como uma presença positiva, iluminadora.127 Como ressalta Judith Revel, a exterioridade do lado de fora não é uma entidade metafísica, mas sim uma experiência.128 Trata-se mais propriamente de uma ausência que se retira o mais longe possível, sem nunca ser alcançada, um espaço neutro no qual nenhuma existência pode arraigar-se. Blanchot já ressaltava, em O livro por vir, a importância da busca, do movimento que caracteriza a escrita literária como uma experiência que não é corretamente captada e designada através da palavra ‘literatura’, que não deve ser concebida como uma realidade bem definida ou uma atividade específica. Segundo Blanchot: “a essência da literatura está em escapar a toda determinação essencial, a toda afirmação que a estabiliza ou mesmo a realiza: ela não é nunca algo dado, mas está sempre a ser encontrada e reinventada”.129

127 ver FOUCAULT. La pensée du dehors, p. 554, 565 128 ver REVEL. La naissance littéraire de la biopolitique, p. 53. 129 BLANCHOT. Le livre à venir, p. 273. (Tradução minha). 146 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Contudo, apesar desse caráter mutante, há um traço que Foucault ressalta insistentemente e que, sem ele, parece impossível qualquer tratamento do ser da linguagem. Esse traço pode ser entendido como o abandono de uma linguagem da subjetividade em benefício de uma experiência da linguagem em si mesma. É, em grande medida, por causa dessa característica que a escrita literária radical pode ser considerada um lugar privilegiado de emergência do ser da linguagem. Nela, a linguagem apareceria em si mesma, justamente em função dessa experiência na qual o sujeito retira-se, deixando de ser a consciência fundadora que se vale da linguagem como um simples meio de representação e de expressão de sua interioridade. Segundo Peter Pál Pelbart, apesar da clara inspiração blanchotiana, é importante ressaltar também como Foucault toma posse da idéia do pensamento do lado de fora e confere-lhe outra dimensão, que aponta, sobretudo, para a questão da experiência da linguagem sem sujeito fundador.130 Embora Blanchot já falasse no neutro, nesse espaço anônimo sem a soberania do sujeito, que envolve a passagem da primeira (eu) para a terceira pessoa (ele), a experiência do lado de fora ainda estava ligada, de maneira prioritária, à discussão acerca da especificidade do espaço literário. Foi Foucault quem ressaltou, explicitou e aprofundou a relação dessa questão com o problema da fragmentação da unidade subjetiva. De certa forma, como ressalta Tatiana Levy, Foucault tendeu

130 ver PELBART. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão, p. 159-160. 147 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

a tomar o pensamento do lado de fora, em seu traço mais fundamental, como um pensamento que se mantém fora de toda subjetividade fundadora.131 Em As palavras e as coisas, Foucault reserva um lugar especial a essa questão, conferindo à experiência literária o papel propriamente positivo de pensar o ser da linguagem, algo que a arqueologia das ciências humanas seria capaz de abordar apenas de forma negativa. Segundo Foucault, a literatura, a partir do século XIX, manifestaria a reaparição do “ser vivo da linguagem” (l’être vif du langage), de modo que, através dela, “o ser da linguagem brilha de novo nos limites da cultura ocidental e em seu coração”. Em suma, a literatura parece guardar uma relação privilegiada com o “ser próprio da linguagem” (être propre du langage) ou com a “linguagem em seu ser bruto” (le langage en son être brut). Foucault observa que, embora a literatura (ou aquilo a que hoje chamamos literatura) possa ser considerada algo muito antigo em nossa tradição, que remonta a Homero, o isolamento de uma linguagem singular chamada literatura é algo recente, que se inicia no século XIX e caracteriza-se por uma referência ao puro ato da escrita, o que seria visível na revolta romântica e, sobretudo, em Mallarmé. Nessa linha, Foucault ressalta a associação entre literatura e experiência da linguagem, sustentando uma “intransitividade radical” (intransitivité radicale) que faz com que a literatura torne-se uma “pura e simples manifestação de uma linguagem”.132

131 ver LEVY. A experiência do Fora: Blanchot, Foucault e Deleuze, p. 38-41, 53, 55, 67. 132 ver FOUCAULT. Les mots et les choses: une 148 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Mallarmé é evocado em As palavras e as coisas para exemplificar essa tese de que o ser da linguagem é a visível desaparição daquele que fala, de modo que quem fala na literatura é a palavra ela mesma, e não um suposto sujeito falante ou autor. Mallarmé é tido por alguém que se apaga a si mesmo em sua linguagem, a ponto de pensar em um discurso que se compõe a si mesmo, de modo que, juntamente com Nietzsche, eles seriam responsáveis por reconduzir violentamente o pensamento em direção à linguagem em si mesma. Essa nova rota assumida pelo pensamento pode ser associada à tese de fundo de As palavras e as coisas, acerca da invenção recente e do fim próximo do homem. Nietzsche e Mallarmé representam, dentro desse projeto filosófico maior, o marco a partir do qual podemos recomeçar a pensar “no vazio do homem morto” (dans le vide de l’homme disparu).133 Mallarmé, aliás, é comumente citado como aquele que enfrentou, talvez de forma pioneira, o problema da despersonalização ou da impessoalidade literária, na qual o autor renunciaria a qualquer poder ou privilégio autoral, como vemos na famosa passagem retirada de Crise do verso, de 1886, na qual se afirma que “a obra pura implica no desaparecimento elocutório do poeta (la disparition élocutoire du poète), que cede a iniciativa às palavras”.134 Posteriormente, em Um lance de dados jamais abolirá

archéologie des sciences humaines, p. 58-59, 134, 313. 133 ver FOUCAULT. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines, p. 317, 353. 134 MALLARMÉ. Crise de vers, p. 366. (Tradução minha). 149 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

o acaso, de 1897, Mallarmé teria ainda rompido com a própria linearidade tipográfica, em uma radical experiência de linguagem na qual comumente se viu a elaboração de uma “máquina de escrever” que destruiria a expressão e aboliria o autor, afirmando que a escrita é, sobretudo, fruto do acaso. É nessa linha que Mallarmé é freqüentemente citado por Foucault, justamente para ilustrar a tese da intransitividade da linguagem.135 Pode-se dizer, seguindo Guilherme Castelo Branco, que Mallarmé é quem melhor sintetiza as teses de Foucault sobre a literatura e sobre o poder transgressivo de suas experiências com a linguagem.136

II A partir dos anos setenta (talvez antes, desde 1968), o tema da linguagem e da experiência literária, que ocupava um lugar de destaque nas reflexões de Foucault, praticamente desaparece, ou desloca-se radicalmente, assumindo um papel bem diverso. Segundo Judith Revel, o pensamento de Foucault pode ser originalmente concebido sob o signo da literatura, pois foi ela que lhe forneceu os meios para romper com a filosofia universitária dos anos cinqüenta, foi ela também que fez emergir o ato da escrita em si mesmo e, em contradição com sua própria maneira de pensar, permitiu evitar um fechamento

135 ver FOUCAULT. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines, p. 316, 394; FOUCAULT. La pensée du dehors , p. 565. 136 ver CASTELO BRANCO. Michel Foucault: a literatura, a arte de viver, p. 321. 150 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

no discurso estruturalista. Sobre a questão do abandono da literatura nos anos setenta, ressalta Revel: “mais que de um desaparecimento, é de uma metamorfose que se trata: Foucault não deixa de falar da literatura porque se desinteressou, mas, ao contrário, porque ele estende a uma esfera de pesquisa bem mais ampla os conceitos de transgressão e resistência”.137 Ou seja, é em razão de uma nova maneira de pensar o poder (e as formas de resistência) que Foucault será levado a abandonar a tese do privilégio da literatura. Nos textos do final dos anos sessenta esse deslocamento já se faz perceber. Porém, a partir de 1970, esse processo fica ainda mais visível e intenso, chegando Foucault a dizer que não dá a menor importância para a instituição literária e que preferiria nem mais falar no assunto. Para ilustrar essa postura, recordarei algumas entrevistas concedidas por Foucault ao longo dos anos setenta, nas quais o tema da literatura aparece. Foucault chega a pedir a um entrevistador (G. Armleder) que não faça questões relacionadas à literatura, à lingüística ou à semiologia. Nessa mesma entrevista, Foucault expressa sua vontade de afastar-se de certas questões abstratas, como a literatura e a história das ciências, e diz que o deslocamento de seu interesse para o problema das prisões foi a saída que encontrou ao “cansaço” (lassitude) que sentia com relação à coisa literária.138 Em outra entrevista, realizada no Japão em 1972, ao

137 REVEL. Histoire d’une disparition: Foucault et la littérature, p. 65-73. (Tradução minha). 138 ver FOUCAULT. Je perçois l’intolérable, p. 1071. 151 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ser perguntado sobre seu interesse pela atividade literária na França, Foucault diz que responderá de maneira “brutal e bárbara” (brutale et barbare), confessando ter pouco interesse pelos grandes escritores, como Flaubert ou Proust, e afirmando estar cada vez mais desinteressado pela “escrita institucionalizada sob a forma da literatura” (écriture institutionnalisée sous la forme de la littérature) e cada dia mais entusiasmado pelo discurso anônimo, das palavras recusadas pela instituição literária. Nessa mesma entrevista, espelhando-se na postura de Jean Genet, que decidiu não mais escrever para o teatro e, passando diante da Comédie-Française em Paris, disse que estava se lixando, Foucault afirma ter vontade de dizer à instituição literária e a toda a instituição da escrita que ele “não está nem aí” (Je m’en fous!).139 Em uma entrevista concedida em 1975 e curiosamente publicada com o título de “A festa da escrita”, Foucault, ao ser perguntado se costuma ler muitos autores contemporâneos, responde confessando que lê pouco, mas que, antigamente, já tinha lido muito “disso que se chama literatura”.140 Enfim, em uma entrevista concedida em 1977, o entrevistador japonês (S. Hasumi) observa que Foucault costumava falar muito sobre literatura no passado, ao que Foucault responde, ironicamente, dizendo que falava só “um pouquinho” (Oh! Beaucoup, beaucoup... un petit peu!) e, sendo ainda mais irônico, diz que a razão disso é que, naquela época, não sabia muito bem do que

139 ver FOUCAULT. De l’archéologie à la dynastique, p. 1280-1281. 140 ver FOUCAULT. La fête de l’écriture, p. 1602. 152 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

estava falando e encontrava-se ainda em busca da lei ou do princípio de seu discurso.141 Nas poucas vezes em que tocou no tema, com raríssimas exceções, foi para criticar e demonstrar seu desinteresse. Dentre as exceções a esse desinteresse explícito pela literatura, encontra-se a apresentação que Foucault redigiu para a publicação das obras completas de Bataille em 1970. Entretanto, pode-se ver, nesse curto texto, uma clara falta de entusiasmo pela literatura, ao menos em comparação com outros textos do início da década de sessenta. Foucault, ao elogiar Bataille como “um dos escritores mais importantes de seu século”, não deixa de sugerir que suas palavras foram assimiladas, assumindo um gênero definido e entrando na história da literatura. Embora reconheça que Bataille tenha feito entrar o pensamento no jogo arriscado do limite e da transgressão, Foucault mostra-se insatisfeito e ressalta a necessidade de irmos além, de “aumentarmos sua obra” e não ficarmos presos às mesmas experiências (que foram importantes, mas que talvez tenham perdido seu potencial transgressor).142 Convém lembrar também que o motivo que levou Foucault a escrever essa apresentação é mais contingente e estratégico (parte de um combate político) do que propriamente intelectual. Nesse período, o ministro do interior da França recorria com freqüência à lei de proteção da juventude para censurar certas publicações e vigiar os editores, de modo que se tornou comum o recurso

141 ver FOUCAULT. Pouvoir et savoir, p. 414. 142 ver FOUCAULT. Présentation, in Bataille (G.), Œuvres complètes, p. 893-894. 153 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

a “prefácios protetores” (escritos por grandes intelectuais, como já era nessa época Foucault) para viabilizar uma publicação polêmica, como é o caso das obras completas de Bataille. Além dessa breve apresentação, outro texto que, esse sim, constitui uma clara exceção nesse período, consiste em alguns fragmentos de uma conferência que foram publicados em 29 de maio de 1973 no Brasil, no jornal Estado de Minas. No último fragmento desse texto, aborda-se o lugar da literatura como uma nova forma de pensamento, ressaltando-se que, na escrita literária, o homem desapareceria em benefício da linguagem, ou seja, a obra destruiria o autor, sendo Robbe-Grillet, Borges e Blanchot citados como testemunhas desse desaparecimento.143 Esse estranho texto fragmentário, com o curioso e soberbo título “Foucault, o filósofo, está falando. Pense”, está em claro descompasso com as teses sustentadas por Foucault nesse período (refletindo mais exatamente suas idéias do início dos anos sessenta), o que me conduz à desconfiança de que, ou Foucault requentou velhas idéias (provavelmente em razão do auditório e das circunstâncias), ou talvez tenha sido realizado um recorte deturpado e anacrônico daquilo que teria sido dito por Foucault nessa passagem por Belo Horizonte. De fato, como afirma Roberto Machado, “o tempo do fascínio pela literatura tinha efetivamente passado”,144

143 ver FOUCAULT. Foucault, le philosophe, est en train de parler, p. 1293. 144 ver MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 123. 154 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

o que não significa que Foucault tenha deixado completamente de falar da literatura, mas com certeza parou de lhe conceder um tratamento privilegiado. As questões do ser da linguagem e do pensamento do lado de fora são abandonadas. Em suma, Foucault descarta, já ao final dos anos sessenta, a idéia da literatura como lugar privilegiado para a transgressão. Dentre os motivos que teriam levado Foucault a essa mudança, entendo que sua nova reflexão sobre o poder, realizada ao longo dos anos setenta, é determinante. Abandonando suas teses anteriores sobre o pensamento do lado de fora, Foucault, ao tratar do lugar de onde fala o louco, afirma enfaticamente que “nós estamos sempre no interior. A margem é um mito. A palavra do exterior (parole du dehors) é um sonho que não cessamos de prolongar”.145 Segundo Judith Revel, ao invés de um sistema discursivo fechado e a suposição de um hipotético lado de fora, o novo problema para Foucault passa a ser a construção de um modelo no qual a distinção dentro/ fora ou lei/transgressão desfaz-se. É nesses termos que Revel interpreta a passagem operada por Foucault da transgressão literária à resistência política, sendo as relações de poder descritas em termos de estratégias e táticas e não mais redutíveis a um esquema dialético (dentro/fora e transgressão).146 Também nessa direção, ressaltando a nova complexidade dos jogos de poder,

145 FOUCAULT. L’extension sociale de la norme, p. 77. (tradução minha). 146 ver REVEL. Michel Foucault: expériences de la pensée, p. 113. 155 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

afirma Ângela Kury: “com a genealogia, a linguagem, melhor, a literatura já não é mais um ‘contradiscurso’ ou algo situado nas bordas do poder. Ao contrário, os discursos tanto podem contribuir para aumentar o controle quanto para alargar a resistência”.147 Pensando em um quadro genealógico, a possibilidade de uma resistência ou subversão deixa de ser tratada nos termos de um contradiscurso. Não há mais, de um lado, um discurso de poder, interior à ordem estabelecida, e, de outro, um discurso contra o poder tout court, que viria de fora ou transitaria pelas margens. Ao invés disso, os discursos podem tanto intensificar os controles quanto constituir pontos de resistência ou focos de reação. O que está em jogo é uma nova concepção de poder, que não permite mais imaginar uma saída ou transgressão capaz de subverter a ordem e ir além, ao menos não da mesma maneira. Embora seja possível pensar em uma força transgressiva, ela assume a forma de uma resistência sempre provisória, regional, que produz sem cessar novos procedimentos de normalização e de institucionalização. Assim, toda resistência ou transgressão é, mais cedo ou mais tarde, integrada, assimilada e ordenada, de modo que toda ruptura tem um valor temporário e tende a sempre recomeçar, assumindo novas formas. Nesse sentido, Foucault opõe a “dinástica do saber” (dynastique du savoir), entendida como a análise da relação entre os discursos e as condições

147 ver KURY. A transgressão da palavra: considerações sobre a análise foucauldiana da linguagem, p. 257. 156 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

históricas, econômicas e políticas de sua aparição, à arqueologia do saber, que seria a descrição de um regime de discursividade e sua eventual transgressão. Em suma, a questão deixa de ser como transgredir ou subverter a ordem estabelecida. A genealogia ou dinástica do saber exerce sua função crítica de outra maneira, qual seja, mediante o questionamento das evidências, a indicação das contingências e a produção de um estranhamento. O potencial crítico de Vigiar e punir, por exemplo, não envolve um contradiscurso ou uma forma de transgressão ou subversão, mas sim uma compreensão de como nossa maneira de pensar e agir se constituiu, a partir de certas práticas e discursos. Nesses termos, segundo Foucault, poderíamos dizer que a escrita literária exerceu, em um breve período, uma força transgressora. Em uma conferência proferida no Japão em 1970, Foucault situa essa breve experiência da literatura como uma “fala absolutamente anárquica” (parole absolument anarchique), “sem instituição” (sans institution) e “profundamente marginal” (profondément marginale), a um curto período do século XIX, quando essa forma de escrita foi desinstitucionalizada para ser, em seguida, novamente assimilada.148 Em outro texto posterior, de 1977, Foucault ressalta que a literatura foi, por um tempo (desde o século XVII, quando ela começa a ser literatura no sentido moderno do termo), o discurso da infâmia, no qual se dizia o que havia de indizível, de mais secreto, intolerável e vergonhoso. Porém, como também

148

ver FOUCAULT. La folie et la société, p. 489-490. 157 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

observa Foucault, não devemos esquecer que essa posição singular da literatura decorreu de certo dispositivo de poder que marcou a economia dos discursos da época.149 Porém, hoje em dia, ela teria sido totalmente assimilada e desprovida de qualquer eficácia como forma de resistência. Essa tese da assimilação da literatura e da perda de seu poder subversivo é recorrentemente expressa por Foucault ao longo dos anos setenta. Em uma entrevista publicada no Japão em 1970, Foucault afirma que a literatura tornou-se instituição e foi recuperada pelo sistema, praticando-se hoje nas editoras comerciais e no mundo do jornalismo, sendo sua pretensa capacidade transgressora “uma pura fantasia” (un pur fantasme). A sociedade burguesa seria, inclusive, tolerante com relação ao que acontece dentro da literatura, sendo suas travessuras sempre perdoadas, uma vez que seu poder subversivo foi digerido e assimilado. Foucault ressalta, assim, a necessidade de sairmos da literatura, de a abandonarmos ao seu “magro destino histórico” (maigre destin historique), definido pela sociedade burguesa à qual pertence, afirmando que a mudança social ocorrerá fora da linguagem, ou seja, a literatura é vista como uma arma fraca demais para a força do inimigo a ser combatido.150 Nesse sentido, em uma entrevista publicada em 1976, é surpreendente perceber como a literatura deixa

149 ver FOUCAULT. La vie des hommes infâmes, p. 252-253. 150 ver FOUCAULT. Folie, littérature, société, p. 985986, 992. 158 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

inclusive de ser considerada uma aliada na luta para desmascarar as relações de poder. Mesmo Sade (um de seus escritores preferidos, antes visto como um libertário), é descrito como um “sargento do sexo” (sergent du sexe), um “disciplinador” (disciplinaire) que formulou o “erotismo próprio a uma sociedade disciplinar” (l’érotisme propre à une société disciplinaire).151 A assimilação da escrita literária é vista por Foucault como apenas mais uma manifestação de um processo mais amplo de assimilação ou domesticação dos discursos pela ordem estabelecida, o que já teria ocorrido, por exemplo, com a escrita filosófica. Podemos, em certa medida, aproximar essa desvalorização da literatura, que caracteriza o pensamento de Foucault dos anos setenta, com a depreciação da filosofia feita por ele já desde os anos cinqüenta. Ou seja, a crítica que Foucault fazia à filosofia, que teria deixado de ser o lugar das novas e radicais experiências de pensamento para se tornar um métier ou uma pequena disciplina universitária, estende-se agora também à escrita literária, que também teria perdido sua força transgressora. Sobre esse ponto, em uma entrevista de 1970, Foucault diz que, se até a literatura, que seria a forma de escrita menos assimilada à ordem estabelecida, perdeu sua força destrutiva, então todas as outras formas de escrita já a perderam há um bom tempo. Foucault confessa que sua dúvida quanto à função subversiva da escrita teria nascido há tempos, concernindo tanto a

151 1690.

ver FOUCAULT. Sade, sergent du sexe, p. 1689159 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

filosofia quanto a literatura.152 Embora Foucault diga isso, parece claro que, primeiro, ele duvida da filosofia (desde os anos cinqüenta) e, apenas posteriormente, estende essa crítica à literatura (em certa medida, no final dos sessenta).

III Ao invés da literatura e de seu discurso autoral domesticado e assimilado, são, sobretudo, os discursos anônimos que passarão a despertar o interesse de Foucault nos anos setenta. Não devemos ver nesse interesse algo absolutamente novo no pensamento de Foucault, pois, desde a História da loucura (1961), ele analisa certos discursos anônimos (dos leprosos, doentes e loucos). Contudo, ao menos até As palavras e as coisas (1966), Foucault ainda atribuía certo privilégio transgressivo à linguagem literária e tendia a valer-se desse material anônimo e marginal apenas como base para algumas de suas pesquisas históricas. É inegável que, a partir de 1970, Foucault passa a conceder uma importância bem maior aos discursos anônimos, chegando a promover várias publicações desse tipo de material, começando por Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (1973). Posteriormente, ele propõe a publicação de uma antologia de textos que terminou por se tornar uma coleção, intitulada As vidas paralelas (Les vies parallèles), que incluí o texto de Herculine Barbin, chamada Alexina

152

ver FOUCAULT. Folie, littérature, société, p. 994. 160 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

B. (1978). Depois, com a colaboração de Arlette Farge, Foucault publica ainda A desordem das famílias. Lettres de cachet dos arquivos da Bastilha (1982). Esses discursos, dos loucos, dos presos e dos excluídos em geral, distinguem-se da fala institucionalizada e controlada da literatura, da ciência e da filosofia. Os discursos anônimos, justamente por serem marginais e alheios, em certa medida, aos procedimentos de controle dos discursos (apresentando um outro regime de escrita, marcado pelo anonimato), seduzem Foucault e são considerados perturbadores e instigantes. Mais do que belos ou aprazíveis, são textos que nos deixam perplexos e aturdidos. Em uma entrevista realizada em 1971, Foucault recusa-se a dizer que os textos dos presos possuem “grande beleza” (grande beauté), não por desmerecê-los, mas porque isso significaria inscrevê-los no “horror da instituição literária” (l’horreur de l’institution littéraire), preferindo dizer apenas que há neles “coisas perturbadoras” (des choses bouleversantes).153 Em A vida dos homens infames, texto escrito em 1977 como introdução para uma antologia de discursos anônimos, Foucault afirma que essas vidas sem glória nem fala, desprezadas e perdidas no anonimato, são capazes de tocar-nos mais profundamente que as obras literárias. Segundo Foucault, nenhuma personagem ficcional seria tão intensa quanto essas figuras reais, sem qualquer grandiosidade (santidade, heroísmo ou genialidade) e destinadas a passar pelo mundo sem deixar qualquer traço

153

ver FOUCAULT. Je perçois l’intolérable, p. 1073. 161 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

(e que só chegaram até nós por força do acaso). Mais do que escritores libertinos, essas vidas são propriamente infames (infâmes en toute rigueur), ou seja, não suscitam nenhuma admiração nem gozam de glória alguma. Seus textos possuem uma baixeza (bassesse), uma miséria e uma violência que nenhuma literatura poderia acolher.154 Em Vigiar e punir, essa assimilação e pobreza da literatura, em comparação à transgressão e riqueza do discurso dos homens infames, fica visível na distinção traçada entre o “discurso do cadafalso” (discours de l’échafaud) e a “literatura do crime” (littérature du crime). O primeiro discurso corresponde às últimas palavras do condenado, pronunciadas no seio do grande espetáculo público do suplício, possuindo um caráter transgressor, descontrolado, que permitia a irrupção de uma verdade incômoda. Já o segundo discurso corresponde à reescrita estética do crime, que o glorifica, embeleza e engrandece. Foucault menciona os casos do poeta-assassino Lacenaire e do famoso personagem, criminoso e gentleman, Arsène Lupin, que estão ligados a uma espécie de arte das classes privilegiadas, na qual a burguesia deleita-se com um prazer novo. Essa literatura policial ou romance criminal, segundo Foucault, domestica o potencial transgressivo do discurso do cadafalso, retirando sua força e riqueza ao assimilá-lo à ordem literária.155 E na contra-capa de Herculine Barbin, chamada

154 ver FOUCAULT. La vie des hommes infâmes, p. 239, 243, 250. 155 ver FOUCAULT. Surveiller et punir: naissance de la prison, p. 79-82; 332, 335. 162 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Alexina B. (1978), que corresponde ao primeiro volume da coleção As vidas paralelas, Foucault descreve seu projeto de publicação dos discursos anônimos como o inverso daquele levado adiante por Plutarco, das “vidas ilustres”, que teria seu fundamento na autoridade dos autores antigos.156 Essa inversão declarada por Foucault mostra como ele procura nos discursos anônimos e infames um outro regime de escrita. Podemos ver no homem infame um inverso do autor, ou seja, um “sujeito” que, desprezado e condenado ao anonimato, não tem qualquer poder sobre sua fala.

Conclusão Voltemos então à questão inicial deste estudo: a literatura é capaz de mudas nossas vidas e nossa maneira de pensar? Podemos atribuir a ela algum poder transgressivo privilegiado? Seguindo o Foucault dos anos sessenta, a resposta a essas duas perguntas seria um enfático sim. Contudo, a partir dos anos setenta, Foucault retira grande parte do poder antes conferido às experiências com a linguagem perpetradas no seio da escrita literária. Talvez a literatura ainda mantenha alguma capacidade transformadora, crítica, mas não seria mais correto atribuirlhe qualquer tipo de poder transgressivo privilegiado. Como foi visto, Foucault, ao desenvolver nos anos setenta uma nova concepção de poder, tendeu a desinteressar-se pela literatura, que passou a ser

156

ver FOUCAULT. Présentation, p. 499. 163 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

vista, essencialmente, como um discurso assimilado, domesticado, tolerado e incapaz de alçar grandes vôos transgressivos. Em busca de armas mais eficazes, como os discursos anônimos, das vozes perturbadoras que deveriam ter sido silenciadas, Foucault parece deixar de lado a questão da escrita literária para sair em busca de uma munição mais pesada, capaz de, ainda que provisoriamente e de maneira regional, suscitar a crítica e provocar o estranhamento indispensável para mudarmos nossas maneiras de pensar e agir. O aprofundamento da mudança verificada no pensamento de Foucault entre os anos sessenta e setenta com relação à literatura e seu poder transgressor oferece, creio, uma base interessante para repensarmos o lugar da literatura e seu potencial crítico nos dias atuais. Muitas indagações poderiam ser feitas e, seguindo esta senda, gostaria de terminar este breve estudo deixando algumas questões no ar. A literatura publicada pelas grandes casas editoriais teria sido realmente assimilada e domesticada? E a literatura menor, que circula, sobretudo, pela rede mundial de computadores, nas margens do sistema editorial e das Academias, será que ela faz reviver essa escrita transgressiva e perturbadora que tanto teria encantado o Foucault dos anos sessenta? Será que ainda se pode chamar de literatura a essas novas experiências com a linguagem?

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167 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

CHOMÓN, PASTRONE, D’ANNUNZIO E CABÍRIA: GÊNESE DE UM ÉPICO DE TRANSIÇÃO

Paulo Roberto de Carvalho Barbosa

Introdução Cinema e narração nem sempre andaram de mãos dadas. Se aproximações entre filme e narrativa já ocorriam desde o cinematógrafo Lumière, levou algum tempo até que essa relação se consumasse. Em seus primeiros anos, o cinema dependia do circuito de exibição de circos, vaudevilles e cafés-concerto para ser visto e publicizado. Transferia esse universo cultural para seus filmes, a fim de atrair e fidelizar plateias, em sua maior parte advindas das classes populares. Filmes com histórias contadas já estavam aí presentes, mas não representavam a tendência dominante. E não por menos: àquela altura, o cinema estava desincumbido de narrar. Cabia-lhe apresentar cenas burlescas, performances sensacionais, pornografia ou truques ópticos, preferencialmente num único plano. Para além da prodigiosa máquina de contar histórias em que mais tarde se converteria, insinuava-se como um novo e fascinante parque de diversões. Em fins dos anos 1900, os filmes começaram a

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tomar rumos mais decididamente narrativos. Esforçavamse por exibir universos ficcionais autônomos, criados a partir de um mais estreito gerenciamento de sua habilidade para contar histórias. Um inteiro novo modo de narrar com imagens, em suma, emergiu e aperfeiçoouse na década de 1910 para consolidar-se somente na década de 1920, quando se cristalizou no chamado estilo clássico, consagrado pelos estúdios de Hollywood. Essa nova ordem não se estabeleceu por acaso. Para que se instalasse, foram necessárias mudanças profundas na práxis cinematográfica dos primeiros anos, a começar pelo modo como os filmes eram vistos e consumidos até ali. Pelo fim da década de 1900, uma série de variáveis de ordem industrial colaborou para conduzir a uma ruptura radical com o modo de representação dos primeiros anos. 157 O cinema expandia-se, e cumpria ampliar a sua clientela, como convinha aos objetivos da indústria. Ao público das classes populares, já cativo, recomendava somar-se o das classes média e alta. Classes essas avessas aos ambientes de projeção, por “vulgares” e tomados por todo tipo de “iniquidades”. Aumentar o número de salas não bastava para atrair aos cinemas esses exigentes segmentos sociais. Também era preciso

157 Termo cunhado por Noël Burch para designar um sistema peculiar de formas fílmicas. De maneira genérica, modo de representação pode ser entendido como sinônimo de linguagem. A rigor, o termo faz referência ao vocabulário visual posto em prática pelo cinema em um momento histórico anterior à cristalização do estilo clássico. 169 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

“purificar” as projeções móveis, libertá-las de seus locais originais de circulação e consumo. Não por outra razão, as centenas de novas salas que se fizeram construir naquele final de década já se equipavam para receber, com pompa e circunstância, o público dos altos estratos. As classes altas, contudo, ainda se mostravam refratárias aos filmes. Ansiavam por algo mais artístico, para além da estética ingênua que subsistia em boa parte das películas. Impôs-se, nesse sentido, reformular o produto filme, turbinar o seu conteúdo para atender ao refinado gosto burguês. Aproximar o cinema da literatura e do teatro culto, as artes então consideradas “nobres” pelas camadas altas, foi uma boa providência nessa direção. Em 1908, as subsidiárias francesas da companhia PathéFrères, SCAGL (Société Cinématographique des Auteurs et Gens de Lettres) e Film D’Art, inauguraram a prática de contratar dramaturgos conhecidos e grandes atores para trabalhar em suas produções. Começava-se a dar um status de arte aos filmes, que se preparavam para assumir um lugar de predileção entre os entretenimentos de massas do mundo moderno. Outra providência para livrar os filmes do ambiente ao qual a princípio estiveram ligados foi trabalhar a sua forma, de modo a torná-los narrativamente mais compreensíveis. Iniciativas nesse sentido perpassaram a década de 1910. Oscilando entre uma estética espetaculosa, própria dos primeiros anos, e outra, na qual os procedimentos narrativos se sofisticavam, os filmes, sobretudo na primeira metade dos anos 1910,

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incorporaram modos de representação distintos entre si. Em parte espetáculo esfuziante, em parte veículo para contar histórias, o cinema desse período resultava híbrido, “impuro”, tensionado entre práticas cinematográficas nem sempre convergentes. Recebeu do historiador Tom Gunning, por isso, a denominação de cinema de integração narrativa, termo que define uma fase na qual os planos buscaram, cada vez mais, integrar-se em sequências narradas, pondo-se em relação de interdependência uns em relação aos outros. No início dos anos 1910, diversas companhias europeias seguiram o exemplo da SCAGL e da Film D’Art, indo buscar, junto à literatura e ao teatro, o prestígio de que precisavam para converter suas películas em produtos dotados do carimbo de arte. Criada em Turim, num tempo em que essa cidade passava por uma forte industrialização, a Itala Film deu origem a uma vasta filmografia, composta de dramas, comédias, épicos e filmes de aventura. Os filmes dessa produtora também se deixaram percorrer pelas tensões entre narração e espetáculo comuns à filmografia europeia dos anos 1910. Tensões que aparecem com especial destaque no filme Cabíria (Giovanni Pastrone), épico realizado em 1914 com a intenção manifesta de aproximar cinema e literatura, valendo-se, para isso, da assinatura de um famoso escritor, o poeta, romancista e demagogo nacionalista Gabriele D’Annunzio. Referência na história do cinema pela ousadia de seu projeto artístico, Cabíria é um dos primeiros produtos da parceria entre o diretor piemontês Giovanni Pastrone

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e o diretor de fotografia espanhol, Segundo de Chomón. Tipicamente um filme de transição, permite vislumbrar as contradições inerentes a esse período acidentado, irregular, no qual o cinema buscava afirmar-se como um meio narrativo, sem, contudo, deixar de mostrar elementos de puro gozo estético, mais atinentes aos filmes dos primeiros anos. O presente artigo examina a realização de Cabíria à luz dessas contradições, focalizando as contribuições dos principais personagens envolvidos em sua construção, com ênfase para o trabalho de Segundo de Chomón, responsável pelos efeitos especiais e pela iluminação do filme, de grande influência no cinema narrativo que então se inaugurava.

I – Cinema à la Pastrone Em 1907, o piemontês Giovanni Pastrone andava por Turim em busca de emprego. Contador, violinista e fluente em três idiomas, bateu à porta da Carlo Rossi & cia., produtora fundada em 1905 por dois sócios a princípio envolvidos na comercialização de um imprestável sistema de telegrafia sem fio.158 Com seus filmes já circulando em âmbito internacional, a Carlo Rossi & cia. precisava de um funcionário poliglota para o seu setor de correspondência.

158 Com dois anos de atividade, a Carlo Rossi quase fechou as portas, tendo em vista o comportamento perdulário do fundador, Rossi, pródigo em gastar os lucros da empresa em Paris. Mais detalhes sobre a fundação da Itala Film, ver USAI. Giovanni Pastrone: gli anni d’ oro del cinema a Torino. 172 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Interessou-se pelas habilidades linguísticas de Pastrone, e o piemontês foi imediatamente contratado. Na Carlo Rossi, Pastrone foi rápido em perceber a situação de descontrole financeiro da empresa, passando a ocupar-se também de sua contabilidade. Os bons resultados de sua gestão catapultaram-no da contabilidade para os assuntos técnicos e de produção, e, em poucos meses, já galgava o posto de executivo-chefe da firma. Seus métodos, porém, entraram em choque com os do fundador Rossi, este último mais hábil em dissipar os lucros da empresa do que em dar-lhe um melhor gerenciamento. O desencontro entre os dois levou a produtora a uma liquidação precoce e, não obstante a saída de Rossi, Pastrone decidiu, com outros dois ex-sócios, dar continuidade aos negócios. Rebatizada para Itala Film, a firma voltou a operar naquele mesmo ano, para se tornar, sob o controle do piemontês, a segunda mais importante produtora em atividade na Itália. Ao final dos anos 1900, a Itala Film engatava um ritmo frenético de produção. Embalava-se pelas comédias do ator cômico André Deed, trazido dos estúdios PathéFrères e sucesso na Itália com seu personagem Cretinetti. Dramas e filmes históricos também compunham a filmografia da casa. É de 1910, por exemplo, A queda de Troia (La caduta de Troia, Pastrone/Luigi Romano Borgnetto), película baseada na Ilíada grega. Descrito pela publicidade da época como uma grande produção histórico-mitológica, “com centenas de figurantes, cenas monumentais e cenas de incêndio”,159 este foi o primeiro

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TOFETTI. Pastrone em Turín o la Ópera Lírica en 173 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

empreendimento “colossal” da Itala Film. 160 Com inéditos 30 minutos de duração, num tempo em que eram raros os filmes de dois rolos, foi exibido na íntegra nos Estados Unidos, causando sensação. A boa receptividade da película entusiasmou Pastrone, levando-o a pensar em outros projetos colossais para a sua produtora. Em 1912, estreava Quo Vadis (Enrico Guazzoni), da produtora romana Cines, mostrando cristãos lançados às arenas para servirem de almoço a leões. A esse filme bíblico, seguiu-se a superprodução Gli ultimi giorni di Pompeii (Mario Caserini/Eleuterio Rodolfi, 1913), épico histórico de proporções monumentais. De grande impacto visual, as cenas de incêndio e destruição do filme causaram uma forte impressão em Pastrone, que foi tomado pelo desejo de realizar uma fita tendo como pano de fundo o esplendor glorioso da Roma Antiga. No lugar da erupção do vulcão Vesúvio, sua película traria a eclosão do Etna como uma das atrações-chave, articulando-se através de um enredo romântico. Tal projeto começou a sair dos rascunhos de Pastrone para ganhar a forma de filme no segundo semestre de 1913. No ano seguinte, tornou-se um dos maiores sucessos de bilheterias nos Estados Unidos, ficando em cartaz, no país, por cerca de um ano. Pelo início da década de 1910, o cinema italiano vivia uma fase de afirmação. Granjeava fama sobretudo

la época del automóvil, p. 63. 160 Filmes de duração mais longa do que um rolo (15 minutos), com temáticas históricas, mitológicas ou bíblicas. O gênero colossal foi inaugurado em 1908, com Os últimos dias de Pompeia (Arturo Ambrosio e Luigi Maggi). 174 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

com os épicos colossais, de grande aceitação no mercado externo. Internamente, porém, a atividade ainda carecia de legitimar-se, sobretudo perante a burguesia italiana, que lhe opunha forte resistência. Aproximar a produção da Itala Film das classes altas figurava, pois, entre os objetivos de Pastrone, que não se fez de rogado em investir na qualidade literária de suas películas. Com esse propósito, viajou até Paris, onde então se fixava o escritor italiano Gabriele D’Annunzio,161 para convidá-lo a participar de seu empreendimento colossal. D’Annunzio recebeu o convite com pouco entusiasmo: não nutria grande respeito pelo cinema, chegando mesmo a depreciá-lo. Mas passava por uma situação financeira delicada e aceitou a oferta do piemontês. Sua tarefa seria redigir, pela vultosa quantia de 50.000 francos, os letreiros daquele épico ainda sem nome e já em andamento no estúdio da Itala Film. Além de elaborar os letreiros da película, D’Annunzio deveria batizar os personagens do filme, providenciar-lhe um título e assiná-lo. Sofonisba, Karthalo, Sifax, Fulvius Axilla e Maciste foram alguns dos sonoros nomes dados

161 Formado em Filosofia e Letras, D’Annunzio foi um escritor prolífico. Seu trabalho teve impacto na Europa e influenciou gerações de escritores italianos. Decadentista, esta obra contém elementos simbolistas e naturalistas e é também marcada por um forte nacionalismo. Nos anos 1920, o furor patriótico dos escritos de D’Annunzio consistiu numa das fontes mesmas de inspiração do fascismo. Mussolini chegou a copiar-lhe o estilo, adotando a saudação criada pelo escritor, a sua autonomeação como duce (líder), além da sua tendência para replicar a estética do Império Romano. 175 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

pelo escritor aos personagens do mamute italiano. E para intitulá-lo, o vate escolheu Cabíria – “a filha das chamas” –, protagonista de uma trama girando em torno do antagonismo entre Roma e Cartago durante a segunda Guerra Púnica, marco fundador da civilização europeia .162 Para o escritor, a menina Cabíria encarnaria uma criatura mítica, capaz de atravessar incólume os “ardores do destino e de evocar os demônios das profundezas vulcânicas”, metaforizando a expansão do Império Romano no III século A/C. O título estaria justificado no simbolismo dannunziano, no qual a imagem do fogo, “inflamando as massas e forjando a têmpera dos povos”, ocupava uma posição central.

II – O homem dos mil truques A Itala Film soube fazer bom uso da estética flamejante de D’Annunzio. E uma peça fundamental nessa empreitada foi o espanhol Segundo de Chomón, ex-diretor da companhia Pathé-Frères, fotógrafo, iluminador e experto em truques e pirotecnias. Chomón fora chamado à produtora de Pastrone em 1912, em seguida à realização de A queda de Troia. Foi só então que o piemontês despertou para a necessidade de ter consigo, na firma, um especialista em efeitos especiais: muito embora bem recebido nos Estados

162 O enredo arquitetado por D’Annunzio encerrava também uma forte carga ideológica, já que a Itália vinha de uma guerra imperialista com a Turquia. A vontade expansionista do país da bota (mas também de outros países europeus) figurou entre os motivos para a deflagração da I Guerra Mundial. 176 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Unidos, A queda de Troia atraíra críticas negativas naquele país, devido às suas muitas imperfeições técnicas. Um experto em fotografia do porte de Chomón figuraria como crucial, enfim, a produções cuja trama se apoiasse em visualidades fantásticas ou espetaculares. Como a que, naquele momento, andava pela cabeça de Pastrone. Cabíria, visão histórica do terceiro século antes de Cristo, estreou em abril de 1914. A despeito da complexa rede de esforços necessária à sua gênese, o filme teve a sua autoria integralmente atribuída a D’Annunzio, para a compreensão da época, responsável único pela sua realização. O escritor não se fez de rogado em alimentar tal crença, invocando-se em demiurgo do colosso, tendo sido necessários mais 50.000 francos para silenciar a explosão egoica do vate. A sua colaboração para o filme, no entanto, não foi além da redação de letreiros para imagens que, em boa parte, estavam rodadas antes de sua adesão ao projeto.163 Para uma película cujo grande trunfo é a visualidade espetacular, certamente mais decisiva foi a participação do truquista Chomón, que encontrou, em

163 Sánchez Vidal registra o episódio segundo o qual D’Annunzio teria escrito o verso “no lombo de seu cavalo branco” para determinada cena do filme, descartado em face de o cavalo da cena ser negro. D’Annunzio reagiu à recusa pedindo que rodassem a cena novamente ou que pintassem o cavalo de branco nos fotogramas. Recebeu como resposta, porém, a pergunta se não seria melhor simplesmente mudar seu verso, ao que D’Annunzio ripostou atirando sua pena contra a parede, deixando para outra ocasião a pérola verbal. (VIDAL. El cine de Chomón, p. 159) 177 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Cabíria, seu maior desafio e êxito profissional até aquele momento. A primeira participação de Chomón no filme foi como iluminador. Cabíria consistiu num marco em matéria de iluminação artificial na Itália, já que, antes dele, não era comum iluminar as encenações, que resultavam repletas de sombras imprevistas. Aqui, ao contrário, há planos em estúdio e à luz do dia de extrema limpidez visual. Para as cenas mais espetaculares, como a erupção do Etna e o sacrifício ao deus Moloch, Chomón utilizou doze lâmpadas de cem amperes, multiplicando o efeito luminoso mediante grandes biombos forrados com o papel de estanho que envolvia a película virgem vinda dos Estados Unidos. Com isso, produziu um claro-escuro de poderoso efeito dramático, numa iluminação precursora de filmes cuja enunciação visual tem a luz como elemento de protagonismo, conforme nota o historiador Nestor Almendros.164 Em sua versão original, Cabíria teria perto de três horas de duração. Algumas cenas se perderam ou foram suprimidas,165 no entanto, e a cópia hoje disponível conta com 126 minutos, divididos em cinco episódios, à maneira de uma ópera. O primeiro episódio mostra o cotidiano de família romana que vive à sombra do Etna, na Sicília, deleitada com seu mais novo membro, a

164 VIDAL. El cine de Chomón, p. 163. 165 Nos anos 1930, a censura de Mussolini vetou a cena em que a menina Cabíria aparece nua e erguida pelos braços de um sacerdote, tendo o fogaréu da estátua de Moloch por detrás. 178 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

pequena Cabíria. Ocorre a súbita eclosão daquele vulcão, causando vasta destruição e a separação de Cabíria de seu núcleo familiar. Chomón interveio nesta sequência para construir uma erupção de grande impacto, obtida através de três imagens combinadas numa só, por meio de sobreimpressões. A primeira imagem é a de explosões luminosas sobre um fundo negro, pois trata-se de uma cena noturna. A segunda é a do cone do vulcão, construído a partir de maquete idêntica ao Etna real e sobreimpressa ao fundo negro. A terceira imagem aparece em primeiro plano, sobreimpressa no canto direito, onde se veem centenas de figurantes fugindo do rio de lava. Nosenzo esclarece ter sido essa trucagem realizada por meio da truca, aparelho que permitia um maior controle da múltipla exposição, não sendo mais necessário voltar o filme na máquina como nos primeiros anos do cinema.166 Já nos anos pré-cinematógrafo, erupções vulcânicas integravam o cardápio regular de dioramas e lanternas mágicas. Tornaram-se frequentes também logo após o advento do cinema fotográfico, aparecendo em imagens que buscavam reconstituir eclosões célebres, como a do monte Pelee, na Martinica, em 1902. O próprio Chomón havia construído um vulcão em chamas para Excursion a Jupiter, filme de truques de 1909. À diferença dessas imagens, contudo, a erupção do Etna, em Cabíria, destaca-se pelo verismo, obtido graças a uma técnica superior. Associada à ferramenta da montagem, a explosão vista no filme é crível o bastante para ajustar-se

166

VIDAL. El cine de Chomón, p. 106. 179 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ao seu discurso narrativo, dentro do qual figura como um dado quase natural. Cabíria, como se disse, é um filme de transição, contendo muitos elementos do chamado cinema de atrações.167 Nesse sentido, procura apoiar-se em visualidades espetaculares, como a erupção mesma do Etna, para garantir a atenção do espectador. É o que se verifica também no segundo ato, quando, sequestrada pelos fenícios, a pequena Cabíria escapa de ser sacrificada ao deus Moloch. Para a sequência, Pastrone mandou construir um monstro de três olhos e enorme boca servindo de entrada para o templo da divindade cartaginesa. Além do templo de generosas proporções, o diretor ainda providenciou uma estátua zooantropomórfica de Moloch para o seu interior. Dotada de cabeça de touro, corpo humano e asas de pássaro, a estátua representava o Deus do “fogo purificante”, somente saciado quando lhe eram lançadas prendas vivas, em honra de Cartago. Assustador, o Moloch de Cabíria possuía uma abertura na barriga, por onde se introduziam crianças, em bizarras oferendas rituais. Chomón usou de labaredas, muita

167 Termo criado pelo historiador Tom Gunning para denominar o conjunto de práticas cinematográficas existente no período anterior à emergência do cinema narrativo, a partir de 1908. As principais considerações de Gunning acerca do cinema de atrações encontram-se no artigo The cinema of attractions: early film, its spectator and the avantgarde, publicado pela primeira vez na revista Wide Angle (1986) e republicado, com diversas correções, no livro Early Cinema: Space, frame, narrative. 180 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

fumaça e luz contrastada para emprestar uma atmosfera terrorífica a essas cenas, cujo efeito dramático se vê assim amplificado. Encomendada por Pastrone a um amigo maestro, a Sinfonia do fogo colaborava para galvanizar as sensações que presidem a sequência, numa fusão entre som e imagem muito eficaz para o universo simbólico do filme. 168 Cabíria é salva do sacrifício a Moloch por Fulvio Axilla, ajudado por seu escravo, o gigante Maciste. No filme, Maciste é interpretado por Bartolomeo Pagano, estivador analfabeto descoberto por Pastrone no porto de Gênova, onde era conhecido pela força extraordinária. Trata-se de um herói potente o bastante para entortar as barras de ferro da janela de uma prisão e para, sozinho, fazer girar a enorme pedra de um moinho, entre as muitas façanhas que perpetra. Ao fim e ao cabo, a figura do gigante consistiu num dos principais motivos pelos quais Cabíria terminou lembrado pelo público. E tal foi o sucesso da personagem, que Pastrone dedicou-lhe uma série de novos títulos, nos quais Maciste apareceria envolvido em trepidantes aventuras, repletas de demonstrações de força física. Cabíria traz, ainda, diversas situações baseadas em passagens históricas, ou supostamente históricas,

168 A Sinfonia del fuoco, de estilo wagneriano, é de autoria de Ildebrando Pizzetti, músico que teve receio de ver seu nome associado ao cinema. Recusou-se a escrever o restante das cerca de 600 páginas que lhe foram encomendadas para o filme, pois isto “desonraria seu nome”, como explicou em carta a D’Annunzio. Ver VIDAL. El cine de Chomón, p. 160. 181 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

tais como, no quarto episódio, a lenda segundo a qual o matemático Arquimedes teria conseguido deter o avanço de navios romanos por meio de um sistema de espelhos côncavos, capazes de fazer convergir raios solares ao casco daquelas embarcações. Chomón realizou esta sequência alternando planos de Arquimedes orientando os homens na manobra dos espelhos, a planos dos navios em chamas. O desastre é visto a partir de navio que queima ao ser atingido por um feixe de luz inserido na película através do truque da sobreimpressão. Para finalizar a sequência, há o naufrágio em miniatura dos navios romanos no mar de Siracusa, combinado à sobreimpressão das muralhas gregas em primeiro plano, de onde Arquimedes controla seus espelhos. Esse último truque, contudo, não parece muito convincente, pois, como referiu jornal da época, “[...] pode-se falsificar muita coisa, como montes e vulcões, mas não se pode falsificar o mar [...]”.169

III – “Cabíria movement” É impossível falar em Cabíria sem mencionar os seus muitos movimentos de câmera, de grande influência no período silencioso. Velho conhecido de Chomón, o travelling lateral havia sido usado pelo espanhol, em sua fase Pathé, em filmes como La vie et passion de Jesus Christ (Zecca/ Nonguet, 1905) e A galinha dos ovos de ouro (Gaston

169 NOSENZO. Manuale tecnico per visionari: Segundo de Chomón in Itália, p. 47. Do original em italiano: se si può falsificare ogni cosa, monti e vulcani compresi, no si può falsificare il mare. 182 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Velle, 1905), dentre outros. Em Cabíria, porém, o recurso é empregado de maneira mais sofisticada, integrandose à diegese. Aqui, a câmera parte de um plano geral e desloca-se lentamente para fixar-se num detalhe em particular. Como na cena em que Arquimedes pensa num meio de deter o avanço marítimo dos romanos. A tomada escrutiniza o laboratório do matemático, à medida que se aproxima para mostrá-lo às voltas com o problema dos espelhos côncavos. A câmera entra no laboratório, passa em revista o espaço e detém-se no rosto de Arquimedes. O espectador é convidado a “participar” da cena pelo olho da câmera, que penetra pelo interior do plano para focalizar a figura do matemático. Entrevistado por Georges Sadoul, Pastrone explicou o uso do recurso em Cabíria: “[...] mediante o carrello170 in avanti, fazia avançar a câmera obliquamente [...] em direção ao protagonista, isolando-o pouco a pouco da massa indistinta para em seguida trazêlo ao primeiro plano”.171 Usado 40 vezes na película, quase sempre com funções narrativas, o travelling desempenha um papel central em Cabíria. Pastrone buscava reconstituir a antiguidade romana de modo grandioso: templos de dimensões monumentais, esculturas cenográficas colossais e personagens transitando por esses cenários consistiram na grande preocupação do diretor ao elaborar o filme. Exibicionista, a empreitada não excluía que os cenários fossem efetivamente habitáveis, providência necessária

170 Carrinho, em português. 171 NOSENZO. Manuale tecnico per visionari: Segundo de Chomón in Itália, p. 70. 183 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

para tornar a história inteligível. Conciliar verossimilhança narrativa e exibicionismo: eis a difícil operação posta em prática em Cabíria. Um dos meios criados para chegar a isso foi conjugar a profundidade cenográfica das imagens à sua profundidade fotográfica. E o travelling era a solução perfeita para tanto: deslizando sobre trilhos, a câmera entrava cenário adentro, explorando a profundidade de campo da imagem. O procedimento superava, finalmente, os cenários pintados dos primeiros filmes: como nota Silvio Alovisio, tratava-se de um meio de vencer “a enganosa profundidade do fundo pintado (pesada herança do palco teatral) e construir cenografias tridimensionais, sem zonas proibidas”172. Os travellings narrativos, os truques ardilosos e a elaborada cenografia fizeram de Cabíria objeto de interesse de público, crítica e cineastas na Europa e do outro lado do Atlântico. Conta-se que, nos Estados Unidos, o diretor David W. Griffith aguardou com ansiedade a estreia do colosso italiano, tendo adquirido uma cópia da película para estudar suas técnicas e efeitos. Se não há comprovação sobre a compra dessa cópia, conforme o depoimento de Karl Brown, câmera de Griffith, o diretor teria tomado o primeiro trem com destino a São Francisco para, junto com sua equipe, comparecer à première de Cabíria.173 A admiração pelo filme de fato não foi negada por Griffith, e a influência de Cabíria ficou patente em títulos como Judith of Bethulia (1914) e Intolerance (1916).

172 TOFETTI. Pastrone em Turín o la Ópera Lírica en la época del automóvil, p. 89. 173 VIDAL. El cine de Chomón, p. 176. 184 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Esses longas-metragens griffithianos replicam não apenas o travelling, mas também a cenografia espetacular do filme. Particularmente em Intolerance, o travelling é visível no trecho que mostra a abertura das portas de Babilônia e o conflito entre Belshazzar e Ciro, rei da Pérsia. Com efeito, a Itala Film assumiu uma posição de vanguarda ao lançar um filme das proporções de Cabíria em âmbito internacional. O longa monumental colaborou para a difusão e afirmação de um formato cinematográfico àquela altura incomum nos Estados Unidos, onde vigorava o império dos filmes de um só rolo. Também seus movimentos de câmera causaram frisson, levando os norte-americanos a se perguntarem: “como fizeram isso?”. Diversos fatores colaboraram, enfim, para o sucesso de Cabíria nos Estados Unidos, onde o filme manteve-se em cartaz por cerca de um ano, sendo visto por cerca de 500 mil pessoas. Determinante para esse sucesso, sem dúvida, foram as novas técnicas empregadas por Chomón, com sua iluminação dramática, seus truques integrados à narrativa e seus “travellings estereoscópicos”, como os denominou Pastrone, elementos nada comuns ao cinema daquela altura.

IV – Conclusão O que dizer da participação de D’Annunzio em Cabíria? Foi sobretudo útil como ferramenta de marketing: Cabíria deveu parte de seu êxito nos Estados Unidos à assinatura do vate, cuja fama e amizades no meio artístico colaboraram

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para estimular as exibições da película naquele país. Se houve um reparo ao colosso italiano, entretanto, foi precisamente quanto aos letreiros de D’Annunzio. Seus versos pomposos, rebuscados, cheios de símbolos e alegorias verbais revelaram-se pouco ajustados a um filme que funcionaria melhor se submetido a uma narratividade mais estrita. Longos e tediosos, os letreiros não contribuem, de fato, para o melhor entendimento dos acontecimentos vistos na película. A trama intrincada, composta de diferentes linhas de ação enoveladas entre si também colabora pouco para uma imersão sem traumas do espectador na diegese narrativa. Homem de letras, D’Annunzio, enfim, nem mesmo se dava ao trabalho de assistir aos filmes que levavam a sua assinatura.174 Passava ao largo das especificidades da linguagem em gestação no cinema, tendo declarado, certa vez: “Deixei que despedaçassem em filmes alguns de meus dramas mais conhecidos para comprar carne fresca para minhas lebres”.175 Griffith foi um dos que perceberam a fragilidade do roteiro de Cabíria, relevada pelo diretor em nome da grandeza plástica do filme. Nisso foi ecoado pelo próprio Pastrone, que, em carta a D’Annunzio, admitiu ver, na película, “uma autêntica salada entre Aníbal, Escipião, Cirta e a rainha de Cartago”.176 A narração, de qualquer modo, não parece ter sido a preocupação central dos

174 D’Annunzio teve cinco de seus romances adaptados para o cinema. 175 VIDAL. El cine de Chomón, p. 158-159. 176 VIDAL. El cine de Chomón, p. 180. 186 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

criadores de Cabíria, como souberam reconhecer Griffith e Pastrone, mais interessados na visualidade espetacular do filme do que em sua história confusa. Pode-se afirmar, nesse sentido, que a poesia torneada de D’Annunzio não se desviava tanto assim da empresa levada a cabo pelo restante do colosso. O tonitruante roteiro dannunziano sintonizava-se com a espetacularidade da cenografia, também carregada de exibicionismo, para resultar neste filme híbrido, impuro, meio narração, meio espetáculo, típico daquele cinema em fase de transição. Se a adição literária resulta quase num elemento de subtração para a narrativa de Cabíria, a engenharia fotográfica do filme surge mais afinada com os fundamentos do cinema que então se formulava. As maquetes, a iluminação, os truques e os movimentos de câmera aparecem em grande medida ajustados à diegese da película, emprestando plausibilidade ao seu discurso narrativo. Embora não isenta de momentos de puro espetáculo, a metalurgia fotográfica posta em prática no filme por Chomón auxilia enormemente a condução da trama de Cabíria, permitindo a absorção diegética do espectador em seus momentos cruciais. E não podia ser diferente: Chomón ingressara na Itala Film com cerca de 200 filmes na bagagem. Sabia que o cinema passava por profundas mudanças e procurava adaptar-se aos novos tempos. Confrontado com o regime narrativo que então emergia, cercava-se de todos os recursos para galvanizar a narração das películas em que trabalhava. Operava, com isso, a transformação do truque como um fim em

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si mesmo, típico dos filmes dos primeiros anos, em um procedimento “invisível”, plenamente integrado à narrativa cinematográfica. É de se mencionar o juízo que o autor de Vita laboriosa e geniale di Giovanni Pastrone (suspeita-se seja o próprio Pastrone) logrou fazer sobre o colosso italiano: “Cabíria foi um luxuoso catálogo de profecias cinematográficas, já que em seus fotogramas ficou registrado todo o futuro programa do cinema” (ibidem). Hiperbólico na segunda parte, esse juízo é verdadeiro se tomado em sua primeira proposição. Maquetes perfeitas, truques “invisíveis”, luz artificial aplicada em grande escala, Cabíria é, de fato, um “luxuoso catálogo de profecias cinematográficas”. Com algumas de suas melhores páginas escritas pela câmera do “imperador dos truques”, Segundo de Chomón.

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NARRATIVIDADE E TEMPORALIDADE: O SI-MESMO COMO UM TEXTO

João B. Botton

Este ensaio, em primeiro lugar, apresenta a tese geral desenvolvida por Paul Ricoeur em Tempo e narrativa III (1985) e em O si mesmo como um outro (1990) de que o corolário das relações de esclarecimento entre narratividade e temporalidade é uma identidade narrativa. Em segundo lugar apresenta duas objeções a essa tese. Essas objeções já estão contidas em um artigo publicado por Ricoeur em 1982 intitulado Entre tempo e narrativa: concordância / discordância. Elas se referem cada uma a um aspecto diferente da relação entre narratividade e experiência vivida, no entanto, nós às apresentamos aqui em um quadro argumentativo ligeiramente diferente do vislumbrado por Ricoeur. Buscamos com isso encontrar conclusões um pouco mais problemáticas do que as dele. Antes de mais é preciso esclarecer o modo pelo qual a questão da identidade está aqui sendo tomada: a perspectiva formal sobre a identidade, aquela que busca os critérios de identificação entre duas ocorrências distintas de uma mesma coisa, está engastada em uma problemática existencial. Do seguinte modo: todos os sentidos “formais” de uso do conceito de identidade, a saber,

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identidade numérica, identidade qualitativa, identidade como continuidade e como princípio de permanência se enxertam na problemática do reconhecimento reflexivo, ou melhor, do sentido dos atos pelos quais o que está em jogo na identificação, um si-mesmo, a pessoa propriamente dita, é capaz de se dar à identificação e de reconhecer-se como a mesma. O que fica implícito aqui é que se esta conferindo à pessoa um estatuto ontológico radicalmente distinto do da coisa e que esse estatuto depende do seu modo próprio de temporalização: poder-se-ia dizer que as coisa simplesmente duram e perecem enquanto a pessoa se faz ela própria temporalidade, por isso a questão da identidade aqui envolve muito mais do que um conjunto de operações de identificação ou individuação. É precisamente a má compreensão da questão da temporalidade - má compreensão que tendeu a ignorar a diferença entre o tempo da coisa e a temporalidade da pessoa, forçando à redução desta àquele - o motivo da necessidade de formulação de um conceito de identidade em termos narrativos. Pois a operação narrativa mostra uma dimensão do tempo que está para além do cronológico, ou cronométrico, embora não lhe seja alheia. Amiúde, é em torno do tempo que giram todos os problemas relativos à identidade: o transcurso do tempo como fator de dessemelhança, de alteração, de transformação, de corrupção, como um desafio às operações de identificação. Por isso a tese que sustenta a teoria da identidade narrativa é a de que as operações

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de estruturação narrativa correspondem às estruturas da temporalidade e nessa medida respondem às aporias inerentes à sua organização. Em dois níveis diferentes: 1) o tempo tomado como o conjunto sucessivo de instantes não constitui problema se nossos relógios funcionam, mas a temporalidade se torna problemática quando se trata de coordenar de modo inteligível, ou seja, de modo significativo para nós, as três dimensões temporais que constituem a experiência do tempo: passado, presente e futuro - a psicanálise investiga à porfia as consequências dessa dificuldade sob a forma da patologia psíquica; 2) em um segundo nível, o próprio tempo objetivo, tornase problemático quando se trata de coordenar a vivência intima do tempo com o tempo do relógio, quando se trata de coordenar o sentido do fluxo do tempo, do passado ao futuro através do presente, com a ocorrência objetiva dos fenômenos determinados pelos expedientes de datação que nos permitem “contar o tempo”. Ou seja, a experiência intima do tempo extrapola a cronologia temporal e por vezes até a abole, e, em sentido inverso, os aspectos cronológicos do tempo dificilmente se coordenam completamente à experiência da vivencia temporal. A história da filosofia mostra isso muito bem: da Física de Aristóteles às Lições sobre a consciência intima do tempo de Husser, a especulação que se ocupou de uma das problemáticas só o pode fazer por exclusão expressa da outra. Mesmo Heidegger ao pretender dar conta da experiência integral do tempo só o pode fazer relegando o tempo do calendário ao inautêntico. É o que pretende

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mostrar o terceiro e mais volumoso tomo de Tempo e Narativa (1985). É a propósito do segundo nível de aporicidade, mas pela articulação do primeiro, que a questão da identidade em termos narrativos ganha lugar. Ela surge como a grande solução aos paradoxos da temporalidade ao coordenar as duas perspectivas da especulação que ficavam até então desarranjadas de um ponto de vista teórico: ao versar sobre um personagem a narração faz convergir simultaneamente os elementos objetiváveis que instituem a fixação da ação em uma ordem de sucessão e os elementos de sentido que configuram a narração em uma totalidade inteligível; pela concorrência desses elementos, o personagem extrai sua identidade ao longo da narração. E é precisamente esse poder de composição atribuído à narração que permite conceber a questão da identidade ao mesmo tempo do ponto de vista das operações de identificação de uma entidade em suas ocorrências distintas e da perspectiva do sentido da totalidade temporal que a duração dessas ocorrências desenha. Primeira objeção O leitor atento poderia objetar que, se a tentativa de solução oferecida por Ricoeur aos impasses do problema da identidade faz sentido e tem alguma relevância, só o faz na medida em que visa a um modelo narrativo específico, um modelo, aliás, pouco interessante, o modelo em que a concordância triunfa de todo modo sobre a discordância

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e dispersão episódica: as crônicas nacionais em geral, a telenovela, os contos de fadas, enfim, todos os modos de narrar em que a identidade do personagem é mantida pela denegação calculada de todos os possíveis efeitos perturbadores. A identidade pessoal assim concebida não seria, então, outra coisa senão o efeito violento do artifício literário sobre a vida. Afinal, se se considera a infinita exploração das possibilidades de expedientes de narração, sobretudo na literatura que se fez depois de Kafka, o caso parece ser o contrario do pretendido pela tese de Ricoeur. Parece confirmada exatamente a fragilidade e mesmo a impossibilidade da identidade em sentido forte. Essas formas narrativas que perderam a ingenuidade da necessidade de coesão do sentido efetivamente parecem corresponder e mesmo multiplicar os paradoxos da temporalidade antes que resolvê-los. Mas a questão é mais sutil, não se trata de dizer que em todo caso a questão da identidade da pessoa ou do personagem possa ou deva comportar uma resposta positiva, trata-se, no entanto, de dizer que em todo caso essa questão é de importância capital, ainda que por vezes fique sem resposta. Seria inclusive possível advogar que grande parte do nosso interesse pelas narrativas que escapam ao controle da coesão reside na imposição latente dessa questão sob o modo problemático. O que a narração faz, muito mais do que simplesmente responder pela identidade de um personagem determinado é problematizar a questão como tal pelo exercício de composição variável entre as duas

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dimensões de aporicidade da temporalidade e as duas componentes da questão da identidade: compondo a problemática da distensão temporal e a problemática da coordenação da vivencia do tempo com a temporalidade objetificada a narração toma conjuntamente e faz indissociáveis a problemática do sentido da identidade. Afinal, quando se pergunta: “Quem é o personagem fulano de tal?”, o que se busca é mais do que uma descrição definida como: “o homem que combatia moinhos de vento”. Busca-se, antes, as características que ligam o nome próprio à uma existência singular. Por isso a resposta à pergunta depende da leitura da obra inteira que exibe essa existência singular como totalidade temporal. O que Ricoeur pretende pelos recursos de esclarecimento que a narração aporta a nossa confusa experiência do tempo é mostrar que a despeito de certo modo de pensar cotidiano, uma e outra das problemáticas que estão ligadas a identidade não podem ficar isoladas, sob pena de não corresponder ao estatuto ontológico da pessoa. É aqui que os modelos narrativos que mais se afastam dos paradigmas da coesão e inteligibilidade se tornam interessantes para a questão da identidade. É certo que esses casos impressionantes em que o personagem parece reduzido à figura negativa da subjetividade pertencem mais ao imaginário literário, aqui a serviço da filosofia, do que à experiência viva. No entanto, isso não significa conferir-lhes somente uma importância heurística; longe disso, eles são, antes, um expediente em função

195 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

da autêntica compreensão de si, desde que revelam a ambiguidade da relação de “posse” do que, em cada caso, nos é considerado mais próprio, as “qualidades” pelas quais nos são adscritas características identificantes. Em outras palavras, o que essa possibilidade de variação extrema no regime da composição que um momento de desapossamento de si é essencial à autêntica compreensão de si.177 O que essas experiências literárias por vezes aterradoras sobre a identidade fazem é um convite a narrar-mo-nos de modo diferente, e, portanto, a nos compreendermos diferentemente, alertando para o risco da compreensão egocêntrica ou alienante de si. Segunda objeção Mas o leitor atento poderia objetar aqui outra vez: seja; que os modelos menos configurados de narração nos sirvam de advertência contra a violência da configuração. No entanto, ao exaltarmos e cultivarmos modos menos configurados não corremos o risco de sucumbir à sedução do informe e ao niilismo da ausência de sentido constitutivo, posturas tão características de uma cultura como a nossa que não hesita em reduzir a pessoa à coisa manipulável? Essa objeção nos parece sensivelmente mais séria, mas pode-se tentar superá-la do seguinte modo: pode-se, com efeito, pretender que mesmo quando o que a narração nos mostra é “o nada imaginado do si”, naquilo que Ricoeur chamou uma apreensão apofática do si, a

177

RICOEUR. Soi-même comme un autre, p. 166.

196 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

identidade não pode permanecer muito tempo sob o modo negativo. 178 A aposta de Ricoeur é a de que só é praticável o fracasso de uma sucessão indefinida de tentativas de identificação,179 a impossibilidade total da identidade não é em última instância realizável. Daí o fato de as narrativas ditas sobre a perda de identidade coincidirem com a crise da conclusão narrativa.180 Desde que um final assinalável envia inelutavelmente a narração à configuração, a perspectiva da conclusão subordina novamente o personagem à trama que encerra a totalidade na qual ele se reconhece. Poderse-ia dizer que, de alguma forma, mesmo as narrativas mais avessas à concordância, precisamente as que desnudam a identidade do personagem fazendo dele um homem sem qualidades continuam a gerar alguma concordância. Afinal, é de notar que o próprio personagem de Musil ao longo da trama de uma obra volumosa a ponto de ultrapassar os limites antropológicos da memória - e que, diga-se de passagem, apesar disso resultou inacabada seja identificado pelos próprios componentes dessa trama como “homem sem qualidades”, e inclusive reconheça a si mesmo nesse epíteto.181 Assim, se nas narrativas que desnudam a identidade do personagem, prevalece o episódico, o discordante, é em favor de uma estruturação mais profunda, não apreciável à primeira vista, mas de todo modo significativa. O jogo da

178 179 180

RICOEUR. Soi-même comme un autre, p. 197-198. RICOEUR. Soi-même comme un autre, 197. ver RICOEUR. Soi-même comme un autre, p, 177-

181

ver MUSIL, 2006, p. 171-174

178.

197 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

amarelinha de Cortazar dá um exemplo considerável da dispersão a que o episódico pode chegar, nele, a própria ordem dos episódios parece abolida, o leitor é convidado a refazê-la quase à bel prazer. No entanto, mesmo essas experiências extremas no campo literário precisam resguardar, ainda que em mínima medida, a tensão com o concordante, sob pena de abolir toda e qualquer possibilidade de inteligibilidade. Pois, no triunfo absoluto da discordância não há expectativa sob a qual a história possa avançar. É em favor de uma estruturação mais sutil, portanto, que uma obra como O jogo da Amarelinha consegue explorar os recursos de sentido do efeito de discordância. É o que a torna profundamente intrigante ao leitor atento a sua sutileza, embora enfadonha ou pueril, como por vezes se tem dito, ao leitor desavisado dessa sutileza. Mas essas considerações altamente exploratórias não afastam totalmente a objeção de que as narrativas menos configuradas nos precipitem no abismo do sem sentido, elas apenas mostram que esse não-sentido não é o puro absurdo do qual nada se pode falar. Pelo contrário, a perplexidade da ausência de sentido da muito o que pensar, a ponto de permitir especular se essa perplexidade que se apresenta como ausência não é antes excesso de sentido. O que em todo caso, não é ainda suficiente. Outro modo de evitar o perigo de sucumbir à total ausencia de sentido é encontrar o ponto nodal que distingue a narrativa e a vida ela mesma. Seria possível argumentar, desse modo, que na vida, diferentemente da

198 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

narrativa, a iniciativa capaz de instaurar um novo curso de ação compromete o indivíduo com as consequências dessa ação e o engaja em um curso de vida, fixando a identidade. Distingue-se assim o componente ético e o componente narrativo da identidade e faz-se recair sobre o primeiro a força estabilizadora da identidade quando nos faltam os recursos da configuração. Tendemos a aceitar esse tipo de argumentação quanto menos estivermos dispostos a identificar a vida aos expedientes ficcionais de configuração. No entanto, mais uma vez, as variações imaginativas que experimentamos na literatura põem a prova os modelos de inteligibilidade que adotamos para a vida. Na literatura ao menos, onde a hipótese da dissolução do sujeito é tornada pensável, o apagamento de si parece ser paralelo à debilidade do poder de engajamento moral. Na obra de Musil, por exemplo, somente vê-se o “início de uma moral do homem sem qualidades”,182 à medida que se sucedem as tentativas de Ulrich tornar-se um homem com qualidades, em contrapartida Ulrich passa a se acostumar com a falta de unidade da moral ao aceitar-se um homem sem qualidades. A dissolução da identidade do personagem de Musil parece em tudo paralela à dissolução de sua capacidade de engajamento em um curso de ação. E não poderíamos dizer o mesmo de Oliveira, o argentino que Cortazar faz errar indefinidamente em Paris? Afinal, por que meios nos sentiríamos moralmente engajados se não

182

MUSIL, 2006, p. 55

199 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

supuséssemos de antemão a validade de sentido de um curso de ação escolhido. Notamos que, na literatura, a totalidade de sentido desenhada por uma trama narrativa depende da perspectiva dos finais que lançam luz sobre a inteligibilidade da obra como um todo e que por isso a crise de identidade do personagem coincide com a crise dos finais narrativos. E não será assim também em relação à vida, cujo único final possível é a morte, avessa a todo sentido, exceto para o homem de fé? Mas é a despeito dessa perplexidade, ou melhor, é precisamente em função da perplexidade que a imaginação narrativa se faz instrutiva, pois se ela nem sempre pode nos oferecer resposta segura a proposito de identidade, ela nos incita a não parar de refigurar a nossa experiência da temporalidade e re-configurar a compreensão que temos sobre nós mesmos. Se a obra de Ricoeur não consegue dar conta de todas as questões que ela própria suscita, essa parece ao menos ser a sua grande intuição.

200 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Referências RICOEUR, Paul. Entre temps et récit: concorde/discorde. In: RICOEUR, Paul et al. Recherches sur la philosophie et le langage. Cahier du groupe de recherches sur la philosophie et le langage de l’Université de Grenoble. Paris: Vrin, 1982. v. 2. RICOEUR, Paul. Temps et récit III: Le temps raconté. Paris: Seuil, 1985. RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo: Papirus, 1991 RICOEUR, Paul. Entre tempo e narrativa: concordância/ discordância. Kriterion. Tradução de João Batista Botton, Belo Horizonte, v. 53, n. 125, 2012. Disponível em:

201 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

LITERATURA E MILITÂNCIA: O ESCRITOR BRASILEIRO E SEU OFÍCIO EM SOCIEDADE NAS DÉCADAS DE 1930-1950

Nathalia de Aguiar Ferreira Campos

HOMO FABER X HOMO CONTEMPLATIVUS “Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma / e que você não pode vender no mercado / como, por exemplo, o coração verde / dos pássaros / serve pra poesia”.183 Para Manoel de Barros, é do reino da poesia – e, creio, da arte de modo geral – tudo o que no mundo objetivo foi descartado como sem finalidade, por não ser comercializável ou aproveitável em qualquer outro nível utilitário. Esse parece ser um dos aspectos a primeiro definir o artista: sua especial afeição por aquilo que é sem valor material ou útil, ou talvez, mais precisamente, sua atitude diante de todas as coisas, que não é a de atribuir utilidade ou funcionalidade a elas, mas de contemplá-las, e esse estar diante delas constitui, por excelência, o seu papel. Como na fábula da cigarra e da formiga, em que a primeira, ociosa, passa seus dias a cantar, e a

183

BARROS. Matéria de Poesia, p. 12 202

A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

segunda, obreira, aprovisiona alimento para o inverno, o artista é – como se convencionou entendê-lo – aquele que, impenitentemente, ocupa-se da beleza, enquanto o homem do mundo, o burguês civil e tributável, está inscrito na ética capitalista do trabalho e movimenta a engrenagem econômica. Ambos, homem prático e homem de contemplação entesouram capital. O primeiro, monetário, quantificável; o segundo, estético, imponderável. O que os distingue fundamentalmente está associado ao que, para Olavo de Carvalho, é expresso pela antinomia theoria X práxis, referentes à atitude de cada uma frente a seu objeto. Enquanto a theoria vê no objeto sua essência, ou arquétipo, à qual subjazem inúmeras possibilidades (exemplo: o arquétipo de mesa pode realizar-se em uma mesa de mármore, madeira, vidro etc.), a práxis prioriza a forma imediata assumida pelo objeto, excluindo todas as outras. Mais importante, “a theoria se interessa pelo que um ente é em si”, na sua integridade ontológica, de maneira que ele não é mero meio, mas seu fim. A práxis, em contraparte, “se interessa pelo que ele não é”, ao buscar transformá-lo em outra coisa, destinada ao uso.184 Em outras palavras, a theoria contempla o objeto, de maneira filosófica, já que busca captar sua essência; a práxis, por sua vez, quer transformá-lo em utilidade. Por exemplo, a atitude teorética apreciaria a flor pelo que é, seu encanto, cor e perfume; a prática a converteria em cosmético. A distinção entre theoria e práxis está no centro do

184

CARVALHO. O jardim das aflições, p. 112. 203 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

comentário que Carvalho faz para rebater o posicionamento de Hannah Arendt em A condição humana. Ao definir trabalho – transformação do mundo que corresponde à necessidade de adequá-lo às necessidades que transcendem a dimensão puramente biológica (labor) –, a filósofa considera o artista como “a forma mais alta”, por assim dizer, daquilo que chama homo faber, pois, para ela, o que resulta do ofício artístico não exige consumo imediato, ou seja, é perene, resistente ao tempo: Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens, há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade e que, ademais, por serem únicos, não são intercambiáveis, e portanto não são passíveis de igualação através de um denominador comum como o dinheiro; se expostos no mercado de trocas., só podem ser apreçados arbitrariamente. Além disso, o devido relacionamento do homem com uma obra de arte não é “usá-la”; pelo contrário, ela deve ser cuidadosamente isolada de todo o contexto dos objetos comuns para que possa galgar o seu lugar devido no mundo. [...] os homens que agem e falam precisam da ajuda do homo faber em sua mais alta capacidade, isto é, a ajuda do artista, de poetas e historiógrafos, de escritores e construtores de monumentos, pois, sem eles, o único produto de sua atividade, a história que eles vivem e

204 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

encenam não poderia sobreviver.185

Olavo de Carvalho então, ao refutar essa ideia, argumenta que se a manifestação artística é o primado da ideia, da busca da essência pelo estado de contemplação filosófica – a theoria –, o artista jamais poderá atender por homo faber. “A ação produz apenas transformação”,186 e tomar o artista como homo faber significaria o desvirtuamento da atitude teorética em nome da demanda de transformação do objeto. Melhor dizendo, a estabilidade e a permanência que, como grifa Arendt, são valores que redundam do fazer artístico não podem ser consideradas como produto de uma versão elevada do homo faber, senão forma concretizada do saber teorético frente ao mundo problemático sobre o qual se debruça. A práxis, por sua vez, conceito incorporado pelo marxismo para opor-se a uma visão interpretativa da filosofia clássica, dentro de uma alegada improficuidade do empenho meramente contemplativo, vem ao encontro de uma defesa da ação política, de modo que o produto da reflexão seja aplicado a serviço da transformação do mundo. Exigir do homem que se consagra ao exercício teorético que dê a seu pensamento valor participante na esfera sociopolítica convida a pôr em discussão o papel do artista, dessa vez, inserido em um meio e em uma contingência histórica. Interessa-me, no presente artigo, a figura do escritor e a situação da literatura diante da demanda de engajamento político e de meditação acerca

185 186

ARENDT. A condição humana, p. 180, 187 CARVALHO. O jardim das aflições, p. 112. 205 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

da realidade externa. Incumbe à literatura radiografá-la? Enquanto expressão artística, deve ela arrogar-se o direito de ser inútil, servindo tão somente à beleza e voltandose para dentro de si mesma, de maneira a funcionar precisamente como contraponto a uma sociedade que exige produção? O que define, em primeira instância, o ser escritor – sacerdócio, missão ou vocação estética e imaginativa? Qual lugar corresponde a esse sujeito em sociedade, entre a necessidade – biológica – do sustento pessoal e o imperativo – metafísico – de escrever? Para empreender tal análise, lançarei foco sobre o âmbito brasileiro, em que terá especial relevo a trajetória de Mário de Andrade, cujo notável compromisso com um projeto coletivo de cultura dificulta, não raro, sua atuação como escritor. Tal compromisso parece ter inviabilizado a realização daquela que seria sua tão sonhada “obra-prima”, como revelam trechos significativos de sua correspondência pessoal. Nela, o escritor em Mário de Andrade deitará, com grande entusiasmo, suas altas ambições para a literatura, muitas das quais se concretizaram em projetos frustrados. É o caso da ópera-coral inacabada Café, escrita entre 1933 e 1942, e de Quatro pessoas, tentativa de romance psicológico iniciada em 1938 e interrompida em 1943. Esta última merecerá comentário em item a seguir.

ESCREVER X TRABALHAR “Não respondi antes, questão de doença que não mata mas maltrata. Me obrigaram a ficar imóvel, imagine!

206 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Agora mesmo estou estendido e por isso que escrevendo a lápis. Só me levanto mesmo por causa de alguma lição mais bem remunerada. Estou carecendo de arames pra pagar o médico... Então me levanto, ganho um pouco e zaz! cama outra vez...”187

Arriscaria dizer que aquilo que a filosofia verificou por meio da oposição entre theoria e práxis está presente, no senso comum, com a corrente associação que se faz entre, de um lado, arte e deleite, êxtase, diversão e liberdade, ou inconformismo; e de outro, trabalho e desprazer, repetição, dever e privação da liberdade, ou institucionalização. O fato de relacionarmos, com tanta naturalidade, o esforço intelectual/artístico – produção de pensamento e valor simbólico – e o trabalho remunerado – produção de ação e capital – como frontalmente opostos, é reflexo de uma cultura que privilegia a práxis, que, apropriada pelo marxismo, compreende o homem como um ser capaz de trabalhar e desenvolver a produtividade do trabalho, de maneira a, assim, diferenciar-se dos demais animais e alcançar o progresso. Tal visão do homem, baseada numa concepção materialista da história e na luta de classes como força motriz da economia, impele, sobretudo, a que esse seja mensurado segundo a cessão de sua força de trabalho, para a qual recebe, das mãos do capitalista, ou detentor dos meios de produção, um salário. Assim enquadrado, esse homem passa a ser definido como peça da engrenagem

187

ANDRADE. Carta de 26 de novembro de 1925. 207 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

capitalista, que produz a mercadoria em troca de capital. Para Marx, o trabalho se incorpora ao sujeito.188 Necessário se faz, a esta altura, esclarecer que tais apressadas associações – de um lado, theoria e arte; artista e capital estético; fazer artístico e liberdade; e, de outro, práxis e dever; homem de ação e capital monetário; trabalho e obrigação – têm o simplismo próprio das generalizações. A elas escapa que a teoria é também regra, dever – a exemplo do filósofo que entende seu trabalho como o mais profundo dever moral – e que prática também pode trazer êxtase e alegria – veja-se o músico que toca ou o atleta que faz o gol. O que se propõe, por ora, não é corroborar com as distinções estanques entre theoria e homem de contemplação, práxis e homem de ação, mas perceber em que medida tais arquétipos, nos casos a serem analisados, caminham ou não juntos. Se a tônica do artista – o escritor, dentro do que aqui interessa – não é ser homem de ação, não estar, portanto, a serviço tão somente da produção de capital financeiro, onde situá-lo socialmente, como homem biológico e portador das mesmas necessidades vitais? Sujeito que se propõe a viver para e do intelecto, ele, naturalmente, não está dispensado de ser homem de carne e osso, que necessita comer, vestir-se, dar sustento à sua família e mesmo investir em sua formação cultural por meio dos livros, viagens e atividades culturais que deverão nutrila. Se produzir beleza e conhecimento é algo que, por princípio, o insere no avesso na máquina do mundo, como

188

ARENDT. A condição humana, p. 110 208 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ele sobreviverá? Para os escritores brasileiros ativos ao longo das décadas de 1930 a 1950, período, não por acaso, em que a doutrina do realismo socialista está em voga, esse é o dilema fundamental. O segmento, além de lidar com o conflito entre a necessidade do ganha-pão e o compromisso com a escrita, vê-se ainda premido diante da demanda de militar tendo a literatura por instrumento, ou fazer da palavra uma arma. É imprescindível assinalar que, nesse momento, a neófita literatura brasileira ainda reclama, com timidez, uma maturidade estética e, sobretudo, a consolidação de um caráter próprio, que só poderá nascer em uma situação de independência das pressões externas por explicar e pensar o Brasil, suas contradições e arestas em nível histórico, social, político e cultural. A bem dizer, se o país ainda claudicava na superação do estatuto colonial, sendo a modernidade ainda um projeto longe da conclusão, como reivindicar uma literatura diferente, isto é, segura e livre? Defendo, por ora, a hipótese de que um país jovem, ainda inteiramente por fazer, com identidade em estado larval, crivado de incoerências e indefinições, passava, em tal momento, por uma fase de decisiva transição, de modo que exigir que a literatura e todo o dispositivo literário ostentassem segurança e clareza de suas feições e de seu papel apresentava-se ainda pouco razoável. Outra hipótese, a reforçar a primeira, pode ser extraída do pensamento do Machado de Assis crítico, em seu célebre texto “Instinto de nacionalidade”. O escritor denuncia a escassa prática de gêneros como filosofia,

209 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

linguística, crítica histórica e alta política no Brasil, com, de outro lado, o farto cultivo do romance e da poesia lírica,189 uma assimetria possivelmente reveladora da escassez de lugares de reflexão no país a respeito de temas formadores da cultura, em que está incluído o próprio Brasil. Assim, argumento que restava ao romance – estimado no Brasil como a forma literária por excelência, ou a própria literatura – a tarefa de meditar sobre o país, refletir a respeito de sua formação histórica, conjeturar os rumos futuros, além de apontar as feridas da sociedade. Para Silviano Santiago, a necessidade de pensar o Brasil, de formar a identidade nacional e corrigir a realidade estorva assinaladamente a liberdade literária: O escritor dos anos 1930, ao menosprezar os argumentos da interpretação modernista como sendo orientados pelo éthos cultural e ao fazer intervir a análise marxista na compreensão do processo histórico brasileiro, necessariamente pequena e tardia da imensa História da humanidade – o escritor dos anos 1930, repito, volta ao caminho trilhado por uma política universalista radical, agora culturalmente centrada no materialismo histórico. A essa análise recorre ele tanto para a avaliação do passado nacional, quanto para avançar um ideário utópico que deve pôr fim à injustiça econômica e social no país e no mundo. A produção artística deixa de ser fermento inaugural do multiculturalismo, a

189

ASSIS. Instinto de nacionalidade, p. 136. 210 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

serviço da especulação política e da subversão estética, e passa a vir atrelada à crítica da estrutura econômica da sociedade (na época inspirada pelo realismo, soprado de todos os lados da América Latina pelos congressos de literatura de inspiração soviética). Ao se impor como teleológica, a estética de fundamento marxista reprime a imaginação do escritor e, ao mesmo tempo, aguça e redireciona radicalmente o seu olhar para o espetáculo miserável da realidade brasileira [...]. Afirma Antonio Candido que, na literatura dos anos 1930, “é marcante a preponderância do problema sobre o personagem”.190

De volta ao tema do lugar do escritor – entenda-se, na esfera pública –, não é exagero afirmar que o homem de letras equilibra-se, como malabarista, entre salvaguardar a liberdade da escrita, o ideal estético que sociopoliticamente se exigia que praticasse, e as dificuldades de sobrevivência em um país onde as alternativas de trabalho para o escritor, sobretudo para o homem culto sem diploma superior, minguavam. Eram poucos os que podiam ostentar o título de “homens sem profissão”, como Oswald de Andrade, que tendo herdado vasta fortuna do pai, grande especulador urbano e vereador, pôde dedicar-se por inteiro à literatura e ao projeto vanguardista brasileiro de que foi protagonista. Os chamados “primos pobres”, protótipo encarnado, como

190 SANTIAGO. A atração do mundo: políticas de globalização e de identidade na moderna cultura brasileira. p. 30-31. (Grifos meus). 211 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

nenhum outro, por Mário de Andrade, herdeiros de fortunas dilapidadas que conservaram de sua origem ilustre apenas o sobrenome, viam-se obrigados a exercer atividade remunerada no “mercado de trabalho intelectual”,191 em que seu rico capital cultural podia ser aproveitado: na vida acadêmica, no jornalismo ou no funcionalismo público. A cooptação dos segmentos da elite pensante pelas esferas do poder perpassa toda a história da intelectualidade brasileira na modernidade e tem exemplos proeminentes pelas décadas de 1930 e 1940: Carlos Drummond de Andrade é chefe de gabinete de Gustavo Capanema, então ministro da Educação; Mário de Andrade dirige o Departamento de Cultura do Município de São Paulo e integra o Partido Democrático; Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Gilberto Freyre e Cecília Meireles escrevem para publicações governamentais durante o Estado Novo de Vargas; Otto Lara Rezende e Rubem Braga, para os grandes jornais do Rio de Janeiro. A proximidade do escritor com o aparelho do Estado cria, para o primeiro, a delicada problemática das concessões ideológicas: a aceitação de um cargo oficial significa, para muitos, trair suas convicções políticas e princípios mais arraigados e, sobretudo, o desvirtuamento de sua tarefa como escritor, ao assumir um papel – incômodo – que não é o de escrever. Silviano Santiago, em “O intelectual modernista revisitado”, salienta que Mário de Andrade mostrava-se amplamente consciente das

191 MICELI. Os intelectuais e a classe dirigente no Brasil (1920-1945), p. 118. 212 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

implicações, para o homem de letras, de seu rebaixamento a funcionário público. Ao aceitar a proposta do então prefeito de São Paulo, Fábio Prado, em 1935, para dirigir o recém-criado Departamento de Cultura do Município de São Paulo, o homem que já havia se “suicidado” na década de 1920 por praticar a chamada “arte de ação”, o faz mais uma vez.192 Bem longe do burocrata, o homem que escreve é aquele que colhe a vivência livre para retirar-se da cena a qualquer momento, de modo a ficar diante dela. Ele é o outsider, que, no empenho de observação e imaginação do qual se origina a escrita, deve dispor de tempo e liberdade; o homem inadequado, estranho, dissonante do meio que o cerca, e esse deslocamento é responsável por criar a situação necessária à realização da escrita. Estar no mundo, mas liberado do compromisso de posicionar-se na linha de frente da ação, eis o lugar ideal do escritor. É oportuno lembrar o conceito de contemporâneo de Giorgio Agamben, para ele atributo do verdadeiro poeta: A contemporaneidade [...] é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a este aderem perfeitamente, não são

192 SANTIAGO. O intelectual modernsita revisitado, p. 171. 213 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter o olhar fixo sobre ela.193

LITERATURA INCUMBIDA Diante da demanda de cooperar com a transformação social imposta à intelectualidade das décadas de 1930 e 1940, torna-se desafiador e controverso resguardar a liberdade da forma literária. Os escritores – e artista em geral – veem-se sob as chamadas “patrulhas ideológicas”, ou a pressão por conformar sua arte em um modelo consentido de expressão, colocado inteiramente a serviço da propaganda revolucionária socialista e da representação de novas formas da realidade, em que deveriam tomar parte ativa, para além da mera descrição da realidade presente (realismo). A estética do que viria a ser o chamado realismo socialista tem sua essência formulada por Fadeiev, um intelectual ligado ao Estado russo, em 1929. Nela, estabeleceu-se o princípio de que o artista deveria, a partir de então, “servir conscientemente à causa da transformação do mundo”.194 Foi somente em 1932, contudo, quando Stalin passa a impor um controle ainda mais ferrenho sobre a produção artística, que surge a expressão realismo socialista para designar a então

193 AGAMBEN. O que o contemporâneo?, p. 59. (Grifos do original). 194 FERNANDES. O povo é arte: as ilustrações em periódicos do PCB e o realismo socialista no Brasil, p. 1. 214 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

arte oficial. Entre os compromissos da doutrina estavam representar a classe trabalhadora, seus interesses e seu cotidiano, além de declarar a burguesia como inimiga do proletariado. A era soviética é exemplo histórico do fenômeno de diluição da esfera pública no Estado, o que significa que o exercício da crítica e da opinião pública se desconfigura no momento em que os veículos da imprensa são transformados em instrumentos de doutrinação ideológica. No Brasil, a exiguidade da esfera pública é também um problema histórico, do qual sobretudo intelectuais e homens opinião, como os presentemente abordados, nos deram testemunho. Herança da usurpação da esfera pública por interesses políticos é o sentimento de desterro que sempre assolou a nação brasileira, cerceada em seu direito de emitir pensamento crítico onde é próprio fazê-lo. As ideias do realismo socialista só chegam ao Brasil em 1945, através daquele que era o grande veículo de divulgação da ideologia comunista, a Tribuna Popular, que, mais tarde, em 1947, passou a chamar-se Imprensa Popular. Tal publicação estava ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), cujas realizações tinham a colaboração de artistas como Candido Portinari, Paulo Werneck e Clovis Graciano.195 O assédio da orientação doutrinária a todos os veículos e suportes artísticos passa a ser legitimado dentro do discurso utilitarista do realismo socialista, segundo o

195 FERNANDES. O povo é arte: as ilustrações em periódicos do PCB e o realismo socialista no Brasil, p. 1-3. 215 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

qual todos os membros e forças da sociedade deveriam prestar-se à satisfação das necessidades básicas do organismo social, o que, obviamente, não exclui a literatura e o escritor. Sob o argumento de ser despojada de utilidade e lugar, a literatura não poderia furtar-se à militância, sendo-lhe possível somente por meio desta recuperar sua função. É Sartre quem sustenta, sem qualquer pejo, em um dos textos capitais da defesa do realismo socialista, Que é literatura? (1948), que “um dos principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo”,196 afirmação capciosa, que apela de maneira subliminar para o discurso do bom, justo e nobre, frente à urgência da problemática social. Munido de exemplos de poderoso efeito, Sartre evoca ainda a tragédia do negro nos Estados Unidos, focalizada exemplarmente na obra do escritor Richard Wright, americano negro do Sul dos Estados Unidos. Advogado do engajamento, Sartre dispara: “Poderia R. Wright escrever sobre a Verdade, a Beleza e o Bem quando 90% dos negros do Sul estão privadiços do direito ao voto?”197 A consciência naturalmente responderia: “Não.” Medir o impacto de tal posicionamento é ficar diante, mais uma vez, de uma atribuição de função, em princípio, à arte literária. Se a literatura define-se, em primeiro lugar, como arte, e a arte de contar histórias inventadas, e o escritor, como o intérprete do reino da fantasia no mundo

196 197

SARTRE. Que é a literatura, p. 34. SARTRE. Que é a literatura, p. 72. 216 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

real, no referido momento histórico, a literatura é chamada a ser radiografia eficaz da realidade, e o escritor é um militante dotado de um influente instrumento. Novamente, Sartre faz-se ouvir, desta vez, a defender que o caráter artístico da obra, com o engajamento, permanece intacto e até mesmo se enriquece e diversifica em sua presença: A arte não perde nada com o engajamento; ao contrário. Assim como a física submente aos matemáticos novos problemas, que os obrigam a produzir uma simbologia nova, assim também as exigências sempre novas do social ou da metafísica obrigam o artista a descobrir nova língua e novas técnicas.198

O social iguala-se, para ele, a qualquer outro assunto, e se é forçoso que o escritor fale de alguma coisa, para além dos limites do purismo estético, por que o social estaria excluído das opções de que dispõe? Sartre deseja demonstrar, ao que parece, que o escritor não deixa de gozar de liberdade na então contingência histórica, mas, sendo o social imperioso, como poderá ele voltar-se para outro tema e fazer da literatura mero objeto autista de seu culto estético? Segundo o filósofo, a literatura não é deliberadamente mobilizada para a divulgação ideológica; antes, os responsáveis por ela são constrangidos ao reconhecimento da realidade social como a temática mais premente, e por isso legítima, de ser representada. A concepção de escritor apresentada por Sartre

198

SARTRE. Que é a literatura, p. 23. 217 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

interessa igualmente à justificativa do social como objeto da obra literária: “O escritor é mediador por excelência, e o seu engajamento é a mediação. Mas, se é verdade que se deve pedir contas à sua obra a partir da sua condição, é preciso lembrar ainda que a sua condição não é apenas a de um homem em geral, mas também, precisamente, a de um escritor.”199 “Mediador” sugere alguém que está no meio, a estabelecer ponte ou comunicação entre as partes envolvidas. Assim, o escritor seria o arauto ou porta-voz, aquele que tem a habilidade de articular o pensamento, da qual o homem comum não é possuidor, e de transmitilo a todos os segmentos da sociedade com finalidade transformadora. Nessa perspectiva, não surpreende acrescentar ser inconcebível que o ofício do escritor torne-se serviço remunerado, isto é, que o escritor se profissionalize. Para Sartre, a escrita, precisamente porque engajada, não pode ser senão gratuita e desinteressada; do contrário, ela representaria o triunfo da burguesia, o que “questiona a própria essência da literatura”.200 No que concerne ao universo brasileiro, para Sartre, os escritores enfrentariam duplo impasse: além da pressão pela prática engajada da literatura e o não lugar na esfera pública, ver-se-iam ainda diante do difícil impasse entre ceder aos ditames ideológicos e a necessidade de sustento, pois, ainda que satisfazendo a demanda da militância por meio da literatura, não lhes seria legítimo obter qualquer contrapartida financeira.

199 200

SARTRE. Que é a literatura, p. 62. SARTRE. Que é a literatura, p. 86. 218 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Contudo, parece-me justo e acertado fazer a defesa, não de uma arte alienada, refratária aos problemas de seu tempo-espaço, mas de sua liberdade para tratar, ou não, ou também, daquilo que corresponde à sua realidade visível e imediata. Não é acessório dizer que é a liberdade da arte, produto da atividade de contemplação, a assim defini-la, isto é, seu direito de desincumbir-se da ação em nome da criação. Ademais, eximindo-me por ora de um maior aprofundamento no mérito do que é arte, não se pode ignorar que ela se constitui, primordialmente, na invenção criativa e está a serviço da beleza e do prazer, além de comportar a expressão da subjetividade. A literatura, em particular, celebra a imaginação, sendo ficcional por excelência. Desse modo, ela está livre para transitar pelo infinito dos mundos, do absurdo, do insólito, do extraordinário. Desde que seja consistente internamente, ela tem vida independente do mundo exterior, de modo que nada lhe deve. O escritor pode, igualmente, tematizar sua época e sua aldeia, desde que, ao fazê-lo, se conserve artista, rejeitando abraçar o projeto messiânico, lançado sobre seus ombros, de curar as mazelas da realidade em que está inscrito como homem empírico, e não reprima sua índole imaginativa pressionado por circunstâncias políticas. Seu compromisso verdadeiro está em proporcionar prazer e entretenimento ao leitor, fazê-lo percorrer a rica paleta das emoções humanas e tornar crível a história que conta, seja ambientada no bairro onde mora ou em um planeta distante. Em se tratando de literatura, a única realidade

219 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

que importa é aquela a que as palavras dão vida e as personagens, corpo e voz. Exemplar dessa consciência sobre o papel da literatura em um escritor, no Brasil, é Carlos Drummond de Andrade. Na crônica “Divagações sobre as ilhas”, publicada na década de 1950 no Correio da Manhã, põe-se a salvo de eventuais acusações de covardia e abstenção ao escolher por seu lócus discursivo uma antiutópica ilha, meio-termo entre evasão e presença, longe o suficiente para preserválo das inconveniências exteriores, perto o bastante para que pudesse contemplar a paisagem circundante: Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto de latitude e longitude que, pondo-me a coberto dos ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização. De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável.201

A crônica, escrita pouco depois de o poeta haver abandonado o Comitê de Redação da Imprensa popular,

201

ANDRADE. Divagações sobre as ilhas, p. 3. 220 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

alguns meses depois de aceitar o convite de Luis Carlos Prestes para integrar o órgão, dispara alfinetadas aos “participantes” sociais – também eles habitantes de ilhas, saibam-no ou não –, num clima de manifesto pela liberdade do escritor e da literatura. É importante dizer que Drummond foi figura sempre ambígua do ponto de vista político – de um lado, autor de uma poesia com momentos de marcada sensibilidade social; de outro, chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema, de 1937 a 1945, durante a Ditadura Vargas. Além disso, foi também editor, na década de 1920, de um veículo de agremiação política conservador, o Minas Gerais, sob direção de Abílio Machado. Convicções políticas à parte, Drummond reagiu firmemente contra o controle empreendido pelo Partido Comunista sobre os cânones estéticos, atitude que demonstra a aversão do poeta pelos rebanhos, cuja habilidade de asfixiar a criação tantas vezes ameaçou os escritores brasileiros, quando não foi fatal.

MÁRIO DE ANDRADE: UM HOMEM CINDIDO “[...] pra meu espírito vale mais lançar uma biblioteca popular ou fazer uma pesquisa etnográfica do que escrever uma obra-prima.”202

Mário de Andrade pode ser considerado o representante máximo da contradição de que padecem os escritores brasileiros nas décadas de 1920 a 1945. O revolucionário

202

ANDRADE. Carta de 29 de outubro de 1926. 221 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

em Mário toma a peito a necessidade inalienável de mudar os rumos do Brasil, de maneira a inseri-lo no rol das nações modernas e civilizadas. Para tanto, entende ser imprescindível, primeiro, “descobrir o Brasil” – este então ilustre desconhecido dos próprios brasileiros – pelo caminho da cultura, entrando em contato com as expressões populares, as variedades linguísticas, manifestações folclóricas e todo o rico patrimônio inexplorado do “continente” Brasil. O projeto modernista de desbravamento do país – a viagem ao interior do Brasil – estava na base da aspiração estética dos modernos: engendrar uma arte e cultura que se relacionasse com a tradição europeia ao mesmo tempo que ostentasse uma cor genuinamente e inconfundivelmente brasileira, para além dos estereótipos do exotismo que sempre acompanharam qualquer referência ao Brasil. Do barroco mineiro, do carnaval carioca e do índio do Norte seria, pois, extraída essa quintessência. Mas, diante de uma ocupação tão nobre e absorvente, que espaço restava à expressão do escritor em Mário de Andrade? Naturalmente, como embaixador da modernidade e autoridade estética entre seus contemporâneos, Mário sofre com o “complexo do polígrafo”, ou o acúmulo de funções do “intelectual total”, cuja competência cultural abrange muitos domínios, “da literatura às belas-artes e à música, do folclore à etnografia e à história”.203

203 MICELI. Os intelectuais e a classe dirigente no Brasil (1920-1945), p. 25-26. 222 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Contudo, jamais escondeu que seu compromisso social vinha antes de sua realização como escritor. E mesmo a literatura é usada como instrumento para civilizar o Brasil, indagar a respeito de sua formação histórica, propor reflexão sociológica e elaborar teses que possivelmente contribuíssem para a compreensão de um país ainda incógnito para os seus. Não por acaso, ser o bastião cultural da modernidade no Brasil soma-se à necessidade do “arame” para viver. Mário buscou estar no exercício direto de seu ideal, sobretudo, quando ocupa o cargo de diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, no qual pôde desenvolver seu projeto em pesquisas folclóricas e colocar-se como formulador de políticas culturais que pretendiam atingir as camadas menos privilegiadas da sociedade. Além disso, faz militância estética nas inúmeras publicações periódicas para as quais contribuiu – que se encarregavam da divulgação do projeto modernista – e em sua correspondência pessoal. Ao adentrar o terreno franco da literatura, Mário não se destitui de projeto. O compromisso é evidentemente demasiado forte, mesmo quando o ficcionista entra cena. Como revelam duas de suas obras – a primeira, certamente a mais célebre e emblemática, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928) – e a segunda – Quatro pessoas (1938) –, a ficção marioandradina é tímida, isto é, não desobrigada da necessidade de pesquisar o caráter nacional, levanta um voo que se poderia dizer “rasante”, a despeito do sincero esforço de um aplicado Mário. Guardada a importância de Macunaíma para a

223 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

literatura brasileira, com a sintonia com a renovação estética empreendida pelas vanguardas, e para a consolidação do estatuto da modernidade no Brasil a partir de uma tomada de consciência da ausência de um caráter na cultura e no homem brasileiro, representada em Macunaíma, o livro não existe como ficção independente – ou “caso inventado”, nas palavras de Mário – e dificilmente pode ser lido de forma descontextualizada, sem evocar os muito particulares caminhos da formação histórica, social e cultural do Brasil. No processo de composição, Mário procedeu de modo a criar uma mistura de elementos culturais tipicamente brasileiros, ou seja, ligados às muitas e diversas tradições populares que povoam o celeiro cultural brasileiro, as quais ficaram silenciadas sob as tradições do homem branco. Para lograr o que pretendia com a obra, Mário se serve das inúmeras viagens que fez pelo Brasil, conforme o propósito modernista de desvendálo. Em carta de 1927 a Luís da Câmara Cascudo, o escritor assim explica o empreendimento: Não sei se te contei ou não mas em dezembro estive na fazenda dum tio e...escrevi um romance. Romance ou coisa que o valha, nem sei como se pode chamar aquilo. Em todo caso chama-se Macunaíma. É um herói taulipangue bastante cômico. Fiz com ele um livro que me parece não está rúim e sairá em janeiro ou adiante, do ano que vem. Minha intenção foi esta: aproveitar no máximo possível lendas tradições costumes frases feitas etc. brasileiros. E tudo debaixo dum caráter

224 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

quase sempre lendário porém como lenda de índio e negro. O livro quase que não tem nenhum caso inventado por mim, tudo são lendas que relato. Só uma descrição de macumba carioca, uma carta escrita por Macunaíma e uns dois ou três passos do livro são de invenção minha, o resto tudo são lendas relatadas tais como são ou adaptadas ao momento do livro com pequenos desvios de intenção. [...] Um dos meus cuidados foi tirar a geografia do livro. Misturei completamente o Brasil inteirinho como tem sido minha preocupação desde que intentei me abrasileirar e trabalhar o material brasileiro. Tenho muito medo de ficar regionalista e me exotizar pro resto do Brasil. Assim lenda do Norte botei no Sul, misturo palavras gaúchas com modismos nordestinos ponho plantas do Sul no Norte e animais do Norte no Sul etc. etc. Enfim é um livro bem tendenciosamente brasileiro.204

Trata-se, como definiu o próprio Mário, de uma coletânea de lendas e costumes brasileiros, o que dá a estrutura de uma rapsódia, e não de um romance, como ainda hoje é erroneamente referido. A escolha de tal gênero, ao lado da intenção confessa em sublinhar um aspecto brasileiro, significativamente revela um voltar-se da obra para fora, em que a invenção literária – embora naturalmente ela não possa ser negada na obra, já que existe uma manipulação criativa na maneira como os

204 123.

ANDRADE. Carta 26 de novembro de 1925, p. 225 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

traços culturais são arranjados – parece não ser a tônica, nem mesmo a prioridade. Do ponto de vista da criação, Macunaíma é exemplar da obra comprometida com a representação – e demonstração, de forma satirizada – da realidade, como o é também Quatro pessoas, caso interessante do excesso de projeto, do vezo de explicar e teorizar a realidade, sem afirmação da independência criativa da literatura em mergulhar em seu próprio mundo – e buscar outros. Quatro pessoas, por sua vez, é um romance – ou, a bem dizer, um projeto de romance – bastante sugestivo da dificuldade, por assim dizer, em levar a bom termo a intenção de produzir uma verdadeira obra de ficção. Em 1938, Mário pede demissão da chefia do Departamento de Cultura de São Paulo e se muda para o Rio de Janeiro, onde assume o cargo de professor na Universidade do Distrito Federal. É quando dá início à escrita do livro – proposta de “estudar por meio de dois amigos íntimos a doutrina de Marañon sobre ser o verdadeiro macho o que se fixa em amar uma fêmea só”.205 O texto, que se constrói em torno de quatro personagens – dois casais –, nasce como um projeto glorioso de uma espécie de romance psicológico, no aparente intento de usar o fluxo de consciência como procedimento romanesco, ou mesmo de realizar o texto com um narrador em onisciência que “não fosse o próprio Mário”. O resultado, como se pode verificar à medida que progredimos na leitura do texto, é um desajeitado “meio do caminho” entre os dois processos: a análise

205

ANDRADE. Quatro pessoas, p. 35. 226 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

psicológica é feita sem a técnica madura; as personagens não têm voz, o que fica evidente na carência de diálogos; o narrador é entidade massacrante e inoportuna, que conduz o romance à rédea curta, de modo que o texto não ganha ritmo e fluidez. Por fim, o narrador não é uma instância textual, mas o próprio mal disfarçado Mário de Andrade a falar, com o brasileirismo linguístico por que se celebrizou, presente com a mesma pretensa naturalidade tanto nos textos literários quanto em sua correspondência. É provável que o próprio Mário estivesse ciente de tais problemas, já que abandonou a escrita do romance em 1943. Nas passagens a seguir, é possível ter uma amostra da pouca expressão nas falas das personagens: Deixou os braços desalentado, num gesto de juvenilidade graciosa, vagamente feminina. Abaixou o rosto para o lado, num desamparo infeliz, um daqueles seus gestos instintivos, sem nenhum cálculo, em que de tal forma se misturavam nele uma eterna juvenilidade perdoável e o trágico do homem forte ferido, que era ao mesmo tempo drama e esplendor, invencível. Confessou: — Eu gosto muito dela, sim... [...] Estava terrível de ver, e em sua beleza delicada e grave, havia todo um desmanchamento de traços numa expressão que não chegava a ser de dor, não chegava a ser de fadiga, era indistinta, quase agressiva, mas em que se estampava um sinal de voluptuosidade, incorreto, baixo, espasmódico. Carlos ficou horrorizado.

227 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

— Maria, o que ‘ocê tem! você está cansada, não!...e segurou-a pelos braços lhe soerguendo um bocado o busto, que ela largara sobre as ancas, acentuando ainda mais a sua incorreção de mulher um bocado baixa.206

Pela leitura da correspondência de Mário, é possível acompanhar seu progresso na escrita do romance, até o esmorecimento total do projeto. O escritor partilha, em especial com Oneyda Alvarenga, informações sobre a obra inconclusa, quando do sopro inicial de sua criação. Em carta de 19 de março de 1939, Mário diz estar “com um romance engatilhado faz duas semanas” e mostra-se ansioso por levá-lo a cabo, sem, contudo, encontrar tempo para fazê-lo. Vejamos: Oneida, recebi hoje o embrulho das conferências e a nova carta. Já tinha recebido a outra, sim, mas ficara até agora sem resposta por causa do trabalho. Hoje mesmo passei estudando a tese do [...] pro concurso de Folclore que principia amanhã e de que sou um dos examinadores. [...] Acabei ontem uma das minhas reformas pedidas pelo Capanema, mas não irei descansar. Dia 10 próximo principiam as aulas da Universidade e confesso que é com melancolia que vejo se aproximar essa caceteação. (....) Depois agora tenho muito mais trabalho, com pelo menos dois artigos a escrever por semana, e um deles de

206

ANDRADE. Quatro pessoas, p. 78 e 80. 228 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

crítica literária, pro Diário de Notícias, o que me obriga e ler muito. A vida continua encarcerada, como se vê, mas com uma leve esperança de milhorar financeiramente, pois estou em véspera de pagar minhas dívidas, com que venho há quase um ano me esgrimindo. Como é pau dever! [...] estou com um romance engatilhado faz duas semanas e não acho jeito de o principiar, tal o trabalho. E me parece pena porque gosto dele. Mas quem jamais não achou lindo o filho que vai nascer! E é só. Pretendia escrever só deum lado do papel, pois estou aproveitando esta noite e a guarda dominical do Senhor pra dar conta de uma coluna de cartas. [...].207

O trecho dá a ver modelarmente a realidade de um Mário polivalente, em alguma medida obrigado a sêlo pela necessidade do “arame” para viver, mas também escolhendo de bom grado (e com algum inconfessado prazer, embora diga o contrário) o desempenho de funções diversas, por meio das quais lhe foi possível colocar em exercício uma versatilidade que, ao tudo indica, ser-lhe-ia difícil de conter. É o retrato do intelectual modernista, que relembra-nos da “urgência em realizar o balanço do projeto estético e político do Modernismo, a par de evidentes contradições assumidas pelo intelectual, dividido entre um projeto coletivo de cultura e o individualismo artístico”,208 aspecto flagrante na carta referida. Nela, Mário menciona

207 ALVARENGA. Mário de Andrade-Oneyda Alvarenga: cartas, p. 182-183. 208 SOUZA. Autoficções de Mário, p. 193 229 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ter terminado “as reformas pedidas pelo Capanema”, numa referência ao pedido que lhe fez o então ministro da Educação e da Saúde, Gustavo Capanema, em 1936, para que elaborasse um anteprojeto de lei para a preservação do patrimônio cultural brasileiro. Mário, naturalmente, não foi o único a tomar parte na esfera política. Outros intelectuais como Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos e Rodrigo Mello Franco Andrade colaboraram como consultores, formuladores ou defensores de propostas educativas de programas do governo. Entre esses nomes, destaca-se ainda o de Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete de Capanema durante todo o período de sua gestão (1934-1945), como já mencionado. O insucesso dessa empreitada, em particular – e da obra de ficção em prosa de grande fôlego, o romance – pode estar ligado, entre outras coisas, com a dificuldade do escritor – em função do sem número de atividades que acumulava – de encontrar disponibilidade de tempo para a imersão de que a escrita que um texto dessa natureza requer. Esse desejo – o de escrever um romance, ou coisa que o valha, aparentemente, não era exclusivo a Mário. Outros poetas, como Manuel Bandeira, também o manifestaram. A diferença essencial entre a produção de poesia e de prosa parece residir na questão da gestão do tempo: enquanto a arte poética – poema a poema – acontece normalmente de forma amiudada, espaçada, e assim também o próprio conto, ao lado de outras formas curtas em prosa, como a crônica e o ensaio, e o ideal é que os intervalos em sua confecção não sejam longos; do

230 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

contrário, perde-se “o fio da meada”, e a cadência do texto pode ser comprometida. No trecho citado a seguir, Mário de Andrade medita sobre o tema, a propósito da progressão de Quatro pessoas, e corrobora essa visão: Oneida Estou com preguiça de escrever à máquina mais hoje. Batia máquina o dia inteiro e avancei inesperadamente doze páginas no meu romance que não há meios de avançar, tempo não chega. Estou apenas na p. 27, tipo ofício, datilografado, isto é, pra aí umas 50 páginas de impressão. Acabei o I capítulo. Não sei se estará bom, é uma coisa louca, uma análise psicológica feroz. Duvido que alguém aguente e, o pior, duvido que seja qualquer coisa de bom. Mas é desses livros que o milhor, se acabar, é não pedir a opinião de ninguém, ou publicar ou destruir, mas por conta própria, sem me garantir de ninguém. Estou numa inquietação horrível, e isso ainda maltrata mais o avanço do livro, porque quando penso em escrever me sinto sem força, sem coragem pra perder tempo com uma possível borracheira longa. Um poema, até um conto, ainda a gente não se inquieta de escrever e jogar fora, mas um romance inteirinho, é horrível, minha amiga.209

Num primeiro momento, a ingenuidade nos leva

209 ALVARENGA. Cartas: Mário de Andrade-Oneyda Alvarenga, p. 191. 231 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

a crer ter escapado a Mário a clarividência sobre suas limitações como ficcionista, e essa passa a ser, para nós, a sua “pequena tragédia”. Entretanto, trechos como o transcrito a seguir, extraído da crônica “Começo de crítica”, publicada no Diário de Notícias do Rio de Janeiro em 5 de março de 1939, contrariam nossas expectativas, ao mostrar um Mário duramente lúcido: É certo que, como já acentuaram amigos meus e críticos, a parte da ficção da minha obra se prejudicou bastante pelos utilitarismos em que voluntariamente a escravizei, as teses que pretendi provar, os problemas que repus na ordem do dia. Às vezes, nos momentos de fraqueza ou vaidade, me umedece por causa disso um certo limo de melancolia, mas logo retomo a ordem que me enrija o espírito e o prejuízo não dói mais. Tenho muito consciente conhecimento das minhas forças para saber que não me condena à glória nenhuma espécie de fatalidade. Por mais livre que fosse a minha ficção, jamais ela alcançaria as alturas de um Murilo Mendes, de um Manuel Bandeira, de um Lins do Rego, Raquel de Queirós ou Amando Fontes [...]. Nem sequer uma longa paciência me faria alcançar as alturas desses e outros grandes. Mas em compensação tenho a forte alegria de reconhecer que meus livros de ficção tiveram sempre o efeito que lhes dei por destino. Só me decepcionaram um bocado certos virtuosismos de má morte, como o romance do “Rola Moça”, o “Acalanto do seringueiro” e poucos mais, obras

232 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de sentimentalismo fácil que uma honestidade mais atenta não me permitiria publicar. [...] Outra obra que me deu desgostos foi o Macunaíma. Sinto que tive nas mãos o material de uma obraprima e o estraguei. Fazendo obra sistematicamente de experimentação, jurei no princípio de minha vida literária jamais não me queixar das incompreensões alheias. Acho ridículos os incompreendidos. Mas, por uma só vez, me seja permitido afirmar que esse livro foi, no geral, apreciado por uma feridora incompreensão. Embora graciosa porém não complacentemente tratado, Macunaíma é uma sátira irritada, por muitas vezes feroz. Mas brasileiro não compreende sátira, em vez, acha engraçado.210

O texto, que inaugura a contribuição de Mário de Andrade para o Diário de Notícias carioca, na coluna até então ocupada pelo escritor mineiro Rosário Fusco, tem sabor de antecipado epitáfio. Nele, Mário passa a limpo episódios incômodos, dignos de esclarecimento, em sua trajetória literária e pessoal, como sua adesão ao Partido Democrático – segundo Mário, mais por pressão dos amigos que por vontade espontânea –, e divaga sobre temas como Deus e a importância das obras de arte na existência humana. O que nos interessa de perto e merece comentário na crônica, no entanto, como já referido, diz respeito à sua

210

ANDRADE. Quatro pessoas, p. 12. 233 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

autocrítica como escritor de literatura, sobretudo como ficcionista. A consciência demonstrada por Mário sobre seu cacoete de produzir pensamento e “fazer tese”, tendo o texto literário como pretexto, chega a ser desconcertante. Ele destaca Macunaíma como uma de suas experiências literárias mais frustrantes, já que a recepção da obra foi, segundo ele, marcada pela incompreensão. Deliberadamente um trabalho de “experimentação”, Macunaíma pretendeu satirizar a falta de “caráter”, isto é, de identidade na nação brasileira, constituindo-se um autêntico exemplar da “obra de tese”. Para Mário, o “recado”, contudo, perdeu-se nas entrelinhas. Não se pode deixar de anotar, ainda, o espanto que Mário causa em seu leitor, sobretudo póstumo, ao afirmar a inferioridade de sua ficção – ainda que ela tivesse gozado da liberdade necessária para seu desenvolvimento – em relação a nomes como Murilo Mendes, José Lins do Rego e Manuel Bandeira (a menção deste surpreende particularmente, já que Bandeira não produziu ficção). Se pura retórica – captatio benevolentiae para angariar a simpatia do leitor – de um Mário sedutor, ainda assim, estamos diante de um dado, que, recolhido em um dos textos de sua obra como cronista, dá força à hipótese que vem sendo por ora explorada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Bastante lúcido do que lhe cabe como artista, Mário faz, em carta a Drummond a defesa do escritor “torre-de-

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marfim”. Habitando-a, ele não se converte em um inquilino do sublime; a torre é a trincheira de onde deve combater como lhe é mais natural: com palavras. As mesmas mãos que, dispensadas de sujarem-se com a política dos homens, encontrarão na torre a situação de liberdade ideal à escrita: Pela primeira vez se impôs a mim o meu, nosso destino de artistas, a Torre de Marfim. Eu sou um torre-de-marfim e só posso e devo ser legitimamente um torre-de-marfim [...] o intelectual, o artista, pela sua natureza, pela sua definição mesma de não conformista não pode perder a sua profissão, se duplicando na profissão de político. Ele pensa, meu Deus! e a sua verdade é irrecusável para ele. Qualquer concessão interessada pra ele, prá sua posição política, o desmoraliza, e qualquer combinação, qualquer concessão o infama. É de sua torrede-marfim que ele deve combater, jogar desde o guspe até o raio de Júpiter, incendiando cidades. Mas da sua torre211.

À posição discursiva assumida por Mário, acrescente-se: o escritor, seja da ilha, da torre, de Pasárgada ou Shangri-Lá, é livre para eleger sua matéria, desde que o faça, primeiro, para contar uma boa história.

211 ANDRADE; ANDRADE. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, p. 243. (Grifos meus). 235 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Afirmar que a literatura – a arte da ficção – não tem o encargo de “salvar o mundo”, pela tematização do social, não corresponde à defesa, para o escritor, do “nãome-amolismo”, ou do alheamento aos problemas que concernem à coletividade em seu tempo-espaço. Antes, significa reconhecer que a literatura, indiferentemente de possuir ou não uma coloração ideológica, define-se pelo caráter imaginativo e por suas especificidades enquanto linguagem artística. Em outras palavras: ideologia por ideologia faz panfleto, mas não necessariamente arte. À guisa de conclusão, sobre o vezo, na obra literária, de explicar e analisar, em detrimento da fabulação, Isaac Bashevis Singer sentencia: “A busca da mensagem fez muitos escritores esquecerem que contar histórias é a raison d’être da prosa artística.”

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236 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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237 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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238 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

239 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

CONTROLE DO IMAGINÁRIO E FICÇÃO: O VAZIO COMO CATEGORIA CENTRAL DA FICCIONALIDADE LITERÁRIA

Maria Elvira Malaquias de Carvalho

Considera-se o alemão Wolfgang Iser como teórico paradigmático do evento designado como ficcionalidade literária. A influência de sua obra se fez sentir em muitos redutos da crítica acadêmica contemporânea que, a despeito da crise de denominação, estatuto e demarcação do domínio da literatura, continuaram a apostar na contribuição da teoria da ficção como trabalho especulativo, criativo e inovador diante dos desafios de abordagem do fenômeno literário. Em um ensaio denominado “A interação do texto com o leitor”, Iser discorre sobre os espaços lacunares importantes para a construção e a colisão de imagens conflitantes no ato da leitura. Para Iser, “o vazio no texto ficcional induz e guia a atividade do leitor”212 e, na medida em que os objetos literários são objetos indeterminados, “os vazios não funcionam apenas como simples meios de interrupção, mas sim como uma estrutura de comunicação.”213

212 213

ISER. A interação do texto com o leitor, p. 130. ISER. A interação do texto com o leitor, p. 124. 240 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Na condição de intérprete privilegiado da obra de Wolfgang Iser no Brasil, Luiz Costa Lima vem construindo, há mais de três décadas, sua teoria do controle do imaginário, disseminando-a em vários volumes ao longo dos anos. A noção de controle do imaginário carece de especificidade conceitual, devido à grande plasticidade que tal terminologia adquire nos distintos contextos em que Costa Lima a utiliza. De fato, o crítico brasileiro não ignorou a imbricação entre controle e ficção na composição de seu argumento, e chegou a afirmar: “Se o controle se mostra com maior precisão na literatura é tão só porque o ficcional é sua matéria-prima.”214 Pode-se constatar que Luiz Costa Lima desenvolveu minuciosamente as diferenciações conceituais entre “literatura”, “história” e “ficção”, mas se esquivou de fazer o mesmo trabalho quanto às noções de “ficção” e “controle do imaginário”. Ao reivindicar, como componente da obra ficcional, a “relevância estética dos vazios,215 Iser salienta o modo como a consciência imaginante do leitor age na produção e na anulação dos sentidos possíveis de um texto. Destaca ainda o modo pelo qual o texto de ficção consegue se estabelecer como comunicação, ainda que com suas características particulares, características que salientam o “vazio central à experiência”216 e a carência como marco da “assimetria fundamental entre texto e leitor”.217 A teoria iseriana reconhece que as contingências

214 215 216 217

LIMA. Trilogia do controle, p. 413. ISER. A interação do texto com o leitor, p. 110. ISER. A interação do texto com o leitor, p. 86. ISER. A interação do texto com o leitor, p. 88. 241 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

do fenômeno literário devem estar representadas em um jogo performático que inclui autor, texto e leitor. No livro Limites da voz, Luiz Costa Lima ratifica a importância da noção de vazio, argumentando que sua constituição é correlata à afirmação do eu, e que a marca do vazio é “copresente ao sujeito psicologicamente orientado”.218 O controle do imaginário dificilmente poderia assumir uma existência concreta e totalmente objetiva. Embora, em princípio, ocupem posições distintas no tratamento da Lei e da transgressão, o controle e a ficção se assemelham na prática, e ambas as instâncias são necessárias para a constatação do vazio como categoria central da ficcionalidade literária. Para Luiz Costa Lima, o vazio é “um elemento constitutivo, embora não exclusivo, da obra literária, [...] e um dos instrumentos para que se verifique o controle do imaginário”.219 Em artigo disponibilizado em francês, no qual apresenta ao público canadense os parâmetros conceituais de sua hipótese, Costa Lima aponta claramente: “Quando [...] falo do controle do imaginário, eu me questiono sobre as condições histórico-sociais que impedem ou restringem a atualização do território da ficção”.220 O advento do controle se justifica na medida em que a ficção é compreendida como uma ameaça de desestabilização aos

218 LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka, p. 57. 219 LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka, p. 103. 220 LIMA. Le contrôle de l’imaginaire et la littérature comparée, p. 18. 242 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

valores estatuídos em certo período histórico e em dada sociedade. Embora ressalte que controle não é sinônimo de censura, Costa Lima mantém a argumentação de que todo controle supõe domesticação e ajuste a normas sociais. É também importante destacar que a teorização sobre o controle segue paralela a uma abordagem sobre o nascimento da individualidade moderna. Reconhecer que a obra de ficção possui certas características ficcionais que tornam o texto literário um acontecimento estético único não foi algo facilmente tematizado pela cultura literária ocidental. A propósito, Wolfgang Iser compreende que as implicações antropológicas da ficcionalidade literária, até a nossa época, “receberam pouca atenção”221 dos especialistas. Apenas modernamente, conseguiu-se demonstrar que as ficções, enquanto construções auxiliares destinadas a alcançar determinados fins, são recursos heurísticos indispensáveis ao pensamento, como alega Hans Vaihinger: [...] assinalamos suficientemente a importância das ficções para a teoria do conhecimento; e neste contexto se trata de dar primazia a que estas ficções epistemológicas, isto é, as categorias, principalmente, são absolutamente imprescindíveis para o pensamento, pois, do contrário, o pensamento não poderia ser discursivo.222

221 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária, p. 94. 222 VAIHINGER. A filosofia do como se: sistema das 243 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A designação da ficção como construção auxiliar do pensamento discursivo está diretamente relacionada ao papel que a imaginação desempenha na psique humana e na afirmação dos constructos fictícios daí derivados como indispensáveis para a teoria do conhecimento. Em determinado momento da era moderna, segundo Iser, a “ficção se torna fictícia”,223 e o discurso filosófico tem de aceitar a duplicidade constituinte da ficção: “ela se funda naquilo que produz”,224 afirma Iser. Entidades fictícias existem apenas no discurso, mas se diferenciam das realidades discursivas por elas produzidas. Não bastassem as complicações evidenciadas na conceituação da ficção, o controle do imaginário também se apresenta como um postulado precário, na medida em que até pode ser um princípio reconhecido como fato, mas não pode ser logicamente demonstrado. Admitida esta dificuldade que se encontra na raiz do problema, discutir os limites ontológicos e epistemológicos entre os conceitos de ficção e de controle do imaginário implica enveredar rumo a um terreno confuso e selvagem, o qual parece ter sido evitado pelo próprio Luiz Costa Lima. É provável que seja por essa razão que o teórico brasileiro denomine o controle do imaginário de “hipótese”, e não de “tese”, e que, em algumas declarações, deixe claro

ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade, na base de um positivismo idealista, p. 263. 223 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária, p. 119. 224 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária, p. 154. 244 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

que jamais poderá terminar sua hipótese, isto é, prová-la cabalmente. Alega que “este não é um projeto passível de ser realizado por uma só pessoa. Como só conto comigo mesmo; tenho de me contentar com o pouco que faço.”225 Mais especificamente, Costa Lima sustenta: Eu não escrevi e não hei de escrever uma história sistemática do controle do imaginário, ainda que eu só me interessasse nisso como uma terceira via (isto é, aquela que se constitui de ficções verbalmente realizadas), posto que uma tarefa semelhante não poderia ser levada a termo por uma única pessoa vivendo nas condições precárias do terceiro mundo. Eu ficarei feliz se esta hipótese for julgada válida no sentido de uma melhor compreensão da obra ficcional em nosso mundo.226

Com uma obra extensa, reconhecida não apenas pelo público acadêmico brasileiro, mas também pela comunidade internacional, Costa Lima atualmente deve ter certeza de que sua hipótese de trabalho foi considerada válida por muitos críticos e teóricos ao redor do mundo. No advento de um reconhecimento científico tão acolhedor, em que não se veem adversários de certas ideias ou polêmicas contra determinadas posições, qualquer hipótese pode fatalmente se acomodar em truísmos e perder sua força

225 LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka, p. 17. 226 LIMA. Le contrôle de l’imaginaire et la littérature comparée, p. 7. 245 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de contestação original. Logo, é exatamente agora, neste momento em que alcança tamanha aprovação institucional, que se faz necessário apontar na teoria costalimiana o detalhe que a desestabiliza por inteiro, ativando-lhe sua disjunção latente. Penetrar a zona do equívoco e da aporia é indispensável para a renovação crítica de qualquer formação discursiva. “Para combater-se a ficção, necessita-se de uma ficção que não se formule como ficção. E a sociedade nos será agradecida.”227 Eis a mais preciosa sentença que podemos extrair de Costa Lima, tamanha a perversidade que guarda em si. Atentemos para o uso do plural majestático, também chamado, por certos gramáticos, de plural de modéstia. Esse torneio discursivo consiste no fato de que “escritores e oradores costumam, por modéstia, usar a 1ª pessoa do plural pela correspondente do singular.”228 No trecho citado, o plural de modéstia, na função do pronome objeto “nos”, confere, ao mesmo tempo, um sentido genérico e íntimo, mas nunca comprometedor, para quem redige e para quem lê a sentença. Afinal, a quem se refere o pronome “nos” em destaque no trecho supramencionado? Aos críticos literários? Aos escritores e poetas? Aos censores? Aos ficcionistas? Aos leitores? A partir de tal sentença, podemos perscrutar a dialética do “vazio dinâmico”,229 da qual falava Iser, ao

227 LIMA. História. Ficção. Literatura, p. 244. 228 CEGALLA. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa, p. 309-310. 229 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária, p. 283. 246 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

caracterizar o jogo constituinte da ficcionalidade literária. Uma leitura estreita dos parâmetros conceituais que sustentam a hipótese do controle do imaginário tenderá a indicar que o controle tem atuado como inibidor e constritor da atividade ficcional no Ocidente. Portanto, deve-se admitir que “o problema do controle do imaginário [...] acompanha a instituição literária”,230 como afirma o teórico brasileiro. Contudo, a teoria da mímesis que Costa Lima tem construído é bem mais complexa do que parece à primeira vista, sobretudo quanto aos aspectos que incidem sobre a definição do estatuto da ficção e do estatuto do controle do imaginário. Para lutar contra a ficção, foi necessário ao controle assemelhar-se a ela, refletir e agir como se fosse uma ficção. Ao contrário, para resistir à opressão do controle do imaginário, foi necessário que o discurso ficcional tomasse cautelosamente certas feições do controle, ou que se tornasse sua paródia escandalosa. Colocados ambos diante do espelho, nem a ficção nem o controle sabem identificar-se exatamente, uma vez que partilham suas propriedades e suas impropriedades há tanto tempo e sem escrúpulo algum. Instituído o pacto ficcional e social, fica estabelecido que o controle precisa da ficção e a ficção precisa ser controlada, a fim de que a sociedade nos seja agradecida. A sentença recorre à utilização tripla do termo ficção, fato que turba a linha de demarcação entre o controle

230 p. 32.

LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka, 247 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e a ficção enquanto entidades conceituais precárias. A partir de um procedimento metonímico que emprega uma palavra em lugar de outra, cujo significado sugerido é concomitante ao significado em relevo, Costa Lima desloca a referência de um conceito para o outro. Não se deve esquecer que, em Wolfgang Iser, a própria definição de ficcionalidade literária torna-se uma contradictio in adjecto, porque é caracterizada “por uma negatividade que possibilita a copresença de posições incompatíveis entre si.”231 Decorre daí que a ficção é uma área discursiva que admite a movência do eu. “O ficcional implica uma dissipação tanto de uma legislação generalizada, quanto da expressão do eu”232 salienta, por sua vez, Costa Lima. Assim, uma ficção que não se formula como ficção é quase uma ficção que não se direciona à transgressão, e sim à norma. Este raciocínio deve então corroborar a existência de uma ficção a qual, ainda que se apresente com todas as qualidades ficcionais, formula-se também sob a forma da Lei e do dever incondicional. A tênue linha divisória entre o controle e a ficção assegura que o controle do imaginário e a ficção possam atuar como forças, em princípio, díspares; porém, na prática, convergentes para o mesmo fim, seja para salvaguardar a Lei em seu caráter ficcional, seja para fazer da transgressão uma lei moral. Na medida em que a ficção se estabiliza, por assim dizer, como uma forma sem realidade, como uma forma sem conteúdo, ou como um livro sobre nada, como dizia

231 ISER. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária, p. 97. 232 LIMA. Trilogia do controle, p. 452. 248 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Flaubert, o vazio assume o estatuto de categoria central da ficcionalidade literária. Comentador e admirador de Wolfgang Iser, Costa Lima encarece a função capital do conceito de vazio tanto na obra do teórico alemão, quanto nos ensinos que dela tem retirado para seu trabalho. “Para que o vazio tenha a potência que reconhecemos, será necessário que o receptor leve a cabo e atualize a transgressão informe do imaginário”233, salienta Costa Lima. A substância última do controle é a ficção, e a própria ficcionalidade literária possui uma determinação vaga, a ser preenchida por ocupações imaginárias. Tal como no imperativo categórico kantiano, o controle do imaginário, postulado como forma literária, é puramente formal, não descreve seu conteúdo e é destituído de sujeito da enunciação. O controle do imaginário e sua vizinhança com a ficção configuram uma obediência cega e irracional à Lei, tomada como um nada privado de objeto. Esta configuração apenas poderá ser retraduzida no superego freudiano, como ordenamento de gozo cego e destrutivo. E a sociedade nos será agradecida.

233

LIMA. História. Ficção. Literatura, p. 286. 249 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Referências CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009. LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LIMA, Luiz Costa. Le contrôle de l’imaginaire et la littérature comparée. In: Surfaces. Les Presses de l’Université de Montréal. vol. 1. 1991. p. 5-21. Disponível em: Acesso em 29 out. 2012. LIMA, Luiz Costa. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, Kafka. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005. LIMA, Luiz Costa. Trilogia do controle. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: LIMA, Luiz Costa. (Org.) A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979. ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. VAIHINGER, Hans. A filosofia do como se: sistema das ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade, na base de um positivismo idealista. Tradução de Johannes Kretschmer. Chapecó: Argos, 2011.

250 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A EXPRESSÃO E A LINGUAGEM CARNALIZADA DE MAURA LOPES CANÇADO EM HOSPÍCIO É DEUS

Márcia Moreira Custódio

O presente texto visa mostrar o lugar da escrita de Hospício é deus – diário I (1965), de Maura Lopes Cançado (19291993), no projeto filosófico da fenomenologia da percepção, de Maurice Merleau-Ponty, levando em conta as reflexões sobre a criação autoficcional, o espaço manicomial e o quadro de loucura da autora. Compreendida como uma obra representante da literatura nacional contemporânea que traz como tema central a loucura, Hospício é deus revela-se peculiar por duas razões: constituir-se um diário e ser escrito por uma louca. Seu espaço ficcional permite a pluralidade identitária entre autor e narrador que, nesse caso, é reforçado pelo processo de esquizofrenia de Maura. O livro foi escrito durante a internação de Maura no Hospital Psiquiátrico Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro-RJ entre 25-101959 a 7-3-1960. Nele encontramos o ponto de vista do diagnosticado louco que escreve sobre si mesmo – algo pouco comum na literatura brasileira, uma vez que narrativas sobre insanos costumam aparecer através da visão mais ou menos idealizada de quem é “normal”.

251 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Pelo fato de a narrativa de Hospício é deus favorecer o deslizamento entre Maura autora e Maura narradora no discurso, seu relato situa-se na fronteira híbrida da autobiografia e da ficção, abarcando o conceito de autoficção construído por Serge Doubrovsky. Em Fils, 1977, este autor afirma que no discurso autoficcional o escritor estabelece um pacto oxímoro com o leitor, e este, por sua vez, levanta o questionamento sobre a identidade real do sujeito, estabelecendo a dupla recepção da obra – ficcional e autobiográfica. Entende-se, com isso, que a narrativa de Hospício é deus, caracterizada como autoficcional por ser de cunho íntimo, não está afastada do real, pois Maura é afetada pelos acontecimentos sociais na sua interioridade, repercutindo, assim, na escrita, suas dores, frustrações, alegrias e anseios. Esse tipo de narrativa, que surge no final do século XIX e ganha espaço com novas roupagens em sua estrutura nos anos 1960, enfrenta barreiras para ser classificada como fazer literário pela análise crítica. Compreende-se que autoficção não constitui gênero específico, por transcender o pacto autobiográfico entre a vida da autora e a fidelidade do fato narrado, pois podem fazer referência a uma suposta realidade. Doubrovsky vai definir a escrita autoficcional como versão pós-moderna da autobiografia, uma vez que há uma ambivalência do sujeito e deslizamento do vivido, mesclando os gêneros referencial e ficcional, ou seja, romance e autobiografia, verdade e invenção. Embora encontre o registro de datas, Hospício é deus é uma escrita do presente, em que não se constrói uma recapitulação histórica e fiel dos

252 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

acontecimentos, mas, sim, uma atualização dos fatos, com novas possibilidades de criação. Segundo Doubrovsky, Ficção, de acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda: autofricção, pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer.234

Nesse sentido, na autoficção, a intensidade narrativa revela-se diferente da história vivida, na medida em que ocorre a transposição do eu no texto por meio da escrita que será afetada pelas marcas estéticas da criação. Nessa prática incorre, por extensão, uma escrita de autoanálise, uma vez que a distância entre o vivido e o narrado possibilita a reflexão autoanalítica e crítica, por lançar no universo ficcional a exteriorização da história de sua vida, buscando autocompreensão. Ao recontar as experiências do passado, mesmo que próximas, Maura o faz pela rememoração dos fatos, não sendo mais contadas tais como primeiramente as vivenciara, porque, agora, há um novo sujeito que escreve sobre elas, remetendo-as à ficcionalização. Essa projeção na escrita acontece de forma mais livre, mesclada de idealização. A linguagem

234

DOUBROVISKY. Fils, quarta capa. 253 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

da sintaxe, não conseguindo acomodar todas as formas de expressões, pela dupla falta, a sentida no mundo pelo autor e o próprio vazio da sintaxe em explicá-las, avança para a linguagem cromática e multilíngue da criação. Para dizer as coisas como são, para suprir essa falta, o artista literário utiliza-se da criação. Gilles Deleuze e Félix Guattari explicam: É aí que o estilo cria a língua. É aí que a linguagem devém intensiva, puro contínuo de valores e de intensidades. É aí que toda língua devém secreta, e entretanto não tem nada a esconder, ao invés de talhar um subsistema secreto na língua. Só se alcança esse resultado através de sobriedade, subtração criadora. A variação contínua tem apenas linhas ascéticas, um pouco de erva e água pura.235

Entende-se então que, a fim de dar contar da realidade referente, o narrador transporta a linguagem para o campo da metáfora, ou seja, o campo da linguagem literária, intensiva. Isso explica como, mesmo com a presença dos dados factuais, a narrativa se torna romanceada, fabulada, sendo alterada por questões pessoais ou estéticas. Paradoxalmente, na linguagem literária, pretendendo dizer o real, o narrador acaba falhando, mas, ao falhar, diz outra coisa, desvenda um mundo mais real do que aquele que se pretendia dizer. E, em relação ao autor, este se oblitera na narrativa, tornando-

235 DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, p. 45-46. 254 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

se mais indefinido e impessoal, embora carregando a identidade nominal. Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão afirmam que: O texto de Maura se escreve, dessa forma, à margem, no limiar, nos limites de um entrelugar. Além de diário, é diário de uma ficcionista – o que recebemos como realidade, como confissão, pode não passar de ficção, habilmente trabalhada pela voz de sua narradora.236

A obra, como experiência estética, engendra um modo específico de (des)subjetivação na qual Maura, via percepção estética, busca sentido para o mundo e para si mesma. Assim, Maura se desdobra em outra, mediada pela imaginação criativa, numa compreensão da subjetividade como devir, em uma estética da existência, na qual a própria vida pode se (re)criar. Essa escritura confessional se revela, enquanto forma textualizada, a do tempo vivido. Sua narrativa nos oferece um tempo múltiplo que se superposiciona, diferenciando-se dos marcos gerais da história oficial, com novos marcos plenos de significados, capazes de constituir uma outra história para aqueles que os compartilham. Sébastien Hubier, ao evidenciar seu conceito de autoficção, vai expor os privilégios do seu uso: Um dos privilégios da autoficção, fundado sobre um pacto oximoro, seria então a possibilidade de falar, por ela, de si mesmo e dos outros

236 BRANDÃO; CASTELLO BRANCO. A mulher escrita, p. 164. 255 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sem nenhuma forma de censura, de entregar todos os segredos de um eu variável, polimorfo, e de se afirmar livre finalmente de ideologias literárias aparentemente defasadas. Ela oferece ao escritor a oportunidade de experimentar a partir de sua vida e de sua ficcionalização, de ser ao mesmo tempo ele mesmo e um outro.237

Nesse outro lugar, o da narrativa autoficcional, as diferenças sociais assumem uma força de expressão e geram a instauração de signos sensíveis para os fatos que integram a narrativa. Na narrativa, Maura inscreve-se como ela mesma e como ficção, revelando-se não como uma espectadora imparcial frente à vida, mas participante dela ativamente, por meio de seu corpo, com seus movimentos, afetos, pensamentos, percebendo, sendo percebida e se autopercebendo, reconhecendo-se como autora e coautora de sua história, ao lado dos outros significativos com os quais convive no ambiente hospitalar. É possível perceber sua obra como reflexo das nuances de seu temperamento, de tímida era levada a grandes explosões. O aspecto da escrita desvela esteticamente as marcas da expressão de Maura, conferindo ao texto inovações que se manifestam no decorrer da prosa, quando apresentam, mesclandose, poesias, onomatopeias, lacunas, fluxo de consciência, frases inteiras em maiúsculas indicando alteração no tom, numa mútua afiguração de ligação entre pensamento, linguagem e corpo.

237 HUBIER. Littératures intimes: Les expressions de moi, de I’autobiographie à I’autofiction, p. 125. 256 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Verifica-se na escrita de Maura sua irrupção também no corpo do texto, quando oscila entre a horizontalidade e a verticalidade do pensamento. Isto também se vê refletido na estrutura da obra, que se desloca da memória para o diário, e que, algumas vezes, do presente emerge apenas relatos do passado. Isso se explica pelo fato de o processo da escrita autoficcional estar mais fortemente ligado ao exercício do corpo, porque, no ato do lembrar, o escritornarrador-personagem executará o trabalho de ressuscitar para, logo em seguida, matar, ou seja, refletir o que foi vivido e que jamais voltará. A violência do lembrar suscita as fortes emoções do viver. Maurice Blanchot, em sua obra A conversa infinita, afirma que escrever “evoca uma operação cortante, uma carnificina talvez: uma espécie de violência”,238 visto que a escrita libera o pensamento, exigindo o máximo de imersão no significante e significado. O mergulho na ordem ou na desordem do pensamento aflora plena de matizes, carregado de conflitos, pois a escrita humanizada não se isenta das contradições inerentes ao escritor. No excerto abaixo a narradora deixa sua impressão sobre o lugar, sobre si mesma e sobre a própria escrita: Aqui estou de novo nesta ‘cidade triste’, é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento.239

238 239

BLANCHOT. A conversa infinita, p. 66. CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 31. 257 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

É notável o uso de palavras e expressões que remetem aos sentidos, como “cidade triste”, “sofrimento” e “sombrio”. A escrita surge aqui como uma exteriorização de uma necessidade do corpo, cujo fim ainda não foi definido. Não há um jorro inconsciente de palavras, há uma sequência de ideias concatenadas, que revelam o estado de angústia, de vazio e desesperança da narradora. É a expressão de uma reflexão corporal. Os sentidos, sempre aguçados, formam uma unidade com o corpo de Maura, desvelando uma dupla inscrição: do dentro e o do fora. Faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhidas sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis emprestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. É hospício, deus – e tenho frio.240

Nesse contexto, o frio comunica mais que um sentir táctil, é o reconhecimento carnal do hospício. O espaço não é representado sob o signo do entendimento, mas de imagens ou metáforas que, mais do que estéticas, ou exatamente por isso, delineiam, pela percepção, o ambiente vivido. Essa relação com o mundo ultrapassa o sensorial, deflagrando-se em uma relação total e afetiva

240

CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 32. 258 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

com o meio. A significação do mundo confunde-se com a do conhecimento: o corpo sente frio, sentir frio machuca o corpo, o hospício machuca o corpo, o hospício é frio. Portanto, nós não reduzimos a significação da palavra e nem mesmo a significação do percebido a uma soma de “sensações corporais”, mas dizemos que o corpo, enquanto tem “condutas”, é este estranho objeto que utiliza suas próprias partes como simbólica geral do mundo, e através do qual, por conseguinte, podemos “frequentar” este mundo, “compreendê-lo” e encontrar uma significação para ele.241

Assim, a linguagem expressiva é o modo pelo qual o sujeito falante adquire o sentido que quer exprimir. Merleau-Ponty diferencia a fala falante da fala falada. Aquela emerge no ato instituinte e criativo da linguagem, ou seja, quando não se sabe exatamente o que vai ser comunicado, mas já existe um querer dizer. Esta constitui a base da comunicação social, visto que é o próprio saber sedimentado na linguagem. Na fala falante a fala falada se mobiliza em benefício da expressão. Não há um pensamento exterior à expressão nem existência dele que ela se concretize, seja em palavras, gestos, sons ou cores. No espaço da escrita de Maura, a existência humana e as relações sociais, transpostos sob o olhar particular da escritora em seu espaço vivido, são responsáveis pela

241 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 317. 259 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

densidade do conteúdo, da forma literária e também por suas características que abrigam outras temporalidades. A linguagem literária de Maura é a de corpo-vivido ou corpopróprio. Não há dicotomia entre realidade e consciência, ou seja, entre o corpo da narradora e o meio, resvalando para uma perspectiva fenomenológica merleau-pontyana, com um novo modo de conceber o corpo. Para Merleau-Ponty, antes de ser um objeto, o corpo é nosso modo próprio de ser-no-mundo. É o corpo que realiza a abertura do homem ao mundo: “O corpo é nosso meio geral de ter um mundo.”242 Em Fenomenologia da percepção, o autor afirma que esse tipo de comunicação é uma apreensão sensível na base da compreensão da fala e do gesto corporal - “[...] eu não percebo a cólera ou a ameaça como um fato psíquico escondido atrás do gesto, leio a cólera no gesto, o gesto não me faz pensar na cólera, ele é a própria cólera”, 243 recorrendo à expressão emocional dos gestos para encontrar aí os primeiros indícios da linguagem como fenômeno autêntico. A escrita de Maura emerge como gesto de um corpo que é todo relação de sentido com o ambiente manicomial onde está internada. Assim, pode-se destacar o caráter eminentemente corpóreo de sua expressão em articulação com sua apreensão de sentido do ambiente como um espaço completamente hostil. O corpo fala, mas não fala sozinho, fala com alguém, fala para um outro, sua

242 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 203. 243 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 251. 260 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

essência é dialógica. Não continuarei. Sairei louca gritando. Até quando haverá pátios? Mulheres nuas, mulheres vestidas – mulheres. Estando no pátio não faz diferença. Mas esta mulher, rasgada, muda, estranha, um dia teria sido beijada. Talvez um bebê lhe sorrisse e ela o tomasse no colo, por que não? Não aceito nem compreendo a loucura. Parece-me que toda a humanidade é responsável pela doença mental de cada indivíduo. Só a humanidade toda evitaria a loucura de cada um. Que fazer para que todos lutem contra isto? Não acho que os médicos devam conservar ocultos os pátios dos hospícios. Opto pelo contrário; só assim as pessoas conheceriam a realidade lutando contra ela. ENTRADA FRANCA AOS VISITANTES: não terá você, com seu egoísmo, colaborado para isto? Ou você, na sua intransigência? Ou na sua maldade mesmo?244

Sobressai assim um tom de denúncia e desabafo marcante neste excerto. Ao mesmo tempo em que fala de si, desvenda o outro, colocando em questão as dificuldades diárias, de modo que o cotidiano aparece como artifício narrativo. A capacidade expressiva do corpo transcende os mecanismos de sua fisiologia, revelando sua segunda natureza: o social. No fragmento abaixo é possível observar a projeção de uma linguagem que é o próprio

244

CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 147-148. 261 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sentir exterior: Estou de novo aqui, e isto é ______ Por que não dizer? Dói. Será por isto que venho? – Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exangue – e sempre outro. Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro – como oque ainda não se pode compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde – paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício é deus.245

A primeira pessoa e o tempo verbal no presente revelam a experiência de um agora agônico de um sujeito falante construindo o pensamento de hospício pela percepção carnal com que este se lhe apresenta. Operam para isso especialmente a visão e o tato. Embora marcado por datas, o tempo se revela em perpetuo fluxo, carregado de síntese das vivências da consciência. Estranha a minha situação no hospital. Pareço ter rompido completamente com o passado, tudo começa do instante em que vesti este uniforme amorfo, ou, depois disto nada existindo – a não ser uma pausa branca e muda. Estou aqui e sou. É a única afirmativa, calada e neutra como

245

CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 28. 262 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

os corredores longos. Ou não sou e estou aqui? – Cada momento existe independente, tal colcha formada de retalhos diferentes: os quadradinhos sofrem alteração, se observados isolados. Entanto, formam um todo.246

Verifica-se assim que o tempo para Maura é sempre o presente. Registrá-lo em datas é menos uma clausura do que a chance de lançar um novo olhar sobre o texto. Não há uma conservação corporal do passado. Ocorre uma nova percepção do fato. Merleau-Ponty, ao explicar esse fenômeno, ilustra da seguinte maneira: Esta mesa traz traços de minha vida passada, inscrevi nela as minhas iniciais, nela fiz manchas de tinta. Mas por si mesmos estes traços não remetem ao passado: eles são presentes; e, se encontro ali signos de algum acontecimento “anterior”, é porque tenho, por outras vias, o sentido do passado, é porque trago em mim essa significação.247

Assim, cada leitura acarretará em novos significados. A percepção é sempre de um agora, o olhar é sempre pelo presente, nunca pelo passado: [...] um fragmento conservado do passado vivido no máximo só pode ser uma ocasião de pensar no passado, não é este que se faz reconhecer;

246 CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 32. 247 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 553. 263 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

o reconhecimento, quando se quer derivá-lo de qualquer conteúdo que seja, sempre se precede a si mesmo.248

A leitura caracteriza-se em desdobramento de corpos. Há uma parceria no processo de leitura do texto. O autor apresenta signos e o leitor os ultrapassa, apalpa as imagens e escuta seus sons, transformando-os em linguagem falante. A apalpação pelo olhar rompe a fronteira do corpo do autor atingindo o corpo do leitor. Pela leitura ocorre a apalpação pelo olhar numa experiência tanto do leitor quanto do seu texto, mesclando-se pela articulação da fala de Maura e a do leitor, realizando um fenômeno corporal transcendental. A escrita de Hospício é deus sugere ser um meio encontrado por Maura para resguardar sua subjetividade. Diagnosticada como esquizofrênica, suas atitudes representativas de autossuficiente e onipotência são desconstruídas na escrita, espaço onde tenta preservar sua verdadeira identidade. Na obra não precisa esconder sua fragilidade: Os dias deslizam difíceis – custa. Me entrego. E me esqueço. Ou não me esqueço? Às vezes as coisas ameaçam chegar até mim, transpondo as portas (mas não. Por quê? Hein? Quando? NADA). Sinto medo. Parece reinar uma ameaça constante no ar. Ou sou eu quem se alerta o primeiro gesto? Ando pelo quarto. Completo um

248 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 554. 264 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

instante. Depois outro quadradinho: penso fino e reto, sem ameaças, livre de pesar pelo que está guardado ou morto.249

Encontrar-se num acontecimento estético como sujeito falante fragmentado incorre em apresentar percepções múltiplas de mundo vivido. Na tentativa de encontrar-se, Maura se dilui na fala. No lugar de encontrar-se, afasta-se cada vez mais no espaço flutuante da autobiografia. Nesses desdobramentos, aparece o paradoxo da intersubjetividade. Há um eu que escreve e um eu que narra. Ocorre a polifonia vocal com expressividade encarnada que é o outro. A obra de arte literária é apontada por Merleau-Ponty como fala falante: Na verdade, à medida que uma palavra é a manifestação de uma experiência física, pragmática ou afetiva, sob o fundo de um mundo cultural do qual participamos, - ela própria – assume uma significação existencial, quer dizer, uma expressividade encarnada. Ela exprime, muito propriamente, a “mímica existencial” das experiências que primordialmente brotam do mundo perceptivo, graças à expressividade corporal.250

Assim, Hospício é deus, como mímica existencial, tece-se na vida e confunde-se com a vida vivida, esclarecida em toda a sua plenitude. A obra torna-se então

249 CANÇADO. Hospício é Deus: diário I, p. 32. 250 SILVA. A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty, p. 102. 265 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

um privilegiado instrumento óptico do mundo e da vida, instrumento que amplia e adensa o olhar e a visão, que alarga e devolve outros olhos e outras vidas. Instrumento que ensina e permite ver o que sem ele jamais veríamos. Instrumento que transforma e renova. Na verdade, depois de ver - ler ou escrever - nada mais poderá voltar a ser como era dantes.

Referências BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001. BRANDÃO, Ruth Silviano; CASTELLO BRANCO, Lúcia. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004. CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus: diário I. São Paulo: Círculo do Livro, 1991. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995. DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977. HUBIER, Sébastien. Littératures intimes: Les expressions du moi, de I’autobiographie à I’autofiction. Paris: Armand Colin, 2003. LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiografique. Paris: Seuil, 1996.

266 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 4 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty. São Leopoldo(RS): Nova Harmonia, 2009.

267 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A MULTIPLICIDADE NA OBRA COSMOCOCA - PROGRAMA IN PROGRESS

Marina Andrade Câmara Dayrell

Cinco Cosmococas – CCs – foram recentemente reunidas e montadas em um espaço único, no Centro de Arte Inhotim, em Minas Gerais. Em uma espécie de pavilhão, estão hoje disponíveis para visitação Trashiscapes, Onobject, Maileryn, Nocagions e Hendrix-War, nomes dados, respectivamente, às CCs, de 1 a 5. Cada uma delas foi chamada por Oiticica e D’Almeita de “bloco-experimento” ou “bloco de experiências”, que são instalações sensoriais com projeção de slides, trilhas sonoras e diversos elementos táteis. Cada CC faz parte daquilo que Oiticica chamou de “quasi-cinemas”, ou seja: ambientes ambientais em que as projeções de imagens estariam em seu estádio de formação, na iminência do cinema, em devir, in progress, como diz o próprio título. As projeções “quasi-cinema” estão no limiar entre as narrativas cinematográficas e a nova configuração espacial oferecida pelas as obras de arte que trabalham o audiovisual. Se no cinema clássico o espectador é imerso em um contexto que o isola do mundo no intuito de conduzir sua experiência em direção à narrativa sequencial

268 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

oferecida, a imagem em movimento inserida no circuito da arte, por outro lado, oferece uma nova temporalidade que é inerente à obra em si, por meio, muitas vezes, de narrativas fragmentadas, mas também por meio da relação espacial mais livre – que diferencia-se da imersão. Em um galeria de arte, a duração do ato de assistir é determinada pelo espectador e não pela obra. A ele também é oferecida maior abertura espacial no sentido de, algumas vezes, não serem dispostas cadeiras enfileiradas e direcionadas à tela. A relação que o espectador – ou participante, como foi chamado por Oiticica e D’Almeida – tem com a obra é, em si, mais fragmentada. É sobre esta liberdade que o “quasi” diz. Os autores das CCs frisavam o fato dos blocos serem um programa e não um projeto, já que o primeiro termo remeteria a proposições experimentáveis que não remetem à previsibilidade ou à antecipação do tempo, refutando a ideia da projeção temporal, inerente à própria etimologia da palavra projeção: algo que prevê um lançamento, antecipa o futuro, compreendendo o tempo como uma seta. De acordo com a raiz latina da expressão projicere, que, em italiano, por exemplo, é progettare, podemos pensar em uma pró-getação, em que está implícita a noção da pre-visão, do vislumbramento do por-vir, em uma temporalização que tenta antecipar o futuro, antever o acontecimento, o destino ou pouso de algo ainda está por ser lançado. “Projeto associa-se a visões utópicas de construção de um futuro. Programas não idealizam ações

269 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e obras para o futuro, mas anunciam a experimentação.”251 Ou seja, era uma preocupação de Oiticica e D’Almeida que a obra não constituísse uma narrativa linear, sequencial e histórica, mas que elidisse, esteticamente, em contrapartida, a formação de discursos dominantes. Em outras palavras, que não fizesse parte da constituição da história dos res gestae – os Feitos Ilustres. De acordo com o filósofo italiano Giorgio Agamben, as transformações culturais estão atreladas às transformações sobre a representação temporal. Enquanto compreendermos o tempo como uma sucessão contínua de instantes conforme um antes e um depois, existirá sempre uma incongruência e um hiato entre a representação temporal e a nossa experiência que dele fazemos, não sendo então possível construirmo-nos como seres autênticos.252 É a esta concepção de linearidade que se distancia a ideia do programa Cosmococa que propõe, por sua vez, relações outras com o tempo que não seja o encadeamento sequencial de ações. Como vimos, nas CCs somos convidados a desvincularmo-nos da temporalização do tempo desde o contato com seu título que privilegia o caráter experimental dos programas em detrimento do planejamento futuro dos projetos. Os espectadores são convidados a participarem do programa, experimentando a multisensorialidade para além da experiência multimídia, mediada e em contato

251 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress: heterotopia de guerra. 252 AGAMBEN. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. 270 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

com o próprio corpo, de modo i-mediato. Para isso, antes de entrar nos blocos, os participantes devem, por exemplo, retirar os sapatos. Em seu pavilhão, as CCs são apresentadas por fichas técnicas que contém indicações sobre a trilha sonora e sugestões de ações a serem desenvolvidas durante a fruição. As imagens projetadas são slides, fotografias de desenhos feitos por carreiras de cocaína em capas de discos ou livros. Os artistas, que foram usuários sem culpa da cocaína, faziam dela também uso estético, remetendo ao ócio. A cocaína era também a promotora de mundos simultâneos, da extensão dos corpos ao mundo e das coexistências. Ao seu uso, Oiticica atribuía uma saída da vida do trabalho e da competição porque os modos de vida não precisam ser superados, eles coexistem. A prima, como Oiticica chamava a coca, era a alienação nas imagens das infinitas experiências simultâneas.253

Sair da vida do trabalho e da competição é precisamente um dos modos de elidir a linearização do tempo, escapando à rotina progressiva em busca de um desenvolvimento progressivo. Na entrada da CC1, Trashiscapes, são disponibilizadas lixas de unha. Os participantes são convidados a experimentar a obra, transcorrendo o tempo acomodados em colchões e almofadas, assistindo aos slides projetados em duas paredes. As ações que os participantes realizam na CC1

253

CERA. Evang’Hélio. 271 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

remetem “à postura preguiçosa de pouco se lixando.”254 As projeções deslizam contemporaneamente ao som de forró, baião, Jimi Hendrix e outros sons, e novamente aqui temos uma configuração anacrônica sobre o contexto original das músicas provenientes de épocas, lugares e gêneros diferentes. O ócio sugerido aos participantes é o contraponto à representação sequencial e linear do tempo, à qual somos submetidos no nosso dia a dia. Um dos marcos da instituição da representação do tempo pela forma de uma seta foi a chamada Norma de São Benedito, que dizia explicitamente que “O ócio é inimigo da alma”.255 A proposta de Oiticica e D’Almeida seria, portanto, a restituição da ociosidade que nos dá o direito de não fazer e nos devolve à condição de sensíveis em contraposição à noção de profissionais. Um das principais questões levantadas pelas CCs poderia ser, portanto: como tornou-se necessária a criação de espaços restritos – apartados da vida – destinados ao não fazer, ao ócio? Os estudos filológicos de Agamben sobre o legado que permanece a partir da tradução do termo grego klēsis, indicam que noções como profissão teriam assumido conotações estritamente inerentes à própria noção de vida: “É através da versão luterana que um termo, que significava originalmente somente a vocação que Deus ou o messias endereçam a um homem, adquire, de fato, o

254 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress: heterotopia de guerra. 255 DISCOVERY. Tempo O eterno movimento. 272 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

significado moderno de ‘profissão’”.256 Ou seja, aquilo que existiria de mais intrínseco a nós – nossa vocação –, tem impresso em seu significado, o significante que contém em si os conceitos de processo e desenvolvimento. Agamben indica ainda como este operador anacrônico desarticula seus significados, já que, em alemão, o termo Beruf257 é a união de vocação e profissão mundana: Enquanto descreve esta imóvel dialética, este movimento surplace, a klēsis pode confundir-se com a condição factível e com o estado, e significar tanto “vocação” quanto Beruf..258

A tradução da palavra vocação, cujos sinônimos seriam ‘predestinação’, ‘tendência’, ‘talento’ ou ‘aptidão’, culminou em uma equiparação ao significante profissão. O termo grego klēsis tinha, portanto, anteriormente à tradução, o significado de chamado, ou seja, vocação, e foi, posteriormente, diretamente vinculado ao sentido

256 AGAMBEN. Il tempo che resta: Un commento alla Lettera ai Romani, p. 26. Tradução nossa. No original: “È attraverso la versione luterana di un temine che significava in origine soltanto la vocazione che Dio o il messia rivolgono a un uomo, acquista, infatti, il significato moderno di ‘professione’”. 257 Em alemão, profissão. 258 Tradução nossa de: In quanto descrive ques’ immobile dialetica, questo movimento sur place, la klēsis può confondersi con la condizione fattizia e con lo stato e significare tanto “vocazione” che Beruf. In: AGAMBEN. Il tempo che resta: Un commento alla Lettera ai Romani, p. 28. 273 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de permanência no moto trabalho. Opondo-se a esta concepção, o chamado que os participantes recebem de Oiticica e D’Almeida é um convite ao puro ócio. Um convite a opormo-nos à secular cultura judaico-cristã que nos diz que nascemos para o trabalho, o progresso, o acúmulo e o desenvolvimento. Este convite à resistência é realizado em todas as cinco Cosmococas. Na CC2, Onobject, temos, no lugar de colchões, uma grossa espuma cobrindo todo o chão, e no lugar das almofadas, sólidos como cones, cubos e cilindros feitos, também eles, de espuma. Ao invés de lixar as unhas, a sugestão é dançar e pular com os sólidos de espuma. Enfim, brincar e se desestabilizar num chão que nos desequilibra. Se a noção que rege as CCs é a perda de tempo – seu desperdício – a brincadeira coloca-se precisamente à contrapêlo em relação à ideia de uma práxis que leva à fabricação de um produto. São desarticulações com os significados que os produtos têm – suas funções –, aberturas que partem da transformação de produtos em objetos, que por sua vez remete ao título deste bloco, a CC2. Objetos, em sua materialidade pura a partir da qual criamos. Citando o romance de Carlo Collodi, Pinóquio, Agamben faz a seguinte inferência: Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma mudança e aceleração do tempo: ‘Em meio aos passatempos contínuos e divertimentos vários, as horas, os dias, as semanas, passavam num lampejo’. [...] o jogo, [...] mesmo que não saibamos ainda como e por que,

274 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

altera [o calendário] e o destrói.259

O jogo, como entendemos as brincadeiras praticadas pelos participantes das CCs, no entanto, não somente corrompe a noção da passagem sequencial do tempo, como, também, profana a esfera de onde, originalmente, ele provém: Pois, se é verdadeiro que o jogo provém da esfera do sagrado, também é verdade que ele a transforma radicalmente, ou melhor, inverte-a a tal ponto que pode ser definido sem exagero como ‘sagrado às avessas’.260

Pensando sobre o fato de os brinquedos serem atualizações de algo que, no passado, pertenceu à esfera do sagrado, ou à esfera prático-econômica do mundo do trabalho, por assim dizer, ou que originouse da miniaturização e desvio de tais objetos à esfera do uso, as formas geométricas da CC2 colocam, por sua vez, em xeque o racionalismo, transformando, para tanto, em brinquedo aquilo que poderiam ser vistos como símbolos da razão geométrica ali representados pelos sólidos de espuma. Formas que teriam em si toda uma carga histórica, ao serem manuseadas pelos gestos das brincadeiras, retornam à sua condição de sólido como pura forma. A essência do brinquedo seria, segundo Agamben,

259 AGAMBEN. Infância e história: destruição da experiência e origem da história, p. 82-84. 260 AGAMBEN. Infância e história: destruição da experiência e origem da história, p. 84. 275 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

eminentemente histórica. Aquilo que o brinquedo conserva do seu modelo sagrado ou econômico, aquilo que deste sobrevive após o desmembramento ou miniaturização, nada mais é que a temporalidade humana que aí estava contida, na sua pura essência histórica.261

Logo, aquilo que os participantes fazem ao se imergirem na CC2 é transcorrer o tempo de um modo que desintegra a sequência linear do calendário, tornando lúdica a relação com a razão – através do jogo com seus símbolos –, fazendo passatempo do acúmulo espacial da história sedimentada nos objetos. “O brinquedo é uma materialização da historicidade contida nos objetos [...]. Aquilo com que brincam as crianças é a história.”262 Tendo em mente que a nossa relação com o tempo é uma relação “profissional”, por assim dizer, em que tentamos acumulálo, equiparando, a todo instante, significantes a significados e fazendo uso de objetos de um modo predefinido que oriente o seu manuseio a um melhor aproveitamento do próprio tempo, a destituição destes significados por meio da brincadeira estabelece uma nova linguagem, um novo modo de ver o mundo, uma outra relação temporal. Brincar é brincar com o tempo, transformá-lo em algo lúdico, desconstruindo a sua forma de progressão numérica.

261 AGAMBEN. Infância e história: destruição da experiência e origem da história, p. 87. 262 AGAMBEN. Infância e história: destruição da experiência e origem da história, p. 87-88. 276 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Também na CC3, Maileryn, assim como em todos os blocos das CCs, o aspecto lúdico prevalece. O chão é formado por pequenas dunas de areia, cobertas por uma lona de plástico rígido, sobre as quais “os participantes são convidados a deitar e rolar [...]”,263 desta vez, com os balões amarelos e alaranjados que flutuam pelo bloco. Na CC5, Hendrix-War, puro ócio volta a ser diretamente remetido pelas redes que são, por excelência, o lugar para se jogar tempo fora, a autêntica inoperância que se dá a ver ao negar as necessidades impostas sobre acumular, crescer, vencer ou melhorar. As redes são próprias de comunidades indígenas – sociedades sem escrita e sem “história”, pelo menos na nossa concepção. Os índios vivem no tempo mítico, e não no tempo da história sancionada, dos grandes feitos. E as redes na CC5 são, por sua vez, colocadas ao lado de projeções de imagens ao som de músicas pop, o que configura, como dissemos anteriormente, um anacronismo – o primitivo ao lado da tecnologia –, em uma autêntica montagem de tempos. Nas redes, ao deitar, as pessoas solevam-se em um movimento que remete à leveza, não mais tendo que sustentar nem mesmo o peso do próprio corpo, liberandose também de pesos que ficarão, momentaneamente, para além do casulo, no qual cada participante se isola da temporalidade do mundo do trabalho. A trilha sonora é de Jimi Hendrix, amigo de Oiticica, que em 1970, declarou “quando as coisas ficarem pesadas demais, me chame de

263 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress: heterotopia de guerra. 277 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Hélio.”264 O descompasso sugerido pelas ações da CC em relação à nossa usual relação com o tempo é propiciado, como vimos, pelas sequências de slides não-narrativas: os “quasi-cinema” e a resistência à linearidade discursiva à qual alude o advérbio quase seria, para Oiticica, parte de uma invenção: Criar, segundo Oiticica, obedece a um impulso naturalista de realizar formas originárias, que prescinde da experiência. Por outro lado, inventar decorre da experimentação e de estudo, não surge espontaneamente, mas resulta de necessidades sentidas, de exigências postas pelo percurso e vivência do inventor ou de seu grupo social.265

Adotar o termo invenção em detrimento de criação é um modo de reforçar o devir-obra, ou seja, de remeter sempre mais ao processo e não à instituição de situações e de narrativas. Privilegiar o termo invenção é, portanto, transformá-lo em um instrumento de resistência. A narrativa oficial ou mestra, discurso dominante ou história dos res gestae, são conformações comprazentes da representação sequencial e linear do tempo. Se nos “quasicinema” da Cosmococa coexistem múltiplas narrativas, a obra, assim, aproxima-se da nossa experiência, do nosso sensível.

264 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress: heterotopia de guerra. 265 CARNEIRO. Cosmococa - programa in progress: heterotopia de guerra. 278 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Oiticica e D’Almeida embaralham a tripartição passado, presente e futuro, fazendo-a inexistir. Eles, ao negarem a noção de projeto que pré-figura um futuro, emperram a temporalização do tempo, fazendo-nos experimentá-lo, na Cosmococa, de um modo outro, em contato direto com nosso sensível em que o tempo é múltiplo.

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279 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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281 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A POESIA AUTORAL COMO VEÍCULO DE COMPOSIÇÃO CÊNICA: UMA EXPERIÊNCIA DE DRAMATURGIA DE ATOR

Raphaela Silva Ramos Fernandes

O homem, como pronunciou Aristóteles em sua Poética, rompeu a trajetória do mundo disposto a imitar. Desse verbo, raiz da arte teatral, os seres sempre sorveram prazer natural e unânime. Os “imitadores”, segundo o filósofo grego, imitam pessoas em ação para edificar o que ele chamou de poesia – trágica ou cômica. E o fazem em busca da verossimilhança. Ao longo dos tempos, a figura do ator aproximouse de outro vocábulo, compor (formar de partes; entrar na constituição de; constituir; arranjar; dispor; produzir; fazer; escrever), mais adequado às novas possibilidades de comunicação e de relação entre arte e vida.266 Antes de chegar ao palco e sobre ele, os atores passaram a constituir e a transmitir, de forma mais ostensiva, suas mensagens íntimas. O discurso do autor e o interesse pelo real deixaram de ser o ventre que carrega escondido o embrião-pensamento de quem age – ou, como definiu Aristóteles, de quem imita a ação. A modernidade e a

266 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba. 282 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

contemporaneidade, portanto, concederam outras funções ao homem da cena, não apenas a de propagar intenções exteriores. Coautor do discurso, ele encontrou formas diversas de habitar o palco. Ao refletir sobre a composição no caso do ator, Bonfitto (2009) descreve como essencial, para que ela se dê, a capacidade de pensar o fazer. Consciente das possibilidades de criação e das “diferentes texturas” de seu trabalho, o ator-compositor não se amedronta diante de complexos fenômenos teatrais. Ele se põe a pesquisar, preparado para imprevistas descobertas. Com diferentes texturas trabalha [...] o ator-compositor. A diferentes texturas ele deve dar um sentido, uma unidade. Tal unidade, por sua vez, só pode emergir de um diálogo – entre o fazer e o pensar o fazer. O fazer, com seu sentir e perceber, transforma o pensar. E o pensar, com a força de sua elaboração, transforma o fazer. Assim, o fazer transformando o pensar e o pensar transformando o fazer geram uma espiral incessante. É nessa espiral que se move o atorcompositor.267

A poesia se apresenta como um dos caminhos que permitem variadas explorações nesse sentido. Ao invadir o universo teatral como eixo do processo de montagem, a poesia contemporânea, de autoria do ator, pode estimular a composição cênica – que viceja já na feitura literária, mas

267 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 142. 283 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

recebe transformações e outros significados no decorrer da travessia. Desde 2010, a autora deste estudo explora a transposição de seus poemas para o palco, tendo montado o espetáculo Coisas da atriz a partir de livro homônimo. Tal procedimento criativo, cabe salientar, permeou o que se pode denominar de dramaturgia de ator.268 Assim, este trabalho pretende analisar de que forma a poesia autoral, percebida como eixo do processo de montagem, pode agir como faísca de criação para o atorcompositor, deflagrando conscientes processos cênicos em consonância com a contemporaneidade. O exemplo utilizado para tal investigação é o já citado espetáculo Coisas da atriz. Após uma revisão teórica sobre o assunto, realizou-se um resgate da forma de construção da referida montagem, no intuito de compreender os tipos de ação e influência da poesia autoral sobre a costura das cenas e as anteriores elaborações de dramaturgia, partitura corporal, voz, sentido e pensamento. Os seguintes “instrumentos” foram utilizados: registro de vídeo, registro fotográfico, anotações feitas durante os ensaios, roteiros provisórios elaborados, entrevistas com a diretora Renata Rodrigues e com a parceira de cena Carú Rezende. As experiências vividas pela autora também contribuíram para as análises. Destaca-se, porém, que este estudo se trata da parte inicial de uma pesquisa de mestrado que, em seu desenvolvimento, irá analisar ainda o processo de criação de Regurgitofagia, de Michel Melamed, baseado em um

268 BARBA. A Arte Secreta do Ator: um dicionário de antropologia teatral. 284 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

livro homônimo de poemas (lançado após a peça). As observações integrantes do item O processo de Coisas da atriz, ademais, podem ser consideradas preliminares.

REVOLUÇÕES NA CENA Os anos 1960/1970 abriram trilha para um fazer teatral outro, cujas bases não estão na imitação, tampouco em universos fictícios fechados.269 As revoluções sociais e tecnológicas instauradas a partir desse período possibilitaram o surgimento do chamado teatro pósdramático. O alemão Hans-Thies Lehmann concedeu ampla visibilidade à expressão, definindo-a como um conjunto de práticas nas quais desaparecem os princípios de narração e figuração e o ordenamento de uma fábula, alcançando-se uma autonomia da linguagem.270 De acordo com o autor, “é [...] cego qualquer questionamento teatral que não reconheça na prática artística do teatro a reflexão sobre as normas de percepção e comportamentos sociais”.271 Lehmann, entretanto, pondera que as vanguardas históricas em torno de 1900 já empregavam recursos de encenação abstratos, tidos como estranhos e que ressaltavam a insuficiência da palavra, embora somente a partir das décadas mencionadas invada a cena um modo diferente de utilização dos signos teatrais, capaz de justificar o emprego do termo pós-dramático.

269 BOND. O ator-autor: a questão da autoria nas formas teatrais contemporâneas. 270 LEHMANN. Teatro pós-dramático. 271 LEHMANN. Teatro pós-dramático, p. 21. 285 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Como enfatiza Fernandes (2006), tal teatro transferiu-se da representação para a presença, do resultado para o processo, da significação para a manifestação, da informação para o impulso de energia e da experiência transmitida para a partilhada. Ainda conforme a autora, “não é a ausência de textos dramáticos que assegura a existência de um teatro pós-dramático, mas o uso que a encenação faz desses textos”.272 De acordo com Bond (2010), Lehmann enumera três níveis de representação teatral: o texto linguístico, o texto da encenação e o texto da performance. Conforme a autora, ao realizar essa distinção, Lehmann amplifica a noção de texto, redefinindo sua importância e colocando em xeque o poder da palavra lógica, escrita e do autor. O texto da performance trata da situação teatral propriamente dita e mantém intensa ligação com o linguístico e o da encenação, determinando-os. Essa autoria da cena, comandada pelo ator, entremeia-se aos outros níveis, numa partilha imensurável.273 Os três níveis textuais apresentados por Lehmann, em uma análise inicial, podem ser observados em Coisas da atriz: - Texto linguístico: a poesia escrita; - Texto da encenação: a poesia na cena e a dramaturgia do ator; - Texto da performance: o acontecimento teatral; a

272 FERNANDES. Teatralidades contemporâneas, p. 51. 273 BOND. O ator-autor: a questão da autoria nas formas teatrais contemporâneas. 286 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

travessia poesia escrita-poesia na cena.

EVOLUÇÃO DO PAPEL Ao longo das tumultuadas décadas do século XX e das primeiras do século XXI, o ator percorreu incontáveis estações. Não mais estacionado em uma intenção exterior (do texto ou do diretor), o homem da cena assumiu a coautoria da mensagem, legível ou não legível, a ser levada aos espectadores.274 Outra função no processo de criação começa, então, a associar-se ao ator, que possui como procedimentos disparadores de trabalho as palavras, as ações, as relações, a atualidade. Ele passa a ocupar, portanto, a posição de mediador no jogo entre as diversas camadas de atuação, permitindo distintas interpretações. O tratamento contemporâneo dado aos signos teatrais aproxima o teatro da arte performática (numa referência à Performance Art, assim denominada a partir dos anos 1970), na qual o ato ocupa o lugar da totalidade.275 A mimèsis aristotélica, como compreendida de forma geral (e superficial), cede espaço para a autorrepresentação na medida em que os limites entre teatro e performance esmorecem. O papel deixa de ser a única trilha do ator sobre o palco – ou qualquer outro local de encenação. A “simples” presença do ator, dessa maneira, é capaz de se comunicar com a plateia de modo poético.

274 BOND. O ator-autor: a questão da autoria nas formas teatrais contemporâneas. 275 BOND. O ator-autor: a questão da autoria nas formas teatrais contemporâneas. 287 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Na evolução do papel desenhada por Roubine,276 chega-se ao momento da constatação de que toda atividade consciente desdobra-se em múltiplas atividades inconscientes, não controladas pelo sujeito. Instaura-se, assim, a valorização do ator em processo, que culmina em outro modo de habitar o palco. Conforme propõe Bond (2010), o ator-autor fixa-se na fronteira entre indivíduo e personagem, entre vida e arte. Embora não seja ele mesmo em cena, tampouco veste uma figura produzida e substancial. Lidando com a própria subjetividade, o ator engendra a fluidez de um discurso que se mistura e dialoga com outros elementos: objetos, figurinos, lugares, parceiros. Parece ser esse entrelugar o território habitado pelas figuras propostas no espetáculo Coisas da atriz.

OS ACTANTES E O ATOR-COMPOSITOR Para refletir acerca da atuação e do texto, Bonfitto (2009) apresenta a ideia de seres ficcionais – cuja construção pode estar acoplada a diferentes matrizes – e opta por estudá-la a partir da variante texto dramático. De acordo com o autor, certos textos concatenam palavras e sentidos de tal forma a levar o leitor à percepção de um discurso e de um “eu” específico. Nesse caso, a personagem é vista como um indivíduo, que se acentua por meio do corpo e da voz do ator (personagemindivíduo). Outros textos, porém, não se atêm aos conflitos individuais, embora preservem uma situação reconhecível.

276

ROUBINE. A arte do ator. 288 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Aqui, já não surgem nomes próprios, mas são apontadas categorias, classes ou tipos (personagem-tipo). Existem ainda as escritas ausentes de estrutura dialógica, situações concretas e dados sobre papéis. Um “fluxo fragmentado por espaços vazios”, então, passa a acolher pequenas porções de uma mensagem dividida em falas.277 Para analisar essa dramaturgia contemporânea, que não privilegia enredo e personagens, Bonfitto (2009) apropria-se da noção de actante, ou seja, “tudo aquilo que atua”. Na medida em que a narrativa focaliza os elementos modalizadores dos seres ficcionais, dispensando-os das sucessões lógicas, eles “destemporalizam-se” e “espacializam-se”. Nasce, desse modo, o actante-estado. Nele, “não encontramos ações passíveis de serem definidas do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da intriga, nem é possível identificar em tal ser ficcional uma estrutura lógico temporal”.278 Quando tal situação se intensifica a ponto de anular a personagem, suas características, a intriga, o tempo e o espaço, o que sobra é o enunciado incapaz de contar uma história. Percebe-se, assim, a transferência de funcionalização da personagem para o texto. Este torna-se o regente das leis, falando, agindo e assumindo os predicados que já estiveram na personagem. Tem-se, portanto, o actante-texto.279

277 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 132. 278 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 134. 279 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas 289 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Como construir tal ser ficcional, ou seja, o actante-texto? Comecemos pela via negativa. Diante dos textos citados, não parece ser possível utilizar os mesmos procedimentos que podem ser empregados para construir o actante-máscara (tipo ou indivíduo). Diante de tais textos, novos caminhos devem ser buscados, pois se tornam necessários.280

Pode-se apontar ainda, conforme o autor, o actante-máscara, que reúne tanto a personagem-indivíduo como a personagem-tipo, descritas no segundo parágrafo deste tópico. O ator-compositor, dessa maneira, é aquele que entende como impossível o emprego dos mesmos procedimentos para a construção dos diferentes actantes. Imerso em uma proposta de investigação prática, ele reconhece a existência de elementos constitutivos de seu trabalho expressivo e procura outros métodos para o actante-estado e o actante-texto, não apenas os mais comumente aplicados à descoberta do actante-máscara. Na realidade, por vezes, a direção é exatamente inversa. As ações executadas pelo ator, em muitos casos, são o ponto de partida para a construção do sentido do texto. Ou seja, o sentido é produzido a partir da execução das ações físicas e vocais do ator. [...] Na construção do actantemáscara existe uma conexão entre intenção e sentido. Na construção do

como eixo: de Stanislavski a Barba. 280 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 139-140. 290 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

actante-estado e do actante-texto, existe uma conexão entre corporeidade e sentido. A unidade do actante-estado e do actante-texto, assim, encontra-se não na coerência psicológica, mas na partitura das ações.281

Como mencionado anteriormente, a poesia contemporânea de autoria do ator pode manifestar-se como uma faísca deflagradora de tais explosões criativas nos processos teatrais contemporâneos. Embora Bonfitto assevere basear-se no texto dramático como matriz geradora da encenação, o exemplo que ele oferece para o actante-texto (P. Hanke, “Self-Accusation”, Kaspar and other Plays, New York, Hill & Wang, 1991; tradução de Matteo Bonfitto e Alexandre Krug) em nada se difere de uma poesia da atualidade. Transcreve-se um trecho (p. 130): “eu vim ao mundo. eu passei a ser. eu fui gerado. eu surgi. eu fui crescendo. eu fui parido. eu fui registrado no livro de nascimentos. eu fiquei maior. eu me movi. eu movi partes de meu corpo. eu movi meu corpo. eu me movi no mesmo lugar. eu me movi do lugar. eu me movi de um ponto para o outro. eu tive de me mover. eu fui capaz de me mover [...]”

Ou seja, a escritura poética, desenhada pelo ator, exigirá dele (assim como o trecho trazido por Bonfitto)

281 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 141. 291 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

plena consciência de sua feitura e o reconhecimento de distintas práticas improvisacionais e experimentações práticas que permitam a construção de um ser ficcional, possivelmente situado no entrelugar que separa a personagem do indivíduo. Por consequência, perguntase: quais as especificidades desses textos no trajeto de criação do ator? E o inverso: o que o ator precisa possuir/ conhecer/entender para criar a partir desses textos? Diante de tais textos, talvez, o percurso de construção do actante-estado e do actante-texto deva ser analítico, e não sintético. Ou seja, não se perseguiria uma “ideia” genérica relacionada a tal ser ficcional para poder construí-lo. Servindo-se da improvisação enquanto “espaço-mental”, vários procedimentos pertencentes a diferentes matrizes podem ser empregados: visualização de imagens, resgate de experiências pessoais, associações mentais resultantes da utilização sonora das palavras etc.282

O espetáculo Coisas da atriz transita por esse espaço labiríntico e aberto a visitas exposto por Bonfitto. Aqui está, portanto, o foco deste estudo: uma experiência cênica reveladora de uma dramaturgia de ator atravessada pela poesia autoral. O que há de particular nessa junção de fazeres?

A POESIA E O TEATRO 282 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba, p. 140. 292 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

O termo composição, aqui garimpado, também serve à noção de poema. Este, desde a origem, aproxima-se do teatro. Em sua etimologia grega, o termo poiesis significa fabricar. A feitura poética, porém, pode desaguar em três grandes categorias na teoria dos gêneros literários. Curiosamente, na Poética, Aristóteles não tratou unicamente do que depois se convencionou chamar de poesia: a lírica, cuja voz ficcional é o “eu” (segundo a subjetividade romântica). Ao esmiuçar o épico (ele) e o dramático (tu), o filósofo definiu os pilares da arte teatral, apontando a interlocução e o diálogo como indissociáveis do drama.283 Nos tempos atuais, são comuns expressões que fundem teatro e poesia, numa amálgama sem fim nem começo. Por vezes, o texto poético nasce, segue primeiro à cena e só depois se materializa em livro de poemas como discurso não dramatúrgico, porém, já repleto de outros significados conferidos pelo acontecimento teatral e pelo público. Um exemplo seria o espetáculo Regurgitofagia, de Michel Melamed. Em outras situações, a poesia surge primeiro nas páginas e só depois é levada ao espaço de encenação pelo próprio ator-autor, responsável por um segundo processo de criação (segunda poetização), apoiado nas imagens e na sonoridade das escrituras. Aqui, pode-se citar a peça Coisas da atriz, estruturada, como já mencionado, a partir do livro homônimo da autora desta pesquisa.

283 GUINSBURG; FARIA; LIMA. Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 293 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Mas, afinal, por que a poesia serve de forma recorrente ao teatro? Patrice Pavis formula a questão de outra maneira e responde: Por que o teatro teima hoje em montar poesia? A princípio, porque a poesia obriga o espectador a uma outra escuta, o que beneficia tanto a poesia quanto o teatro. A poesia reencontra a oralidade, a corporalidade, a humanidade de textos quase sempre condenados ao segredo do papel e da voz interior. O monólogo interior, as vozes misturadas, a polifonia têm que se expor na performance cênica. Assim, o teatro abre uma outra via à poesia: ao teatralizar-se, ao enunciarse em público, a poesia reencontra suas origens na poesia oral ou no conto de certas culturas orais remanescentes [...].284

O autor vai além: A encenação, determinada a “fazer teatro de tudo”, com um só golpe estende seu império a outros domínios, efetua passagens extremas montando renomados textos consagrados, poéticos ou filosóficos ou escritos numa língua inventada. Não mais buscando explicar ou ilustrar a palavra poética, não mais sendo encenação, mas “colocação em ato de um escrito”, a encenação encontra liberdade de atuação e obriga o espectador a abrir mão de sua preguiça natural, do gosto pela identificação prazerosa ou pelo

284

PAVIS. Dicionário de teatro, p. 295. 294 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

distanciamento protetor, para refletir sobre o que se passa nele, e isto, unicamente durante a enunciação do texto e para favorecer uma mediação interior, uma livre associação a partir da escuta de poemas.285

Cabe ressaltar ainda que a poesia, embora atue como agente estimulador de criação, não comanda o processo e possui a mesma importância que os demais elementos (corpo, espaço etc). O texto literário, dessa maneira, é compreendido como caminho. Um caminho, aliás, bastante explorado, já que o ator, como autor, segue por ele da poesia ao teatro. E os múltiplos discursos se misturam. Quem fala: o poeta, o ator ou o ser ficcional? Com efeito, a partir do momento em que há disposição do texto poético no espaço concreto, desde que personagens-locutoras tomam corpo, a poesia oscila do espaço mental, protegido, ao espaço público, aberto a todos. Ao tomar corpo assim de repente, o texto poético que apresentava ao leitor apenas vozes misturadas põe-se a representar locutores, sobre os quais não se sabe se são representantes diretos do poeta, que fala na primeira pessoa, ou, então, personagens que se expressam em seu próprio nome.286

O PROCESSO DE COISAS DA ATRIZ 285 286

PAVIS. Dicionário de teatro, p. 295. Grifo nosso. PAVIS. Dicionário de teatro, p. 294. 295 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Jacques Lecoq, em seu livro O corpo poético, descreve algumas estações de sua viagem ao fazer teatral. A primeira delas é a vida, e a segunda, o que o autor costuma chamar de fundo poético comum. Trata-se de uma dimensão abstrata, feita de espaços, de luzes, de cores, de matérias, de sons, que se encontram em cada um de nós. Esses elementos estão depositados em nós, a partir de nossas diversas experiências, de nossas sensações, de tudo aquilo que vimos, escutamos, tocamos, apreciamos. Tudo isso fica em nosso corpo e constitui o fundo comum a partir do qual surgirão impulsos, desejos de criações.287

Para não permanecer estagnado na vida tal qual ela é, o ator precisa acessar o fundo poético comum. Por vezes, ao abrir seu baú de referências, o ator desvenda outro mapa de criação, como, por exemplo, a sua poesia gravada em um papel. O livro Coisas da atriz reúne textos elaborados a partir da vivência teatral e ávidos por serem transcriados. Ao misturar emoções produzidas em cena e no espaço real, a obra instaura dinâmica cíclica, tal qual a de um oroboro. Assim, a poesia que veio do teatro a ele retorna. Para a peça homônima, lançada em novembro de 2010, foi construído um roteiro prévio, matriz do trabalho de composição cênica, que não incluiu todas as 50 poesias do

287 LECOQ. O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral, p. 82. 296 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

livro. Dessa forma, durante o período de experimentações práticas e com a ajuda de sua companheira de cena, a atriz-autora desenhou um segundo texto ao retalhar e costurar escrituras (tal texto já evidenciava a dramaturgia do ator). Surge, assim, uma narrativa entrecortada, não linear e não lógica, embora demarcada por algumas indicações de sentido: o roteiro passeia pela trajetória de uma atriz (refere-se, aqui, ao ser ficcional proposto pela encenação), que já nasce atuando, cansa-se do amor representado, frustra-se com o amor legítimo e retorna ao palco para se transformar. O novo texto roteirizado já não contém unicamente o discurso primeiro da poeta-atriz. Arquiteta-se sobre um segundo pensamento, organizado com auxílio da outra atriz e deflagrado a partir dos exercícios práticos propostos pela diretora. Sem identificar indivíduos ou tipos (a figura atriz, neste caso, não aparece como representante de uma classe profissional), o percurso cênico em elaboração faz emergir um ser ficcional sem tempo e sem espaço, morador da cisão entre personagem e sujeito, como propõe Bond (2010). Uma unidade espelhada ou dividida, experimentada pelas duas atrizes. Um actante-estado? Um actante-texto?288 Na escrita, não é possível identificar qualquer enredo palpável e decifrável, ainda que a autora vislumbre um sensível fio condutor da ação. Para exemplificar, cita-se a relação entre a primeira poesia da peça, que faz referência ao rio, e a última, relativa ao mar.

288 BONFITTO. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba. 297 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Como saber se todos os espectadores compreenderão que o ser ficcional faz essa viagem de deságue? Não há garantias, e essa não é a intenção do processo criativo e, consequentemente, do espetáculo. A partir da ação mais ostensiva da diretora já no espaço de encenação, tem-se um terceiro texto – o da encenação, de acordo com conceito de Lehmann (2007). Nessa fase, as duas atrizes iniciam a descoberta do território cênico: uma casa antiga de dois andares, onde funciona um centro cultural, com cômodos vazios, inúmeras portas que os dividem e piso de madeira. Após sete meses de pesquisas, ao entrar na casa, as atrizes descobrem movimentos, marcações e partituras corporais que parecem ser sugeridas pela arquitetura do lugar. A escuta, da qual fala Pavis (2008), está incorporada nas dramaturgias de atuação também na relação com o espaço. A poesia, por vezes, transmite força tamanha às palavras que a personagem “destemporalizada” chega a “desespacializar-se” e anular-se. “De tanto escutar, emudeço / de tanto apanhar, endureço”.289 Tal verso, inserido na parte central da montagem, é dito sem o acompanhamento de qualquer gesto ou movimento, sem complementos que o contextualizem. Quem emudece, quem apanha e por quê? Em determinada fase das experimentações, as atrizes e a diretora optam por incluir um violinista em cena, que, a princípio, iria conduzir os espectadores durante

289

RAMOS. Coisas da atriz. 298 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

a peça (as cenas têm início no primeiro andar, seguem para o segundo, desenrolando-se em vários cômodos e encerram-se novamente no piso de baixo). Pouco antes da estreia, o violinista transfere para outra pessoa, a diretora, sua função de guia e passa a esconder-se do público, emitindo seu som de diferentes lugares. As atrizes são, dessa maneira, acompanhadas apenas pela música, que amplifica a estética onírica do espetáculo. Da mesma forma, o figurino (um vestido-camisola rosa claro), os cabelos molhados e a maquiagem limpa implementam outros códigos relativos à noção de sonho, fantasia e loucura. Diante do público, então, estabelece-se um quarto texto: o da performance, segundo Lehmann (2007). Todos os elementos, a cada apresentação, ajustamse de determinada forma, permitindo o nascimento de uma nova rota para o mesmo destino. Às atrizes, cabem as tarefas de permanecer atentas às possibilidades do texto da encenação, uma vez que ativamente são compositoras desse processo. Ademais, elas devem afiar o impulso criador do texto da performance e reconhecer, incessantemente, as potências do próprio trabalho.

299 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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301 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

APONTAMENTOS SOBRE A CRÍTICA LITERÁRIA A HOMERO NO TRATADO SOBRE O ESTILO DE DEMÉTRIO290

Gustavo Araújo de Freitas

Inúmeras dúvidas rondam o tratado Sobre o estilo, a começar pela questão envolvendo sua data e autoria.291

290 Este artigo foi concebido a partir da dissertação de mestrado defendida pelo autor no 1° semestre de 2011, dentro do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, na área de concentração de Estudos Clássicos, da Faculdade de Letras da UFMG, intitulada “Sobre o estilo” de Demétrio: um olhar crítico sobre a literatura grega (tradução e estudo introdutório do tratado), sob a orientação do Prof. Dr. Jacyntho José Lins Brandão. 291 Para uma melhor apreciação acerca dessa questão cf. CHIRON. Un rhéteur méconnu: Démétrios, p. 311-370; CHIRON. Démétrios. «Du style, XIII-XL; INNES. Demetrius. “On style” (in Aristotle, v. XXIII, p. 312-321. Como se nota, os estudos mais recentes tendem a uma datação anterior ao séc. I d.C., sugerida por Roberts, embora, de fato, ele não tenha desconsiderado a possibilidade do séc.I a.C. (ROBERTS. Demetrius on style, p. 64.). Entre as datas propostas pelos estudos mais recentes, destacam-se: 270 a.C. (GRUBE. A Greek critic: Demetrius on style, p. 56.); séc. I d.C., mas refletindo o segundo ou o primeiro século a.C. (SCHENKEVELD. The intended public of Demetrius’s on style: the place of the 302 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Durante anos, ela foi alvo de incontáveis controvérsias, que ainda hoje não estão de todo resolvidas. Ao longo do tempo, os estudiosos propuseram datas que vão desde o séc. III a.C. ao séc. II d.C., e, quanto a seu autor, convencionou-se chamá-lo de Demétrio, devido a indicações em manuscrito, mas não há nenhuma informação a seu respeito.292 Contudo, por características presentes no próprio texto, pode-se considerá-lo como um manual de retórica inserido no contexto do período helenístico, situando-o por volta do séc. I a.C, sob a marcante influência dos peripatéticos e do estoicismo.293Ademais, ele apresenta

treatise in the hellenistic educacional system, p. 147.); fins do período alexandrino, entre o aristotelismo estoicizante e a cultura greco-romana (MORPURGO-TAGLIABUE. Demetrio: dello stile, p. 141); fins do segundo século ou, de modo mais verossímil, em meados do século I a.C. (CHIRON. Un rhéteur méconnu: Démétrios, p. 370); séc. I a.C., mas refletindo, ao certo, concepções do séc. II a.C. (INNES. Demetrius. “On style” (in Aristotle, v. XXIII), p. 312-321). Quanto à autoria dada por indicações presentes em manuscritos, cf. CHIRON. Démétrios. «Du style», p. XV-XVIII; INNES. Demetrius. “On style” (in Aristotle, v. XXIII), p. 312. 292 Cf. INNES. Demetrius. “On style” (in Aristotle, v. XXIII), p. 312. 293 Chiron oportunamente lembra que esse seria uma das únicas fontes de informação sobre a estilística pósaristotélica anterior a outras obras mais conhecidas, como a Retórica a Herênio, aquelas de Cícero e as de Dionísio de Halicarnaso (CHIRON, Démétrios. «Du style», p. XII). Acerca de sua inserção no período helenísitco, cf. ainda PERNOT, La Rhétorique dans l’Antiquité, p. 86; KENNEDY, 303 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

com um caráter notadamente didático, conselhos de como compor um discurso, e também é notável que esses venham acompanhados de um grande número de reflexões críticas sobre passagens da literatura grega, o que inclusive gerou um fecundo debate sobre a possibilidade de estarmos diante de um manual de retórica ou de uma de obra de crítica literária.294

A new history of classical rhetoric, p. 89. 294 Innes chega a afirmar que, à diferença de muitas outras fontes, particularmente em latim, não haveria nele uma propensão para a oratória (INNES, 2005, p. 312). Grube, sem que, de fato, desconsidere a vinculação do tratado à retórica, em dado momento, comenta que o interesse de Demétrio seria pela literatura, mais do que pelos processos, casos ou argumentos ligados aos tribunais (GRUBE, The Greek and Roman critics, p. 119). Em outra ocasião, o mesmo autor volta a salientar que os interesses de Demétrio são obviamente literários, mais do que retóricos no sentido estrito, e lembra que os oradores são frequentemente mencionados, mas apenas como um tipo de literatura dentre vários (GRUBE, A Greek critic: Demetrius on style, p. 22). Kennedy comenta que além das lições de como se escrever bem, o PH é também uma sensível peça de crítica literária (KENNEDY, Classical rhetoric and its christian and secular tradition from ancient to modern times, p. 131). Schenkeveld defende, no entanto, a ideia de que o tratado de Demétrio tenha, de fato, sido um manual de retórica (SCHENKEVELD, Studies in Demetrius on style, p. 51-52), e, ao certo, é mesmo dele a melhor resposta para a questão, no artigo intitulado “The intended public of Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic educacional system”. Nessa ocasião, o autor situa a obra no contexto educacional do período helenístico, em uma fase 304 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

E, sem dúvida, há uma relação de tal modo imbricada da retórica com a crítica literária, que Classen chegou a pôr em xeque a própria existência de limite entre elas, conquanto caiba uma importante ressalva.295 Apesar de concordarmos quanto à presença de uma relação, até certo ponto, indissociável, à exemplo de Schenkeveld pensamos que os motivos apresentados por Classen para a dissolução de tais limites, mostram-se, antes, imprecisos.296

do aprendizado em que a crítica literária não apenas se faz presente como se coloca a serviço da própria retórica (cf. infra). 295 Cf. CLASSEN, Rhetoric and literary criticism: Their nature and their functions in Antiquity, p. 527, acerca do tratado de Demétrio: Rhetoric or criticism? There is no need for an answer. What matters here is to determine the origin and function of such a treatise. Obviously, its aim is to assist people in efforts to improve their style of writing, perhaps even to compose acceptable works of literature; its starting point is the author’s conviction that such a goal cannot be achieved by the study of classification and precepts (alone), but rather by reading, analyzing, evaluating and appreciating literature. One might, of course, say that literary criticism has been made the servant of rhetoric here; I would rather argue that in this case we have one of the few instances where rhetorical instruction has freed itself from the fetters of and gone beyond the limits of arid definitions and rules and draws on the rich resources of actual literary works to install life into the numerous categories which the traditional handbooks differentiate. 296 Acerca da divergência entre os autores, cf. SCHENKEVELD, The intended public of Demetrius’s on 305 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A discussão proposta por Schenkeveld acerca do público de Sobre o estilo faz-nos, pois, reconsiderar a asserção daquele autor, afinal ela chama a atenção, fundamentalmente, para o contexto da inserção do tratado no sistema educacional, o qual, conforme lembraram oportunamente autores como Bompaire, Marrou e Neves, teve pouca variação desde a época de Alexandre e também sem diferenças significativas entre Grécia e Roma.297 Com efeito, Schenkeveld concluiu que Demétrio estaria escrevendo seu livro para leitores que já teriam completado cursos de gramática – e, por essa razão, ele poderia citar Homero em uma versão reduzida, referirse ao hexâmetro e outros metros, bem como às figuras de estilo, sem se aprofundar – e que também já teriam passado pelos cursos iniciais de retórica, onde teriam estudado e praticado os progymnásmata e lido e decorado várias passagens famosas de autores da prosa.298

style: the place of the treatise in the hellenistic educacional system, p. 47; CLASSEN, Rhetoric and literary criticism: Their nature and their functions in Antiquity, p. 525-528. 297 Cf. BOMPAIRE, Lucien Écrivain: Imitation et création, p. 35; MARROU, História da educação na Antiguidade, p. 153; NEVES, A vertente grega da gramática tradicional, p. 103. Para uma melhor compreensão acerca da disciplina gramatical, cf. NEVES, A vertente grega da gramática tradicional; acerca do ensino literário no período em questão, cf. ainda BOMPAIRE, Lucien Écrivain: Imitation et création, p. 33-97. 298 SCHENKEVELD, The intended public of Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic educacional system, p. 40 306 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Nessa nova fase do aprendizado, então, esses alunos partiriam para lições mais difíceis, comumente chamadas de declamationes, as quais teríamos de supor que, no período helenístico do terceiro/segundo século, não se restringiriam à prática forense e deliberativa, mas também ao discurso epidítico.299 Em suma, estaríamos diante de um manual do orador em uma fase mais avançada do aprendizado, em que, conforme enfatizou Schenkeveld, a crítica literária não apenas se faz presente, como se torna um importante instrumento a serviço da retórica,300 sendo, pois, consolidada no procedimento de seleção dos melhores exemplos a serem avaliados positiva ou, por vezes, negativamente, sob a ótica da abordagem conveniente dos assuntos por eles apresentados. Além disso, este público explicaria ainda, de modo um tanto satisfatório, o destaque conferido à poesia e, sobretudo, a Homero: de um lado, a importância da crítica literária, e, de outro, o fato de os pontos levantados já terem sido pensados pelo gramático e de os exemplos já serem devidamente reconhecidos.301 Lembremos a

299 SCHENKEVELD, The intended public of Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic educacional system, p. 47. Para uma percepção mais ampla acerca do ensino literário e a questão da mimese cf. BOMPAIRE, 2000, p. 33-97. 300 SCHENKEVELD, The intended public of Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic educacional system, p. 47 301 Cf. SCHENKEVELD, The intended public of 307 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

propósito que, além de Homero, vários poetas mereceram destaque: Safo, em nove ou onze ocasiões,302 Arquíloco (§ 5), Anacreonte (§ 5), Alceu (§ 142), Epicarmo (§ 24), Hipônax (§ 132, 301), Sotades (§ 189), Teógnis (§ 85).303 E se esse mesmo público poderia ser o motivo, como destacou ainda Schenkeveld, do fato de não

Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic educacional system, p. 44. Nesse sentido, é oportuno salientar que grande parte dos exemplos recolhidos dos poetas ilustra o emprego de recursos estilísticos que não se restringem à poesia, mas, ao invés disso, são também aplicáveis à prosa (à guisa de exemplo, cf. § 52, 55, 72, 78-79, 106-108). Daí, o considerável número deles em um tratado cuja principal preocupação não é a princípio a poesia especificamente, mas o discurso de uma maneira geral. E ressalto a expressão “discurso de uma maneira geral”, e não exatamente “prosa”, porque, na maior parte do tempo, não se verifica uma preocupação maior em delimitar os dois referidos tipos de discurso, salvo em circunstâncias determinadas; ou seja, a distinção proposta nas linhas introdutórias e que será, de algum modo, mais presente na introdução do tratado, não é uma tônica na obra, além do que o próprio termo utilizado para referir-se à prosa, lo/goj, ao longo do PH, não se aplica de forma estrita a ela, mas, ao contrário, algumas vezes ele é aplicado inclusive ao texto em verso. Acerca dessa terminologia, cf. FREITAS, Sobre o estilo de Demétrio: um olhar crítico sobre a Literatura Grega, p. 26-30. 302 § 106(?), 127, 132, 140, 141, 142(?), 146, 148, 162, 166, 167; (os pontos de interrogação, entre parênteses, marcam as passagens em que as citações são de atribuição discutida). 303 Para um panorama acerca do número de menções a autores e citações, cf. CHIRON, 2001, p. 383-389. 308 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

serem necessárias explicações detalhadas acerca de determinados assuntos,304 ele poderia justificar também, em grande medida, as eventuais lacunas nas reflexões críticas que acompanham várias das menções aos autores citados, incluindo Homero. E, nesse ponto, vale lembrar o que bem salientou Bompaire a propósito da educação no período: a iniciação à crítica ocorre na escola do gramático, ao menos essa parte essencial que é a krísis poiēmátōn.305 Assim, justifica-se também de modo bastante satisfatório a existência das lacunas nas reflexões de Demétrio acerca do poeta, as quais, como se percebe, não podem ser vistas como meras faltas do autor, mas antes entendidas segundo as próprias condições admitidas pelo público a que seria destinada a obra, pelo menos a princípio. Logo, o intuito de buscar preencher ainda que minimamente essas lacunas legitima também a nossa tentativa de sistematizar essa crítica. Desse modo também, teríamos, em linhas gerais, o contexto da obra para se pensar a inserção da crítica a Homero na mesma. Dito isso, então, o próximo passo é procurar

304 Os metros na poesia, por exemplo. Tampouco seria necessária uma definição sobre certos termos técnicos como as figuras. Ou, ainda, no que concerne às passagens extraídas dos autores clássicos, algumas teriam de ser citadas na íntegra, enquanto outras não teriam igual necessidade (SCHENKEVELD, The intended public of Demetrius’s on style: the place of the treatise in the hellenistic educacional system, p. 40). 305 Cf. BOMPAIRE, Lucien Écrivain: Imitation et création, p. 36. 309 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

entender como se dá essa inserção mais precisamente no plano do desenvolvimento teórico proposto pelo autor. E, antes de tudo, não poderíamos deixar de verificar o modo como as menções ao poeta se distribuem ao longo do PH,306 pois se revela nisso também um traço essencial no contexto da crítica de Demétrio. O poeta é, pois, o autor com maior número de citações referentes ao estilo grandioso, o que retrata a sua maior identificação com esse tipo de estilo. Contudo, seus versos são encontrados por todo o tratado: ora grandiosos, ora elegantes ou cômicos, por vezes simples, ou até mesmo veementes, eles são apresentados como componentes de uma obra rica e bem sucedida em virtude da grande quantidade de recursos estilísticos aplicados a uma gama igualmente expressiva de assuntos. Ao certo, essa maneira como as menções a Homero e a sua obra se dispõem ao longo da introdução e dos quatro capítulos reproduzindo a riqueza estilística do poeta, remete-nos, oportunamente, à “mescla de estilos”, proposta nos parágrafos 36 e 37, onde se encontram considerações essenciais, ainda que gerais, a respeito da teoria dos quatro tipos elementares. Na ocasião, após

306 Homero é lembrado em quarenta e duas ocasiões (acerca das citações extraídas da Ilíada, cf. § 7, 25, 48, 54, 56, 57, 61, 64, 79, 81, 82, 83, 94, 105, 111, 124, 189, 200, 209, 210, 219, 220, 255, 257; Odisseia, cf. § 52, 57, 60, 72, 94, 107, 113, 129, 130, 133, 152, 164, 219, 262. Outras menções ao poeta: § 5, 12, 36, 150). Para um panorama acerca do número de menções a autores e citações, cf. ainda CHIRON, 2001, p. 383-389. 310 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

discorrer acerca de suas respectivas denominações, Demétrio ressalta que os outros tipos seriam o resultado de uma mistura desses quatro, com exceção do grandioso e do simples, que nunca se misturariam, e, para exemplificálo, o autor destaca a prosa de Platão, Xenofonte, Heródoto, além, é claro, da poesia de Homero. Mas se, por um lado, parece indiscutível que essa “mescla” possa ser contemplada no modo como se distribuem os apontamentos ao poeta ao longo do tratado, por outro, é também certo, conforme dissemos antes, que a maior identificação de Homero é com o estilo grandioso. De todas as menções feitas a ele, quatorze referem-se a tal estilo, enquanto cinco são referentes ao estilo elegante, três ao simples, e outras três ao veemente.307 Em consonância, o próprio verso utilizado pelo poeta, o hexâmetro, é também identificado com o primeiro tipo de estilo descrito por Demétrio. Mas é sabido que a abordagem apropriada da temática grandiosa passa não apenas pela escolha do metro, ao contrário, ela se dá também por meio de muitos outros recursos, descritos, então, pelo autor do PH como determinantes para se atingir um estilo elevado. Aliás, as figuras utilizadas pelo poeta e adequadas à grandeza serão relatadas em vários pontos da obra, como, por exemplo, no parágrafo 61, onde o autor comenta a epanáfora na Ilíada, II, 271-273: “Nireu três naus conduzia, Nireu, filho de Aglaia, Nireu,o mais belo homem que veio

307

Cf. CHIRON, 2001, p. 389. 311 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

até Ílion”.308 Até mesmo determinados procedimentos que, a princípio, consideraríamos opostos, são aludidos como fatores de grandeza em Homero; é o caso do emprego das partículas de ligação (syndesmoí). Em dado momento, a supressão delas, também chamada de disjunção (diálysis), é apresentada como um fator de elevação do estilo, fenômeno observado nos mesmos versos da Ilíada (II, 271-273) supracitados. Porém, no parágrafo 54, o autor afirma que seria, justamente, a sucessão de partículas, ou seja, o excesso delas, que promoveria a grandeza das cidades beócias nomeadas na Ilíada, II, 497: “E Esqueno, e Escolo, e montanhosa Esteono”. Apesar da evidente oposição, há algo de comum entre os dois procedimentos: ambos fogem ao uso corrente, isto é, àquilo que é próprio do costume. E justamente o costume (tò sýnēthes) é concebido por Demétrio como adequado para questões menores, conforme afirma no parágrafo 60: “Tudo o que é costumeiro é próprio de questões menos relevantes e, por isso, também nada admirável”. Passagem que, aliás, precede o desenvolvimento acerca da disjunção acima mencionado. Em outras palavras, o fato de escaparem ao uso corriqueiro parece justificar, pelo menos em parte, o emprego de ambos os procedimentos – à primeira vista, opostos – para se atingir a grandeza nos versos supracitados. Mas os comentários de Demétrio acerca da obra

308

§ 61. 312 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de Homero revelam ainda outro traço notório de sua crítica ao poeta. Refiro-me à capacidade que atribui a este último de fazer com que assuntos a priori de pouca relevância tornem-se grandiosos,309 como pode ser notado nos parágrafos 54 e 61, mencionados anteriormente, os quais tratam, em um primeiro momento, dos versos da Ilíada que indicam o nome das cidades beócias e, depois, da personagem de Nireu. No primeiro caso, as cidades, embora comuns e irrelevantes, adquiririam volume e grandeza nos versos do poeta; no segundo, um personagem considerado pouco relevante, graças ao engenho de Homero no emprego dos recursos estilísticos, teria se tornado grande, e seus bens, antes poucos, numerosos. Vale ressaltar que o poder da figura nos versos referentes a Nireu é a tal ponto sobrevalorizado que, no parágrafo subsequente, Demétrio chega a propor que, mesmo tendo sido nomeado uma única vez na ação, essa personagem menor seria lembrada por nós tanto quanto Odisseu ou Aquiles. Ainda outro aspecto dessa crítica, digno de nota, é o de reportar-se à engenhosidade do poeta em lançar mão de determinados recursos para transmitir emoção (páthos). Um desses recursos diz respeito ao uso das partículas expletivas; de fato, no parágrafo 56, esse uso é abordado simplesmente como um fator de grandiosidade,

309 Embora isso represente uma contradição com a forma adequada de tratar questões irrelevantes de modo irrelevante e as grandiosas com grandiosidade, expressa no parágrafo 120 (cf. FREITAS, Sobre o estilo de Demétrio: um olhar crítico sobre a Literatura Grega, cap. 2). 313 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

mas, no parágrafo seguinte, é tratado como um elemento patético (pathetikós), na conhecida fala de Calipso a Odisseu na Odisséia, V, 203- 204: “Descendente de Zeus, filho de Laertes, multifacetado Odisseu/ Assim, então, para casa, para a querida terra paterna?” O emprego da partícula, no caso, dḗ (então), é de tal modo valorizado pelo autor do PH que a ausência dela significaria a perda de toda a emoção, lembrando que partículas como essa assumiriam o lugar de murmúrios e lástimas, próprias de expressões como o aí, aí (ai, ai!), pheû (ó!), dentre outras. Também um recurso ligado ao patético em Homero, e assinalado por Demétrio, seria a criação de palavras. Por seu caráter mimético, essas palavras exprimiriam uma emoção (páthos) ou uma ação (prâgma), conforme se verifica em dois termos extraídos da obra do poeta: um, da Odisséia, IX, 394: síze (chiou); e o outro, da Ilíada XVI, 161: láptontes (lambendo).310 Mas há ainda um detalhe na crítica de Demétrio a Homero que não deve passar despercebido. Apesar do tom elogioso com que o poeta é tratado em praticamente toda a obra, ele não escapa também à censura, e isso ocorre precisamente em duas passagens. Uma delas, no parágrafo 83, em que a metáfora da Ilíada, XXI, 388 (“E, ao redor, trombeteou o vasto céu”) é tratada como um fator de irrelevância mais do que de grandeza, mesmo que empregada para conferir volume ao enunciado. E a outra, no parágrafo 124, em que se discute a frieza da hipérbole,

310 219.

§ 94. Acerca desse segundo exemplo, cf. ainda § 314 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de cujos exemplos dois são extraídos, justamente, de passagens de Homero: o primeiro deles, da Ilíada, X, 437 (“mais brancos do que neve”), criticado pela chamada proeminência (kath’ hyperokhḗn) da hipérbole; e o segundo, da Ilíada, IV, 443 (“a cabeça apoia-se no céu”), pela impossibilidade da mesma. De qualquer modo, essas duas passagens representam, de fato, muito pouco diante de um contexto de tantas citações sempre marcadas pelo tom de elogio ao poeta. Um elogio que, aliás, como dissemos anteriormente, não se restringe à grandiosidade de seu estilo, mas também se aplica a outros aspectos estilísticos da obra. E um dos melhores exemplos dessa aplicação encontra-se nas menções a Homero no âmbito do estilo elegante. No parágrafo 129, por exemplo, a graciosa passagem da Odisseia, VI, 105-108, em que se compara Nausíca, no jogo com suas companheiras, à deusa Ártemis, jogando com as ninfas, serve para exemplificar as graça chamadas nobres (semnaí) e grandiosas (megálai) as quais, como se lê no parágrafo precedente, constituem uma característica marcante do discurso elegante (ho glaphyrós lógos). Também é oportuno notar que, além da presença de assuntos graciosos em seus versos, Homero é ainda lembrado, no parágrafo 133, pelo acréscimo de graça alcançado, exatamente, pela eficácia do estilo. E para exemplificá-lo, a Odisséia, XIX, 518-519: “Como quando, menina de Pandáreo, um rouxinol do verdor da mata/ belamente canta, em uma primavera que acaba de

315 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

despertar”. A temática graciosa é, pois, notada, nesses versos, na presença do rouxinol e da primavera, mas, além disso, Demétrio salienta que muito adorno é acrescido quando se aplicam os termos “menina de Pandáreo” a um pássaro ou pelo emprego do adjetivo khlōrēïs (do verdor da mata), palavra de destacada beleza, dada a sua raridade, conforme se nota mais a frente, no parágrafo 164. Aliás, nesse mesmo parágrafo, podemos ainda perceber outra faceta do poeta revelada pela crítica de Demétrio. Nessa oportunidade, as chamadas “belas palavras” (kalá onómata), apresentadas como as principais responsáveis pela graciosidade do estilo e que têm como exemplo a acima mencionada, contrapõem-se às ditas “comuns e mais conhecidas” (eutelē kaí koinótera), as quais, por sua vez, estão ligadas diretamente ao cômico, o que, ao certo, constitui um exemplo da contraposição sinalizada no parágrafo anterior entre o elemento risível (tò géloion) e o gracioso (tò eúkhari). A este, então, teríamos associados assuntos como os jardins das ninfas, amores, enfim, aqueles sobre os quais não se ri, mas ao primeiro (ao cômico) se associariam de forma exemplar duas personagens, justamente, da obra de Homero: Iro e Tersites. E, assim, a versatilidade do poeta se faz notar em sua capacidade de, ao lado de temas de inteira graciosidade, retratar de forma cômica o ridículo. Mas além dessa graciosidade e, por vezes, do traço cômico presente em alguns momentos de sua obra, Homero é também reconhecido pela simplicidade. Nos

316 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

parágrafos 209 e 210, por exemplo, o poeta se sobressai por sua precisão (akribología), a qual resulta, por sua vez, na chamada “evidência” (enárgeia), atributo estreitamente ligado ao estilo simples. A esse respeito, é lembrada a passagem do poeta na Ilíada, XIII, 379-381: pnoiḗi d’ Eumḗloio metáphrenon,/aiei gàr díphrou epibēsoménoisin eïktēn (no arfar, as espáduas de Eumelo,/ parecia, a todo instante, que ambos iam subir no carro). E a evidência (enárgeia) será ainda mencionada como uma virtude do poeta no parágrafo 219, mas, dessa vez, em razão do uso da cacofonia, recurso exemplificado em dois de seus versos: na Odisseia, IX, 290: kópt’ ek d’enképhalos (chocou e da cabeça os miolos),311 e na Ilíada, XXIII, 116: pollà d’ánanta, kátanta (muitas vezes acima, abaixo). Já no parágrafo seguinte, a evidência será verificada em Homero no emprego das palavras criadas (tà pepoiēména onómata), as quais trazem consigo a imitação daquilo que exprimem, e, como exemplo, teríamos o termo láptontes (lambendo), da Ilíada, XVI, 161, que reproduz a ação de lobos bebendo – embora o autor do PH diga que se trate de “cães” (kýnes) –, ao qual antepor-se-ia também o termo glṓssēissi (línguas), que tornaria ainda mais evidente o discurso. E, como não poderia deixar de ser, o poeta também é lembrado pela veemência de alguns de seus versos. É o que podemos verificar naquele da Ilíada, XII, 208:

311 Acerca da cacofonia nesses versos, cf. FREITAS, Sobre o estilo de Demétrio: um olhar crítico sobre a Literatura Grega, no tópico 3.4.1.1. 317 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Trōes d’errígēsan, hópōs ídon aiólon óphin (Os troianos arrepiaram-se quando viram a serpente de várias cores), citado no parágrafo 255. Demétrio chega, inclusive, a propor uma ‘solução’ mais eufônica para o hexâmetro, mas, segundo ele próprio, ela não transmitiria o terror experimentado pelo poeta e transmitido pela própria serpente, uma vez que, do verso, seria retirada a cacofonia requerida pelo assunto proposto. E assim, finalmente, teríamos a passagem que associa ainda o poeta ao tipo de estilo veemente e que merece nossa última consideração. Trata-se do parágrafo 262, em que Demétrio aproxima a famosa fala do Ciclope a Odisseu, presente na Odisseia, IX, 369 (“Ninguém vou comer por último”), do chamado “modo cínico” (ho kynikós trópos), descrito nos parágrafos precedentes.312 Ela se relaciona, pois, diretamente com outras duas anteriores, dos parágrafos 130 e 152, revelando, juntamente com essas, uma visão única no contexto da crítica antiga. Nota-se, pois, nessas menções, traços peculiares de uma acurada crítica literária. Nessa crítica, como não poderia deixar de ser, enfatiza-se o horror da personagem Polifemo, sua aparência e ações monstruosas. No entanto, menções à famosa fala do Ciclope, nos versos 369 e 370,313 revelam mais do que isso: elas salientam o caráter cômico da passagem. Indo além, esse caráter é não apenas examinado da perspectiva do horror, mas também apresentado como um elemento que o intensifica,

312 313

§259-262. Odisseia, IX, 369-370. 318 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

dentro de uma abordagem sem paralelo na crítica literária da Antiguidade.314

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314 A questão do aspecto cômico da passagem levantado por Demétrio é mais amplamente discutida por mim no artigo “Horror e humor no canto IX da Odisseia: uma leitura do episódio do Ciclope proposta por Demétrio no tratado Sobre o estilo”.  319 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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320 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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321 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

TRAUMA

Luciana Silviano Brandão Lopes

No capítulo IV de O seminário-Livro 11, Jacques Lacan retoma Freud e sua tentativa de teorização sobre a repetição relacionada à neurose traumática. Estabelece uma relação entre Wiederholen (repetição) e Erinnerung (rememoração), e afirma que “O sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia, tudo isso só marcha até um certo limite, que se chama o real”.315 Ou seja, a rememoração tem limites e o que retorna ou o que repete é sempre o real. No entanto, parece que a repetição não se confunde com a reprodução: Assim, não há como confundir a repetição nem com o retorno dos signos, nem com a reprodução, ou a modulação pela conduta de uma espécie de rememoração agida. A repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está sempre velado na análise, por causa da identificação da repetição com a transferência na conceitualização dos analistas. Ora, é mesmo este o ponto

315 LACAN. O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 51. 322 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

a que se deve dar distinção.316

O que se repete, acrescenta, “é sempre algo que se produz [na] sua relação com a tiquê — como por acaso”.317 Quanto a esse por acaso, vale lembrar que Lacan toma emprestado de Aristóteles as noções de tyché e automaton, trabalhadas nesse volume, e esses dois termos são utilizados na vertente usada pelo filósofo em capítulo de Física. O psicanalista Gérman Garcia propõe um exemplo para explicar esses dois conceitos: imagine um carro trafegando em determinada velocidade em uma rua que encontra um obstáculo. O encontro com algo que não está nos cálculos, a tyché, desestabiliza o veículo e uma série de movimentos têm que ser feitos para recuperar o automaton. Portanto, a tyché ou tiquismo, é o “encontro com o real que está mais além do automaton, disso que retorna, que regressa”.318 Cito Lacan: A função da tiquê, do real como encontro — o encontro enquanto não podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso — se apresenta primeiro, na história da psicanálise, de uma forma que, só por si, já é suficiente para despertar nossa atenção — a do traumatismo.319

316 LACAN. O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 56. 317 LACAN. O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p, 56. 318 GARCIA. Actualidad del trauma, p. 37. 319 LACAN. O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 57. 323 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Nessa concepção, esse encontro não premeditado, o real como encontro, a tyché, é que é traumático. “É nas entrelinhas da cadeia significante que a repetição insiste de modo inassimilável, quer dizer, o real se produz no automaton da cadeia, como que por acaso.”320 O real está na ordem daquilo que retorna sempre no mesmo lugar e o trauma é definido como algo a ser tamponado “pela homeostase que norteia o funcionamento do princípio do prazer”.321 E o sonho traumático? É realização de desejo? Lacan discute esse tema de forma pormenorizada nesse livro e toma como referência um sonho descrito por Freud, em A interpretação dos sonhos. Cito o relato desse sonho feito pelo psicanalista vienense: [...] um pai estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Após a morte do menino, ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de velá-lo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: “Pai, não vês que estou queimando?” Ele acordou, notou um clarão intenso no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o velho

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VIOLA, 2009. VIOLA, 2005. 324 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

vigia caíra no sono e que a mortalha e um dos braços do cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara sobre eles.322

A explicação freudiana é que era desejo do pai que seu filho ainda estivesse vivo, e o sonho de certa forma ressuscita o menino, sendo assim realização de desejo. Já Lacan aposta que o sonho não satisfaz essa função e pergunta se o que desperta o pai não seria no sonho uma outra realidade. “O sonho prosseguido, não é ele, essencialmente, se assim posso dizer, a homenagem à realidade faltosa — a realidade que não pode mais se dar a não ser repetindo-se infinitamente, num infinitamente jamais atingido despertar?”323 Portanto, “o encontro, sempre faltoso, se deu entre o sonho e o despertar, entre aquele que dorme ainda e cujo sonho não conheceremos e aquele que só sonhou para não despertar”324. O que acorda o pai é a pulsão, “é a outra realidade escondida por detrás da falta do que tem lugar de representação”325. O que se repete aqui é o encontro faltoso entre o filho morto e seu pai, entre um pai que perde o filho e, em adição, um pai que perde também seu lugar de pai.

322 FREUD. A interpretação dos sonhos (segunda parte) e sobre os sonhos, p. 468. 323 LACAN. O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 60. 324 LACAN. O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 60. 325 LACAN. O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 61. 325 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Portanto, o que é traumático é o encontro com o real sem palavras, com a falta. É possível pensar na noção de trauma também na literatura, em certo tipo especial de escrita, naquelas em algo do traumático e do indizível está presente. No testemunho, a matéria prima é a rememoração, que é sempre modificada, seja pelo presente ou pelo futuro. Um fato que é lembrado hoje, no presente, é sempre diferente do que será lembrado num outro tempo, no futuro, pois a atualidade – que sempre modifica o sujeito que rememora - é sempre diferente a cada momento. Portanto, o que se relata não é exatamente o que se passou ipsis litteris, a escrita carrega junto de si algo da ordem da invenção, dos ecos do passado modificados pelo presente e, também, as vozes das leituras individuais. O ato da escrita, seja da rememoração ou não, sempre aponta para o real, para a coisa literária, que tem uma face para o exterior, para o fora da linguagem. Dito isso, como escrever sobre este real que não tem palavras, que foge do sentido e que, paradoxalmente, é o que os escritores de testemunho almejam em seus relatos? Talvez Machado de Assis, em Esaú e Jacob, tenha uma pista sobre isto: “O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro”326. Pode-se inferir, nesta passagem, que o real, o indizível, está para sempre fora de alcance, mas é possível se fazer uma bordadura,

326

ASSIS. Obra Completa, p. 976. 326 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

uma borda ao redor desse buraco do impossível de dizer. Bordar o nada, dar forma ao que é puro furo, fazer aparecer a verdade onde só há o indizível, parece que este é o propósito ou, talvez, a única saída do testemunho.

Referências ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962. GARCÍA, Germán. Actualidad del trauma. Buenos Aires: Grama, 2005. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (II) e sobre os sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 323611. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5). LACAN, Jacques. O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. v. 11. VIOLA, Sandra. Pontuações sobre o trauma em Freud e em Lacan. Latusa digital ,ano 4, n. 27, 2007. Disponível em: . Acesso em: 03 ago. 2009.

327 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A imagem do autor: um estudo sobre Gustave Flaubert

Renata Aiala de Mello

Introdução Mesmo com “a morte do autor”, nos termos de Barthes327, que realiza um esvaziamento da figura do autor, priorizando a escritura e a imanência do texto, afirmando que a figura do autor é um construto histórico, acreditamos que sua imagem permanece vinculada à sua vida e é passível de ser resgatado em sua obra. Vemos que a identidade de Flaubert é compósita. Ela inclui, dentre vários dados, os biológicos, os biográficos, os psicológicos e os sociais construídos não só pelo próprio Flaubert mas também por aqueles que discorrem sobre sua vida e sua obra. As identidades de Flaubert sujeito-cidadão e sujeitoautor consistem, desse modo, em uma combinação de dados de sua vida, de comportamentos e traços deixados em sua obra que se juntam, por sua vez, aos de outrem sobre essa combinação e que levam as pessoas, entre outras coisas, a reconhecer, reiterar, recriar, reforçar, legitimar, reconstruir, mascarar e/ou deslocar essas

327

BARTHES. O Rumor da Língua, p. 49-53. 328 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

imagens de si resultando, então, em um mecanismo complexo de influências intersubjetivas.

Análise Ao contrário do que pensam alguns biógrafos, certos críticos partem do princípio de que mais importante do que se debruçar sobre a vida privada de um autor, é conhecêlo no seu fazer literário, nas suas relações com a escrita. Para esses críticos, deve haver primazia dos aspectos literários em detrimento dos extraliterários, ainda que ambos se complementem e confluam para o entendimento da imagem do autor. Flaubert parece concordar com esses críticos ao afirmar: “je n’aime pas intéresser le public avec ma personne”328. Lemos, nesse fragmento, o seu oposto ali implícito, ou seja, Flaubert quer interessar o público com seu trabalho de autor. Dito de outra maneira, Flaubert prefere ser lembrado enquanto autor e não enquanto cidadão. Para Poyet, Flaubert, antes mesmo de ser um romancista, é um filósofo da literatura, imagem que pode ser apreendida em sua Correspondance. Esse posicionamento coincide com nossa leitura segundo a qual a identidade de Flaubert pode ser mostrada, dita e efetivada por sua função autor, pensador, intelectual, alguém que possui uma visão particular da Literatura, de uma maneira geral, e da sua própria escritura, em particular. Na esteira do que foi mencionado no fragmento acima, até mesmo

328

FLAUBERT. Correspondance, p. 379. 329 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

na Correspondance podemos perceber elucubrações de Flaubert a respeito da Literatura, do seu fazer literário. Flaubert afirma, em carta a Louise Colet, que ele “[...] veut qu’il n’y ait pas dans [son] livre un seul mouvement, n’y une seule réflexion de l’auteur”329. Cinco anos mais tarde, em uma outra carta escrita a Mlle. Leroyer de Chantepie, Flaubert tece novamente comentários sobre seu papel de autor. Numa linha um pouco divergente daquilo que ele havia dito anteriormente, (e também diferente da de Barthes), ele vê o autor não como uma instância morta, esvaziada e sem importância, mas, ao contrário, divina. Ele afirma que “L’artiste doit être dans son œuvre comme Dieu dans la création, invisible et tout-puissant; qu’on le sente partout, mais qu’on ne le voie pas”330. Segundo Gengembre331, Flaubert é um escritor para quem o exercício da literatura é visto como problemático. A sequência e encadeamento natural de ideias são duas das maiores dificuldades que o autor precisa lidar quando se trata de tecer seu texto. O árduo processo de criação lhe desgasta e lhe toma muito tempo. Em cartas enviadas a Colet, em anos subsequentes, Flaubert declara que, na confecção de Madame Bovary, sente dificuldades de escrever: J’ai commencé hier au soir mon roman. J’entrevois maintenant des difficultés de style qui m’épouvantent. Ce n’est pas une petite affaire que

329 330 331

FLAUBERT. Correspondance, p. 43. FLAUBERT. Correspondance, p. 691. FLAUBERT. Correspondance, p. 17-46. 330 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

d’être simple. J’ai peur de tomber dans le Paul de Kock ou de faire du Balzac chateaubrianisé.332 Bovary aura été un tour de force inouï et dont moi seul jamais aurai conscience: sujet, personnage, effet, etc., tout est hors de moi.333 La Bovary marche à pas de tortue; j’en suis désespéré par moments […] Quelle lourde machine à construire qu’un livre, et compliquée surtout!334 Je n’ai jamais de ma vie rien écrit de plus difficile que ce que je fais maintenant […] il me faut faire parler, un style écrit, des gens du dernier commun…335 Dieu! Que ma Bovary m’embête! J’en arrive à la conviction quelques fois qu’il est impossible d’écrire. J’ai à faire un dialogue de ma petite femme avec un curé, - dialogue canaille! et épais. Et, parce que le fonds est commun, il faut que le langage soit, d’autant plus propre. L’idée et les mots me manquent. Je n’ai que le sentiment.336

Além de traçar a imagem do romance Madame Bovary nesses fragmentos, Flaubert confessa suas dificuldades com a escrita, mas, também, faz uma

332 333 autor. 334 autor. 335 336 autor.

FLAUBERT. Correspondance, p. 5. FLAUBERT. Correspondance, p. 140. Grifos do FLAUBERT. Correspondance, p. 156. Grifos do FLAUBERT. Correspondance, p. 159-160 FLAUBERT. Correspondance, p. 301. Grifos do 331 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

espécie de crítica (literária) a Paul de Kock, a Balzac e a Chateaubriand, cujos traços estilísticos o autor teme parecer. Em uma outra carta a Colet, Flaubert continua sua reflexão a respeito do fazer literário: Mais quant à arriver à devenir un maître, jamais, j’en suis sûr. Il me manque énormément, l’innéité d’abord, puis la persévérance du travail.”337 Em sua Correspondance, temos várias passagens nas quais Flaubert atesta que não consegue escrever e, para conseguir um ambiente propício ao trabalho da escrita, o autor se recolhe, como dissemos, por vários anos em Croisset. Pater338 acredita que, se recolhendo, o autor descobre a vocação da sua vida – escrever: “Necessitated by weak health to the regularity and the quiet of a monk, he was but kept the closer to what he had early recognized as his vocation in life.” O próprio Flaubert parece assumir integralmente o ponto de vista de Poyet e Pater quando afirma, em carta enviada a Du Camp, que: Quant à mon poste d’homme de lettres, je te le cède de grand cœur […] Je suis tout bonnement un bourgeois qui vit retiré à la campagne, m’occupant de littérature et sans rien demander aux autres, ni considération, ni honneur, ni estime même339.

337 338 339

FLAUBERT. Correspondance, p. 303. 1966a, p. 26 FLAUBERT. Correspondance, p. 121. 332 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Também em 1852, em seu segundo ano de escrita de Madame Bovary, Flaubert se queixa da solidão e das dificuldades em encontrar seu verdadeiro objetivo. Em mais uma carta a Colet, ele menciona que a falta de regularidade no trabalho de escrita do romance lhe atrapalha, lhe corta o ritmo: “J’ai bien du mal à me remettre au travail. Ces 15 derniers jours de repos m’ont tout à fait dérangé. Pour le moment mon sujet me manque entièrement. Je ne vois plus l’objectif. La chose à dire fuit au bout des mes mains quand je la veux saisir”340. O que vemos claramente nessas passagens é a construção da identidade de Flaubert enquanto autor, forjada por ele próprio na sua relação com a escrita. A imagem de Flaubert vítima do seu próprio trabalho é desenhada em cada carta, cada vez que ele fala sobre o processo de escritura. Dedicado à Literatura, vivendo dela, por ela e para ela, Flaubert se autonomeia “homme-plume”: “[…] je suis un homme-plume, je sens par elle, à cause d’elle, par rapport à elle et beaucoup plus avec elle”341. Em outros termos, diríamos que a situação de Flaubert é paradoxal. Sempre insatisfeito com aquilo que escreve, ele não desiste, procura, obstinadamente, na escrita, o conforto que ela lhe nega. Escrever, escrever de novo, refazer, não abandonar o trabalho, buscando a perfeição – sua obsessão, seu objetivo final. As dificuldades de se trabalhar a escrita não é dissimulada, ao contrário, tornase tema de reflexão importante na Correspondance.

340 341

FLAUBERT. Correspondance, p. 27. FLAUBERT. Correspondance, p. 42. 333 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Vemos, entretanto, com Flaubert, que o processo de escritura nem sempre é penoso e que, apesar das dificuldades, é na Literatura que o autor encontra sua vocação e seu alento. A seguir, registramos dois excertos sobre o prazer que a escrita, que o trabalho literário proporciona ao autor: N’importe, bien ou mal, c’est une délicieuse chose que d’écrire, que de ne plus être soi, mais de circuler dans toute la création dont on parle. [...] Le seul moyen de supporter l’existence, c’est de s’étourdir dans la littérature comme dans une orgie perpétuelle.342 Enfin! Étourdissons-nous avec le bruit de la plume et buvons de l’encre. Ça grise mieux que le vin.343 [...] Le vin de l’Art cause une longue ivresse et il est inépuisable.344

Convictos de que a imagem de Flaubert enquanto autor se fez e se faz a partir do que ele viveu e partir daquilo que escreveu, partimos, aqui, de mais um pressuposto: o de que sua identidade se constrói na maneira como ele escreve. Em conformidade com todos os testemunhos colhidos, constatamos que não há “um” Flaubert, mas vários, que emergem de cada leitura de cada um dos que convidamos para compor esse capítulo, todas elas ligadas a uma conjuntura psico-sócio-histórica. Reiteramos, por

342 343 344

FLAUBERT. Correspondance, p. 483-832. FLAUBERT. Correspondance, p. 167. FLAUBERT. Correspondance, p. 832. 334 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

fim, o que diz Pingaud (1980) a esse propósito: [...] Rares sont ceux qui prennent Flaubert en bloc: pour Proust ou pour Kafka, Flaubert, c’était essentiellement L’éducation. Pour Sartre comme pour James, c’est Bovary. Aujourd’hui l’accent se déplacerait plutôt vers Bouvard et La Tentation. Ainsi, il y a des Flaubert qui se succèdent depuis un siècle345.

Flaubert é responsável pela elaboração de seus textos, pelas escolhas lexicais, pelas ideias ali propostas. É ele quem estabelece a relação contratual com seus leitores e se utiliza de estratégias enunciativas para propor os sentidos de seus textos.

Considerações finais Nossa proposta aqui foi o de retirar, ainda que parcialmente, essa máscara e revelar, ao menos parcialmente, sua identidade. Ressaltamos o caráter plural, multifacetado e até mesmo, por vezes, contraditório de Flaubert: crítico, doente, melancólico, produtivo, pessimista, romântico, mas também realista, revoltado, incompreendido... eis algumas imagens que espelham Flaubert, imagens que ecoam suas múltiplas identidades.

345

PINGAUD, 1980, p. 1 335 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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337 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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339 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

340 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A MULTIPLICIDADE DAS COISAS POSSÍVEIS: LABIRINTOS DE JORGE LUIS BORGES E ITALO CALVINO

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Figura cara à literatura, o labirinto é uma das temáticas de destaque na obra de Jorge Luis Borges – que dele se vale em diversos de seus contos, abordando-o por muitas de suas múltiplas veredas – mas também marca sua presença na produção de Italo Calvino, seja ela ensaística ou ficcional, como brevemente apontaremos ao longo desta comunicação. Marta Canfield afirma que o labirinto povoa a escrita borgiana, na qual aparece transvestido em várias metáforas, de casas, palácios, cidades, da alma, do sonho, da selva, do deserto, dos livros, da viagem pelo mundo e até mesmo do próprio mundo, mas também como construções metafísicas, imaginativas, criativas ou artísticas346. Assim o próprio Borges aborda a questão, indicando a tênue linha que pode transformar qualquer espaço em labirinto: O conceito de labirinto – o de uma casa cujo descarado propósito é confundir e desesperar os hóspedes – é bem mais estranho que a efetiva edificação ou

346 CANFIELD. Borges: del minotauro al signo laberíntico. 341 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

a lei desses incoerentes palácios. O nome, contudo, provém de uma antiga voz grega que significa os túneis das minas, o que parece indicar que houve labirintos antes da ideia de labirinto. Dédalo, em suma, teria se limitado à repetição de um efeito já obtido pelo azar. Por demais, basta uma dose tímida de álcool – ou de distração – para que qualquer edifício provido de escadas e corredores resulte em um labirinto347.

Nesse sentido, é bastante interessante a construção do labirinto que se prenuncia em “A morte e a bússola”348. Nesse conto, uma investigação policial constitui-se não apenas como uma trama de construção labiríntica, mas também como um exercício de construção de labirintos: nele se narra o percurso do investigador Erik Lönrot, que “se julgava um puro raciocinador, um Auguste Dupin”349, em busca da solução de um assassinato. Esse percurso acaba por levar a labirintos diversos – a casa de Triste-leRoy, labirinto multiplicado ao infinito por suas duplicações e espelhos; o labirinto losangular planejado a posteriori por Red Scharlach para a morte de Lönrot; o labirinto de uma única linha reta apontado pelo próprio Lönrot no momento de sua morte como possível solução para outra morte, a ocorrer em outro tempo possível. Nesse breve conto de investigação policial bem ao estilo de Edgar Allan Poe, como explicita a menção a

347 348 349

BORGES. Laberintos, p. 156. BORGES. A morte e a bússola. BORGES. A morte e a bússola, p. 121. 342 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Dupin, Borges constrói uma série de distintos labirintos, assim como converte o próprio crime num labirinto narrativo no qual Lönrot se embrenha desde o princípio da investigação, pois o crime apresenta-se como decorrente do desejo de Lönrot de que o assassinato investigado tivesse uma motivação “interessante”, a qual acaba por ensejar o plano de sua própria morte: “O primeiro termo da série me foi dado pelo acaso”, afirma Scharlach, referindose ao primeiro assassinato, o de Yarmolinsky, que havia decorrido de uma frustrada tentativa de roubo. Mas ao saber, pelos jornais, que Lönrot estava investigando os escritos da vítima em busca da chave para a sua morte, o acaso abandona a explicação de Scharlach: “Compreendi que o senhor conjecturava que os hassidim haviam sacrificado o rabino; dediquei-me a justificar essa conjectura”350. E Borges termina o conto acenando para um labirinto temporal, como o que desenvolve em “O jardim de veredas que se bifurcam”351, ao apresentar um labirinto em linha que corrobora sua afirmação de que basta muito pouco para transformar qualquer espaço em labirinto: “Para a outra vez que o matar – replicou Scharlach –, prometo-lhe esse labirinto, que consta de uma única linha reta e que é invisível, incessante”352. Em Italo Calvino, ainda que o espectro do labirinto pareça não se espraiar de maneira tão ampliada, sua presença é incisiva em ensaios como “O desafio ao labirinto” e “Cibernética e fantasmas: notas sobre a

350 351 352

BORGES. A morte e a bússola, p. 133. BORGES. O jardim de veredas que se bifurcam. BORGES. A morte e a bússola, p. 135. 343 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

narrativa como processo combinatório” – ambos publicados no livro Assunto encerrado353 – ou em estruturas como as de As cidades invisíveis354 e Se um viajante numa noite de inverno355, para não citar o pequeno conto infantil, ainda não publicado em português, La foresta-radice-labirinto356. Mario Barenghi (2007), ao pontuar que a figura do labirinto atravessa a obra de Calvino como um fio vermelho, aproxima-a das inúmeras aparições do bosque, das prisões, dos horizontes e da página em branco. Mostra-se instigante ao pensamento, nesse sentido, o conto “O conde de Montecristo”357, no qual a prisão e a página em branco que precede a escritura emaranham-se de tal modo que o labirinto que se constitui apresenta-se como muitos. Assim o próprio Calvino apresenta esse texto: No conto, vemos Alexandre Dumas extraindo seu romance O Conde de Monte Cristo de um hiper-romance que contém todas as variantes possíveis da história de Edmond Dantès. Prisioneiros de um capítulo do “Conde de Monte Cristo”, Edmond Dantès e o abade Faria estudam seu plano de evasão e se perguntam qual entre as variantes possíveis seria a certa. O abade Faria escava túneis para fugir da fortaleza, mas erra o tempo todo o caminho e acaba dando por si em celas

353 CALVINO. Assunto encerrado: discurso sobre literatura e sociedade. 354 CALVINO. As cidades invisíveis. 355 CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno. 356 CALVINO. La foresta-radice-labirinto. 357 CALVINO. . O conde de Montecristo. 344 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

cada vez mais profundas. Com base nos erros de Faria, Dantès procura desenhar um mapa da fortaleza. Enquanto Faria, de tanto tentar, tende a realizar a fuga perfeita, Dantès tende a imaginar a prisão perfeita, aquela de onde não se pode fugir358.

O conto começa com Dantès contando sua história: a prisão, o desorientamento, as tentativas de fuga do abade e o método que parece a ele, Dantès, mais apropriado para se pensar num modo de escape dessa fortaleza-labirinto. Até então, os únicos outros enredamentos que se vislumbra são o da afinidade do conto com a obra de Alexandre Dumas, e o da explicitação do método de Dantès com os procedimentos narrativos de Calvino. Dividido em nove pequenos “capítulos”, é essa a história que se apresenta como tônica até a sexta parte da narrativa, quando a desorientação espaço-temporal que vimos experimentando até então no que diz respeito ao Castelo de If, local onde estão os prisioneiros, desdobrase para um outro labirinto: a ilha de Montecristo. Assim Dantès traça essa aproximação: [...] Nas pichações com que o abade Faria recobre as paredes, alternam-se dois mapas de contornos recortados, constelados de setas e senhas: um deveria ser o mapa de If, o outro de uma ilha do arquipélago toscano onde se esconde um tesouro: Montecristo. É justamente para procurar esse

358 CALVINO. Cibernetica e fantasmas (Notas sobre a narrativa como processo combinatório), p. 214-215. 345 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

tesouro que o abade Faria quer fugir. Para alcançar seu objetivo, ele precisa traçar uma linha que no mapa da ilha de If o leve do interior ao exterior e que no mapa da ilha de Montecristo o leve do exterior àquele ponto mais interno que todos os outros pontos, que é a gruta do tesouro359.

O labirinto começa a se ramificar, If torna-se também Montecristo e vice-versa, num espelhamento que exige a inversão da direção em que se busca a saída (ou a chegada): “Em um caso ou no outro, observando bem, ele tende ao mesmo ponto de chegada: o lugar da multiplicidade das coisas possíveis”360. Mas não termina aí essa ramificação, e na parte 7 o labirinto de If-Montecristo explode em mais uma direção, a da ilha de Elba, de onde Faria deseja libertar o imperador, Napoleão. O pensamento sobre o labirinto, também complexificado, reflete-se na fala do próprio narrador: “Essas interseções tornam ainda mais complicado o cálculo das previsões; há pontos em que a linha que um de nós está acompanhando se bifurca, se ramifica, se abre em leque; cada ramo pode encontrar ramos que partem de outras linhas”361. É apenas no capítulo 8 que o labirinto de IfMontecristo-Elba vai se mostrar enredado em um outro labirinto, ainda mais amplo: a página em branco, os rascunhos e projetos e tentativas e possibilidades de Alexandre Dumas, o próprio processo de escrita. Numa

359 360 361

CALVINO. O conde de Montecristo, p. 265. CALVINO. O conde de Montecristo, p. 265. CALVINO. O conde de Montecristo, p.266. 346 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

espécie de mise en abyme de narrativas e referências, o labirinto de Dantès exige que os personagens “imundos de tinta” percorram “as linhas da escrita cerrada”, “entre correções emaranhadas”362: “A fortaleza concêntrica IfMontecristo-escrivaninha de Dumas nos contém a nós, prisioneiros, o tesouro, o hiper-romance Montecristo com suas variantes e combinações de variantes da ordem de bilhões e bilhões, mas ainda assim, sempre em número finito”363. Se Borges termina por apontar um labirinto em linha reta, Calvino dá ao seu a forma de uma espiral: Uma espiral pode girar sobre si mesma em direção ao interior ou ao exterior: ao se aparafusar para dentro de si mesma, a história se encerra sem desdobramento possível; ao se desdobrar em espirais que se alargam, poderia a cada volta incluir um segmento do Montecristo com sinal de mais, acabando por coincidir com o romance que Dumas entregará para a impressão, ou talvez o superando em riqueza de circunstâncias afortunadas364.

Para desdobrar as linhas desses labirintos, figuras que em Borges e Calvino tornam-se repletas de possibilidades, tomaremos como referencial a breve classificação feita por Umberto Eco (1991, 2007), segundo a qual existem três tipos de labirintos distintos: o labirinto

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CALVINO. O conde de Montecristo, p. 267. CALVINO. O conde de Montecristo, p. 268. CALVINO. O conde de Montecristo, p. 268. 347 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

clássico, o labirinto maneirístico e o labirinto em rede. O labirinto clássico seria como o de Cnossos, o famoso labirinto em Creta que tem em seu interior o Minotauro: um labirinto unicursal, no qual a única coisa a se fazer é chegar ao centro e do centro à saída, por um só caminho possível. Espaço no qual o fio de Ariadne serve como guia, o labirinto de Creta é passível de ser “desenrolado”: feito isso, o fio que aparecia como algo estranho a ele mostrase como o próprio labirinto... Esse labirinto aparece em Borges, por exemplo, num texto que se delineia como um crescente novelo ao qual, a cada movimento, agrega-se nova parte do percurso: Esse é o labirinto de Creta. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja trama de pedra se perderam tantas gerações. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja trama de pedra se perderam tantas gerações assim como María Kodama e eu nos perdemos. Esse é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja trama de pedra se perderam tantas gerações assim como María Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto365.

365

BORGES. Atlas, p. 91. 348 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Mas o labirinto de Borges, ainda que se constitua como um texto no qual nada resta a não ser seguir em frente, já aponta sua própria falácia: em lugar da saída, deparamo-nos com sua conversão num outro labirinto do qual é impossível escapar, o tempo, e que garante que o “estar perdidos” se prolongue ao infinito. O labirinto clássico de Eco transforma-se, em Borges, num pesadelo: ele tem apenas um caminho possível, mas em seu fim a saída não pode ser encontrada... É essa também a linha de estranhamento que norteia o poema “Labirinto”, que ainda que recorra à figura do Minotauro, elemento chave desse labirinto clássico – “Não esperes a investida/ Do touro que é um homem e cuja estranha/ Forma plural dá horror à maranha/ De interminável pedra entretecida” –, acentua a inexistência da saída: “Nunca haverá uma porta”366. Como afirmava Calvino ecoando o poeta e crítico alemão Hans Magnus Enzensberger, para que o labirinto mantenha “seu fascínio e seu risco” ele não pode ser desvendado: “O labirinto foi feito para que quem nele entra se perca e erre. [...] Se conseguir [atravessá-lo], terá destruído o labirinto; não existe labirinto para quem o atravessou”367. Borges parece, assim, aceitar o “desafio ao labirinto” posteriormente evocado por Calvino – num jogo de duplo movimento, ele o desestrutura ao converter sua saída em passagem a um novo labirinto, mas ao

366 BORGES. Elogio da sombra, p. 35. 367 ENZENSBERGER apud CALVINO. Cibernetica e fantasmas (Notas sobre a narrativa como processo combinatório), p. 213-214. 349 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

mesmo tempo o perpetua por garantir que seu segredo não será desvendado: Fica de fora quem acredita que pode vencer os labirintos fugindo a sua dificuldade; portanto, é um pedido pouco pertinente aquele que, no labirinto, fazemos à literatura: que ela própria forneça a chave para podermos sair dele. O que a literatura pode fazer é definir a melhor atitude para encontrar o caminho da saída, embora essa saída nada mais será que a passagem de um labirinto para outro. E o desafio ao labirinto que desejamos salvar é uma literatura do desafio ao labirinto que desejamos evidenciar e distinguir da literatura da rendição ao labirinto368.

O segundo labirinto apresentado por Eco é o labirinto maneirístico: neste, as possibilidades de trajetos são múltiplas, mas apenas uma leva à saída. Diante desse labirinto, se o Minotauro não se mostra mais necessário, o fio de Ariadne poderia sê-lo, auxiliando aquele que por ele transita a não chegar a becos sem saída: os erros, aqui, podem acontecer, mas solucionam-se com o necessário retorno a um ponto anterior para dar continuidade ao trajeto. Esse labirinto, se desenrolado, tomaria a estrutura de uma árvore. E aqui se faz inevitável a associação do labirinto com o bosque, figura apontada por Barenghi como chave na obra de Calvino: do bosque onde todos

368 CALVINO. O desafio ao labirinto, p. 116. Grifos do autor. 350 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

se perdem (e perdem também suas vozes) de O castelo dos destinos cruzados 369, passando pelo bosque que se converte em mundo particular de O barão nas árvores 370, chegamos à floresta-raiz-labirinto, que se constitui como único trajeto possível para a cidade de origem371. La foresta-radice-labirinto narra a história do Rei Clodoveo, que ao retornar de uma longa guerra para seu reino de Alberoburgo encontra, circundando-o, uma floresta que se mostra como um verdadeiro labirinto de galhos e raízes. Para chegar à cidade, o rei precisa resolver os enigmas do labirinto e ainda desvencilhar-se de uma traição em andamento, que é tramada pela rainha Ferdibunda e pelo primeiro-ministro Curvaldo. Complementam o grupo o escudeiro do rei, Amalberto, a princesa Verbena e o jovem Mirtillo. Nessa trama, Calvino envolve o Rei Clodoveo num duplo enredamento labiríntico, pois o rei é cercado tanto pelos enganos da floresta quanto pela traição que aos poucos toma corpo. Para escapar a esse emaranhado, o Rei precisa driblar inúmeras saídas falsas, e a cada instante se evidencia que, para encontrar a verdadeira, será fundamental que um fio de Ariadne apresente-se como guia e possibilite o desvendamento do mistério. É nesse ponto que nós, leitores, somos também enredados por essa narrativa-floresta-labirinto da qual tentamos encontrar a saída: os movimentos de todos os personagens são marcados pela presença de um estranho pássaro, cujo som funciona como chamariz, induzindo a

369 370 371

CALVINO. O castelo dos destinos cruzados. CALVINO. O barão nas árvores. CALVINO. La foresta-radice-labirinto. 351 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

que se o siga pela floresta. Mas mesmo esse condutor parece se apresentar como mais um dos pontos cegos do labirinto – seguir o pássaro não leva à saída, e pode mesmo acabar por conduzir quem está do lado de fora para o interior do labirinto, como acontece com a princesa Verbena. Essa falsa solução, entretanto, mostra-se ela mesma como outra armadilha do labirinto: pois, se o pássaro não leva o rei à saída, ele o leva até sua filha, a qual havia, em companhia de Mirtillo, desvendado o mistério do labirinto – nele, as coisas ocupavam lugares diferentes dos habituais, de modo que os galhos pareciam raízes e as raízes pareciam galhos, e para chegar à saída bastava aceitar a caminhada sob outra perspectiva, deslocada e invertida. Mas, ainda que a complexificação narrativa com que Borges e Calvino abordam esses labirintos faça deles modelos intrincados, eles ainda não correspondem ao labirinto que aqui nos interessa mais diretamente, o terceiro labirinto apontado por Eco, o labirinto em rede, no qual se podem constituir inúmeros caminhos e saídas, o labirinto que se constitui como tal por estar aberto a uma infinidade de possibilidades: O labirinto de terceiro tipo é uma rede, na qual cada ponto pode ter conexão com qualquer outro ponto. Não é possível desenrolá-lo. Mesmo porque, enquanto os labirintos dos dois primeiros tipos têm um interior (o seu próprio emaranhamento) e um exterior, no qual se entra e rumo ao qual se sai, o labirinto de terceiro tipo, extensível

352 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ao infinito, não tem nem interior nem exterior. Pode ser finito ou (contanto que tenha possibilidade de expandirse) infinito. Em ambos os casos, dado que cada um dos seus pontos pode ser ligado a qualquer outro ponto, e o processo de conexão é também um processo contínuo de correção das conexões, seria sempre ilimitado, porque a sua estrutura seria sempre diferente da que era um momento antes e cada vez se poderia percorrêlo segundo linhas diferentes372.

Nessa perspectiva, temas caros a Borges – como o tempo e o deserto – e a Calvino – como o horizonte e a página em branco – constituem-se objetos de narrativas labirínticas extremas, que apontam para o caminho que mais multíplice e desorientador pode ser: aquele do labirinto sem paredes, sem marcas, sem limites ou contornos estáveis aos quais se possa recorrer. Como achar a saída em um espaço que não tem dentro ou fora?

372

ECO. O antiporfírio, p. 338-339. 353 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

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354 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CALVINO, Italo. O desafio ao labirinto. In: _____. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 100-117. CALVINO, Italo. Cibernetica e fantasmas (Notas sobre a narrativa como processo combinatório). In: _____. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 196-215. CALVINO, Italo. La foresta-radice-labirinto. Milano: Oscar Mondadori, 2011. CANFIELD, Marta. Borges: del minotauro al signo laberíntico. In: TORO, Alfonso de; REGAZZONI, Susanna. El siglo de Borges: literatura, ciencia, filosofía. Madrid: Iberoamericana; Frankfurt am Main: Vervuet, 1999. v. 2, p. 67-76. ECO, Umberto. O antiporfírio. In: _____. Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 316-341. ECO, Umberto. Dall’albero al labirinto: studi storici sul segno e l’interpretazione. Milano: Bompiani, 2007.

355 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

REGIONALIDADE: ENTRE A INFLUÊNCIA FRANCESA E A BRASILIDADE

André Tessaro Pelinser

Neste trabalho, investigamos a dinâmica pela qual se deram as trocas reais e simbólicas catalisadoras de algumas das discussões acerca da identidade literária brasileira, sobretudo no que tange às manifestações regionalistas, no século XIX. Tal intento justifica-se uma vez que, sob um século de influência das artes francesas, a literatura brasileira desenvolveu-se buscando libertarse da pecha de ser incapaz de produzir material com identidade própria, muito embora esse anseio não fosse suficiente para modificar substantivamente as técnicas inicialmente utilizadas. Se, por um lado, havia a necessidade de coadunar a representação com o próprio material representado, por outro não era exatamente possível fugir aos modelos canonizados para e pelo fazer artístico. Assim, aos literatos restava a difícil tarefa de investir de cor local uma arte que não podia desviar-se da forte influência europeia recebida. Do cerne dessa problemática, surgiu no século XIX o regionalismo literário brasileiro, manifestação que cruzou os anos para se arvorar em corrente literária empenhada com a elaboração artística do particular,

356 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

daqueles elementos capazes de expressar a unicidade de determinado contexto social. Tomando a afirmação do professor José Clemente Pozenato, podemos constatar, no Brasil, “a presença do regionalismo no movimento romântico, no realista e no modernista: nos três momentos, a tônica foi a vontade de fazer um levantamento de características regionais, com vistas à constituição de uma literatura ‘brasileira’”373. A ênfase dada pelo autor recai sobre o adjetivo justamente devido à capacidade da corrente de veicular as especificidades locais, o que lhe garantiu por muito tempo a função de ferramenta programática para a consolidação dos anseios políticos da intelectualidade nacional. Paradoxalmente, porém, enquanto por um lado assegurou-lhe longevidade ao longo de variados movimentos estéticos, por outro contribuiu para vinculála negativamente a noções ufanistas e panfletárias da nacionalidade. Não surpreende, portanto, que no ano de 1873 Machado de Assis tenha publicado no periódico O Novo Mundo, em Nova Iorque, o clássico ensaio conhecido como “Instinto de Nacionalidade”. Tal texto, nas palavras de Maria Zilda Cury, tornou-se referência matricial “para a reflexão sobre a tradição e sobre os caminhos da literatura nacional, entorno do dilema da assimilação do modelo europeu, dos valores pretensamente universais da modernidade e da obrigatoriedade de prover as obras artísticas da ‘cor local’, que nos distinguiria enquanto

373 POZENATO. O regional e o universal na literatura gaúcha, p. 26. 357 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

brasileiros”374. Naquele

momento,

Machado

verificava

com

lucidez que “as mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora”375. Lúcido em dois sentidos: porque Machado reconhecera em parágrafo anterior que não se poderia cobrar daqueles escritores um pensamento completamente alheio à época em que produziram, e no entendimento de que naquelas décadas começavam a alvorecer identitariamente as nossas letras, dado o visível “instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes últimos tempos”376. Isto é, sobretudo na segunda metade do século XIX, o Brasil irá observar notável salto no que concerne à arte da palavra. Do ponto de vista quantitativo, é expressivo o crescimento do número de publicações, enquanto qualitativamente as obras avançam no seu intento de elaborar uma expressão artística condizente com as particularidades da recém independente nação. Ainda que a discussão machadiana seja oriunda dos fervorosos debates românticos relativos ao Arcadismo, é da França que vêm os primeiros interlocutores responsáveis pelo

374 CURY. Des écrivains latino-américains et la tradition: Machado de Assis, Jorge Luis Borges et Ricardo Piglia, p 75. Tradução nossa. 375 ASSIS. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade, p. 1204. Grifo nosso. 376 ASSIS. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade, p. 1204. 358 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

florescimento de uma história da literatura brasileira, muito embora nossos escritores inicialmente estejam a reboque dos portugueses do ponto de vista historiográfico. Nada mais elucidativo, nesse sentido, do que o exposto por João Hernesto Weber, em A nação e o paraíso, a respeito do caráter fundador e paradigmático da obra de Ferdinand Denis intitulada Résumé de l’Histoire de la Littérature du Portugal e publicada em 1826, isto é, poucos anos depois de proclamada a Independência brasileira. Ao mesmo tempo em que o frontispício do volume ainda submetia a literatura do Brasil à portuguesa, foi o primeiro a anunciar a postura que devem assumir as letras da jovem nação377. Interessam, sobretudo, os elementos selecionados para substituir os temas mitológicos então vigentes no campo poético. “A natureza ‘americana’, ao lado dos costumes e religiões do povo, entre cujos integrantes F. Denis destaca o indígena pelo potencial de diferenciação que apresenta”378, deverá sustentar a produção brasileira. Ou seja, o anseio romântico por essa espécie de “poética da nacionalidade” encontra guarida precisamente no pensamento francês, a partir do qual desenvolve o viés programático responsável por fortificar na Literatura Brasileira importantes traços telúricos. Conforme Denis, desde os textos do século XVIII, os poetas coloniais, “sem o perceber, deixavam-se seduzir

377 WEBER. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira, p. 33. 378 WEBER. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira, p. 33. 359 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

por um ambiente delicioso”379, isto é, vinculavam-se de modo um tanto indefinível à terra. Conexão esta que, séculos depois, continuará a marcar presença em nossas letras por meio da ficção regionalista, o que, nos termos de João Claudio Arendt, pode ser observado tanto na ficção alencariana quanto na rosiana. Para Arendt, Ceará e Minas Gerais constituem-se como espaços umbilicais e simbólicos, aos quais os escritores podem se unir por meio da obra380, de maneira análoga ao que fazem boa parte dos textos de feição regionalista. Se o elemento exótico e o consequente exotismo puderam fixar raízes nas antigas formas de representar e construir a nação, transformando-se progressivamente até a síntese alcançada na obra de um Guimarães Rosa, tal princípio é largamente tributário das palavras do estudioso francês. Criticando a literatura de Tomás Antônio Gonzaga, Denis rechaça as metáforas mitológicas e as formas pastorais, asseverando que “tudo isto pouco convém ao poeta brasileiro, habitante de regiões onde a natureza mais ostenta esplendor e majestade”381. Ainda que tal crítica seja um tanto indevida, dado que Gonzaga escrevia antes da Independência e de acordo com os padrões artísticos

379 DENIS apud WEBER. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira, p. 34. 380 ARENDT. Do nacionalismo romântico à literatura regional: a região como pátria, p. 187, 189, 192. 381 DENIS apud WEBER. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira, p. 34. 360 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

em vigor, ela é capital para os rumos tomados pela arte no Brasil. Pode-se compreender que, muito por conta desses juízos de valor, floresceu por volta da metade do período romântico o perfil marcadamente regional assumido por nossa literatura até a virada do século, e mesmo daí em diante, ao longo do Modernismo. Não surpreende, portanto, a afirmação de Weber de que “a França, e os franceses, passam a alimentar os horizontes ideológicos da nova ‘nação’, servindo esses horizontes à diferenciação com respeito a Portugal”382. A esse respeito, é ainda relevante notar a afirmação de Pascale Casanova em La République mondiale des Lettres, para quem a dominação política pode exercer-se também no campo linguístico, gerando consequentemente uma dominação literária383. Tal pensamento é elucidativo acerca dos rumos que toma a literatura brasileira, buscando desvenciliar-se de Portugal em privilégio de uma matriz linguisticamente diversa. Com efeito, à França remontam as raízes do objeto de que se ocupa este estudo. Pela crítica de matriz francesa ganha força a necessidade representar o local, o regional. A partir dessas breves constatações acerca da formação do regionalismo no Brasil, faz-se relevante uma reflexão sistemática que leve em conta o critério da regionalidade na composição da obra literária, assim como as dinâmicas sociais responsáveis por moldar o imaginário

382 WEBER. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira, p. 35. 383 CASANOVA. La République mondiale des Lettres, p. 165. 361 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

da intelectualidade brasileira do período de 1870 a 1970, do qual se ocupa nossa pesquisa principal. Dentro dele se desenvolveu e posteriormente se problematizou o Regionalismo brasileiro. Influenciado antes pelo intento de construir uma representação local e em seguida pelas estéticas da vanguarda francesa, o movimento viu modificar-se substancialmente suas ferramentas para sintetizar a região. Se, como postula Pozenato, o conceito de regionalidade se presta a “identificar e descrever todas as relações do fato literário com uma dada região384, referindose a um conjunto de fatores que pode ser de ordem cultural, histórica, social, geográfica, dentre outros, é precisamente ele o responsável por conectar o texto ao contexto, sem necessariamente circunscrever ou subordinar um ao outro. Pelo contrário, a regionalidade possibilita a compreensão de que ambos estão indissoluvelmente ligados, de forma que a crítica não precise lançar mão das ressalvas que historicamente acompanharam os juízos acerca de narrativas regionalistas de qualidade, sintetizadas em um onipresente “regionalista mas universal”. Cabe, então, retomar as reflexões de Pascale Casanova, que, no já referido La République mondiale des Lettres, constrói uma relevante abordagem acerca dos modos de inserção do escritor no amplo espaço das Letras, tratando das formas de negociação e apropriação do campo literário. É sintomático que dedique no livro um

384 POZENATO. O regional e o universal na literatura gaúcha, p. 155. 362 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

subcapítulo para falar da “Paris, ville-littérature”385, uma verdadeira cidade-literatura que personifica o local por excelência do desenvolvimento da arte da palavra durante todo o século XIX e parte do XX. Em estreita relação com o conjunto de ideias de Pierre Bourdieu, Casanova demonstra como a França, e sobretudo Paris, consolidou um influente poder de atração sobre os artistas do mundo, inclusive os brasileiros. Tal atração, no entanto, não se deu apenas em território francês ou por conta da literatura lá publicada, mas também, como se observa no caso específico de Ferdinand Denis, através da presença das ideias do crítico entre a intelectualidade brasileira. Em conjunto com as tensões e contradições inerentes a qualquer dinâmica social, é lícito presumir que pesa na apreensão das considerações de Denis aquilo que Bourdieu chama de capital simbólico, o qual diz respeito a diversas formas de capital (social, econômico, linguístico, intelectual etc.) acumulado pelos agentes ou pelas instituições dos diferentes campos, revestindo-os de autoridade legítima para enunciar e definir formas de ver o mundo pelo exercício do poder simbólico386. Dito isso, buscar guarida na crítica literária francesa traduz não somente o desejo de afastamento da matriz portuguesa, de resto compreensível após a independência, como também o anseio de aproximação a um centro cultural legitimado em pelo menos todo o Ocidente. É também com amparo, ainda que sub-repticiamente, no poder ostentado

385 CASANOVA. La République mondiale des Lettres, p. 41–56. 386 Cf. BOURDIEU. O poder simbólico, cap. I e II. 363 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

por esse centro que se dão a crítica literária de Denis e sua veiculação junto à intelectualidade brasileira, de modo que ganham força suas indicações acerca do caráter telúrico que deve assumir a nascente literatura. A partir de tal referencial teórico, examinar o Regionalismo literário brasileiro com base na regionalidade que o caracteriza, levando-se em conta a dinâmica das trocas simbólicas ocorridas, pode conduzir à ressignificação de parte dos dados de que dispõe a crítica e que registram as histórias da literatura. Por isso, cabem algumas perguntas: em que medida os contatos dos intelectuais brasileiros com a efervescência cultural francesa do período de 1870 a 1970 foram responsáveis por ressignificar não só obras e autores, como também as próprias correntes anteriores? Até que ponto deslocouse a tradição literária brasileira e instauraram-se novos precursores, com base em influências estrangeiras num momento tão rechaçadas e noutro vistas como signos de renovação e cosmopolitismo? Afinal, se inicialmente a crítica francesa foi baliza, apontando a regionalidade como caminho a ser seguido para a afirmação de uma identidade local, não tardou para que as obras filiadas à vertente regionalista fossem acusadas de “pragas antinacionais”, nas palavras de Mário de Andrade, como se constituíssem literatura de importação, cuja fatura não tivesse sido permeada pelas especificidades brasileiras. Afinal, tornou-se clássica a passagem em que Mário de Andrade sentencia: “Regionalismo este não adianta nada nem para a consciência da nacionalidade.

364 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Antes a conspurca e depaupera-lhe, estreitando por demais o campo de manifestação e, por isto, a realidade. O regionalismo é uma praga antinacional.”387. É significativo que nesse mesmo momento de início do Modernismo uma parcela da ficção regional tenha recebido duras críticas devido a suas influências estrangeiras, já que virá mormente da França o pensamento vanguardista característico da arte modernista. Num movimento complexo, o elemento europeu passa por pelo menos três fases na conturbada existência do Regionalismo brasileiro: de referencial fundador durante o Romantismo, torna-se ameaça antinacional na virada do século, para finalmente figurar com poder de libertação no Modernismo. Como alternativas e possíveis caminhos para se equacionar a questão podem contribuir as reflexões de Lígia Chiappini e Marisa Lajolo. Para Chiappini388, a crítica, diante de obras que se enquadram na tendência regionalista, deve indagar da função que a regionalidade exerce nelas, a fim de compreender como a arte da palavra sintetiza os espaços regionais e lhes expande a significação simbólica. Sem desconsiderar o contexto da época, mas lançando outras luzes sobre as produções teóricas e literárias do período, talvez se revelem possíveis tanto uma interpretação dos sentidos que emergem daqueles debates, quanto uma avaliação dentro de uma perspectiva mais ampla. Afinal, conforme a lição de Santiago Nunes Ribeiro, referindo-se

387 ANDRADE apud CHIAPPINI. Velha praga? Regionalismo literário brasileiro, p. 669. 388 CHIAPPINI. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura, p. 158. 365 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ao debate intelectual sobre o Arcadismo brasileiro ocorrido durante o Romantismo, não se pode exigir de uma época aquilo que não lhe é dado oferecer, não se pode cobrar de um artista que sinta inspirações completamente diferentes de seu tempo389. A partir disso, torna-se possível não só entender porque tivemos a “praga antinacional” que tanto importunou Mário de Andrade, como também porque o Regionalismo se tornou paulatinamente identificado por essa alcunha, chegando mesmo ao ponto de atuar como simples diferenciador entre literatura de boa e má qualidade, como explica Marisa Lajolo390, em seu ensaio intitulado “Regionalismo e história da literatura: quem é o vilão da história?”. Como outro caminho, então, Lajolo, ao final do trabalho mencionado, no qual procede a uma revisão crítica das diversas posturas relativas ao Regionalismo em nossa historiografia, expande o raciocínio para as letras sul-americanas e anuncia uma posição teórica arrojada. Assinala a possibilidade de as manifestações regionais latino-americanas constituírem justamente a dissidência da matriz europeia, através de uma articulação ao hibridismo cultural do continente americano. Não obstante muito incentivada quando do nascimento de nossas literaturas, tal independência talvez tenha acabado sufocada pelos contornos ideológicos e pela dimensão política presentes na visão dos historiadores da literatura, de olhos urbanos

389 RIBEIRO. Da nacionalidade da literatura brasileira, p. 39. 390 LAJOLO. Regionalismo e história da literatura: quem é o vilão da história, p. 327. 366 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e europeizados, no dizer de Lajolo391. Em outros termos, se inicialmente, como pudemos observar, vêm da Europa as diretrizes sobre o caráter que devem assumir as letras brasileiras, na perspectiva continental de Lajolo as inflexões aqui introduzidas aos modelos podem representar mais do que simples peculiaridades. Antes, quiçá apontem para novas articulações entre a arte e seu objeto, a partir de um trabalho específico com as regionalidades do continente. Com isso, esperamos ter assinalado, dentro da forma breve que impõe este trabalho, o caminho inicialmente percorrido pela prosa regionalista brasileira, apontando para algumas das tensões que caracterizaram o período, bem como ter relançado as duas hipóteses de trabalho formuladas por Chiappini e Lajolo, que parecem capazes de contribuir para o avanço das discussões acerca do Regionalismo.

BIBLIOGRAFIA ARENDT. João Claudio. Do nacionalismo romântico à literatura regional: a região como pátria. Revista da ANPOLL, n. 28, p. 175–194, Jul./Dez. 2010. Disponível em: Acesso em: 02 ago. 2010. ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: Obra completa: volume 3. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. 1203 – 1211. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 14. ed. Tradução

391

2005, p. 327 367 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. CASANOVA, Pascale. La République mondiale des Lettres. Paris: Éditions du Seuil, 1999. CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 153 – 159. Disponível em: Acesso em: 03 jun. 2010. CHIAPPINI, Ligia. Velha praga? Regionalismo literário brasileiro. PIZARRO, Ana (org.). América Latina, palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial da América Latina/ Ed. da Unicamp, v. 2, 1994, p. 665 – 702. CURY, Maria Zilda Ferreira. Des écrivains latino-américains et la tradition: Machado de Assis, Jorge Luis Borges et Ricardo Piglia. In: BESSE, Maria Graciete. Cultures lusophones et hispanophones: penser la relation. Paris: Indigo & Côté-femmes éditions, 2010, p. 74 – 82. LAJOLO, Marisa. Regionalismo e história da literatura: quem é o vilão da história? In: FREITAS, Marcos Cezar. Historiografia brasileira em perspectiva. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 297 – 328. POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. Caxias do Sul: EDUCS, 2009. POZENATO, José Clemente. Processos culturais: reflexões sobre a dinâmica cultural. Caxias do Sul: EDUCS, 2003. RIBEIRO, Santiago Nunes. Da nacionalidade da literatura brasileira. In: COUTINHO, Afrânio (org.). Caminhos do pensamento crítico – Vol. I. Rio de Janeiro: Americana, 1974. WEBER, João Hernesto. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na historiografialiterária brasileira. Florianópolis: Editora da UFSC, 1997.

368 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

DESLOCAMENTOS E ANACRONIAS EM TERRA ESTRANGEIRA Pedro Vaz Perez

Introdução O filme Terra estrangeira (Brasil; Portugal, 1995), de Walter Salles e Daniela Thomas é um dos marcos daquele período que se convencionou chamar – de forma polêmica – de “retomada” do cinema nacional, realizado e lançado num momento bastante delicado do Brasil. Seu enredo remonta aos dias que antecederam e sucederam a posse de Fernando Collor de Melo, o primeiro presidente eleito diretamente pelo povo após o golpe militar de 1964. A partir de uma narrativa aparentemente genérica, o filme envolve acontecimentos históricos e atravessa, pelo fílmico, o político, o social e o cultural. Filiando-se a uma estirpe de cinema reflexivo, indo além do simples registro do evento histórico, parece colocar em cheque as próprias noções de história e temporalidade. Ao envolver, como numa teia, na superfície da imagem cinematográfica, signos heterogêneos que compõem os imaginários brasileiros e lusitanos, recria assim uma memória que incorpora fatos históricos e mitos culturais para, a partir dessa matéria sensível e anacrônica, inscrever uma visão crítica de mundo, perpassando pelos dilemas da identidade e do

369 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

nacional. Na presente comunicação, serão apresentados resultados parciais de uma pesquisa acadêmica de maior fôlego e ainda em curso. Aqui, buscaremos analisar as formas fílmicas dessa memória anacrônica.

Formas heterogêneas da história em Terra estrangeira O enredo de Terra estrangeira se divide em dois núcleos que posteriormente serão unificados: no Brasil, acompanhamos a história de Manuela e Paco Eizaguirre, mãe e filho de ascendências bascas, que moram em um humilde apartamento em São Paulo; em Portugal, vemos o casal de brasileiros Alex e Miguel, que integram um esquema de tráfico de pedras preciosas e tentam se estabelecer através de outros bicos. No núcleo brasileiro, Manuela nutre um sonho antigo e nostálgico de um retorno à cidade basca San Sebastian, sua terra natal. Ao assistir pela televisão ao anúncio do confisco das poupanças pelo governo, a personagem vê afastadas quaisquer possibilidades de retorno ao passado e sofre um colapso fatal. Ela já havia demonstrado, na trama, a vontade de utilizar o montante que guardava na caderneta para viajar a San Sebastian. Paco, até então, sonhava com uma carreira no teatro. Após a morte da mãe, no entanto, perde as referências. Sem dinheiro, com os sonhos abortados e um futuro obscuro, aceita uma oportunidade oferecida por Igor (Luís Melo), um traficante de diamantes, para contrabandear uma mercadoria.

370 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Assim, parte numa viagem a Portugal, de onde pretende posteriormente ir a San Sebastian, incorporando o sonho da mãe. A revisão do enredo demonstra que há, no filme, elementos que garantem compreensão superficial satisfatória por parte de espectadores com olhares mais desatentos: a empatia com os personagens; a instauração de conflito bem definido que se desenvolve rumo ao clímax – mesmo que o desfecho seja um tanto heterodoxo; o romance – Paco e Alex se envolverão num excêntrico caso amoroso; além do flerte com diferentes gêneros facilmente reconhecíveis, como o film noir, o road movie e o drama – tal mistura de gêneros, no entanto, acaba gerando certa angústia, já que o filme não se resolve definitivamente em nenhum deles: por exemplo, o mistério que envolve o sumiço da mercadoria contrabandeada por Paco é elemento secundário. Logo, são identificações genéricas rarefeitas, pois se dão apenas a meio caminho – não por falta de habilidade dos realizadores, mas por uma vontade explícita de estranhar as formas de representação genéricas hegemônicas. Mas, entre a identificação de gênero e o registro histórico, a obra oferece algumas arestas que permitem imersões mais profundas. Pois, não recai em cristalizações de sentido fáceis – pelo contrário, alarga as possibilidades de compreensão, e exige ao intérprete colocar em relação elementos exteriores à própria obra. Dentre a fortuna crítica que orbita em torno da fita, composta por críticas cinematográficas, livros e demais

371 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

produções acadêmicas, é possível encontrar diferentes leituras – cf. Freire (2009), Oricchio (2003), Nagib (2006), Figueiredo (1999), Strecker (2010). Essa pluralidade sugere a amplitude da abertura interpretativa permitida em Terra estrangeira e as dificuldades de determinar sentidos homogêneos. Algumas análises identificamno como uma narrativa universal sobre sujeitos à deriva numa contemporaneidade fugidia, frutos do colapso pelo qual estariam passando as identidades culturais na era da globalização. Assim, também é possível enxergar um traço da dita dissolução de fronteiras nesse mundo globalizado. Ainda, pelo flerte com gêneros consagrados do cinema internacional, compreende-se Terra estrangeira como operando certa transnacionalização do próprio fazer cinematográfico. Ao mesmo tempo, cabe constatar que tal cenário globalizado acarreta certas angústias e, assim, no filme, também se faz presente uma denuncia sobre a falácia daquele discurso globalizante que pregava a emergência de um mundo sem fronteiras, o sonho de uma aldeia global. Essa utopia globalizada se mostrou injusta e longe de se realizar, uma vez que as benesses dessa nova ordem mundial não eram compartilhadas por todos. Mas, em linhas gerais, a interpretação que parece mais recorrente dentre a fortuna crítica em questão é a que compreende o filme como documento da crise social causada pelas medidas políticas, e do exílio não forçado, ação que marcou aqueles anos. Assim, numa visão abrangente sobre essas diferentes leituras, associando-as ao próprio filme, é possível identificar a tentativa de colar a

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uma narrativa ficcional um comportamento empiricamente observado na sociedade em um determinado período histórico; o sintoma social e sua inevitável consequência no cinematográfico, mesmo que essa reflexão apenas encontre lugar na representação alegórica. No filme, é nítida a vontade de realizar um registro histórico, devido, sobretudo, à proximidade temporal entre o processo de filmagem e a ocorrência dos eventos políticos: na diegese, é possível identificar uma série de elementos que caracterizam aqueles fatos políticos, como transmissões de rádio que veiculam anúncios e comentários sobre medidas do novo governo; imagens de televisão, também na diegese, que exibem pronunciamentos de Collor, do vice Itamar Franco e da ministra Zélia Cardoso; e cartazes com slogans da campanha vistos em cenas filmadas em ambientes externos. No entanto, a forma do registro é peculiar e extrapola o simples documento de um contexto. Isso parece ocorrer, como dissemos, devido a uma postura reflexiva que conforma Terra estrangeira. Ou seja: em grossas palavras, não se trata de um documentário, no sentido usual do termo, tampouco de um filme de ficção que busca recriar os incidentes com verossimilhança. Ao cabo, Terra estrangeira é uma obra de ficção que, inicialmente, se debruça sobre o cotidiano de uma família de classe média paulistana que, em dado momento, se viu – como a maioria das famílias brasileiras – diretamente afetada pelas medidas arbitrárias do governo. Após a brusca ruptura – a morte da mãe em aspecto micro; o confisco das poupanças no macro –, no entanto,

373 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

abandonam-se os traços que remontavam, indiretamente, o contexto no interior do enredo ficcional. Assim, Terra estrangeira parece filiar-se a uma estirpe reflexiva do cinema, inaugurada por Roberto Rossellini no princípio do neorrealismo italiano: uma forma de cinema que, segundo Regina Mota (2001), nasceu de uma lacuna – falta de verba, atores, estúdios, negativos, câmeras etc. – para construir uma estética do vazio no cinema: sobretudo, uma imagem da ética. Para Mota392, a câmera de Rossellini vai às ruas para desnudar um cenário real do pós-guerra, mas, “não se trata”, no entanto, “de colocar um espelho diante do real, mas de operá-lo, utilizando a câmera como um bisturi que corta fundo a carne, até os ossos”. Nesse cinema – bem como nos de outros diretores do neorrealismo italiano – não se encontram respostas e soluções fáceis para aquele contexto de crise. “É nesse ponto que a modernidade se imiscui sorrateira”, diferindo o movimento italiano de outras formas de realismo. Assim, Rossellini é reconhecido como o pai do cinema moderno por ter causado uma fissura no jogo de opacidade e transparência393; entre a janela de identificação do cinema clássico hollywoodiano e as vanguardas de início de século. Uma lógica do paradoxo, segundo a autora, pois, ao mesmo tempo em que investe no direto da imagem, ou seja, na simultaneidade entre a captação do momento e sua enunciação, formalizada em longos planos-sequência e na saturação do tempo da

392 MOTA. A épica eletrônica de Glauber: um estudo sobre cinema e TV, p. 23. 393 374 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ação, a significação do espectador não emerge da ilusão de ver em sua frente o acontecer do movimento: ele se interessa pelas forças que o produzem e o intensificam. Um cinema reflexivo, portanto, que frente à impossibilidade de descrever o indescritível, procura pensar através das imagens. Rossellini, como expõe Glauber Rocha (2004), foi o primeiro a utilizar a câmera de cinema como instrumento de investigação e reflexão. E, na visão de Mota: não se trata de usá-la [a câmera] para documentar ou simular a realidade, mas de fazê-la funcionar como um dispositivo da sensibilidade e do pensamento do pós-guerra [...]; o “naturalismo” de Rossellini não se estende a uma espontaneidade de captura do real [...], utilizando todos os recursos do corte, montagem descontínua e, quando necessária, a criação técnica394.

Terra estrangeira – guardadas as devidas proporções com relação ao cenário do pós-guerra italiano – também nasce de uma lacuna aberta por uma crise política que agravou ainda mais os contextos econômico, social e cultural. E, frente à impossibilidade de produzir qualquer tipo de diagnóstico objetivo aos eventos que apenas marcaram um ápice de um movimento nacional destrutivo que acumulava crises sobre crises – numa longa sucessão que, possivelmente, teve início com o golpe

394 MOTA. A épica eletrônica de Glauber: um estudo sobre cinema e TV, p. 22-24. 375 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

militar de 1964, passando pelos anos de uma ditadura autoritária e violenta e toda a resistência civil que buscava contrapô-la; pela brecha democrática aberta no início da década de 1980; pela eleição e morte de Tancredo etc. – o filme parece buscar uma outra via. Aposta na reflexão e no pensamento a partir da imagem para, dessa forma, fugir da vala fácil das explicações fáceis e totalizantes. Guarda, portanto, com relação ao neorrealismo de Rossellini, principalmente esta postura reflexiva. Associa a ela, no entanto, elementos outros, incorporando elementos de seu próprio tempo, como a mescla de gêneros que alguns querem nomear como “pós-moderna” ou “pós-histórica”, por mais complicados que sejam os empregos dessas nomenclaturas. Essa combinação entre registro do fato e reflexão sobre ele é tudo menos simplificadora, pois é permeada por diversos elementos heterogêneos que transcendem a simples representação mimética. A documentação do fato histórico acontece, mas sua forma extrapola o simples registro. Abrem-se aqui questionamentos: como Terra estrangeira reorganiza diferentes signos e constrói uma visão crítica e peculiar da história, e quais formas ele cria para compor sua narrativa? Terra estrangeira, ao mesmo tempo em que parece flertar com a vontade de um peculiar registro factual, guarda, obviamente, diferenças com relação à modalidade documental, a começar, evidentemente, pela opção por uma narrativa ficcional - Mesmo considerando, com Ismail Xavier, que:

376 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

o cinema, como discurso composto de imagens e sons é, a rigor, sempre ficcional, em qualquer de suas modalidades; sempre um fato de linguagem, um discurso produzido e controlado, de diferentes formas, por uma fonte produtora395.

Mas, o olhar do documentarista – antes de realizar ficções, Walter Salles se dedicou à TV e ao documentário – parece fazer-se presente através de uma série de indícios: os próprios documentos de arquivo inseridos na diegese, como as gravações de rádio e imagens de televisão; a opção pela fotografia em preto-e-branco confere um tom documental, associada à postura da câmera que filma as cidades e os rostos de transeuntes; e à própria metodologia imposta pelo gênero road movie, que reduz as possibilidades de previsibilidade ao longo da produção: um filme de estrada, antes de tudo, parece ser um registro documental do percurso da viagem. Para Samuel Paiva (2011), aquilo que move um road movie se relaciona a dimensões intrínsecas do ser humano, e suas origens transcendem o próprio cinema, indo até a Odisseia de Homero (2011). Normalmente associado a algum tipo de angústia existencial, a um filme de estrada podem ser atribuídas as seguintes características: a busca que provoca o deslocamento [e] vincula-se a uma necessidade de liberação, seja do espaço familiar, seja do espaço do trabalho regular capaz de

395 XAVIER. O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, p. 14. 377 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

promover o bem-estar do indivíduo em sociedade, segundo a lógica capitalista de acúmulo de propriedades materiais. O road movie inscreve-se no âmbito de representação da modernidade, com suas tecnologias, porém, explicitando crises e contradições396.

Um filme de estrada parece se caracterizar enquanto tal quando a viagem ganha importância enquanto processo, e não somente como um fim a se alcançar. Em alguns casos, simplesmente pouco importa onde ela terminará: interessa tão somente o deslocamento errante. Apropriando-nos das ideias de Deleuze e Guattari397, podemos compreender um road movie menos como um percurso seguro entre dois pontos do que de paradas indefinidas num percurso irregular, amplo e com proximidades ao nomadismo: “o intervalo toma tudo, o intervalo é substância”. A viagem, portanto, emerge como a forma do pensamento. Para Marcos Strecker (2010), o road movie, tanto para quem o faz quanto para quem o assiste, pode vir a ser um mergulho no desconhecido, uma jornada de descoberta. É por isso que algumas peculiaridades do gênero implicam certas conformações na maneira de filmar, notadamente a exigência à mobilidade e às filmagens em variadas e distantes locações e equipes enxutas. Cria-se, portanto, um filme elástico, moldado à medida que o trabalho avança, informado pela improvisação e pelo inesperado. Um bom

396 397

PAIVA. Gêneses do gênero road movie, p. 43. DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, p. 185. 378 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

exemplo é No decurso do tempo (1976), de Wim Wenders – influência confessa de Walter Salles. No caso específico do diretor brasileiro, como aposta Strecker, são deixadas opções abertas no roteiro justamente para que o ato de filmar possa incorporar novos elementos: o roteiro torna-se apenas a indicação de um caminho a perseguir, de modo a ampliar as oportunidades de filmagem, e não a limitá-las. Nesse sentido, é notável o fato de que Terra estrangeira foi rodado em poucas semanas e em diferentes locações: foram três continentes, em locais como São Paulo, Lisboa, Cabo Espichel (extremo oeste português), Cabo Verde e cidade de Boa Vista (fronteira entre Portugal e Espanha). Toda esta liberdade na produção, que abre espaço para uma visada documental – ou seja, com menos controle por parte do realizador em comparação com o que aconteceria, por exemplo, num filme totalmente rodado em estúdio –, por outro lado, recebe contrapontos com uma faceta teatral que é desvelada na interpretação de atores, na apropriação de textos dramatúrgicos, como Goethe e Shakespeare e pelo uso expressionista da fotografia em conjunto com a direção de arte. Esses fatores se devem, em certo grau, à parceria de Walter com Daniela Thomas, renomada cenógrafa de teatro, que no filme acumula também a direção de arte. Ela trouxe dos palcos, segundo Strecker (2010), a prática dos ensaios antecipados, medida que visava à economia de película e garantia maior intimidade dos atores com seus personagens. À faceta teatral somam-se estratégias dos departamentos de fotografia e de arte, vistas em sequências

379 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

carregadas por uma iluminação expressionista com grande contraste entre preto e branco e pelos movimentos de câmera maneiristas, intensificadas pela manipulação explícita dos efeitos sonoros – cenas como o ensaio da peça de Shakespeare que Paco assiste escondido; o teste de atores do qual o protagonista participa; a apresentação musical de Miguel em um bar de Lisboa; entre outras. Assim, a utilização do preto-e-branco acaba por produzir percepções ambíguas, pois, ao mesmo tempo em que confere uma estética de documento, proporciona uma utilização expressionista da iluminação, criando grande contraste devido ao alto coeficiente de intervenção estilística na imagem. Entre o documental e o teatral/expressionista, entre o registro histórico e a narrativa ficcional e alegórica – ou melhor, nas intercessões entre essas dicotomias, parece emergir, em Terra estrangeira, uma visão de mundo que – evocando o filósofo Jacques Rancière (2005) – é cara a um regime estético das artes: um novo regime de historicidade que não se opõe aos antigos regimes – os sistemas ético e representativo. Pelo contrário, trata-se, no estético, de uma nova forma de relação com o antigo, no qual tanto a arte quanto a história podem ser resumidas como formas de rearranjos dos signos da linguagem. Com esse movimento, o filósofo demonstra que a antiga classificação da Poética de Aristóteles (1990) não mais é possível na contemporaneidade. Mas, ao equiparar arte e história e resumir ambas a uma ficcionalização, Rancière não pretende afirmar que a história é um engodo, pois,

380 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

nesse caso, pressupor-se-ia haver uma verdade a ser totalmente desvendada. Logo, tratar-se-á sempre de um desvelamento, um acontecimento – parcial – da verdade, tanto na a poesia quanto na história, e por isso, as duas atividades se equivalem – propositalmente – em Rancière. Assim, nota-se que a cada desvelamento corresponde um velamento, tornando-se impossível alcançar a totalidade do conhecimento. A partir desse complexo entrelaçamento entre o documental e o teatral, é possível dizer que, em Terra estrangeira, o histórico ganha tons operísticos. E, com isso, acionaremos mais um dos elementos que constituem o longa-metragem: a música. Composta por José Miguel Wisnik, desde o início a banda sonora traz arranjos do fado, tradicional canção portuguesa associada à lamentação, à entrega ao destino e à providência divina. Executado ora ao piano, ora com violinos ou com a tradicional guitarra portuguesa, o fado dá ritmo à narrativa. O filme é regido pelo fado. Incluir a música de forma determinante nas análises e interpretações fílmicas é fundamental, pois devemos considerar que o cinema é um fenômeno audiovisual, logo, não somente visual. Mais do que uma simples trilha sonora que sirva tão-somente a um pano de fundo, um acompanhamento à ação dramática, a dimensão musical da percepção pode ser compreendida como exercendo funções estruturantes num filme. Assim acontece, por exemplo, em filmes como Roma, cidade aberta (1945) e Alemanha, ano zero (1948) de Rossellini,

381 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e em Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. A noção de “regência” cinematográfica é aqui decisiva se lembrarmos de que, no idioma italiano, a palavra que designa a direção de cinema é regia, guardando comparações diretas entre o diretor e um maestro de orquestra. Nesses casos, assim como em Terra estrangeira, a música parece reger a cadência fílmica, e com isso, a câmera baila entre imagens. Falamos, portanto, mais que sobre música, de um ritmo da narrativa cinematográfica: a mais profunda de todas as consciências [fílmicas] é o ritmo, que não é a quarta categoria porque é a suprema, é a consciência do diretor. E é o ritmo, na sala de corte e colagem, quem vai imprimir a imagem, palavra e sons o sentido definitivo do filme. O ritmo é o tempo que leva o diretor para narrar, descrever, observar ou analisar um determinado momento. É a partir deste tempo que se revela a seleção do mundo para o autor. É o seu amor, e sua política. E, sobretudo, o seu rigor. Um cinema sem tempo não existe. Sem tempo é o argumento filmado em milhares de metros398.

Assim, se um road movie revela a entrega – do diretor, dos personagens –, o tanto quanto for possível, ao acaso e ao inesperado, de forma que a viagem, enquanto processo, transfigura-se numa errância, podemos afirmar que a regência do fado parece potencializar ainda mais

398

ROCHA,. O século do cinema, p. 50-51. 382 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

esse movimento. No próprio fado parece já estar contida a vontade pelo deslocamento, carregada por sentimentos parecidos. Pois, como afirma a antropóloga portuguesa Maria Helena Varela (1996), viajar é tema que habita o imaginário lusitano desde tempos imemoriáveis e se relaciona a uma grande procura do Eu através de um Outro transcendental. A viagem (epos), para a autora, é uma das principais coordenadas do logos em língua portuguesa, uma razão heterodoxa e nômade que parece só existir na distância: um heterologos. Navegar para existir. Indefinido na sua razão de ser, o heterologos em língua portuguesa parece só ser sendo, numa mobilidade que dá sentido à sua transcendência metafísica e desassossego existencial. A viagem foi sempre o jeito português de navegar, mais do que de existir, a sua forma peculiar de estar no mundo, desejando o impossível, o infinito, o mar!...399.

Varela (1996) se propõe pensar de que maneiras a filosofia estaria incrustrada em obras literárias de ficção de escritores da língua portuguesa. Para ela, a vocação da língua portuguesa à filosofia não estaria nos cânones e formas tradicionais desta disciplina, nos comodismos dos dogmas e das certezas, mas, sim, no próprio exercício ficcional e artístico: um pensar-sentir heterodoxo. A autora destaca os portugueses Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, e os brasileiros Euclides da Cunha e Guimarães

399 VARELA. O heterologos em língua portuguesa: elementos para uma antropologia filosófica situada, p. 55. 383 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Rosa. Lançar-se às grandes navegações errantes, por mares nunca antes navegados, parece ter sido inevitável para habitantes de uma terra marítima, naturalmente lançada ao mar. Configurar-se-ia, assim, uma razão teleológica necessariamente vinculada à travessia. Nesta querela, o epos (viagem) figura, para Varela, como uma das coordenadas simbólicas desta razão outra portuguesa, associado a um dos elementos ônticos deste heterologos, que é a razão nômade, e por isso, também indissociável do que caracteriza como “espírito de lugar”, uma vez que a viagem, o deslocamento, se dá necessariamente no espaço, e as motivações do movimento são também advindas do espaço: Varela escreve, com a literatura, uma geofilosofia. Além disso, a linguagem se mostra condicionante da ação humana. No Brasil, propõe a autora, após as fortes influências da colonização portuguesa e jesuíta, o heterologos foi absorvido e apropriado, e suas expressões, enriquecidas. Aqui se mantiveram o epos e o mythos, articulações mitopoéticas da razão nômade. Nessa genealogia do povo brasileiro, o heterologos também é abertura à transcendência, mas o mar teria cedido espaço ao ambiente telúrico, de modo que Varela pode ver, nas expressões literárias do brasileiro errante, um homem apegado às raízes matriciais da terra. Se compreendermos a figura da mãe enquanto signo de terra, a morte dessa figura, em Terra Estrangeira, é o próprio rompimento com essas raízes. Não espanta, portanto, que seja esse o evento que

384 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

lança Paco numa viagem em busca de uma figura paterna, no caso, representada pela cidade de San Sebastian. Todo este imaginário lusitano, de tão profundo e longínquo, acaba por tornar-se mítico. E, além de figurar no próprio enredo e no fado, faz-se presente em Terra Estrangeira através das imagens de navios que aparecem ao longo da fita – imagens que não tecem relações diretas com o enredo, com exceção da última, aquela grande carcaça encalhada que se tornou símbolo do filme. À primeira vista, esses navios parecem funcionar como adereços da montagem, utilizados como imagens de corte entre cenas diferentes; elipses. Mas, um olhar mais atento permite considerá-los como constituidores desse imaginário lusitano das navegações que é a própria forma de ser e de estar no mundo do português: a razão errante em língua portuguesa. Ao ritmo do fado, esse imaginário rege o filme. Mas, rege em direção a quê? Para onde navega Terra estrangeira? Em que direção aponta essa razão em língua portuguesa? O enredo nos apresenta uma resposta provisória: o destino ao qual o personagem pretende alcançar é a cidade de sua mãe, San Sebastian, no norte da Espanha. Mas, esse lugar, mais do que a meta a se alcançar, é o incômodo existencial que move Manuela, mesmo que de maneira errante e, posteriormente, também moverá seu filho, Paco. Como exemplo, veem-se, em uma das cenas que compõem a parte inicial do filme, os dois conversando no sofá da sala sobre os planos da mãe. Ela quer utilizar o dinheiro da poupança para pagar a viagem a San Sebastian,

385 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e financiar o restante do valor em 36 vezes. Ele, ciente dos problemas que cercavam o aumento constante das taxas de juros no país, tenta dissuadi-la do projeto – sem muito êxito, no entanto. Ela, deprimida, com voz embargada e o olhar fugidio – quase em transe, responde: Você não entende mesmo. Você não pode dizer “esquece San Sebastian”, como se fosse um capricho meu. É San Sebastian que não me larga, Paco. Sabe, às vezes eu ando pela casa, e sinto um cheiro, um cheiro antigo. Eu sei que não é possível, mas eu sinto. Eu tenho que voltar lá para acabar com essa agonia. Será que não dá para entender isso? Será que não dá para entender?400.

Podemos com segurança dizer que esse mito quase obsessivo, no qual se tornou San Sebastian para Manuela e Paco se faz presente em uma série de outros elementos que constituem os próprios personagens. Os dois estão totalmente imersos nesse imaginário: por toda a casa é possível encontrar alusões à cidade basca, como algumas bandeiras e diversas pinturas e fotografias, misturadas a imagens religiosas. Pelas paredes, onde quer que os personagens se encontrem, essa particular San Sebastian do passado está presente. O próprio sofá onde estão sentados traz estampas características da península ibérica. Vemos uma direção de arte carregada de intencionalidades que, não por acaso, é assinada pela codiretora do longa-metragem. O cinema possui

400

BERNSTEIN et al. Terra estrangeira: roteiro, p. 20. 386 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

essa característica: os personagens se constroem, em grande medida, na relação com a qual apresentam com os espaços nos quais estão inseridos. Esse imaginário constrói um lugar mítico e que jamais será alcançado ao longo de toda a trama. A San Sebastian do passado de Manuela – que se confunde com suas origens – só existe como uma lembrança afetiva. E mais: a obsessão de Manuela é posteriormente incorporada por Paco e, por fim, também por Alex, que se deixa iluminar pela simples ideia de encontrar tal lugar mágico: San Sebastian, “o único lugar do mundo em que as casas confundem-se com as pedras”, como afirma o traficante Igor em certo momento. E aqui emerge como uma curiosa coincidência a semelhança entre o nome da cidade, de inspiração católica, e um dos mais fortes mitos culturais portugueses, o sebastianismo, bastante forte no imaginário português. O sebastianismo foi erigido após o desaparecimento de D. Sebastião, rei de Portugal, em 1.578 durante uma batalha em Alcácer-Quibir. Após sua morte, dentre outros problemas, o reino foi subjugado à coroa espanhola. Esse e outros fatores associados levaram à crença de que D. Sebastião retornaria para salvar o povo dos problemas que sucederam sua morte, numa conotação messiânica e mítica. Esse período, é importante notar, coincide com a intensificação da colonização portuguesa no Brasil. A forte influência jesuíta na formação da colônia sugere que o imaginário sebastianista tenha sido incorporado pelo pensamento brasileiro em formação.

387 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

E, de fato, o tema é recorrente em diversas obras da literatura e do cinema no país, como em Euclides da Cunha e Glauber Rocha, entre outros. Neste ponto, vale uma comparação, a partir de semelhanças, intencionais ou não, entre a obra de Glauber e de Salles: além do evidente uso da palavra “Terra” no título, as estruturas dramáticas se aproximam: em Deus e o diabo..., é após a morte da figura materna que o vaqueiro Manoel, assim como Paco, se lança à errância. Neste caso, pelos sertões, seguindo, junto a dezenas de fiéis, o beato Sebastião, todos com fé nas promessas de paraíso: a “ilha”, contraponto utópico ao contexto de miséria, fome e seca no sertão nordestino. Uma “terra onde tudo é verde. Os cavalo comendo as flor e os minino bebendo leite nas água do rio. Os homi come o pão feito de pedra. E a poeira da terra vira farinha”, como proclama Sebastião, no alto do Monte Santo. E, mesmo não se tratando de uma legítima adaptação, são notáveis as inspirações da obra de Euclides da Cunha permeando o filme de Glauber. Vemos que o mito opera como telos, alimentando uma vontade pela viagem, pelo risco e pela aventura e que acaba por transfigurar-se numa vocação épica, saudosista e messiânica. Esses traços, no entanto, nada mais são do que a própria forma de estar e de se expressar no mundo para aqueles personagens. Assim, como propõe Varela (1996), é a face misteriosa do mythos que move o heterologos, ou seja, sua constituição paradoxal enquanto lugar inalcançável. Em Terra estrangeira, o destino San Sebastian

388 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

transforma-se também em uma utopia. Confunde-se, portanto, com o próprio movimento caro a um heterologos e sua eterna procura por uma razão que está num Outro inalcançável. E aqui retornamos aos primeiros planos de Terra estrangeira, que formam uma espécie de prelúdio, nos quais vemos uma grande avenida, quase sem fim, que adentra a larga profundidade de campo do plano cinematográfico, de forma que os postes de luz que acompanham a via ficam cada vez mais próximos e se transformam numa contínua linha luminosa, com intensidade que cresce proporcionalmente à distância ad infinitum. Ao mesmo tempo, na banda sonora, em off, o protagonista – ensaiando trechos de Fausto, de Goethe – declama: “eu não era nada, e aquilo me bastava. Agora não quero mais a parte, eu quero toda a vida”401. O único destino possível após a crise cultural e social desencadeada pela irresponsabilidade política é apresentado alegoricamente de forma conjunta na narração e na imagem, e a estrada sem fim se combina à busca pela eternidade e se confundirá com a morte do personagem. Ora, a eternidade é um espaço sem tempo: um não-lugar, uma u-topia. Para Foucault, utopias são posicionamentos sem lugar real. Mesmo que mantenham certa relação de analogia, direta ou indireta com o espaço real da sociedade, são essencialmente irreais. Mas, para o filósofo francês, existem, em qualquer cultura e civilização, utopias realizadas: “espécies de lugares que estão fora

401 GOETHE apud BERNSTEIN et al. Terra estrangeira: roteiro, p. 7. 389 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis”402. Em oposição às utopias, Foucault os chama de heterotopias, lugares da crise ou do desvio, um espaço sempre outro que faz coincidirem posicionamentos aparentemente incompatíveis. A heterotopia é a contradição em forma de espaço, e “se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional”403, e assim, a uma heterotopia corresponde sempre, num arranjo complexo, uma heterocronia. Não espanta constatar que, para Foucault, a heterotopia por excelência é... o navio: um pedaço de espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar e que, de porto em porto, de escapada em escapada para a terra, de bordel a bordel, chegue até as colônias para procurar o que elas encerram de mais precioso em seus jardins404.

Considerações finais Terra estrangeira é um peculiar road movie luso-brasileiro, que busca registrar, através da ficção, um contexto

402 FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 415. 403 FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 418. 404 FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 421. 390 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

histórico – com engajamentos no político, no econômico e no cultural. Mas, para tanto, lança mão de estratégias heterodoxas, como os confrontos entre o flerte com o documental e a estilização expressionista combinada à representação teatral. Ainda, trafega por diferentes gêneros sem se filiar totalmente a nenhum deles, e assim parece fazer uso desses tipos para algo maior, que é a reflexão por imagens. Para efetuar tal reflexão, o filme lança mão de imagens do passado, contudo, de forma fragmentada, parecendo querer sugerir influências de forças que conformam a genealogia nacional – que é também atravessada pelos anos de colonização portuguesa – nos eventos contemporâneos – nas consequentes ações dos sujeitos que seguem a essa genealogia. No fílmico, identificamos alguns desses elementos que constituem esse imaginário, integrando ao brasileiro o lusitano. Sendo assim, o deslocamento espacial – a viagem – torna-se um mergulho no passado colonial, nas possíveis origens do Brasil, mas seu destino final se mostrou utópico, inalcançável. A jornada de Paco refez ao inverso o caminho navegado há meio milênio pelos portugueses: “a emigração para a Europa assume, assim, o caráter de volta sobre os próprios passos, de busca de uma origem mais remota onde tudo teria começado”. Contudo, descreve uma “trajetória cíclica que a marcha irreversível da história da modernidade ocidental torna impossível e que por isso se confunde com a morte”405. A tentativa de retorno

405 79.

FIGUEIREDO. Em busca da terra prometida, p. 391 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ao passado se mostra frustrada para o personagem e o reencontro pleno com as raízes, impossível. Para melhor compreendermos essa querela, é válida uma comparação com a leitura que propõe Walter Benjamin406 acerca da obra Angelus novus de Paul Klee: nela, o anjo – para Benjamin, o anjo da história – tem o rosto voltado para o passado. Ele gostaria de parar e reconstruir os fragmentos daquilo que foi destruído e acumula ruínas sobre ruínas a seus pés. Mas, como tem as asas abertas, um vendaval o arrasta “imparavelmente” para o futuro. O anjo segue rumo ao futuro, mas o que vê – e sua posição é sempre a do tempo presente – são somente as ruínas do passado. Ou seja: nesse fugaz instante percebido como “o presente”, o passado não cessa de interferir, projetando imagens de futuro. Vemos o futuro a partir das intenções desses passados. A busca dos personagens de Terra estrangeira pelas raízes sugere, por outro lado, o estado de constante espera pelo Messias, por uma salvação que vem de fora: é do passado que virá D. Sebastião para alterar os rumos do futuro; em outras palavras, só se espera chegar aquilo a que já se conhece. Se assim for, o filme parece demonstrar que a própria eleição de Collor – mas não só ela – teve tons sebastianistas: no candidato, o povo identificou o signo do Messias. Mas, para além da constatação pontual, parece sugerir a predisposição do homem, imerso numa cultura patriarcal, a esperar por figuras salvadoras como monarcas absolutistas, reis-sóis, fascistas, czares,

406

BENJAMIN. O Anjo da história, p. 14. 392 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

marxistas, napoleões, Conselheiros, Getúlios, Juscelinos, governos economicamente milagreiros, Collors, Lulas... No entanto, se o reencontro – impossível – com as raízes é o ethos dos personagens, as forças que mobilizam o filme – enquanto organismo que compreende a trajetória dos personagens, mas não somente – são de outra ordem. Pois, o gesto dos diretores de deslocar a câmera para a península ibérica é peculiar: ao contrário daquilo que motiva os personagens, busca não a conciliação, e sim o conflito reflexivo. Ao narrar a saga intercontinental de Paco, os diretores, buscando desenvolver um pensamento por imagens, provocam tensões na própria noção de construção da história, pois trazem o passado para um confronto no presente. Em síntese, podemos dizer que Terra estrangeira opera uma variação entre diferentes níveis de história. Melhor dizendo: na superfície de Terra estrangeira, coincidem diferentes temporalidades. Não se trata de um flashback ou de qualquer outro truque de montagem que obedeça a uma linearidade cronológica e identifique, coerentemente, o trânsito entre épocas, distinguindo passados e presente. Tampouco há viagens no tempo. O que vemos em Terra estrangeira é uma espacialização do tempo, a planificação heterogênea de uma estrutura histórica que se quer linear e causal – ao menos no senso comum ou nas noções positivistas de história. O tempo como simultaneidade. Assim, a história – aquela que remonta o passado – se apresenta em forma de estilhaços que compõem o presente: é nesse tempo, e somente nele,

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que vemos e reescrevemos o passado. Rememoramos. Ligamos uma imagem de passado a outra de maneira arbitrária – a escritura histórica é sempre arbitrária. Assim, representa-se a memória de uma genealogia a partir da anacronia. Os quadros, as fotografias, os rostos dos velhos, os navios, a música: em Terra estrangeira filma-se o presente e nele reconhece-se a intenção de uma imagem do passado, que tende a presidir as maneiras com as quais os seres sentem (pathos) e pensam (logos) – percebem os fenômenos no presente, e aqui estamos a falar tanto no contexto do enredo fílmico quanto da cultura que o extrapola, mas da qual ele surge. Há, pois, certa relação que atravessa as gerações humanas, pois, se o ser habita a linguagem, ou seja, é por ela constituído – ele não fala, ele é falado –, a linguagem o transcende, i.e., precede sua existência carnal, sua presença – uma transcendência, portanto, que não se confunde com a metafísica. Daí Varela (1996) propor um pensar-sentir em língua portuguesa. Mas, aqui, há de se fazer uma ponderação: a percepção do presente não pode ser compreendida como sendo de todo inerte ou passiva – ou seja, totalmente coordenada por essa transcendência –, pois a cada percepção corresponde uma intencionalidade. Por isso, no presente também podem ser traçados contrapontos entre as imagens tornando visível tal transcendentalidade. Que estas formas de perceber os fenômenos – o fenômeno Collor, por exemplo – são presididas por intencionalidades passadistas, é o que parece demonstrar Terra estrangeira.

394 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

E assim vemos, com Lezama Lima (1988), que, em última instância, todo discurso histórico é uma ficção do sujeito. E o niilismo que Benjamin demonstra como influência de suas teses sobre o conceito de história parece demonstrar algo dessa natureza: é o sujeito, no presente, quem dá sentido ao passado que se acumula disforme. Sendo assim, mais do que sobre a história em si, estamos a falar de processos de subjetivação operados pela linguagem, mas também das possibilidades de o sujeito dobrar essas linhas de força que o presidem. Nesse sentido, a partir de todas as intervenções ficcionais que opera na construção – e desconstrução – histórica, o que Terra estrangeira parece realizar é a recriação de uma memória que incorpora fatos históricos e mitos culturais para, a partir dessa matéria sensível e anacrônica, inscrever uma visão crítica de mundo, perpassando pelos dilemas da identidade e do nacional. Propõe um devir da consciência de uma brasilidade que se propõe enquanto travessia, “o eu coletivo quem se procura, sujeito e objeto da viagem”407. A memória de uma genealogia em devir que toma forma, no filme, num conjunto de alegorias.

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407 VARELA. O heterologos em língua portuguesa: elementos para uma antropologia filosófica situada, p. 59. 395 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

BENJAMIN, Walter. O Anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. DELEUZE, Gilles.; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2007. v. 5. DEUS E O DIABO na terra do sol. Direção: Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964. DVD (125 min.). FIGUEIREDO, Vera Follain de. Em busca da terra prometida. Cinemais: revista de cinema e outras questões audiovisuais, Rio de Janeiro, n. 15, p. 73-83, fev. 1999. FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. FREIRE, Janaína. Identidade e exílio em Terra estrangeira. São Paulo: Annablume, 2009. HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Hedra, 2011. LIMA, José Lezama. A expressão americana. São Paulo: Brasiliense, 1988. NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2006. MOTA, Regina. A épica eletrônica de Glauber: um estudo sobre cinema e TV. Belo Horizonte: UFMG, 2001. NO DECURSO do tempo. Direção: Wim Wenders. Alemanha Ocidental: WDR; Wim Wenders Productions, 1976. VHS. (175 min.). ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo:  um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. PAIVA, Samuel. Gêneses do gênero road movie. Significação: Revista de cultura audiovisual. São Paulo, n. 36, p. 35-54, primavera-verão 2011. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e

396 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

política. São Paulo: Ed. 34, 2005. ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. ROMA, cidade aberta. Direção: Roberto Rossellini. Itália: Excelsa Film, 1945. DVD (100 min.). STRECKER, Marcos. Na estrada: o cinema de Walter Salles. São Paulo: Publifolha, 2010. TERRA em transe. Direção: Glauber Rocha. Brasil: Mapa Filmes, 1967. DVD (111 min.). TERRA estrangeira. Direção: Walter Salles e Daniela Thomas. Brasil: Videofilmes, 1995. DVD (100 min.). THOMAS, Daniela, et al. Terra estrangeira: roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. VARELA, Maria Helena. O heterologos em língua portuguesa: elementos para uma antropologia filosófica situada. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1995. XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

397 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

LIVROS PERDIDOS, LIVROS ESCRITOS: A LITERATURA DIANTE DA PERDA

Tiago Lanna Pissolati

Inúmeros são os livros circulantes. Incontáveis são os escritos e lidos por pelo menos um grupo de leitores. Inabordáveis, contudo, são aqueles que se perderam diante da força do tempo. Tendo esvanecido entre o gesto de sua escrita – ou ainda, o de sua concepção – e o da leitura, tais livros sucumbiram à História, restando como perda e ausência. Para cada livro que repousa sobre uma estante, há um outro que, não fosse por obra da contingência, poderia também estar ali. Para cada coleção de textos, há, certamente, um elemento faltoso e impossível de se obter. Para cada biblioteca que se ergue, persiste, por fim, uma projeção: a de uma outra biblioteca possível, repleta desses livros que não encontraram, no tempo presente, lugar para habitar. Nessa antibiblioteca que aqui projetamos, viveriam os livros perdidos, os destruídos, os censurados. Também, os esquecidos, os violados, os falseados, os mortos. Finalmente, os incompletos, os inacabados, os inconcebíveis, os impossíveis. A proposta desta comunicação é norteada pelo desejo de conhecer essa biblioteca inexistente. Explorar

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suas coleções misteriosas. Conhecer seus volumes incertos. Tarefa indiscutivelmente impossível: trata-se, afinal, de um conjunto de livros cuja única marca deixada no tempo do agora é a de sua ausência. Disso já nos dá notícia o texto da Bíblia cristã, livro-biblioteca cuja riqueza reside, também, em sua ampla história de deturpações, transformações, perdas, escritas apócrifas e inacabamentos. Uma de suas lacunas, destacada por Stuart Kelly em O livro dos livros perdidos, seu duplamente fascinante e melancólico compêndio de escritas tragadas pelo tempo, encontra-se justamente em torno de uma de suas figuras mais complexas – Paulo de Tarso. Da leitura de suas epístolas (algumas, segundo o pesquisador escocês, apócrifas) e da narrativa dos Atos dos Apóstolos, o leitor depreende que, após converterse ao cristianismo e planejar evangelizar as regiões mais distantes da Europa, Paulo, vítima de uma conspiração, é preso e levado a Roma para encontrar-se com um dos imperadores mais temidos da História: Nero. Entretanto, muito embora a narrativa dos Atos caminhe para esse encontro no mínimo emblemático, ela se interrompe antes que ele aconteça. “O enfrentamento entre Nero e Paulo ou está perdido ou nunca foi escrito”, constata o crítico408. Já no século XX, ocorre o que talvez seja um dos mais intrigantes desaparecimentos da história da literatura. O escritor e desenhista polonês Bruno Schulz mencionara, em 1934, que escrevia um romance intitulado Messias. Acredita-se que era um trabalho minucioso, narrando um

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KELLY. O livro dos livros perdidos, p. 112. 399 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

suposto aparecimento do Messias a 30 quilômetros de Drohobycz, cidade do escritor. Schulz era de família judia e planejava partir da cidade no dia em que foi morto pelos nazistas. Cinquenta anos depois, seu neto, Alex Schulz, entrou em contato com um estudioso do escritor, afirmando ter recebido um telefonema de um homem que estava em posse do pacote com o manuscrito do livro, que deveria ter cerca de 1.500 páginas. Tempos depois, Alex Schulz sofreu uma hemorragia cerebral sem nunca ter dito o nome desse contato. Já em 1990, um funcionário soviético descobriu o texto de Messias numa estante de arquivos da KGB que reunia documentos da Gestapo. Contudo, a fragmentação da União Soviética e a subsequente redistribuição dos “arquivos mortos” novamente voltou os manuscritos às sombras. O Messias de Schulz – como o título profeticamente anuncia – segue oculto, embora em vias de surgir409. O assombro da perda – ou, ainda, o fascínio por ela – parece recair sobre a escrita literária com força notável. Sob esse prisma, cada texto escrito e publicado parece surgir como antípoda a outros dez que, perdidos, censurados ou violados, nunca tiveram a mesma sorte. Cada palavra escrita e lida ecoa os textos perdidos de Goethe, o apelo notável de Kafka – “queime tudo o que eu escrevi” – a comédia nunca encontrada de Shakespeare e a irrealizável Enciclopédia universal de Leibniz. A literatura dá mostras de ser ciente de sua vulnerabilidade e finitude. Não são raros os textos que, de alguma forma,

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KELLY. O livro dos livros perdidos, p. 399-402. 400 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

apontam para a questão, seja direcionando o olhar para outros textos perdidos, seja ressaltando, a todo tempo, a impossibilidade de uma realização plena devido a uma ausência originária. Ausência que surge de forma fascinante no Dom Quixote de Cervantes. No primeiro livro, publicado em 1605, após narrar as primeiras aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, o narrador perde o fio da narração. A interrupção ocorre durante o relato do encontro de Quixote com um biscainho. Após desentender-se com o homem, o cavaleiro engenhoso avança contra ele de espada em riste, “determinado de o partir ao meio”. Todos os circundantes punham-se temerosos quanto ao fim que tal batalha poderia ter. Com a cena em suspenso, o narrador intervém: Mas o dano disso tudo é que, neste ponto e termo, deixou pendente esta batalha o autor desta história, pretextando não ter achado dessas façanhas de D. Quixote nada mais escrito além do referido. Bem é verdade que o segundo autor desta obra se negou a crer que tão curiosa história estivesse entregue às leis do esquecimento, nem que tão pouco curiosos fossem os engenhos de La Mancha que não tivessem guardado em seus arquivos ou suas gavetas alguns papéis que deste famoso cavaleiro tratassem, e assim, com essa imaginação, não se desesperou de achar o fim desta grata história, o qual, com o favor do céu, ele achou

401 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

[…]410.

A narração é posta entre parênteses. Entra em cena, então, um segundo narrador (“o segundo autor desta história”), que relata em detalhes como encontrou, por acaso, os textos que davam continuidade à narrativa. Esse outro narrador, em passeio pelo mercado de rua de Toledo, depara-se com uma série de papéis velhos, escritos em árabe, vendidos por um rapaz. Os papéis, traduzidos, seriam de autoria do suposto historiador árabe Cide Hamete Benengeli. Davam prosseguimento à narrativa do encontro entre Quixote e o biscainho, que é retomada logo em seguida. Já no segundo livro, publicado dez anos depois, a narrativa de Cervantes é complexificada devido à violação da escrita: uma continuação apócrifa do primeiro livro fora editada em 1614 e lida em diversas regiões da Espanha. Em um gesto notavelmente moderno, a real continuação de Dom Quixote narra, em diferentes ocasiões, o encontro do protagonista e de seu escudeiro com o livro apócrifo e com seus leitores, colocando em questão os liames entre ficção e realidade e explicitando as lacunas que atravessam a escrita411. No século XIX, as escritas perdidas surgem como tema recorrente nos contos de Edgar Allan Poe. Em MS. found in a bottle, o leitor é o primeiro a encontrar

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CERVANTES. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, p. 137-138. 411 Cf. CERVANTES. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha.

402 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

uma assombrosa mensagem guardada em uma garrafa, colocada à deriva sabe-se lá por quanto tempo, sempre em vias de ser encontrada, embora somente lida quando condensada em conto e presente em um livro. The purloined letter, por outro lado, constitui o relato investigativo do episódio do roubo de uma carta que poderia comprometer a reputação de uma importante figura política. Na narrativa do conto, a escrita mescla-se ao próprio gesto da busca, cujo desfecho é inusitado. A carta encontrava-se ali, no porta-cartas do principal suspeito do roubo, tão evidente que passara despercebida412. Também é possível perceber na obra do próprio Bruno Schulz, escritor do Messias ainda desaparecido, a presença de uma força que traga a escrita em direção ao perdido e imemorial. No livro Sanatório sob o signo da clepsidra, publicado recentemente no Brasil, essa força caminha em direção de um objeto que o narrador prefere chamar “simplesmente o Livro, sem nenhum adjetivo ou epíteto”413. Guardando apenas a memória de seu contato com esse Livro absoluto na infância (que parece se aproximar de uma realização fictícia de Le Livre mallarmaico), o personagem passa a buscar o texto perdido, deparandose com a vários livros outros, “apócrifos contaminados”, “milésimas cópias”, “falsificações fracassadas”. Por fim, o narrador nos relata um reencontro duvidoso com esse Livro absoluto, presente nos restos de um livro de anúncios414.

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Cf. POE. The purloined letter. SCHULZ. . Sanatório sob o signo da clepsidra, p. 119. SCHULZ. . Sanatório sob o signo da clepsidra, p. 121403 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Na literatura brasileira, o motivo das escritas perdidas surge de forma vertiginosa no romance Quatroolhos, de Renato Pompeu, publicado em 1979. Escrito durante o período mais duro da ditadura militar, a narrativa nos apresenta a um protagonista que escrevera um livro durante todos os dias “mais ou menos dos 16 aos 29 anos”, “com exceção de um ou outro sábado e de certa segunda-feira”415. O livro, confiscado pela polícia política e nunca mais encontrado, não deixa mais que alguns rastros imprecisos na memória de seu escritor. Dele, ele não se lembra da matéria, natureza, tema ou personagens. O romance trata, então, da busca desse homem pelo livro perdido, de forma que o ato da escrita se confunde com o próprio gesto da procura. Na massa textual arquitetada por Pompeu, livro perdido, livro escrito e as memórias do protagonista se fundem numa zona de indistinção evocada pela decisão final da personagem: “escrever outra vez o livro”416. Somam-se a essas obras, ainda, o relato da busca pelos papéis póstumos de um escritor relatada na novela The Aspern papers, de Henry James; a jornada de um indígena em busca de uma escrita possível para a sua língua falada, em Les Immémoriaux, de Victor Segalen; o hiper-livro perdido e desconhecido que teria citado os grandes poemas do século XIX antes mesmo de eles terem sido escritos, no conto A viagem de inverno, de Georges Peréc; os emblemáticos livros infinitos e os tomos perdidos

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POMPEU. Quatro olhos, p. 15. POMPEU. Quatro olhos, p. 188. 404 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

nas bibliotecas absolutas nos contos A biblioteca de Babel e O livro de areia, de Jorge Luis Borges, textos em que a perda é evocada em um misto de entusiasmo e angústia. Finalmente, uma obra em particular que parece se firmar como o tributo literário definitivo ao perdido e ao ausente: o livro Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino. Publicado em 1979, o romance tece uma complexa teia de textos perdidos, escritos apócrifos, narrações inacabadas, livros confiscados e obras degradadas. Tentando encontrar seu caminho nesse emaranhado de escritas ausentes, a personagem central, o Leitor, vê, no encontro (amoroso) com uma Leitora, a possibilidade de achar o fio de Ariadne no labirinto da leitura e restabelecer a narrativa. Trata-se de um romance sem um ponto claro de partida e nenhum vislumbre de chegada. O argumento inicial do texto – a decisão do Leitor de “ler o novo romance de Italo Calvino” – leva-o a uma livraria em que, por acidente, ele adquire um exemplar com uma falha de encadernação417. No volume adquirido, nada mais que vários cadernos idênticos, que o levam sempre da página 32 de volta à 17. No entanto, o retorno à livraria e o pedido pela troca do exemplar colocam em suas mãos uma nova obra com várias páginas em branco, que o leva a uma outra obra inacabada, e assim sucessivamente. Constituise, dessa forma, uma jornada infinita de leitura, marcada pela perda e pontuada pela ausência da escrita. Um livro cuja escrita se realiza em torno da ausência primordial de um outro livro: o romance de Calvino dá

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CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 11. 405 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

indícios de realizar-se justamente a partir da tentativa de retorno a esse livro primordial, ao tomo integral de Se um viajante numa noite de inverno que o Leitor protagonista busca a fim de concluir sua leitura. É a partir da busca desse romance (que não deixa de ser o próprio livro escrito) que instaura-se o surgimento em série de novas narrativas. Trata-se, assim, de uma escrita disparada por uma outra que, muito embora não deixe de se assemelhar a ela própria, está, a priori, ausente. A narrativa dá mostras de desenrolar-se justamente a partir da ausência de sua origem. Como nos lembra Calvino; Começar. Foi você quem o disse, Leitora. Mas como determinar o momento exato em que começa uma história? Tudo começou desde sempre, a primeira linha da primeira página de todo romance remete a alguma coisa que já sucedeu fora do livro418.

Não é possível chegar ao princípio. Há, sempre, uma anterioridade. Uma história que veio antes de outra história, que veio antes de outra, ainda. Ao procurar o originário, colocamo-nos em contato com tudo aquilo que não dominamos, que não nos pertence, que nos é estranho. Ainda, somos tragados por essa busca, que nos dispersa no tempo e nos expõe a cronologias múltiplas. No caso de Se um viajante..., é possível perceber que a busca do Leitor pelo livro integral, longe de levá-lo ao

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CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 406 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

objeto desejado, o expõe a diversos outros textos de outros tempos, escritos por outras mãos. Por diferentes razões, são todos igualmente inacabados, interrompidos, inexistentes em forma integral. Disperso entre eles, em sua jornada pela leitura conclusa, circulam Leitor e Leitora, completamente expostos à força das palavras. Mas não seria essa ausência originária condição de toda a literatura? “As origens precisas da literatura se perderam”, anuncia Stuart Kelly na abertura de seu compêndio da perda419. Entre os primeiros livros e as narrativas orais, resta um elo perdido, uma lacuna que separa mito e literatura. Por um lado, reside aí uma ausência histórica: em que ponto pode a escrita se impor sobre a palavra falada? A que ela remonta? Há, por outro lado, uma ausência originária no que toca à gênese de toda escrita literária. A partir da leitura do romance Les Immémoriaux, de Victor Segalen, o filósofo italiano Giorgio Agamben debruça-se sobre essa lacuna fundadora e traça paralelos entre mito e literatura. O filósofo relembra que, para todo aedo, a origem da palavra não é um problema dado. Cada narração remonta a outra ocorrida anteriormente: o mito é sempre anterior a quem o narra. No entanto, o que seria possível dizer da literatura, essa escrita que não provém de lugar algum senão das próprias mãos do poeta? Qual seria a sua anterioridade? Tanto em sua dimensão histórica quanto no que toca à gênese de toda escrita, a literatura remontaria, como um todo, a esse abismo original. Imprescindível à

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KELLY. O livro dos livros perdidos, p. 25. 407 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sua existência, segundo Agamben, seria um esquecimento primordial: é preciso que nos esqueçamos de toda e qualquer origem justamente para que possamos celebrar esse vazio como pedra fundamental da literatura. Nesse sentido, é o esquecimento que reconecta a literatura à sua origem ausente420. Eis, aí, uma das mais fundamentais questões de toda a literatura ocidental. A ela, os poetas não passaram incólumes: evidência disso seria o fato de, como recorda o filósofo, toda a literatura da Idade Média estar disposta segundo uma quête do livro e de uma palavra anterior, com a ideia de tornar a obra literária legítima. Nas narrativas do período, seriam inúmeras as obras cujos incipit nos levariam a uma transcrição ou tradução de escritas pregressas, fossem elas de fato existentes ou supostamente perdidas421. Essa tradição remissiva pode ter sido levada aos extremos nos dois livros do Dom Quixote de Miguel de Cervantes. No primeiro livro, com o episódio da perda do fio da narrativa e de seu sucessivo reencontro na escrita mourisca de Cide Hamete Benengeli. No segundo livro, em um artifício ainda extremamente moderno, pela remissão ao próprio primeiro livro do Quixote, assim como à sua continuação falsa. Trata-se do mesmo processo de remissão que, involuntariamente, leva o Leitor de Se um viajante numa noite de inverno de um início de livro a outro, e desse a

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AGAMBEN. El origen y el olvido, p. 255. AGAMBEN. El origen y el olvido, p. 258. 408 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

mais um, numa espécie de linha conectora que parece sustentar a narrativa. De certa forma, o livro de Calvino dá sinais de que é essa remissão que torna possível o romance. De fato, até mesmo a palavra “romance”, como destaca Agamben, traz em seu bojo essa natureza remissiva: O próprio termo romanzo [romance] deriva da expressão “por em romance”, ou seja, “traduzir para língua vulgar” e, portanto, implica a ideia de uma palavra que vem de fora ou de outro lugar; e sabe-se que essa ficção de uma palavra recebida, que o autor teria unicamente se limitado a transcrever ou traduzir, já é parte integrante da tradição romanesca422.

Operando com diversas palavras “de fora”, conglomerando múltiplos romances e aglutinando-os em uma única malha textual, Se um viajante... escancara essa condição primeira do romance. A partir de um processo remissivo em que um texto se abre ao seguinte, o livro os “põe em romance”. Nesse processo, a obra de Calvino dá sinais de ecoar, em sua própria estrutura, essa perda original que é condição de toda a nossa tradição literária, perda igualmente evidente em diversos outros textos, como no de Cervantes. Nesse ponto, Calvino e Cervantes encontram seu lugar na constelação dos textos da perda. Ali, encontram-se com Poe, Henry James, Mallarmé, Bruno Schulz, Renato

422 AGAMBEN. El origen y el olvido, p. 258. Tradução nossa. 409 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Pompeu, Borges e mais uma série de escritores que, em maior ou menor medida, viram sua escrita operar segundo a ausência fundadora da literatura: a perda. Ausência que, em última instância, dá sinais de tragar todo traço, todo texto, toda palavra, toda escrita, como nos revelou o próprio Calvino. Ecoo, aqui, suas palavras: A biblioteca ideal para a qual eu tendo é aquela que gravita em direção ao exterior, em direção aos livros “apócrifos”, no sentido etimológico da palavra, isto é, os livros “escondidos”. A literatura é a busca do livro escondido distante, que muda o valor dos livros conhecidos, é a tensão em direção ao novo texto apócrifo a ser reencontrado ou inventado423.

Se, conforme destaca Calvino, a literatura é feita de uma escrita em busca de livro ou, ainda, de uma tensão em direção a um texto escondido, ao lançar perguntas sobre esse universo constelar de perda e ausência, é possível conhecer um pouco mais a natureza dessa escrita. Voltar o olhar nessa direção é, assim, colocar-se diante de um Texto ausente que surge como meta e origem em toda uma escrita e que se esconde por trás de todas as coisas.

Referências AGAMBEN, Giorgio. El origen y el olvido. In: ______. La potencia del pensamiento. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2007. BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Barcelona: Emecé

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CALVINO. A literatura como projeção do desejo, p. 241. 410 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

editores, 1996. CALVINO, Italo. A literatura como projeção do desejo (para a anatomia da crítica, de Northrop frye). In: ______. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 232-241. CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. Tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Editora 24, 2010. 2 volumes. JAMES, Henry. The Aspern papers. In: ______. The turn of the screw and The Aspern papers. Londres: Penguin Books, 1986. KELLY, Stuart. O livro dos livros perdidos. Tradução de Ana Maria Mandim. Rio de Janeiro: Record, 2007. MALLARMÉ, Stéphane. divagações. Tradução de Fernando Scheibe. Florianópolis: Editora UFSC, 2010. PEREC, Georges. A viagem de inverno. In: ______. A coleção particular. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 73-82. POE, Edgar Allan. MS. in a bottle; The purloined letter. In: ______. Selected tales. London: Penguin Books, 1994. POMPEU, Renato. Quatro olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. SEGALEN, Victor. Les Immémoriaux. Paris: Pocket France, 2009. SCHULZ, Bruno. Ficção completa. Tradução de Henryk Siewierski. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

411 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

POESIA, CARNAVAL E OUTRAS FESTAS EM SACIOLOGIA GOIANA, DE GILBERTO MENDONÇA TELES

Damáris de Souza Ramos

Saciologia Goiana, livro publicado em 1982 por Gilberto Mendonça Teles, é um convite ao universo do imaginário popular do cerrado brasileiro. Podemos observar no texto os mitos que povoam o imaginário goiano, como o Saci, o Curupira e a musa Iara. No livro preponderam as imagens da terra, do cotidiano e dos mitos. São particularidades da cultura popular, revisitadas e recriadas pela escrita. Neste trabalho, discutiremos a poética da festa nas imagens alegóricas do saci em contraponto às imagens dionisíacas. Observamos os aspectos festivos, sombrios e sedutores. As imagens do mito Dionísio observadas neste estudo ilumina o percurso para pensar como se configura a figura do Saci em suas diversas facetas na poesia telesiana. Ao organizar a Fortuna Crítica de Saciologia Goiana (2011), Therezinha Mucci Xavier aponta as tonalidades épicas bem humoradas do texto, dado que convém a personagem do Saci, mito popular bem conhecido no Brasil. A autora ressalta uma entrevista do poeta Gilberto Mendonça Teles em que ele informa que o Saci se tornou tema central nos poemas, como se o próprio livro fosse

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uma entidade de uma perna só, com uma versão erudita e outra popular. Percebemos então que muitas imagens atribuídas ao deus grego Dionísio podem ser observadas no Saci. Das possíveis interpretações sobre o mito Dionísio, consideramos os aspectos da dualidade do mito. Dionísio é, entre outros atributos, o deus da vida, da metamorfose, da morte, da desmedida, do sexo, da dor e da música. Portanto, uma personalidade complexa e cheia de contradições. Conforme Pierre Brunel (1997), a contradição que cerca esse mito é porque certamente o caráter peculiar do culto de Dionísio (possessão, ritos de orgia, excursões pela montanha) sempre fez dele um deus à parte, um deus mais do povo que da aristocracia, durante muito tempo menos prestigiado que outros deuses do Olimpo. Em contraponto ao mito Dionísio, verifica-se que o mito Saci está incorporado nos poemas investigados do livro Saciologia Goiana de Gilberto Mendonça Teles, afirmando as múltiplas facetas que povoam o imaginário popular. Além disso, tanto Dionísio quanto o Saci são cultuados fora do centro, cuja posição é marginalizada na literatura. A narração do Saci possui diversas interpretações. Dentre elas, conforme Luís da Câmara Cascudo em Dicionário do folclore brasileiro (2001), o Saci é um negrinho de uma só perna, usa carapuça vermelha na cabeça, que o faz encantado, ágil e astuto. O Saci usa barretinho encarnado, e a carapuça vermelha lhe dá poderes milagrosos. Se alguém lhe arrebata a carapuça, o Saci dará montões de

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ouro para reaver o chapeuzinho. O Saci ainda é conhecido por fumar cachimbo e diverte-se criando dificuldades domésticas, apagando o fogo, queimando alimentos e espantando os animais. Em outras versões do mito, o Saci surge como um ser maléfico, ora brincalhão e gracioso. Observamos que nos poemas em análise o poeta funde as diversas características atribuídas ao mito Saci. Ora ele é maléfico, ora ele assume uma identidade brincalhona, lúdica e sedutora. Percebemos que essas facetas o aproximam da figura mitológica do deus grego Dionísio. Ambos possuem intensidades e encantamentos que perpassam pela duplicidade dos contrários da vida, como a tristeza e a alegria, o êxtase e o trágico. Nesse sentido, percebemos que o texto telesiano possui elementos que dialogam com os pressupostos teóricos formulados por Mikhail Bakhtin quando estudou a estética do carnaval no contexto de François Rabelais. Para Bakhtin o grotesco, elemento primordial do carnaval, possui diversas características. A mais recorrente é o afastamento do quadro habitual do mundo. São as inversões, os destronamentos, a metamorfose e o eterno inacabamento da existência. Pois o grotesco rompre com todas as fronteiras e apresenta seu aspecto essencial que é a deformidade. Além disso, o riso constitue elemento inseparável da concepção do grotesco, às vezes na forma atenuada de humor, ironia e sarcasmo. Ao transpor para literatura essas concepções do mundo carnavalizado é também uma forma de violação das fronteiras e também de liberdade.

414 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Nos poemas de Saciologia Goiana observamos imagens grotescas que constitue uma reelaboração da festa. A festa do carnaval na poesia telesiana perpassa por caminhos atenuados do grotesco, ou seja suas estratégias estéticas mais acentuadas são a ironia e o cômico. Podemos perceber que a festa marca uma interrupção provisória de todo sistema oficial, como suas interdições e barreiras hierárquicas. Em aproximação à festa carnavalesca, a escrita é uma forma libertadora do sujeito, dá-lhe a sensação de liberdade e de transgressão tão almejada no carnaval. Por meio da escrita e nas entrelinhas do discurso, o sujeito poético veste a máscara do carnaval e se liberta das cadeias das convenções do mundo. Conforme Bakhtin: O motivo da máscara é mais importante ainda. É o motivo mais complexo, mais carregado de sentido da cultura popular. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesma; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, características das formas mais antigas dos ritos e espetáculos424.

424 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, p. 35. 415 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Como podemos constatar a máscara é umas das formas mais primitivas da expressão humana no que concerne a ideia de violação. Bakhtin ainda ressalta que o complexo simbolismo das máscaras é inesgotável. Para simbolizar a ideia da festa, a figura folclorística do Saci é central no livro. Importante assinalar o fato desse mito trazer consigo a marca da deformação em sua constituição física. São diversos poemas em primeira pessoa, cuja voz é atribuída ao Saci. Supomos que esse jogo de aparecer em diversas facetas e máscaras, o Saci pode representar o discurso plurivocal presente na obra. O poema “Camongo” reforça a ideia do “mundo às avessas” e a fala do Saci aparece como desdobramento da fala do outro, constituindo, então, uma voz que estabelece uma relação dialógica com o mundo. Podemos encontrar nos versos várias camadas discursivas, entre elas já apontadas pela crítica, como a metalinguagem, a questão telúrica, e, por extensão, o discurso social. Para melhor verificarmos como se apresenta a fala do saci como discurso plurivocal, vejamos os versos do poema “Camongo”, constituído em forma de cordel: Venho de longe e de perto, Sou das campinas gerais, Meu pé de verso por certo não sabe deixar sinais, mas reflete o céu aberto da terra chã de meus pais. Sou meio cigano e furo o tempo como os pajés.

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Conheço bem o futuro da terra dos coronéis. conheço até dedo-duro e seus amigos fiéis425. As marcas históricas e sociais aparecem de forma carnavalizada, a partir da fala subversiva que está nas entrelinhas. São versos de denúncia e crítica às questões sociais e políticas do país. O poema é composto de sessenta e quatro estrofes, não por acaso, está ligado ao contexto histórico do golpe de 64. E é nos poemas que podemos contemplar a diversidade que a fala do Saci evoca. Atentemos-nos a outras estrofes do poema: Saci é bicho danado, pula até nos convencer. Precisa ser dedurado, precisa um dia perder o seu charme e ser cassado de sua graça e poder. Tentaram quebrar-lhe a fuça, tentaram cortar-lhe os pés. Mas só tinha um e era ruça a visão dos coronéis. Pensaram na carapuça e nem contaram até dez426. O pulo do Saci nos convida ao jogo da festa, que é o carnaval, a festa do tempo onde tudo se destrói e renova. Pois no carnaval a vida é deslocada do seu curso habitual. E com suas artes e manhas o Saci desmascara a ordem

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TELES. Saciologia goiana, p. 154. TELES. Saciologia goiana, p. 154. 417 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

das coisas e assume poderes de denúncia, de desencanto e de vingança. E a aparente leveza presente na construção dos versos é para dissimular a fala ao contrário, fala para não dizer, que se dilui no não-dito ou no silêncio. Mikhail Bakhtin (1996) aponta caminho para compreender esse processo subversivo do dizer “as avessas”. Pois há uma subversão da ordem estabelecida, em oposição ao tom sério se evidencia por meio das imagens alegóricas, o riso, o jogo e a brincadeira. Ainda podemos contemplar no poema “Camongo” a alegria da festa dionisíaca que está ao mesmo tempo ligada à tragicidade. Percebe-se uma atmosfera de embate representando as marcas sombrias dos versos e ao mesmo tempo ameaça o Saci que deve ser cassado e dedurado. Aparece assim o Mal, conforme postulado por Bataille, é também a ideia da morte. Aparece em sua condição da falta, do não-ser pleno em vida. Pois o Mal é o princípio oposto de uma maneira irremediável à ordem natural. O poema “Camongo” ratifica essa duplicidade de emoções. Pois o eu poético usa a máscara do Saci, que se torna Camongo, que pode ser camondongo, e uma vez camondongo torna-se portador do grotesco. Em oposição às imagens sombrias apresentadas, que se configuram no Mal, podemos contemplar no poema “Camongo” imagens da sedução e de encantamento: Deu um pulo e foi à França, usou perfume de spray, entrou num baile sem dança, amou a filha do rei

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e namorou a esperança com todo direito e lei. Deu um pulo mais pra frente, viu novas terras e céu, conheceu coisas e gente, parou, tirou o chapéu, traçou as gringas no dente pulando de déu em déu427. Nessa estrofe aparece a face sedutora do Saci. Após tantas peripécias ao longo do poema, ele vai a França amar a filha do rei. E ainda pulando de déu em déu continuou seduzindo e “traçando” muitas gringas em outras terras por aí afora. O poeta se serve dos recursos da literatura de cordel e traz para o poema um vasto glossário do vocabulário popular. Mais um elemento de sedução que pode ser observado nos versos. A linguagem, observa Leyla Perrone-Moisés (1998), não é só meio de sedução, ela é o próprio lugar da sedução. No poema “Camongo” podemos observar que o Saci apresenta comportamentos que o aproxima das imagens dionisíacas, ele seduz e trapaceia por meio da linguagem. Retomando a outro atributo de Dionísio, o temos também como o deus da vida e da desmedida. Também o Saci possui essa intensidade para vida. Para Brunel (1997), a sedução em Dionísio passa por aspectos da fertilidade e da fecundidade atribuídas ao mito. Segundo ele o mito apresenta muitas afinidades com o elemento úmido, fator universal de fertilidade, pois seu poder de deus fecundo não se limita às plantas. É possível encontrar poemas de retomada às

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TELES. Saciologia goiana, p. 157. 419 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

questões da natureza, cujas imagens associam às imagens da fertilidade. No poema “Antologia” observa-se referência à pecuária e à agricultura, principais fontes de renda do cerrado brasileiro, e o cultivo de frutas. Vejamos: Já de há muito desleitadas, vacas e bezerros pastavam, apartados, no mangueiro. E a antiga casa sertaneja, erigida a sopapos, ficava assim, dentre o verde ramalhudo cercados de pinhão e fruteiras do quintalejo, como um velho tiú dormindo à beira da estrada, no cicio acalentante das cigarras428. Essa rememoração do universo do cerrado é constante na obra Saciologia Goiana. São alusões aos costumes e ao cultivo dos alimentos, prática comum do povo sertanejo. É no quintalejo, ou seja no quintal, onde se cultiva as frutas típicas para subsistência. A voz atenta do saci-poeta como diria José Fernandes (2011), faz referência à vocação do povo goiano para cultivo da terra. E remete nos à ideia da fertilidade da própria terra e aos mitos Dionísio e Saci, observados neste estudo. Ao apropriar dos mitos do cerrado brasileiro e contemplar a terra amada, os poemas de Saciologia Goiana redimensiona o universo simples do cotidiano

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TELES. Saciologia goiana, p. 169-170. 420 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e dá-lhe uma segunda inteligibilidade. A propósito das muitas coincidências entre os dois mitos em estudo, o mito Dionísio e o Saci goiano, vejamos o poema “Aldeia Global”: Vinde todos, vinde, como o curupira, para que vos brinde no avesso da lira. Vinde, vinde ao poema e gritai safados como siriema nos ermos cerrados. No meio das tabas não quero ver dores, Mas morubixadas e altivos senhores429. O poema remete ao leitor a outro mito de aspecto sombrio, o curupira, cuja narração é conhecida por soltar assovios para assustar caçadores e lenhadores. O saci se junta aos romãozinhos, aos curupiras, aos caiporas para assustar, fazer maquinações, deixar seus excrementos nas comidas, urinar nos lençóis brancos. Há uma convocação de seres fantásticos para o poema e intensifica a ideia que também aproxima das imagens dionisíacas, como a desmedida e a metamorfose. E legitima a reinvenção e reinterpretação dos mitos populares, construindo pontes com as mágicas vocabulares para transmitir emoções que não estão limitadas ao universo do cerrado goiano. Inescapavelmente encontramos o lirismo, a sátira, a ironia e a crítica social.

429

TELES. Saciologia goiana, p. 51. 421 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Importante destacar que uma das características atribuídas ao mito Dionísio é a fecundidade, sendo também conhecido como o deus da vegetação. Nos poemas analisados percebe-se uma constante preocupação do eu poético quanto às questões ambientais. Além disso, há uma profunda invocação da flora e da fauna num movimento de amor e proteção. Em “Antologia”, deparamos com a voz do Saci que denuncia as questões do desmatamento desordenado que prejudica e mata parte da fauna e flora, vejamos: Pelos dias de agosto, Todo o horizonte goiano é um vasto mar de chamas: Fogo das queimadas que ardem, alastrando-se pelos “gerais” dos tabuleiros e chapadões a afugentar a fauna alada daqueles campos; fogo dos cerrados que esbraseiam, estadeando à noite seus longos listrões de incêndio nas cumeadas das serras, intrometendo-se léguas e léguas pelo mato grosso e travessões do curso dos rios e subindo, carbonizadas as folhas secas que o vento acamara, pelo cipoal e trepadeiras dos troncos seculares, cuja casca rugosa tisna de sobreleve para ir em fúria crepitar nas

422 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

grimpas, entre as galharadas verdes, reduzindo a cinzas os ninhos balouçantes do sabiá nativo, [...]430. A partir do poema observa-se informações de natureza sociológica do povo goiano. O poema retoma o caráter de apresentação e mapeamento de Goiás e ao mesmo tempo conduz o leitor a outras dimensões. E traz a imagem do incêndio que mata bichos e florestas, reduzindo a cinzas os ninhos do sabiá nativo. A voz poética dos versos, atribuída ao saci-poeta apresenta uma dimensão da personalidade do Saci em forma de denúncia e proteção das matas. Assim emerge a figura perturbadora do Saci para expressar a crítica social que decorre no poema. Esse fenômeno é decodificado por Bakhtin (1996) para enfatizar o universo que está além das aparências. Os mitos servem para enunciar algo que não se expressa e não está limitado ao espaço da realidade visível. É uma espécie de carnavalização, pois subverte a ordem estabelecida e “a vida se revela em seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito, nem completo, é a quintessência da incompletude”431. Mesmo transfigurado ora em ativista social, o saci-poeta não se inocenta, e nem se redime. Conforme postula Georges Bataille (1989) em “A literatura e o mal”, em uma das assertivas sobre a significação do

430 TELES. Saciologia goiana, p. 173. 431 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, p. 23. 423 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

mal apresenta a ideia do mal em níveis dissimulados. Segundo ele é possível verificar a presença do mal em um texto que a primeira vista não está visível. Ao discorrer sobre o mal em Marcel Proust ele desperta a leitura para o mal moral que está disfarçado pelo cinismo, a pureza e a ingenuidade. Em oposição aos contrários da vida, o autor alerta para a malícia que encerra uma obra literária. Essa noção de mal se aplica aos poemas da obra Saciologia Goiana, na perspectiva tratada neste estudo, uma vez que o poeta, artífice da língua cria campos semânticos diversos que repercutem em variadas interpretações. Apresentamos essa aproximação tendo em vista que a obra agrega e comporta sinais de denúncia social, demonstra um desconforto do sujeito lírico ao contemplar a terra amada, com suas mazelas e problemas. E para revelar e externar toda angústia a figura do Saci é emblemática. A figura mítica abarca diversos desejos e anseios para gritar a verdade de forma mascarada. Ao Saci é dado o poder de cutucar, dedurar e ferrar com a (des) ordem das coisas. E é pela via alegre, satírica e humorada que o saci-poeta convida à leitura das entrelinhas. Na perspectiva carnavalizada postulada por Bakhtin (1996) o riso foi enviado à terra pelo diabo, apareceu aos homens com a máscara da alegria e eles o acolheram com agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira sua máscara alegre e começa a refletir sobre o mundo e os homens com a crueldade da sátira. E o que parecia ser divertido e brincalhão, suscita outras intermitências. E para tanto as figuras mitológicas do Saci e do mito Dionísio

424 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

encarnam a mácara do riso, da alegria, do prazer e da festa. Observamos o poema intitulado em “Exorcismo”: E tu, marcellus, erisipela piolho da tribo na dor, nos ais, com mil diabos cresçam teus rabos, cresçam teus chifres de fogo e rifles no mais distante do meu Goiás. Vós todos juntos, como defuntos Ou mortos-vivos intempestivos nos madrigais, neste momento de sol e vento, eu vos convoco vos exorcizo, vos esconjuro, nem sei que mais432. Os signos vocabulares “erisipela”, “dor”, “diabos”, “rabos”, “chifres”, “fogo”, “rifles” são basilares para expressar o tom burlesco e ao mesmo tempo sombrio assinalado nos versos de “Exorcismo”. Os versos instauram um ritual de expulsão dos males e ao mesmo tempo cria um campo propício às inversões, aos destronamentos e às profanações comuns do tempo carnavalesco. A rede de significados amplia e produz sentido, e nesse caso, o poema seria um exemplo daquilo que Georges Bataille (1989) define como uma das significações do Mal, que, segundo ele: O Mal, nessa coincidência de contrários, é apenas o princípio oposto de uma maneira irremediável à ordem

432

TELES. Saciologia goiana, p. 108. 425 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

natural, que está nos limites da razão. A morte, sendo a condição da vida, o Mal, que se liga em sua essência à morte, é também, de uma maneira ambígua, um fundamento do ser. O ser não é consagrado ao mal, mas deve, se o pode, não se deixar encerrar nos limites da razão. Ele deve antes de tudo aceitar estes limites [...]433.

Como se vê, o jogo de contrários que não se divergem e se fundem, viola as fronteiras e dialoga com os pressupostos formulados por Bakhtin (1996), quando esclarece que a morte não se opõe a vida, nessa concepção, a morte é considerada uma entidade da vida na qualidade de fase necessária, de condição para a sua renovação e rejuvenescimento permanente. A morte está sempre relacionada ao renascimento. Dessa forma, ao observar as facetas dos dois mitos em análise, com as contradições e as diversas máscaras que ambos representam, há uma ampliação do conceito do mal e da morte: para abranger muitas coisas que não podem ser classificadas sob uma noção estreitada. Tanto Bataille (1989) quanto Bakhtin (1996) demonstram que o jogo dos contrários da vida e da morte, do bem e do mal, da alegria e da tristeza participam de uma harmonia, tornando um face do outro, e não em posições rigorosamente opostas. A noção de aproximação dos opostos é pontual para entendermos a extensão e a diversidade de interpretações que estão em torno da figura mítica de Dionísio e do Saci.

433

BATAILLE, 1989, p. 27 426 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

E a partir das imagens dos mitos amplia-se a rede de significados para abarcar o que não se apreende dentro de um sistema estático de conceitos e valores. Pois na carnavalização do mundo a essência é a universalidade. E para tanto encontramos nos mitos Dionísio e Saci aproximações pertinentes que propagam à medida que quebramos a fronteira do visível e adentramos ao universo mágico desses mitos, reconhecendo seus encantos e desencantos. Considerando a morte como um novo renascimento, nasce então um possível encontro onde o Saci degusta vinho e Dionísio experimenta cachimbo. A partir dessa perspectiva, conforme interpretada nesse trabalho é possível estabelecer diálogos entre culturas distintas, aproximar distâncias, harmonizar conflitos e (des) ordenar o mundo. As tonalidades carnavalescas presentes nos poemas representam o tempo alegre e o tempo festivo. E dessa maneira, lança um novo olhar sobre o mundo, destituído de medo e convenções.

427 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Referências BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1996. BATAILLE, Georges. A literatura e o Mal. Tradução de Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. BRUNEL, Pierre. (Org.) Dicionário de mitos literários. Tradução de Carlos Sussekind, et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2001. FERNANDES, José. O humor saciólogico de G. M. T. In XAVIER, Terezinha Mucci. (Org.). Fortuna Crítica de Saciologia Goiana. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2011. p. 39-60. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. TELES, Gilberto Mendonça. Saciologia goiana. Goiâna: Kelps, 2004. XAVIER, Terezinha Mucci (org.). Fortuna Crítica de Saciologia Goiana. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2011.

428 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

CONFIGURAÇÕES DO RISO CARNAVALESCO EM SERAFIM PONTE GRANDE

Viviane Rodrigues

O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o e completa-o. (BAKHTIN)

A comicidade perpassa toda a tessitura de Serafim Ponte Grande. Na composição do enredo encontram-se trechos em que o autor utiliza a linguagem coloquial e vulgar, gírias, ditados populares, neologismos, palavras soltas e repetidas, estrangeirismos, jogos de palavras, zombaria e diferentes situações sociais parodiadas que se destacam pelos exageros em que são apresentadas. Essas características agregam-se tanto na supremacia da sátira, quanto nos momentos em que se apresenta na narrativa o riso carnavalesco, identificado pelos elementos que o constitui e que estão presentes no romance, gerando a ampliação do efeito cômico do texto. Nesse sentido, a influência da cultura popular de origem carnavalesca, revelada a partir da paródia, causa

429 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

na linguagem um efeito de sentido cômico, pelo uso da hipérbole, nas máscaras sociais, nas subversões e no rebaixamento. Para compreender o tom carnavalesco e o aspecto cômico burlesco presente no romance, serão discutidos alguns aspectos da história do riso carnavalesco, das festas medievais, os ritos de carnaval, a literatura cômica da Idade Média, associando-se algumas de suas características ao estilo cômico do autor em Serafim Ponte Grande, pois a existência de elementos da cultura carnavalesca no romance potencializa a incidência da comicidade na linguagem do texto. O “riso festivo”, percebido em Serafim Ponte Grande, apresenta-se como sendo um riso alegre e jocoso, bem típico da carnavalização, que é manifestada em sua linguagem literária. Essa relação torna-se observável a partir da concepção de que a “carnavalização é a transposição do espírito carnavalesco à arte.”434. Nesse contexto, há, na escrita do romance, uma projeção do riso carnavalesco oriundo da cultura cômica popular da Idade Média e do início do Renascimento, difundido a partir do estilo modernista de Oswald de Andrade, que atribui ao seu livro caráter cômico ao explorar instrumentos linguísticos que causam a comicidade, associados a alguns elementos que constituem a carnavalização e transmitem ao texto um efeito risível. Bakhtin discute na obra Problemas da Poética de

434 89.

FIORIN. Introdução ao pensamento de Bakhtin, p. 430 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Dostoiévski (1997) a teoria da carnavalização na literatura e define: Chamaremos literatura carnavalizada à literatura que, direta ou indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência de diferentes modalidades de folclore carnavalesco (antigo ou medieval). Todo campo do sério-cômico constitui o primeiro exemplo desse tipo de literatura435.

O riso carnavalesco na literatura de Oswald de Andrade, especificamente em Serafim Ponte Grande decorre, principalmente, do compartilhamento do aspecto libertador evidenciado e que faz parte da dinâmica carnavalesca, assim como da movimentação dos personagens, pois não há um cenário fixo na obra. A carnavalização está também no caráter bufão de alguns personagens, no fato do protagonista rir de si mesmo e na representação do “mundo as avessas”. Esses aspectos são projetados na obra e estão associados à comicidade. Com relação à “festa carnavalesca” da Idade Média sabe-se que esta propiciava ao folião a oportunidade de extravasar o medo que o perseguia, invertendo, em forma de zombaria, o sentimento de temor que o aterrorizava. Dessa forma, eram parodiados a morte, o sagrado, o inferno e os tabus sociais proibidos para a época. As revelações feitas por meio do riso contradiziam a seriedade, a religiosidade e a cultura oriunda do feudalismo que vigorava no período,

435 107.

BAKHTIN. Problemas da poética de Dostoievski, p. 431 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sem, contudo, significar uma contestação social objetiva; pelo contrário, o riso carnavalesco medieval também servia para reafirmar valores hierárquicos. Os festejos do carnaval ocupavam um lugar importante na vida do homem medieval. Era uma festa que havia sido aceita pelo cristianismo, e, mesmo não coincidindo com nenhum fato da história sagrada, possuía aspecto cômico popular e público, consagrado pela tradição. Na Idade Média, os ritos cômicos do carnaval são uma verdadeira paródia ao culto religioso, afastando-se do dogmatismo eclesiástico. O riso do carnaval medieval é deformante e fundamenta-se na paródia, em que grupos sociais zombam entre si, invertendo valores e agindo, contraditoriamente em um meio social complexo, pois o contexto histórico medieval era de temor. Na carnavalização, o riso não se apresenta simplesmente como uma ridicularização; o seu caráter transformador emprega manifestações populares que, ao parodiá-la, reconstituem a sociedade em geral. Bakhtin conceitua-o como um riso de festa e não como uma reação individual frente a um determinado fato “engraçado”. O conceito de riso carnavalesco, para Georges Minois, relaciona-se com uma mercadoria, patrimônio do povo. Seu caráter popular é inerente à natureza do Carnaval, quando todos podem rir; é um riso “geral”, “universal”, ou seja, que pode abranger todas as coisas, alcançar todas as pessoas; o mundo todo pode tornar-se material do cômico; é um riso “ambivalente”, por conter uma alegria radiante,

432 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

mas também zombeteira e sarcástica. Dessa forma, ao mesmo tempo em que esse riso nega, acaba por afirmar valores sociais e posicionamentos ideológicos. No romance, o princípio do riso carnavalesco manifesta-se em diferentes momentos da narrativa, seja na voz do narrador, seja na fala e no comportamento dos personagens. O tom carnavalesco se faz presente na composição do discurso da obra, tornando-se um aspecto essencial na discussão sobre a comicidade do enredo. O riso na festa popular volta-se aos próprios festeiros; o povo não se exclui desse “mundo às avessas” em que o rei é destronado, sendo esse ato o centro da carnavalização, pois qualquer pessoa poderia assumir o lugar de majestade, o que simbolizava o avesso da estrutura hierárquica social. Seu caráter universal faz com que todos riam de tudo, transformando esse mundo em um cenário extremamente cômico. Nesse sentido é que, revestidos por máscaras, são extravasadas suas necessidades mais reprimidas. De acordo com Bakhtin, a cultura carnavalesca pode ser entendida como um “mundo às avessas”. Suas manifestações culturais apresentam-se a partir de uma visão cômica de mundo, elaborada de maneira autônoma, fora do controle das autoridades, adquirindo, assim, liberdade extravagante. Ela se exprime sob três formas principais: ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas praças públicas, festas cômicas medievais); obras cômicas verbais de diversas naturezas (inclusive as paródias) e diversas formas e

433 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos, e outros). O “mundo às avessas” em que se manifesta a carnavalização não consiste em um espetáculo, mas representa a segunda vida das pessoas que vivenciam o carnaval. Essa atitude libertadora não pode ser confundida com o papel dos bufões e dos bobos; esses eram personagens que se caracterizavam para fazer os outros rirem, ao passo que as pessoas que participavam da festa se divertiam pelo desejo de se alegrarem, rindo de si mesmas: Nas festas carnavalescas, o povo representa a própria vida, parodiando-a e invertendo-a; uma vida melhor, nova, livre, transfigurada. “O Carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É sua vida de festa.” Essa vida representada no riso corresponde aos fins superiores da existência: um renascer na universalidade, a liberdade, a igualdade, a abundância. É uma franquia provisória, mas anunciadora da libertação definitiva em relação a regras, valores, tabus e hierarquias. Ela é séria porque coincide com a ordem estabelecida. O riso teria, portanto, valor de subversão social, temporariamente tolerado pelas autoridades, como exutório, em circunstâncias determinadas436.

Nas festas da Idade Média, o riso era permitido

436

MINOIS, 2003, p. 156 -157 434 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

pelas autoridades e desempenhava o papel de salientar o lado público e popular da brincadeira festiva. Estabeleciase como um riso festivo por excelência, materializado nas festas públicas carnavalescas pelos bufões, tolos, gigantes, anões, monstros e palhaços. A paródia era a marca desse riso, deformando a sociedade através da zombaria que se manifestava nas festas cômicas: “festa dos tolos”, “festa do asno”, “riso pascal ou risus paschalis”, “festa do templo”, “festa dos loucos”, “festa dos bobos”, “Charivari”, “Carnaval”. O riso de zombaria da época tinha uma proporção muito menor que o conceito de zombaria que o romantismo apregoará. Zombar, nesse período, não tinha o caráter contestador de valores e hierarquias. Esse riso era aceito, porém, de forma invertida, sem o caráter negativo do riso satírico. As festividades carnavalescas representavam uma fuga dos moldes da vida oficial, suprimindo, assim, a vida cotidiana. Por esse viés, percebe-se que a trajetória do protagonista do romance Serafim Ponte Grande assemelha-se com a manifestação dessa segunda vida festiva, pois o romance é marcado pelo desejo de liberdade, evidenciado pelas constantes fugas de Serafim, já que não se contenta com sua vida cotidiana. Foge da sua realidade, mascarando-a com viagens e transgressões. O protagonista, ao se tornar rico, procura imediatamente libertar-se das “amarras” sociais e familiares que o prendiam: o casamento e o emprego de funcionário público. A maneira encontrada para libertar-se de sua vida cotidiana foi sair em uma espécie de “cruzeiro” marítimo,

435 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

ao lado do amigo Pinto Calçudo, que se tornou seu secretário particular. Nessas viagens, Serafim experimenta uma nova forma de viver, regada pela liberdade e pelo riso, não aceitando mais os ditames sociais a que estava submetido. Assim o texto faz uma paródia da vida rotineira e apresenta a vida pelo avesso, suspendendo as leis que determinam o funcionamento da conduta habitual. A natureza da festividade no romance relacionase com o que a liberdade representava para a cultura medieval e renascentista, pois na liberdade conquistada pelo protagonista insere-se o sentido da festa: o prazer de experimentar uma liberdade efêmera, uma outra forma de viver. Bakhtin explica que o carnaval possui caráter universal. Todos que participam da festa são motivados pela ideia da renovação. O carnaval torna-se, então, uma maneira de viver, mesmo que efêmera, rápida, provisória. Nele, a própria vida é representada e interpretada; não é um espetáculo teatral, mas é uma nova vida assumida pelas pessoas e alicerçada pelo fundamento do riso: Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade. O carnaval possui um caráter universal, é um estado peculiar do mundo: o seu renascimento e a sua renovação, dos quais participa cada indivíduo. Essa é a própria essência do carnaval, e os que participam do festejo sentem-no intensamente437.

437

BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no 436 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

No carnaval, as extremidades entre o que é fictício e real são anuladas. Nos festejos em que se comemora a liberdade, ao coroar o bufão e destronar o rei, outra vida é assumida pelo folião, que se torna a atração do seu próprio espetáculo, não existindo distinções entre aquele que tem a função de atuar e o público, pois não há palco, todos estão no mesmo plano; a festa não é para apenas ser vista. As pessoas que dela participam a vivenciam, uma vez que o carnaval é a festa do povo, vivida com intensidade e liberdade. Qualquer pessoa do “povo” pode ser entronizada. No romance, Serafim se sente ameaçado pela desenvoltura do amigo Pinto Calçudo, que assume momentaneamente o lugar de protagonista. Serafim resguarda sua superioridade expulsando-o da estória, como já foi comentado no primeiro capítulo desta dissertação, na análise sobre o “curinga”. Serafim Ponte Grande e Pinto Calçudo formam no romance um par cômico, mas o jogo hierárquico entre os dois revela que o papel de protagonista de Serafim era ameaçado pela importante função que Pinto Calçudo adquire no enredo, pois além de disseminar o riso, quanto retorna à trama finaliza a estória a bordo do navio El Durasno, em uma festa interminável. A alusão à quebra dos valores hierárquicos evidenciada pela troca do papel de protagonista relaciona-se com o perfil que as festas carnavalescas apregoavam, pois no carnaval todos eram

Renascimento: o contexto de François Rabelais, p. 6. 437 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

iguais. Segundo Fonseca438, um outro traço que persiste como marca desta tradição é a dupla cômica. Representava na cultura popular da Idade Média o mundo carnava­ lizado, em uma de suas diversas manifestações. Por mundo carnava­ lizado entende Mikhail Bakhtin um mundo “às avessas”, a trans­gressão plena da ordem oficial, ainda que num curto período de festa. Esta forma de manifestação popular pretendia uma paródia da vida cotidiana, uma festa baseada no princípio do riso, que pudesse revelar a verdadeira ambivalência do mundo. Define então o carnaval desta cultura como “a segunda vida do povo baseada no princípio do riso. É sua vida de festa. A festa é o traço fundamental de todas as formas de ritos e espetáculos cômicos da Idade Média”. Os pares cômicos fazem parte desta manifestação “carnavalesca”, no sentido acima atri­buído. Em geral aparecem por contrastes: gordo e magro; velho e moço; grande e pequeno; tolo e esperto, uma infinidade de combinações por oposição.

É importante ressaltar a imagem enigmática do instantâneo desaparecimento de Pinto Calçudo por meio de um traque. Esta imagem contribui para a alusão do mundo às avessas que se estabelece no romance e que é o universo do bufão, salientando-se ainda mais essa interpretação.

438

FONSECA. Palhaço da burguesia, p. 25-26.0 438 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Os bufões acompanhavam as festividades da Idade Média e do Renascimento. Baseados no princípio da liberdade, sua função era parodiar, ridicularizar, blasfemar e degradar as cerimônias sérias do período; por isso, entender a história das festas medievais é fundamental para a discussão das implicações sociais, políticas e culturais que se relacionam ao riso, pois no jogo cômico dos bufões, também havia denúncias de valores que eles julgavam equivocados. No período, o riso servia como forma de perversão, contestação e até mesmo como “elemento conservador”. Sendo assim, o riso nas festividades medievais era bem deflagrado pelos bobos e bufões, elementos consagrados pelo princípio carnavalesco. A importância do papel que eles representavam é fundamental para compreender a dinâmica cômica carnavalesca, pois não se trata de personagens, mas, sim, de uma alternativa específica para viver: Os bufões e bobos são personagens características da cultura cômica da Idade Média. De certo modo, os veículos permanentes e consagrados do princípio carnavalesco na vida cotidiana (aquela que se desenrolava fora do carnaval). Os bufões e bobos [...] não eram atores que desempenhavam seu papel no palco [...] Pelo contrário eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. [...] Situavam-se entre a vida e a arte (numa esfera intermediária), nem personagens excêntricos ou estúpidos

439 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

nem atores cômicos439.

No romance em estudo, no primeiro momento em que o protagonista é apresentado ao leitor, na unidade “Vacina Obrigatória”, discutida anteriormente, revela sua personalidade irônica através do seu comportamento cômico, que está associado ao bufão: Vozes — Então casa! Casa! Casa! / Uma voz — Faz o casamento fiado! / Serafim — Mas andaste duas vezes de forde com o Batatinha! / Lalá — Por isso que eu estava ficando louca lá em casa! / O soldado abre as grades das maxilas. Conduzem Serafim gado e séquito para debaixo do altar da Imacu­lada Conceição.440.

Serafim brinca com a séria situação em que se encontra, pois está prestes a casar-se, obrigatoriamente, na polícia; porém, sua atitude no momento pauta-se na forma em que ironiza, sarcasticamente, sua futura esposa. Além do perfil bufo de Serafim, a postura do personagem Pinto Calçudo e o riso que este manifesta em sua trajetória na narrativa, principalmente a bordo do navio “Steam Ship Rompe - Nuve”, aproxima-se do papel de bufão: De como Pinto Calçudo querendo fazer esporte, enfia no óculo da

439 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, p. 7. 440 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 50. Grifo do autor. 440 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

cabina um pau comprido e rema, produzindo um grave desvio na rota do transatlântico que aporta inesperadamente ao Congo Belga. [...]. Quando do mais alto mastaréu, o vigilante vigia descobre uma trave de enxofre no mar das descobertas. A nova se espalha comovidamente. / — Terra! É Jerusalém! / — Não! / — É México! /— É Guaratinguetá.441

Semelhante ao papel cômico que o “bufão”, ou “bobo”, desempenhava nas festividades culturais da Idade Média e do Renascimento, servindo para divertir as pessoas, Pinto Calçudo assume uma personalidade cômica em praticamente todas as circunstâncias de sua trajetória no romance. Suas atitudes não correspondem a momentos isolados de representação, mas sim com sua maneira de ser. Essa característica se apresenta no momento em que ele começa a remar sem direção e acaba levando o navio para um trajeto totalmente diferente da rota. O fato torna-se uma cena cômica, de caráter festivo, associada à própria justificativa do feito, que ele respalda em sua necessidade de praticar esporte: Em que Pinto Calçudo tomado de pânico, revela o segredo que produziu a nefasta ida ao Congo./ [...] Eis senão quando na atenciosa madrugada, José Ramos Góis Pinto Calçudo que se conservara insone de camisola, vai bater resolutas pancadas no confessionário do padre que acor­

441 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 91. Grifo do autor. 441 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

dado se diverte ouvindo as matinas de um gramofone. — Meu pai! esconjura o recém-aparecido. Pare essa caranguejola! Como vejo que esta encrenca não desamarra, o melhor mesmo é confessar e comungar! Mas a deficiência das instalações desportivas deste transatlântico é que me fez ter a horrível lembrança do que planejei e consumei.442

A narração do fato é apresentada em tom jocoso e deflagra o riso, assim como a fala de Pinto Calçudo, no momento em que revela ao padre, que também estava a bordo do navio, que foi ele o causador da mudança na rota: Fui eu, fui eu, meu Pai, que virei o Rompe-Nuve para as fornalhas do árido continente. Minhas clavículas e bíceps careciam de remar. Passei um pau comprido pelo óculo do camarote... / Padre Narciso surge em ceroulas de cadarço!443

A declaração de Pinto Calçudo apresenta-se como uma paródia ao sacramento religioso da confissão. Assim, ressalta-se que o caráter satírico está presente; porém a zombaria negativa está atenuada pelo tom do riso carnavalesco. Ao procurar o padre, no meio da madrugada, por motivo de insônia, ele afirma que a melhor opção é confessar o feito. A imagem que transparece da

442 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 92-93. Grifo do autor. 443 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 93. 442 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

narração da cena é a de uma pessoa atormentada, porém, muito cômica; ele faz súplicas a Deus, permeadas pelo humor: “esconjura o recém-aparecido”, e, na justificativa, o esperto Pinto Calçudo mantém o tom cômico, ao afirmar que sua clavícula e seu bíceps exigiam-lhe remar. A cena é concluída com o questionamento sobre o “pau” usado para remar o navio, potencializando o risível: — Cadê o pau, meu filho? Onde está o pau? O infeliz soluça de joelhos. / — Atirei o pau no Atlântico! / A primeira providência tomada em conselho pelos maiores, Guardião, Mestre, Contramestre e Jota-Pilôto é campear o pau perdido nas ondas. Mas como Pinto Calçudo posto a ferros quentes, descreve o fatídico remo como sendo apenas um corrimão de escada, furtado na calada da noite, ordem se dá para que tudo que seja pau, varejão, porrete, mastro, mastaréu, taquara, verga, chuço ou manguara seja urgentemente arrancado e enfiado a título de remo nos óculos das cabinas.444

A ocorrência das várias repetições da palavra “pau” sugere o sentido sexual do termo, quando comparado ao pênis, o que se torna risível, principalmente quando é pronunciado pelo padre, o que enfatiza, implicitamente, essa conotação, sendo seguida da paródia com a canção infantil que menciona: “Atirei o pau no Atlântico”, pronunciada por Pinto Calçudo, revelando, assim, cenas que se aproximam do teatro bufo.

444

ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 93. 443

A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Na unidade “No Elemento Sedativo”, as peripécias de Pinto Calçudo no navio são bem marcadas, pois nessa parte da narrativa ele “rouba a cena” de Serafim e consegue, ainda que provisoriamente, o status de protagonista da narrativa. Suas aventuras no navio são enfatizadas pelo narrador curinga, que o coloca no centro das atenções, sendo o riso a marca do seu brilhantismo: A criada de bordo verifica na dispensa que Pinto Calçudo e o Último Hamlet avançaram nos derradeiros quilos de finas bolachas inglesas tão geralmente apreciadas nos five-o’-clock dançantes de bordo. [...] À noite, a pedido de diversas famílias, o Rompe-Nuve pára da volada em que vai, a fim de se promover uma exibi­ção de filmes que é levada no alto da chaminé do navio para todos enxergarem e rirem, seguindo-se depois um disputado lei­ lão de prendas, em que o secretário de nosso herói revela e mostra as suas capacidades de leiloeiro.445

No primeiro momento a bordo do navio “Steam Ship Rompe - Nuve”, as atitudes de Pinto Calçudo destacam-se pela irreverência e pelo aspecto marginal, essas características fazem com que o personagem cometa atitudes reprimíveis, mas ele acaba passando impunemente pelos acontecimentos: Todas as manhãs, na ânsia de descobrir portos, ilhas e continentes, o ativo secretário resgatado pelo ouro

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ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 92 – 93. 444 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de Serafim trepa no pau-de-seboda proa e espia improficuamente os hori­ zontes uniformes.446 Enquanto Pinto Calçudo assim se expande para um par­ ceiro de poker chamado Paulino Guedes, o argentino reúne um luzido grupo de senhoras e senhoritas no bar e ofertalhes cocktails, mandando convidar o zangado brasileiro a fim de ter­minar a briga em risonha tertúlia. Mas Pinto Calçudo dobra-lhe duras e indignadas bananas.447

A ausência de punição a Pinto Calçudo só é possível porque os seus atos passam como atitudes cômicas. Na linguagem, estão mascarados pela paródia e é, por isso, que não sofre uma repressão severa. A figura do bufão refletida no personagem é proveniente da cultura cômica da Idade Média e do início do Renascimento. No período, era comum que reis e representantes de outras instâncias de poder tivessem seus bobos. No romance, Pinto Calçudo pode ser interpretado como o bufão que acompanha Serafim (mesmo este também assumindo em determinadas situações o papel de bufão), pois no enredo, Pinto Calçudo está presente em todas as fases da vida do protagonista, sendo associado ao cômico. Outra característica do bufão é com relação ao seu aspecto físico. Normalmente, ele se apresenta com um tipo de deformação que alude às deformações humanas

446 447

ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 94. ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 97. 445 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de caráter. Nesse viés, é importante ressaltar que o personagem Pinto Calçudo, também, apresenta uma deformação física que deflagra o riso, e que, também, conota esse sentido: “De como um papiloma chamado berruga vegeta inopinadamente na cabeça de Pinto Calçudo e dos transes que ele vem a passar.”448. O bufão é figura característica da cultura da Idade Média e do início do Renascimento. Sua função foi muito importante como porta-voz do desejo do povo em manifestar outra vida, que se destacava por não ser oficial e que fugia da hierarquia feudal que o oprimia e menosprezava. A irreverência popularesca presente nos cômicos populares, como os bufões e bobos da Idade Média, perpassa a dinâmica da literatura carnavalesca, assim como no romance Serafim Ponte Grande, pois ambos manifestam a propriedade de se viver outra vida não oficial, além de destronar e entronizar simbolicamente indivíduos de suas posições hierárquicas. Ressalta-se que essa leitura se pauta em fazer referência a algumas características do bufão com o perfil do personagem Pinto Calçudo, permitindo a afirmação de que há projeções de um elemento que é próprio da cultura popular da Idade Média e do Renascimento no personagem em questão. No processo da escrita o autor constrói personagens que além de fazerem os outros rirem, também conseguem rir de si mesmos. Essa característica criativa do autor

448 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 94. Grifo do autor. 446 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

pode ser relacionada ao riso carnavalesco medieval, que é conceituado por ser um riso libertador, jocoso e ambivalente. Oswald de Andrade, em seu processo de “devoração” da linguagem carnavalesca, converge as características do riso carnavalesco ao seu dom de divertir os outros através da palavra e cria seu próprio estilo bufo no romance referido. Esse tipo de riso é caracterizado por ser transgressor e alegre, incluindo o próprio autor da situação cômica. Sendo assim, ri de si mesmo, é uma carnavalização recorrente em Serafim Ponte Grande. O personagem narra suas atitudes, aventuras, amores, postulações ideológicas, entre outras situações e brinca com seus percalços, como foram apresentadas no percurso deste trabalho. O tom carnavalesco nessas situações enfatiza a comicidade do texto literário. Outro aspecto importante é o caráter de coletividade presente no riso carnavalesco, que potencializa o aspecto social no sentido da festa e da alegria. O alvo da paródia ou da zombaria também caracteriza o aspecto de coletividade desse riso. As revelações feitas pelas máscaras paródicas apresentadas têm o objetivo de libertar, temporariamente, as pessoas do medo a que são submetidos: E esse riso não é individual; para ser eficaz, deve ser coletivo, social, universal. Ele não incide sobre o particular, mas sobre o mundo inteiro, do qual revela a verdadeira natureza. Bakhtin fala da “verdade revelada por meio do riso”, que liberta do medo do sagrado, da proibição autoritária.

447 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Mostrando o mundo sob um novo dia, o riso liberta, diante dos interditos e das intimidações do sério: “É a razão pela qual o riso, menos que qualquer outra coisa, pode ser instrumento de opressão e de embrutecimento do povo. Nunca ninguém chegou a tornálo inteiramente oficial. Ele sempre permaneceu como arma da liberdade entre as mãos do povo”.449

A força do riso poderia ter-se transformado em poderosa arma contra a tirania na Idade Média. O tom libertador, que eclodiu do povo medieval, refletia-se na demonstração de uma visão de mundo; porém, o lado cômico subjugou esse aspecto contestador, não chegando esse posicionamento a assumir a consciência clara do seu poder reivindicador: Ao analisar o riso na obra de Rabelais, em relação ao momento histórico, Mikhail Bakhtine sublinha que “... seu universalismo, seu radicalismo, sua ousadia, sua lucidez e seu materialismo deviam passar do estado de existência quase espontânea a um estado de consciência artística, de inspiração a um fim preciso. Em outros termos, o riso na Idade Média, no nível do Renascimento, torna-se a expressão da cons­ciência nova, livre, e histórica da época”155. Não se trata de querer aproximar as necessidades de um período histórico a outro para justi­ficar coincidências com o riso renovador. É impossível.

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MINOIS, 2003, p. 159 448 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Mas, vistos nos devidos contextos, pode-se perceber a ressonância de explosões de riso com propósitos semelhantes, ou seja, como catarse e purgação, tam­bém ousado, radical, atuando para desautomatizar e precipitar novas experiências e nova ordem. Repare-se que o atrevimento das arreme­tidas cômicas em Serafim recai tanto numa crítica do material (da língua) quanto na da história. O riso no discurso oswaldiano está ligado a uma atitude libertadora. 450

A teoria de Mikhail Bakhtin, em sua obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, é referência nos estudos sobre paródia, sátira e carnavalização. Ao analisar o riso carnavalesco em um romance do século XX, embasado por esse estudo, não há pretensão de se traçar um paralelo buscando situações na obra pesquisada que são próprias dos textos Gargantua e Pantagruel é importante ressaltar que o contexto social evidenciado nessas obras de François Rabelais satirizava os ditames de uma sociedade feudal, o poderio exacerbado da igreja medieval e as variadas formas de predições do futuro. até mesmo porque os contextos sociais apresentados nas obras são completamente diferentes, mas é interessante discutir em um texto do Modernismo brasileiro, no caso, Serafim Ponte Grande, a presença de elementos dessa cultura, que revelam sinais possíveis de serem aproximados a essa teorização, em função das excêntricas manifestações da linguagem carnavalesca no

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FONSECA. Palhaço da burguesia, p. 116. 449 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

romance do escritor paulista e principalmente pela atuação cômica correspondente. Na obra pesquisada, não existe a festa carnavalesca propriamente dita, mas percebe-se a manifestação do riso carnavalesco na composição do enredo. Na linguagem do protagonista Serafim Ponte Grande, assim como na narração do curinga, está evidenciado esse tom cômico carnavalesco. No período medieval-renascentista, ainda que o riso carnavalesco servisse como contestação social por meio da paródia, da máscara e da inversão, esse procedimento não atingia diretamente as bases do poder absolutista, pois esse riso era periódico e, com isso, mesmo que suas paródias criticassem o poder ou zombassem de mesquinharias, o carnaval se configurava como uma festa permitida, pois era a ludicidade que prevalecia. Nos festejos carnavalescos da Idade Média e do Renascimento, quebravam-se hierarquias do regime feudal e religioso ao conceder uma “outra vida” aos foliões. Mesmo sendo temporária essa situação, as pessoas se aproximavam umas das outras e conviviam como iguais, o que ocasionou uma linguagem mais livre e coloquial, permitida apenas nas festas carnavalescas: Por isso, todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracterizase principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”,

450 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

das permutações constantes do alto e do baixo (a roda), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões.451

A paródia do riso carnavalesco é cômica, carregada de vocabulário chulo, expressões grosseiras e gestos repugnantes. No romance Serafim Ponte Grande é comum encontrar linguagem coloquial, expressões diretas a peidos, escarros, vômitos, gestos vulgares e a exploração dos órgãos sexuais, como se nota em: “Hoje posso cantar alto a Viúva Alegre em minha casa, tirar meleca do nariz, peidar alto! Posso livremente fazer tudo que quero contra a moralidade e a decência.”452; ou, ainda, em: “Mas Pinto Calçudo dobra-lhe duras e indignadas bananas.”453. Essa recorrência ao vocabulário popular e aos elementos grotescos apresenta uma significação ambivalente, pois tais elementos são relacionados ao realismo grotesco, cujo princípio defende que, ao se degradar, as coisas regeneram. A festa carnavalesca imbuída na paródia alcançou uma concepção formal de crítica, porém, fundamentada no rebaixamento. O aspecto da renovação relacionada ao grotesco discute a aproximação entre o “elevado” e o “baixo” e está associada à zombaria. Já a paródia, ao ser

451 BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, p. 9-10. 452 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 75. 453 ANDRADE. Serafim Ponte Grande, p. 97. 451 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

aproximada ao burlesco, torna-se ridiculamente cômica, pois a comicidade está na essência do riso carnavalesco e por isso caracteriza-se como uma de suas funções.

REFERÊNCIAS: ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. 6 ed. São Paulo: Globo, 1997. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschini. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997. FONSECA, Maria Augusta. Palhaço da burguesia. São Paulo: Polis, 1979. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Editora Ática, 2008.

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Helena Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

452 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

DO PESO DE VIVER À LEVEZA DAS PALAVRAS: REFLEXÕES SOBRE A EXISTÊNCIA EM FLOR DA MORTE, DE HENRIQUETA LISBOA

Renata Maurício Sampaio

Considerações Iniciais Em seu itinerário poético, Henriqueta Lisboa (1901- 1985) preocupou-se com questões que sondam o significado da vida de maneira profunda. A própria autora reconhece o tratamento dado à problemática existencial em seus textos, conforme afirma em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, em 1984: “[...] tenho visado de modo constante a essência do ser, a substância do vital, a ansiedade humana em busca de perfeição e infinito, os mistérios da natureza, o relacionamento entre a alma e Deus.”454. Ao nos debruçarmos sobre os poemas de Flor da morte (1949), deparamo-nos com importantes questionamentos e reflexões existenciais realizados pelo sujeito poético. Nessa perspectiva, a poesia se

454 LISBOA. Henriqueta Lisboa: unida aos homens e a Deus pela poesia, p. 4. 453 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

apresenta como um lugar de expressão do desconforto, da sensação finissecular de um alguém deslocado do mundo, convertendo-se, por vezes, num espaço onde se assinala a tentativa de reencontrar a sua individualidade. Em carta escrita a Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta demonstra fé na palavra poética: “No meio dessa desesperante angústia que é o próprio respirar do tempo, verifico [...] que ainda pode haver poesia, que até mesmo este momento comporta poesia, que temos, não apenas alguma, porém muita, intensa, desapoderada poesia”455. Os quarenta e dois poemas que compõem Flor da morte tratam, de maneira explícita ou implícita, de questões que envolvem vida e morte. Escolhemos os poemas Diante da Morte, Jaulas e Perspectiva, para analisar como o eu lírico enxerga a si mesmo, a vida e o mundo.

Entre palavras e plumas Nas estrofes iniciais de Diante da Morte, o sujeito poético reflete sobre a própria essência e existência e se utiliza de imagens naturais na expressão de seus sentimentos. Ele se comporta como ser de pedra diante da morte e sugere certa dificuldade em encará-la: Diante da morte não sou de água

455 LISBOA, apud DUARTE. Remate de males. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa, p. 26. 454 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

nem sou de vento, mas de pedra. Órbitas frígidas de estátua, boca cerrada de quem nega. Rudes cadeias me restringem, corda entrançada no pescoço, fosco cilício em torno dos rins, ossos fundidos uns nos outros. Diante da morte sou espessa rocha de oceano - desconheço que espécie de onda ou mar se atira contra meu peito empedernido456. No cenário apresentado, o eu lírico, endurecido pelo medo, afirma não ser de água nem de vento, maleável e flexível, mas de pedra, rocha. Esse sujeito sente-se com a corda no pescoço, restrito por rudes cadeias, o que nos remete à angústia de viver. Sente-se como se tivesse, em torno dos rins, um cinto eriçado de cerdas ou correntes de ferro, repleto de pontas, remetendo ao sacrifício a que alguém se sujeita voluntariamente. É a penitência que se paga por estar vivo. Lembrado em sua contingência de vida que está submetido a regras impeditivas de uma liberdade plena, aparece o desejo de transcendência, a ânsia pela libertação. O eu lírico suplica para se tornar maleável, sensível, suave, humano:

456 166.

Se eu fosse ao menos como o

LISBOA. Obras Completas I: poesia geral, p. 165455 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

bronze ressoante, ou como a estrela infiel, rompera as linhas do horizonte, despedaçara-me em reflexos. Flocos de espuma, tenras nuvens descendo o rio, voando na alba, dulçor aéreo dos dilúculos, azul, fluidez, vago lunar, levai-me fora de meus âmbitos, amortecei-me com propícios bálsamos, óleos e suspiros, até a aparição da lágrima457. A avidez pela transformação se elucida nessas três últimas estrofes: o medo da morte ou da perda, a resistência e as próprias limitações precisam ser trabalhados em um processo árduo para que, ao final, adquirindo a ressonância do bronze, o reflexo da estrela, a tenacidade da nuvem ou da espuma, com fluidez e naturalidade, o eu poético esteja preparado para encará-la. Amortecido com bálsamos e óleos, pronto para a aparição da morte, o eu lírico sugere uma preparação do corpo para o sepultamento. Além disso, vale-se do apelo fortemente auditivo e visual para nos imergir na cena apresentada, na tentativa de recuperar a essência das coisas, tirar do homem o peso do corpo, fazer com que a matéria se desagregue até mais nada restar.

457

LISBOA. Obras Completas I: poesia geral, p. 166. 456 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Essa entrada no reino da leveza, que é a possibilidade de transformação, contrasta com a dureza das estrofes iniciais, cujos versos nos remetem à postura de pedra diante da morte, aderindo o eu lírico à neutralidade do mineral. Quando adentramos nesse reino, o eu lírico pede a suavidade em face da morte, os versos se enchem de consoantes sonoras e nasais: tenras, nuvens, descendo, alba, dulçor, dilúculos, azul, lunar, fluidez, âmbitos, bálsamos, óleo, lágrima. Tratam-se de palavras concisas, rigorosamente escolhidas, que incorporam elementos numa expressão de sensibilidade poética. As estrofes finais do poema atestam a importância conferida à imagem e assinalam seu caráter alusivo, sua capacidade de despertar os sentidos. A ideia da imobilidade de estátua versus a ideia de movimento vem à tona: no reino da leveza, há o emprego de signos fluidos e etéreos, de imagens aeres e sinestésicas, tais como flocos de espuma, tenras nuvens descendo o rio, voando na alba, dulçor aéreo dos dilúculos (alvorada). As imagens utilizadas intensificam os efeitos provocados pela combinação de sensações. Partindo de uma palavra, uma ideia, analogias e campos semânticos que se desdobram, essa atmosfera respirada pelo eu lírico demonstra seu desejo de extravasar-se, de libertar-se, como se nota nos versos: Levai-me fora de meus âmbitos, Romper linha do horizonte.

Flor enjaulada 457 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Se considerarmos uma vida marcada pela consciência da transitoriedade, inúmeras contingências, inquietudes, amarras, ansiedades e máscaras que cerceiam a liberdade do ser, que limitam a existência humana, o poema Jaulas é bastante representativo: De uma para outra jaula. Com farrapos ou plumas, cerceando balbucios ou vascas, é o berço minúscula jaula. A cela, a varanda, a casa, o jardim, a cidade, com seus itens e suas parlendas, são enredos - de vime ou ferrode uma próspera jaula. O alto céu disposto em toldo, tombando sobre os flancos da terra, é uma vistosa jaula. Com seus planetas e suas lunetas assestadas. Também é o cérebro: de si próprio arquiteto e jaula: cego além dos relâmpagos458. Observamos que o poema se constrói em torno de elementos que figuram o sofrimento e o peso da vida terrena, que sugerem limitações: a vida como prisão

458 196.

LISBOA. Obras Completas I: poesia geral, p. 195458 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

e cerceamento das pequenas e grandes angústias balbucios ou vascas; a vida como uma jaula, enfocada com suas mazelas. Desde o nascimento, o berço, minúscula jaula, até a cela, a varanda, a casa, o jardim, a cidade, o céu e o próprio cérebro. Fica clara a percepção da impossibilidade de o ser humano se libertar, já que as aparentes transformações comuns a todos os indivíduos ao longo de sua existência se resumem às mudanças “de uma para outra jaula”. A referência ao cérebro como sendo também uma jaula demonstra que as limitações humanas não são apenas físicas: o ser humano é prisioneiro de si mesmo, de suas ideias e pensamentos. O cérebro, então, é arquiteto e jaula de si próprio, já que paradoxalmente, constrói e aprisiona o ser humano: por meio do cérebro que nos edifica, estabelecemos nosso próprio cárcere, o que configura uma existência permeada pela angústia de viver. Para o filósofo alemão Martin Heidegger, a angústia é um fenômeno existencial da finitude humana; ela é tida e como a disposição fundamental de nossa existência, é a verdadeira possibilidade de virada da existência humana, a possibilidade de o homem sair da inautenticidade, na qual ele geralmente vive, e assumir a autenticidade: “Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura privilegiada na medida em que ela singulariza. Essa singularização retira o ser-aí de sua decadência, e lhe revela a autenticidade e inautenticidade como possibilidades de seu ser”459.

459

HEIDEGGER. Ser e Tempo, p. 255. 459 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Diante de tais reflexões, acreditamos que a postura que o eu lírico dos referidos poemas assume diante da inevitabilidade de sua finitude, apesar da angústia, mostra capacidade de repensar sua existência e conhecer sua verdade mais humana, ainda que a vida lhe impeça de exercer plenamente sua liberdade. Se a vida é uma prisão, a morte é libertação. A hora final, então, é vista como um estado mais livre que eliminará as limitações da vida presente, capaz de neutralizar e dissolver as tristezas deste mundo.

Vida de mordaças Além de dialogar com Jaulas, o texto Diante da Morte estabelece também uma relação com o poema Perspectiva, a respeito da imagem da morte como libertadora da angústia de viver. Neste poema, a vivência aparece baseada no aguardo do porvir, daí o título “Perspectiva”. A vida é vista como um longo exercício de paciência, em que o eu lírico tece a rede da vida, fio a fio, dia a dia, na expectativa de desvendar seu mistério, na esperança de esgotar o arcano que é revelado com e na morte: Exercício de paciência nos esconsos. Já se viu tamanho arcano gota a gota! Cegueira tece uma rede que não acaba. Muitas mãos, até que o tempo

460 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

amadureça, juntando fio a outro fio. Conquista de palmo a palmo com cem anos de lastro. Sombra se desdobra em sombra a cada vencido passo. Passo vencido não conta e exercício de paciência não se esgota. Das subterrâneas jazidas suspira fundo o mistério. Volição por onde queira à solapa na espessura vai abrindo seus túneis. Vida de mordaças, férrea vida de masmorras, bronzes. Vida nas sagradas fontes para depois - o que vier460. Vida, morte e poesia se fundem para comungar o mistério. Persiste o silêncio de uma vida amordaçada, rico em significações, alegrias e tristezas que escondem em seu âmago desejos e frustrações, vividas intensamente por meio da poesia entre a “dor recôndida e o riso leve”, termo usado por Mário de Andrade ao tratar da forma de expressão usada por sua amiga Henriqueta Lisboa.

460 199.

LISBOA. Obras Completas I: poesia geral, p. 198461 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A própria Henriqueta, em carta escrita a Helena Antipoff, em 29 de novembro de 1973, enfatiza que “Será a poesia capaz de transfigurar seres e cousas, até mesmo de salvar o mundo [...] sob o domínio do materialismo, e paralelamente, da angústia.”461. Embora esse eu lírico se apresente angustiado, a escolha rigorosa da palavra, a economia e contenção verbal, bem como a depuração da linguagem por parte da poeta mascaram, escamoteiam esse sentimento. A linguagem não figura excessos dramáticos, nenhuma concessão confidencia explicitamente esse ser em crise. Essa contenção lírica, realizada de maneira depurativa e transformadora é sugerida por Ítalo Calvino (1990) na proposta sobre a leveza. Calvino enfatiza que o escritor utiliza os próprios mecanismos da linguagem e cria tons de leveza e peso. Em Henriqueta Lisboa, há inúmeros elementos que representam figurações para esses valores. Entretanto, o sujeito poético afirma ser esta vida de mordaças. Mordaça é uma tira fina de pano, corda ou qualquer outro material com que se ata a boca de uma pessoa, impedindo-a de falar ou gritar. Por extensão de sentido, pode-se interpretar a vida e a existência desse sujeito permeadas pela repressão de ideias e opiniões de teor divergente daquelas impostas por alguém ou algo. O verso “vida de masmorras, bronzes”, enfatiza também esta vida como um lugar subterrâneo que serve de cárcere. Tais reflexões sobre a morte e a vida aparecem cingidas por elementos representativos nos três poemas

461

LISBOA. Carta a Helena Antipoff, sp. 462 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

em estudo. A aparente serenidade e a consciência da finitude trazem à tona um eu lírico angustiado em vida. Desse modo, os poemas provocam nosso imaginário, instigando-nos. Para Paschoal Motta, Realizando uma dialética funcionalmente lírica entre as coisas, a vida e o sentir dela, a tensão entre a vida e a morte, sendo-no-mundo, Henriqueta Lisboa instaura uma ideologia de Arte para o Homem, num equilíbrio emocional e expressional capaz de revelá-lo (o homem) de uma maneira nova, em seu eterno e irreversível destino.462

Essa revelação do sujeito em seu “eterno e irreversível destino” demonstra uma concepção da morte como um problema que se manifesta na própria existência, o que coaduna com o pensamento heideggeriano, segundo o qual somos “seres-para-a-morte’’. Heidegger afirma que somente diante da morte é que a vida se elucida. Para ele, o distanciamento da morte, por parte da sociedade, é a anulação da subjetividade, fazendo o ser humano mergulhar em uma existência inautêntica. De modo sucinto, o Existencialismo, conforme os pressupostos heideggerianos, versa sobre o sentido da existência (apenas a existência humana) e sua relação com a essência; a existência inautêntica (falsa) e a autêntica, a morte, a moral, o tempo, Deus, dentre outros. Conforme Marco Aurélio Werle, quanto ao conceito

462 MOTTA. Algumas opiniões sobre a poesia de Henriqueta Lisboa, p. 562. 463 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

de existência, Heidegger nos dá a seguinte definição: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta”. (HEIDEGGER, apud WERLE, 2003, p. 59). Werle acrescenta que, se partimos da compreensão do Ser que define a existência, também deve ser levado em conta que esta existência é, na maior parte das vezes, existência inautêntica [uneigentlich], ou seja, o homem no cotidiano se mantém numa situação de encobrimento de seu ser, possui uma interpretação errônea de sua própria existência, que se mantém para ele velada. Por se inquietar com a iminência da chegada da “indesejada das gentes”, assim denominada a morte por Manuel Bandeira, é que o ser humano conhece sua verdade mais humana. Portanto, esse sujeito angustiado, em crise, está em busca da existência autêntica, tomada aqui no sentido heideggeriano.

Considerações finais Neste estudo, elegemos os poemas Diante da Morte, Jaulas e Perspectiva para ilustrar que vida e morte na poesia henriquetiana imbricam-se de modo inexorável. Ainda que os referidos textos tenham se construído em torno de elementos que figuram o sofrimento e o peso da vida terrena, caracterizando certo mal-estar do eu lírico, o poder transformador da linguagem serve de artifício para criar tons de leveza ao tratar do inevitável peso de existir.

464 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

É possível afirmar que o labor poético e estético de Henriqueta Lisboa é alicerçado nos procedimentos e nas formas escolhidas, nos ritmos, no enxugamento dos textos, nas pinceladas poéticas de palavras, cores, formas, sensações e imagens. Na poesia de Henriqueta percebe-se a preocupação do sujeito poético em relação à elaboração precisa da linguagem, registrada na maneira de interpretar o mundo e as coisas. A poeta, de maneira peculiar, apresenta o ato criador como um exercício e comprometimento perante a vida e a arte, mediante a efetivação de um pensamento capaz de (re)inventar universos imaginários. Estando vida e morte irremediavelmente atadas, o eu lírico, em vida, pensa na morte e reflete sobre sua própria existência. Apesar de certo mal estar e inquietação frente a inevitabilidade da morte, posturas assumidas pelo sujeito poético, é possível sair da inautenticidade e assumir a autenticidade perante o estar-no-mundo.

Referências CALVINO, Ítalo. Leveza. In: ______. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 1541. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989. LISBOA, Henriqueta. Carta a Drummond. In: DUARTE, Constância Lima. Remate de males. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa. Campinas: Departamento de Teoria Literária. IEL/

465 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

UNICAMP, n.23, 2003, p. 26. LISBOA, Henriqueta. Obras Completas I: poesia geral. São Paulo: Duas Cidades, 1985. LISBOA, Henriqueta. Henriqueta Lisboa: unida aos homens e a Deus pela poesia. [Entrevista concedida a Edla Van Steen]. O Estado de São Paulo. São Paulo, 5 mai. 1984. Caderno de Programas e Leituras. p. 4. LISBOA, Henriqueta. [Carta a Helena Antipoff, escrita em 29 de novembro de 1973]. In: ACERVO HENRIQUETA LISBOA – Acervo de Escritores Mineiros – UFMG. MOTTA, Paschoal. [Algumas opiniões sobre a poesia de Henriqueta Lisboa]. In: LISBOA, Henriqueta. Obras Completas I – Poesia Geral. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1985, p. 562. WERLE, Marco Aurélio. Anguish, nothingness and death in Heidegger. Trans/Form/Ação, Marília, v. 26, n. 1, p. 97-113, 2003.

466 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

EROS E THÂNATOS: O CORPO E SUAS “CRUÉIS” EXIGÊNCIAS EM A VIA CRUCIS DO CORPO DE CLARICE LISPECTOR

Patrícia Lopes da Silva

A leitura da obra de Clarice Lispector leva o pesquisador a percorrer diversos caminhos, desafiadores e nauseantes, na tentativa de desvendar os mistérios e a singularidade estética da autora, cujos sentidos encontram-se nas “brechas”, nas “sensações” do texto. Para o crítico Antonio Candido, a escrita de Clarice produz uma realidade própria, com inteligibilidade específica, não se esgotando apenas no aspecto do mundo e do ser, mas criando um mundo imaginário, apresentando uma estrutura narrativa com novas técnicas de expressão, e, esteticamente, abrindo novas regiões textuais. Nos vários níveis entre narradores/ personagens surgem seres conflituosos, questionadores das verdades do mundo tidas como absolutas, procurando o autoconhecimento, a verdade da alma. Compartilham experiências, sensações, e se reconhecem nos momentos de inquietação e angústia; tendo na escrita, a possibilidade de transformação, o “estar vivo” em palavras, o “estar vivo” através das pulsações do corpo. A Via Crucis do Corpo, publicado em 1974, reúne

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uma coletânea de treze contos e nota prévia da autora que também será de grande valia para analisarmos o corpus desta pesquisa. Trata-se de narrativas em que a trajetória de vida ou de morte dos personagens e a dos leitores começa pelas provocações, tendo como eixo o caminho do corpo, narrado subversivamente. Segundo Vilma Arêas a linguagem usada por Clarice, em A Via Crucis do Corpo, é sem polimento e, algumas vezes, escandalosa, uma mistura de humor negro e paródia. Assim, em outros livros de Clarice, como em Laços de Família, as histórias se movem em torno do ambiente familiar. É-nos oferecido o cotidiano, fatos interessantes, comuns, simples com descrição aparentemente banal, mas que se configuram numa escrita de paradoxo, tanto no plano da língua como no plano do “enredo”, extrapolando os sentidos habituais da narrativa com um jogo vocabular, no qual “as palavras” (que representam a realidade extralinguística) transformam-se em “sentidos” ou “sentimentos”. Para Sônia Roncador, a escrita derradeira de Clarice Lispector, ou melhor, os textos produzidos após 1970, revela uma produção estética diferente da anterior, com uma linguagem heterogênea, sem rebuscamento na forma, um estilo “menos” artístico, deselegante, às vezes coloquial, com temas como a pobreza existente no mundo, a crueldade social, e ainda a inscrição de textos circunstanciais da produção. Em A via crucis do corpo, Roncador diz que há um encontro cômico, às vezes absurdo, que não chega a construir um clímax e que não culmina numa experiência de autoconhecimento.

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Nilze Maria Reguera ao analisar A via crucis do corpo, tenta suscitar elementos que permitam uma (re) avaliação sob a perspectiva de uma encenação da escritura, considerando que houve uma simulação e dissimulação, nos mostra outro modo de ler, invertendo assim a visão cristalizada da recepção crítica negativa do livro. Para Reguera, há um travestimento em que Clarice fraqueja em relação às exigências de um mercado consumidor, talvez pelo fato de que autores judeus que trabalhavam na publicação, inclusive Lispector, foram demitidos do Jornal do Brasil. Na verdade, Clarice aperfeiçoa seu projeto literário problematizando a questão da escrita intimista na qual se pressupõe uma literatura da alma. Nesta pesquisa, pretende-se esclarecer que as sensações da alma perpassam, obrigatoriamente, pelo corpo configurando-o como elemento significativo e produtor de subjetividade. Dessa forma, Clarice Lispector “adapta-se” à moda consumista da época sem, contudo, desviar-se de sua proposta estética. Em 1970, Clarice Lispector já era uma autora reconhecida pela crítica literária e se destacava no cenário literário brasileiro. Passava por um momento de instabilidade financeira, pois havia se separado do marido e precisava se manter com seu trabalho de escritora e tradutora. Na “Explicação” de A Via Crucis do corpo, uma espécie de prefácio ou nota prévia, a autora relata a tarefa para a qual o livro é proposto: “Este livro é um pouco triste porque eu descobri, como criança boba,

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que este é um mundo-cão”463. Clarice tentou convencer o leitor de que não teve a sua parcela de “culpa”, tentando resistir à escrita desses textos, considerados por muitos como pornográficos, o que destoava da ficção clariceana produzida até então: “Só peço a Deus que ninguém me encomende mais nada, porque, ao que parece, sou capaz de revoltadamente obedecer”464. Clarice Lispector recebeu uma ligação na sextafeira, do seu editor Álvares Pacheco, da editora Artenova, para escrever sobre um assunto que ela mesma classificou como perigoso. A princípio recusou o convite, mas enquanto falava ao telefone “sentia nascer” a “inspiração” e rendeuse ao desafio de escrever por encomenda. Sábado, começou a escrever e no domingo dia 12 de maio, dia das mães, já estavam prontos três dos treze contos, são eles “Miss Algrave”, “O Corpo” e “Via Crucis”, “O homem que apareceu” e “Por enquanto” também foram escritos no “mesmo domingo maldito”. Na segunda-feira, dia 13 de maio, dia da libertação dos escravos, e também considerada por Clarice como sua própria libertação: em tom de denúncia, a escritora se adapta à moda consumista da década de 70. O Brasil perpassava por uma indústria cultural de massa, Silviano Santiago em Nas malhas da letra, esclarece que “[…] o livro na década de 70 foi movimentado e direcionado pelas leis de mercado, sendo banalizado, semelhante à banalização do corpo encontrado nas pornochanchadas”465.

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LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 11. LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 11. SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 32. 470 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Apesar de os contos em A Via Crucis do Corpo serem compostos por questões que são consideradas tabus, em que os desejos sexuais pulsam a cada momento, o corpo é um caminho a ser percorrido por cada indivíduo, com o objetivo de suprir as sensações de desamparo outra ora como celebração do prazer, não se admitindo discussão sobre a conduta moral das personagens, mas cada uma possui seu próprio código de honra, sem uma visão reducionista. Beth Brait destaca que a construção da personagem pode ser tirada de uma vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode ser atingida através do jogo da linguagem que torne tangível a sua presença [...] sejam elas encaradas como pura construção linguística ou espelho do ser humano466.

O contorno psicológico dos personagens é feito através da ação, com um tom de aceno sensual, escapando de qualquer tipo de cárcere captando através do corpo a complexidade da alma humana. Segundo a autora, para escrever precisava-se de liberdade; se parecesse uma escrita indecente, promiscua ou erótica, essa classificação iria depender do “julgamento moral” de cada leitor. O que poderia ser narrado? Qual seria a trajetória possível dos personagens? E o que seria um tema interessante? “Todas as histórias deste livro são contundentes. E quem mais

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BRAIT. A personagem, p. 22 471 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

sofreu fui eu mesma. Fiquei chocada com a realidade”467. Supostamente, as histórias já existiam no plano real, só faltava ficcionalizá-las. Clarice Tentou publicar os contos sob o pseudônimo de Claudio Lemos, seriam reveladas somente as iniciais “C.L” para que seus filhos não lessem, pois teria vergonha, mas não foi aceito. Segundo Reguera, o desfecho dos textos de A Via Crucis do Corpo, embora disfóricos oferece sentidos variados; fica sempre em aberto, confirmando o texto em processo, no texto clariceano há momentos de ruptura e espaços transitórios. Nádia Batella Gotlib, ao analisar o conto “Amor”, de Laços de Família, menciona que os contos de Clarice Lispector “[…] alia um modo tradicional de narrar, com começo, meio e fim (tal como a poética de Aristóteles) e uma experiência de caráter moderno, que representa um estado de crise”468, com vários significados. Em A via crucis do corpo acontece o mesmo fato, pois há presença de variados recursos na sua construção, tanto tradicionais quanto modernos. Em quase todos os contos o corpo é o fio condutor da narrativa, a autora expõe uma visão contraditória do corpo, como um elemento desestabilizador, apresentado de forma dessemelhante, ligado aos sentimentos de desespero, de desejo, de poder, de vingança. Assim, acreditamos que A Via Crucis do Corpo trata-se de uma tentativa de recriação do homem a partir de si mesmo. O corpo não surge como um mero

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LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 10. GOTLIB. Teoria do conto, p. 11. 472 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

signo, abstração de sua realidade concreta, mas como presença viva, é produtor de significação, manifestação da subjetividade e confronto entre o sujeito e o outro, tentando estabelecer uma auto compreensão (e salvação) do Eu/corpo a partir do Outro/corpo, do não-Eu/corpo. Entretanto, esse não-Eu/corpo é criatura ou substância oriunda do Eu/corpo. Isso nos permite dizer seguramente que há uma duplicação do Eu (Self), segundo a perspectiva psicanalítica, pela qual Freud propõe que O tema do ‘duplo’ foi abordado de forma muito completa por Otto Rank (1914). Ele penetrou nas ligações que o ‘duplo’ tem com reflexos em espelhos, com sombras, com espírito de guardiões, com a crença da alma e com o medo da morte; mas também lança um raio de luz sobre a surpreendente evolução da ideia. Originalmente, o ‘duplo’ era uma segurança contra a destruição do ego, uma ‘enérgica negação do poder da morte’ como afirma Rank; e, provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro duplo do corpo. Essa invenção do duplicar como defesa contra a extinção tem sua contraparte na linguagem dos sonhos, que gosta de representar a castração pela duplicação ou multiplicação de um símbolo genital469.

Nesse sentido, fica evidente que essa duplicação do Eu na obra representa não só uma interação com o Outro/corpo, mas uma dependência psicológica, vital dele.

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FREUD. Obras psicológicas completas, p. 293. 473 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

As personagens Miss Algrave, Cidinha, Cândida Raposo, Maria Angélica, Carla Luísa, por exemplo, obviamente, não representam apenas o gênero feminino, mas simbolizam a irrupção do desejo recalcado, a evasão para o onírico parece ser uma maneira de superar uma realidade insatisfeita e imposta pela sociedade. Acreditamos que é perfeitamente aplicável a concepção freudiana no que diz respeito ao corpo e à sexualidade para analisarmos nosso objeto de estudo, apesar de não encontrarmos um conceito específico sobre o corpo na psicanálise, como afirma Paulo Roberto Ceccarelli, mas é do corpo que brotam os desejos e conflitos pulsionais. Corpo e literatura estão intimamente ligados como unidade potenciadora. A própria literatura pode ser um corpo, o texto e a escrita podem ser um corpo. Ruth Silviano Brandão menciona que “O texto, lugar onde o corpo se inscreve, é objeto da literatura e da psicanálise. A psicanálise fez a literatura pensar e repensar-se como letra, linguagem que tem seu porto em si mesma”470. Para Freud, há o corpo biológico, onde são distribuídos os órgãos e sistemas, e um corpo psicanalítico, onde está presente o inconsciente. Para a psicanalista Maria Helena Fernandes, ao pensarmos o corpo na teoria freudiana, há duas lógicas diferentes, que serão a da representação e a do transbordamento. No que diz respeito à representação, o corpo passaria da anatomia, do biológico para um corpo atravessado pela linguagem. Na lógica do transbordamento,

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BRANDÃO. Literatura e psicanálise, p. 30. 474 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

o corpo será problematizado, pois as psiconeuroses e as neuroses abrem espaço para pensarmos o corpo atravessado pelo psíquico, ou seja, um lugar de inscrição do psíquico e somático, onde está articulado o desejo inconsciente. No conto “Miss Algrave”, o corpo é o meio de descoberta para a vida pulsante. Há uma estreita relação entre o corpo e carne humana, sob um tom erotizado, sendo assim, buscaremos também a contribuição do francês Georges Bataille, para esse autor “o erotismo está na consciência do homem, o que faz com que ele seja um ser em questão”471, não é caracterizado somente pelo êxtase sexual, mas pela compreensão do ser, como uma experiência interior. Ruth Algrave manifesta um desejo de repulsão a sua sexualidade, vivia para o trabalho, fechava os olhos para não ver os casais se beijarem na praça, [...] “nem tinha televisão. Por dois motivos: faltava-lhe dinheiro e não queria ficar vendo as imoralidades que apareciam na tela”472, para não ver seu corpo nu sempre se olhava no espelho de calcinha e sutiã, para ela até as crianças eram imorais. Foi então que aconteceu.

Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto: — Quem é? E a resposta veio em forma de vento:

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BATAILLE. O erotismo, p. 46. LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 14. 475 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

— Eu sou um eu. — Quem é você? (sic) perguntou trêmula. — Vim de Saturno para amar você. — Mas eu não estou vendo ninguém! (sic) gritou. — O que importa é que você está me sentindo. E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrônico.473 Há uma relação sutil com a temática do erotismo, pois, no conto, Miss Algrave vai deixando seu corpo ser desfrutado pelo Ixtlan, usufruindo o prazer e liberando seus desejos e fantasias sexuais. Até então, era uma mulher conservadora, não lhe cabia vivenciar ações eróticas, deixou-se dominar pela parte “masculina”, ativa. “Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era bom demais”474. Suavemente, vai-se fazendo a fusão dos corpos para a completude, alcançando o sentido da existência, por meio do desconhecido, “como era bom viver”475. O leitor vai adentrando na cena erótica, que é materializada através da celebração ao prazer: Começou a suspirar e disse para Ixtlan: — Eu te amo, meu amor!(sic) meu grande amor! E — (sic) é, sim. Aconteceu. Ela

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LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 16. LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 16. LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 16. 476 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

queria que não acabasse nunca. Como era bom, meu Deus. Tinha vontade de mais, mais e mais. Ela pensava: aceitai-me! Ou então: “Eu me vos oferto.” Era o domínio do “aqui e agora”476. Desnudada docemente, deu um grito de liberdade que era silenciado pela repressão moral. Segundo Georges Bataille, [...] “a nudez se opõe ao estado fechado, quer dizer, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser além do retrair-se em si mesmo”477, ou seja, a nudez revela o desígnio do corpo para a continuidade e concretização da experiência erótica, deixando com que a construção social da conduta pecaminosa não seja mais sua premissa, aflorando todos os desejos, frustrações, alegrias e todas as perturbações incomodadas e impostas pelo código, pela lei. A partir do encontro com Ixtlan, Miss Algrave desencadeia um processo que culmina na elaboração de novos conceitos sobre o comportamento humano. Já no conto “A Língua do P”, Maria Aparecida uma professora de inglês, resolve viajar para os Estados Unidos com o intuito de melhorar seus conhecimentos linguísticos. Como morava em Minas Gerais, pegou primeiro um ônibus até o Rio de Janeiro para depois ir para o Exterior. Tudo estava tranquilo até a chegada de dois homens no vagão em que ela estava. A moça sente uma inquietação e um

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LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 16. BATAILLE. O erotismo, p, 29. 477 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

mal-estar. Os dois homens começam a conversar em uma língua que, a princípio, Maria aparecida não entende. De repente percebeu que os homens falavam a Língua do P, linguagem usada por crianças para confundir os adultos, e que ela seria a próxima vítima a ser estuprada, poderia até morrer. Então resolve se passar por uma prostituta, apesar de não se conhecer, pois era virgem, desconhecida de si mesma. Abre a blusa, colocam os seios a mostra, se maquia exageradamente e se transforma em “outra” mulher – ela mesma mirada, projetada. Nos dois contos expostos, percebesse-se que há a duplicação da personalidade, pois tanto Miss Algrave quanto Cidinha deixa aflorar a mulher que estava presente no seu inconsciente, a mulher-puta. Na psicanálise freudiana, o inconsciente é lugar de desejos reprimidos, meio pelo qual se prende os comportamentos aparentemente irracionais. Consequentemente, o sujeito torna-se conflituoso, em dificuldade de se totalizar. Lacan, ao ampliar os conceitos freudianos sobre o inconsciente, impõe a linguagem como um sistema de significação ancorado na identidade. Num primeiro momento, constroem-se os limites do Eu, que é refletido pela presença do Outro. Assim, tenta-se buscar a identificação através de processos simbólicos ou pela forma como se é visto pelo Outro (espelhamento), adotando uma identidade a partir do exterior ao Eu. O tema do recalque e da duplicação do feminino também pode ser percebido no conto da mulher casada que, à noite, dança em uma boate, vivendo uma vida dupla, talvez pela insatisfação na vida conjugal, afetiva, como analisaremos na escrita da

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dissertação. Temos, portanto, pelo menos três narrativas que possibilitam uma abordagem psicanalítica sob o viés do recalque e da duplicação. Já no conto O Corpo, o “corpo” é um “motivo” de traição. Xavier tinha duas esposas, Carmem e Beatriz, trabalhava para mantê-las e levavam uma vida tranquila, pois nenhuma das duas mulheres tinha ciúmes uma da outra. “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste”478. A vida pacífica acabou quando elas descobriram que Xavier tinha uma amante, começaram a desprezá-lo e ficaram cada vez mais amigas e ao “pensar na vida perdida” e “na morte”, nasceu o desejo de vingança. Enquanto Xavier dormia, as duas mulheres foram à cozinha pegaram dois “facões amolados” de “aço polido” e entraram no quarto matando-o. E agora? Agora tinham que se desfazer do corpo. O corpo era grande. O corpo pesava [...]. Enquanto o carregavam, gemiam de cansaço e de dor. Beatriz chorava. Puseram o grande corpo dentro da cova, cobriram-na com a terra úmida e cheirosa do jardim, terra de bom plantio479.

O corpo descrito pelo narrador não é um corpo biológico, mas um corpo constituído por conflitos, a dor da perda misturado com um sentimento de culpa, frustração.

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LISPECTOR, 1998, p. 23. LISPECTOR. A via crucis do corpo, p, 24-25 479 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

Carmem e Beatriz carregam o corpo com profunda tristeza, dor de terem sido traídas, estavam desiludidas. A harmonia em que viviam foi deixada para trás, restaram somente as duas mulheres. As duas mulheres tentam através da morte a dissipação, enterrar o registro doloroso de amor e ódio, sem sucesso, pois a partir de agora teriam que conviver com a ausência do corpo de Xavier. O corte entre os corpos foi feito através da morte, mas vida e morte se entrecruzaram, corpo físico já não existia mais, entretanto a morte não configurou o fim e sim um começo de uma ausência/ presença de Xavier. O desfecho fúnebre inaugura uma nova fase, não menos amargurada. Os dias foram passando e as duas mulheres começaram a sentir tristeza quando anoitecia. “Não tinham mais gosto de cozinhar”480. Para Georges Bataille (2004) a morte possui duplo sentido: por um lado o horror não afastado, ligado ao apego que a vida inspira, por outro, um elemento solene, ao mesmo tempo, aterrador, fascina-nos e provoca uma perturbação soberana. Carmem e Beatriz plantaram mudas de rosas vermelhas no túmulo de Xavier, ao amanhecer, o jardim orvalhado celebra a benção ao assassinato. O corpo que transita é a chave para a subjetivação e descoberta interior, levando-as a descrença em si e à consciência de se viver, trazendo à tona a dor dilacerante e o peso existencial do estar-no-mundo, não estar num ponto fixo. O corpo solitário e desejante também é assunto do conto “Ruído de passos”, no qual uma mulher de 81

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LISPECTOR. A via crucis do corpo, p. 25. 480 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

anos ainda lida com o conflituoso desejo de prazer, na velhice. De forma sintética, condensada, mas não menos densa e reflexiva, o narrador nos apresenta D. Cândida Raposo, a qual vive sozinha, viúva e tendo perdido um filho durante a Segunda Guerra. Símbolos literários excessivos aparecem no conto em referência à sexualidade latente e pulsante dessa mulher: o corpo envelhecido, o médico ginecologista, a solidão. Andrea Cristina Martins Pereira ao discutir as relações entre a palavra e a imagem no artigo “Ruídos de passos: a palavra e a imagem” no referido conto atenta para o fato de que a personagem construída por Clarice, ao mesmo tempo em que se sentia constrangida pela sua libido queria cultivá-la. Trata-se, portanto, de postulados sobre o homem, refletindo uma sociedade em “crise” representado na dialética humana, o corpo interage através de máscara e espelho, tentando revelar o real e as angústias do sujeito contemporâneo.

Referências ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004. BRAIT, Beth. A personagem. 7 ed. São Paulo: Ática, 2002. 95 p. BRANDÃO, Ruth Silviano. Literatura e psicanálise. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS. 1996. CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: ______. A

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Sonia.

Poéticas

do

empobrecimento:

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a escrita derradeira de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2002. SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

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EMOÇÕES E A PERVERSIDADE DO BARÃO BELFORT: DISCURSO E DECURSOS DO SUJEITO NA MODERNIDADE

Bruno Oliveira Tardin

A priori, antes de se compreender esta personagem e o que ela representa culturalmente no discurso literário de Emoções, há que se averiguar a construção do conto a partir de uma literatura decadente da qual foram grandes arautos Oscar Wilde e Charles Baudelaire, dentre outros. É neste espaço que se observa a manifestação da degeneração e da perversidade de uma Cultura mantenedora de um intrincado jogo de bovarismo, alimentando a aparência moderna e esclarecida da cidade sem, contudo, privar-se de gozar de prazeres os mais excessivos, o que se dá através de um discurso despojado e elegante, no qual morbidez e cinismo se mesclam indissociavelmente. Como se verá, o Barão André Belfort não se limita a um simples aglomerado de costumes e fantasias de um momento pretérito da história, resultado de um espírito criativo inconsequente ou mesmo da observação altaneira do espaço urbano moderno. O que aqui se busca compreender, afinal, é o momento em que luz e treva se eclipsam na constituição psicológica do sujeito,

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o limiar entre a lei e o prazer, a lucidez e o delírio de um retrato, ainda que fosco, daquilo que o sujeito moderno na Belle Époque carioca, veiculado à Cultura vigente do capitalismo aburguesado e subjugado aos seus ditames, poderia ainda se tornar pelo seu devir (segundo a acepção nietzschiana do termo). Tal sujeito, que se encontra sob as influências castradoras da Cultura burguesa moderna, entrega-se à busca compulsória e fatal por sua natureza libertina e totalitária, isolando-se e desafiando os ditames da própria pulsão erótica que o orienta, enquanto emissário dos impulsos destrutivos que o regem. E, contudo, um “tipo” como este traz à baila aspectos tanto do espaço labiríntico da cidade que o cerca no cenário de modernidade, quanto da problematização da própria vida e do sujeito, do poder opressor da Cultura (constantemente associada a uma autoridade de cunho paternal) e da rejeição adotada por aqueles que optam pelo “avesso” da Lei e da Ordem, habitando e validando os espaços umbrais presentes na cidade moderna. Portanto, para melhor compreender o tipo perverso no qual se encerra a figura do Barão André Belfort, é válido um estudo cauteloso deste fenômeno da perversão do ego, associado ao intervalo histórico que compreende o espírito decadente da Belle Époque carioca e do clima de bovarismo teatral que imperou durante a primeira década do século XX no Rio de Janeiro, tornando a capital na famigerada “frívola city” de João do Rio. Esta vasta gama de experiências do próprio ego revela que o sujeito perverso guia-se a partir de uma

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dinamicidade e capacidade agregadora notáveis, posto manifestarem-se em consonância com uma série de pulsões (quase tão naturais quanto os próprios instintos) íntimas à constituição psíquica do ego, que, graças ao efeito castrador da Cultura sobre suas paixões, não vê outra saída senão a perversão das mesmas. Tais estruturas, desencadeadas a partir de pulsões sufocadas, correspondem à realização do desejo enquanto uma correção perversa da realidade insatisfatória ao sujeito, que se permite ultrapassar as limitações impostas pela Cultura moderna ao exigir obediência à lei comunitária – mesmo que essa própria Cultura forneça os espaços e circunstâncias nos quais o prazer possa ser alcançado de maneira perversa. Desta forma, este sujeito encontra-se, enfim, apto a conquistar o que lhe desperta o desejo, obtendo o reconhecimento e admiração de seus iguais além de também despertar o desejo através de seus afetos – objetivo ao qual o Barão Belfort irá entregar-se, apaixonadamente, no conto Emoções. É o trabalho do sujeito enunciador de um discurso, a partir de suas pulsões e devaneios que de outra forma o constrangeriam se trazidos à tona – discurso este que, portanto faz-se disfarçado e sublimado no objeto artístico que lhe permite, ao mesmo tempo, a expressão sem o temor de represálias, além de fortalecer o senso de alteridade que une este sujeito aos seus pares. Desta forma, com o amparo da teoria psicanalítica freudiana, é possível notar que o sujeito criativo compartilha, com os demais impulsos de sua constituição psíquica, o

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processo de criação de um dispositivo que lhe irá sublimar as pulsões reprimidas pelo viés da fantasia erigida através de uma transgressão metafórica, ao mesmo tempo em que inserida num universo de valores defendidos pela Cultura. Quando Freud sugestiona a procura, no ludismo infantil, dos traços formadores desse impulso criador no adulto, é notável a necessidade do sujeito de experimentar algo além do lúdico. Trata-se da elaboração de um desejo que lhe é, até certo ponto, desconhecido e inescrutável, o que é uma marca notável da excepcionalidade do sujeito diante do objeto de seu prazer: “A antítese de brincar não é o que é sério, é o que é real” (FREUD, 1980, 149). Trata-se aqui da construção de um discurso – ou mesmo de decursos – do sujeito na modernidade, concebido pela representação do desejo que insiste em ser atendido, ainda que perversamente, por seu ego, e cuja abdicação torna-se lhe deveras penosa justamente por tratar-se de uma satisfação já experimentada, ainda que na tenra idade. Como o próprio Freud afirmava, não há a renúncia do objeto de desejo: apenas a troca por algum outro, pervertido em uma fonte de prazer possível ao sujeito sob o jugo da Cultura, através da formação de um substituto. Já em se tratando de Emoções, segundo conto da coletânea Dentro da noite, escrita por João do Rio e publicada pela Casa Garnier em 1911, destaca-se a presença do ilustre “velho Barão Belfort”, elemento simbólico da flânerie e do dandismo da Belle Époque carioca, do cinismo cavalheiresco e da elegância leviana que irão marcar não apenas os maneirismos, mas o próprio

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discurso desta singular e perversa sociedade. Belfort, presente apenas enquanto personagem perversora do discurso, possui a verve e a carisma de se fazer uma figura central na narrativa de Emoções, sua presença libertina e iniciatória no universo da perversão e do vício influenciando perniciosamente as personagens de Oswaldo e Praxedes, este último conhecido pela alcunha “O Chinês”. Logo ao início do conto se observa a primeira nota de perversidade no discurso do Barão, ao revelar ao seu interlocutor (o narrador anônimo do conto) que, mesmo perdendo a partida de cartas que jogava com Oswaldo, não poderia deixar de apreciar um sujeito singular como aquele, “que ainda tem emoções”. O inominado interlocutor então observa que os olhares do Barão “seguiam, frios e argutos, o jogo do bom Oswaldo”, sorrindo “um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito” (RIO, 1978, p. 15). A fala talvez desperte estranhamento justamente por deixar antever algo de inesperado na figura do Barão: por apreciar o rival, mesmo em face à derrota no jogo, Belfort confessa também apreciar o fato de Oswaldo ainda ter emoções, o que dá a pista da natureza de sua própria perversão – espécie de nevralgia do voyeur, direcionada às emoções alheias. A respeito do jogo de azar, a grande linha de força que irá orientar o discurso narrativo do conto – e a perversão que figura expressivamente em Emoções – Anatole France (in BENJAMIN, 1989, p. 249) afirma que a “atração do perigo (do jogo) é subjacente a todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer mesclado ao medo embriaga”, e justamente o caráter vertiginoso do jogo dá-

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se porque “suas razões não são absolutamente as nossas razões”, fazendo-se assim o objeto de desejo ao sujeito “mudo, cego e surdo. Pode tudo. É um deus”. Retomando a narrativa do conto, Belfort revela que “o homem é um animal que gosta” – e caracteriza-se enquanto um connaisseur das emoções, particularmente as alheias: não um “bisbilhoteiro das taras do próximo”, mas “gozador das grandes emoções de em torno”. Para o Barão, “ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção” (RIO, 1978, p. 17), e estabelece nesta fala a sua função de voyeur do prazer alheio e gozador das emoções daí advindas, o que o constitui enquanto “ser horrível e macabro”, por suas próprias palavras, “mas delicado”: Belfort não se entrega às simples perversões da observação de comportamentos impróprios à Cultura burguesa moderna; alimenta-se, antes, de emoções mais refinadas, produzidas em seus objetos pela exploração sucessiva e compulsória das perversões por si descobertas em outrem, permitindo e gozando a déviation dos mais incautos desejos em seus objetos. Uma vez sugerida esta sua natureza no limiar entre o grotesco e o sublime, o Barão irá narrar a história do prazer conquistado no explorar o vício do jogo – e o contar esta própria história rende-lhe prazer, posto que aí também possa gozar os efeitos de seu discurso por intermédio de seu ouvinte anônimo, incitando nele emoções as mais intensas. A partir deste ponto é introduzida à trama a

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personagem de Praxedes, tal como o descreve o Barão: “Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e sem vícios!”. Quando Belfort percebe tratar-se de um sujeito “legislativamente moral”, observa-se o seu interesse perverso pelo Chinês frente àquela sociedade, burguesa e bovarista, na capital carioca em plena Belle Époque. O vício de Praxedes – ou antes, a válvula que se abrirá às suas perversões retraídas frente a uma Cultura burguesa moderna – será antevisto em casa do Barão, durante um jantar no qual os homens jogavam e Clotilde (a esposa do Chinês) cantava, “com a voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda”, em curioso adiantamento ao desfecho da trama. Belfort descreve, ao tomar das cartas, que o Chinês “olhou-as indiferente, mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira partida. Os seus olhos começaram a luzir. Jogamos outra” (Idem, p. 18). A partir deste ponto rebenta em cheio a virtuose da perversão, “a paixão voraz, que corrói, escorcha, rebenta” (Idem, p. 19), para usar as palavras de Belfort. Para Benjamin, este tipo de sujeito representa um mecanismo de perversão buscado pelos jogadores em geral, burgueses que, inseridos no universo dos jogos de azar, comportam-se “de tal forma que, mesmo em sua esfera pessoal, não importando quão apaixonados eles possam ser, não podem atuar senão automaticamente” (BENJAMIN, 1989, p. 128). Testemunha-se o inabalável poder de sedução e aliciação de Belfort, que em uma única noite encontra o ponto de

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impacto mais volúvel na constituição psicológica de seu afeto (Praxedes, o Chinês) e o introduz na perversão que o irá condenar à maior das fatalidades. Dando continuidade ao pequeno experimento social que realiza, Belfort deixa-se estar ao lado do Chinês, “só para não perder algumas horas o interesse desse espetáculo”. O Barão revela que a personagem não abandonava a mesa de jogo, deixando-se vampirizar pela permissividade daquele espaço através da encenação social de aceitação e camaradagem, posto que “a gente do clube, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes” – o próprio Barão testemunha de sua fortuna e sua procedente ruína que, como o era de se esperar, se fez breve: “Ao cabo de uma semana, entretanto, a chance desandou” (RIO, 1978, p. 18). Belfort então informa ao seu anônimo interlocutor de um longo intervalo de tempo, após o qual se reencontra com o Chinês “numa batota da Rua da Ajuda, com o fato enrugado e a gravata de lado”, já totalmente dominado pela paixão do jogo. Este pede ao Barão algum dinheiro, alegando estar “cansado de peruar”, necessitado de sentir e gozar o prazer vertiginoso da mesa, e “arrumar tudo no 00”. E então Belfort, após ceder à quantia suplicada, dá o seu aval da perjura alheia: “Compreendi então a descabida vertigem daquela queda” (Idem, p. 20). É, portanto no jogo, segundo Benjamin (1989, p. 244), que se pode observar o advento de uma “superstição” ligada ao destino e à sorte do sujeito, que perverte o seu prazer na experiência sadomasoquista que apenas a mesa de jogo pode propor,

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de forma tão elegante e em doses imperiosamente homeopáticas. Para Belfort, é “a alucinação”: o Barão observa, ansioso, o desvelar da história do Chinês e de seu vício como um espectador num teatro, “como quem espera o final de uma tragédia, porque tinha a certeza do paroxismo daquele vício” (RIO, 1978, p. 22) – o que de fato ocorre mediante o suicídio brutal e cruento de Praxedes, no mais profundo desespero, rebentando o crânio pelas quinas do cômodo no qual se encontrara com a esposa pela última vez. Belfort, após ceder alguma atenção à viúva, busca regalar-se com a visão do defunto, “com a cabeça fendida e os lábios coagulados de sangue roxo”. Mas o que lhe desperta a atenção no cadáver de Praxedes foi “o olhar vítreo, a mão recurva” – uma pose que, segundo o próprio Barão, deixava-o como a “acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço”. Praxedes jogou com a própria vida e encontrou-se em severos débitos, ao passo que Belfort vive para se refestelar naquela pequena tragédia e passar a história adiante. Ao final do conto, o Barão confessa uma vez mais a satisfação de seus prazeres pela perversão do voyeur, através das emoções alheias, projetando seu próprio ego num intrincado e singular jogo de espelhamento e alteridade – e faz esta confissão através de seu diálogo com o desconhecido interlocutor, como que metonimicamente, “mirando-se no alto espelho do vestiário” (RIO, 1978, p. 23). A tensão construída ao longo do conto revela o profundo clima de miséria e abandono que havia se

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instaurado sobre o casal Clotilde e Praxedes, culminando no desfecho simbolicamente sugerido pela música tocada naquele distante jantar em que Belfort lançara a semente do vício ao Chinês. Culmina então o prazer perverso do Barão, pois o tom trágico que traz a história ao seu desfecho é recebido com o frenesi prazenteiro que Belfort revela sentir, eximindo-se de qualquer culpa para com aquele fatal evento ao afirmar que o Chinês “é o único culpado por sua sina” – quando o que se percebe no conto claramente sugere um assassínio, ainda que indeliberado, cuja condução se dá magistralmente pelas sutilezas e a finesse do próprio Barão. Disto entende-se que o sujeito encontraria a realização plena de suas pulsões através de uma vivência regrada pela perversão, dominada pelo caos e engendradora da ruína, condensada em Emoções na permissividade da mesa de jogo enquanto ambiente lícito frente à Cultura vigente. O incomum desta fenomenologia da perversidade atesta para a marginalidade e o bovarismo latentes no Barão Belfort e à sociedade que representa metonimicamente, na qual os processos de obtenção do prazer pervertem-se como em operações de câmbio – afinal, é Belfort quem interpreta com maestria o papel perversor do sujeito moderno, mefistofelicamente lançando mão dos vícios alheios para perverter, de forma notável, a narrativa do conto e, enfim, alcançar o próprio gozo.

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Bibliografia consultada BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. In:______. Obras escolhidas III. Tradução de José Martins Barbosa e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. v. 3. CARDOSO, S. M. Dentro da noite, fora da razão: a construção do mito fáustico em João do Rio. In: Vértice, Lisboa, n. 105, março-abril, 2002. FARIA, Gentil Luiz de. A presença de Oscar Wilde na Belle Époque brasileira. São Paulo: Pannartz, 1988. FREUD, Sigmund. O ego e o ID e outros trabalhos. In: ______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. XIX. ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos. In: ______.  Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. VII. MANTA, Inaldo de Lira Neves. A Arte e a Neurose de João do Rio. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pongetti, 1947. RIO, João do. Emoções. In: ______. Dentro da noite. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910. p. 13-23. SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Morte e prazer em João do Rio. Rio de Janeiro: Francisco Alves: Instituto Estadual do Livro, 1978. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Tradução de Elia Ferreira Edel. Petrópolis: Vozes, 1994.

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VENEU, Marcos Guedes. O flâneur e a vertigem: metrópole e subjetividade na obra de João do Rio. Revista de estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, p. 229-243, 1990.

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HISTÓRIA E LITERATURA EM NOVAS FORMAS: CABEZA DE VACA, O ENTRECRUZAR DE CULTURAS

Márcia de Fátima Xavier

As três últimas décadas do século XX foram marcadas por um crescente interesse pela temática histórica. Verifica-se, nesse momento, um grande volume de romances que se propõem a reler a história, principalmente a da Conquista e posterior colonização da América. Mediados por uma reescrita anacrônica, irônica ou paródica, quando não irreverente e grotesca, os novos códigos estéticos do romance histórico contemporâneo questionam crenças e valores estabelecidos, ainda que nem sempre tenda à dessacralização da História oficial. O que move esse romance é o desejo de reinterpretar o passado com os olhos livres das amarras conceituais criadas pela modernidade europeia no século XIX. No lugar do tempo cronológico, trabalha-se com a simultaneidade temporal, com o tempo circular, o mítico ou a mescla de várias concepções do tempo. A enunciação é problematizada, com o intuito de se relativizar verdades tidas como universais e absolutas. Trata-se de uma narrativa que se configura como uma mescla de História e ficção. Em El largo atardecer del caminante (1992), o

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escritor argentino Abel Posse faz uma releitura da crônica de viagens Naufrágios (1542) do conquistador espanhol Álvar Núñez Cabeza de Vaca. Publicado em 1542, em Zamora, e, em 1555, em Valladolid, Naufrágios é composto de 38 breves capítulos em que Cabeza de Vaca, utilizando-se da primeira pessoa do plural, faz um apanhado do que ele apresenta como um testemunho do que teria sofrido, visto, conhecido e feito na América. Cabeza de Vaca descreve suas aventuras e as de seus três companheiros (Dorantes, Castillo e Estevão), supostamente vividas na América. O espanhol relata três desafortunados naufrágios sofridos pela tripulação, seguidos de uma série de dificuldades, desafios e encontros com o imprevisível (tempestades, doenças, ameaça do inimigo (índios arqueiros), fome, sede, frio, animais desconhecidos, sol, chuva, etc.). Utilizando a técnica da autobiografia revisada, a personagem Cabeza de Vaca, mediante flashbacks, relata as aventuras que viveu na América entre os anos de 1527 e 1537, alternandoos com momentos do presente, na enunciação fictícia, na Sevilha de 1557. O narrador protagonista de El largo atardecer del caminante relata o processo de construção de sua nova autobiografia, desde quando recebeu de uma jovem bibliotecária (Lucinda) uma resma de papel até o momento que encerra a obra e decide guardá-la em uma das estantes de uma biblioteca espanhola, para que não se perdesse no esquecimento. Ao presentear o velho conquistador com uma resma de papel, a jovem Lucinda oferece a possibilidade

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de viver novamente e escrever um relato mais convincente que o anterior. O depósito dessa nova versão de sua história em uma biblioteca atua como o “passaporte” do conquistador para a suposta imortalidade que nos propõe o escritor argentino Jorge Luis Borges (2005) em seu conto “El inmortal”, e insere o protagonista da narrativa em uma eterna geração de conquistadores. Longe de ser um Pierre Menard, Abel Posse não tem a pretensão de produzir uma reescrita literal do discurso da Nação. O “laço” entre os textos acontece de forma oposta. O relato histórico de Cabeza de Vaca é tomado pelo autor justamente para dar “voz” aos possíveis hiatos que tenham sido deixados para trás pela historiografia, questionando, assim, suas “origens” e os referentes “legítimos” do discurso histórico. Nessa sua versão da História, a personagem critica o processo de construção do seu primeiro relato uma vez que ele está permeado de omissões, lacunas e intervalos inexplicados. O questionamento sobre a suposta verdade do discurso histórico, ou seja, a fonte e os processos de transmissão e testemunho e a visão homogênea e horizontal associada com a comunidade imaginada da nação são alguns dos temas fundamentais desse romance, que poderiam vir a ser pensados como um discurso performativo do qual nos fala Homi Bhabha (2007) em “DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna.” Como uma contra-narrativa da Nação, como as que “continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras – tanto reais quanto conceituais

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– perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais “comunidades imaginadas” recebem identidades essencialistas” (BHABHA 2007, p. 211.), El largo atardecer del caminante suplementa a narrativa pedagógica do colonizador (Naufrágios), colocando em evidência o tempo disjuntivo da Nação, a incompletude do conhecimento a que o homem pode aspirar e a História oficial que se apresenta como pretensa portadora da verdadeira fonte de interpretação da História. No lugar da polaridade de uma nação prefigurativa autogeradora “em si mesma” e de outras nações extrínseca, o performático introduz a temporalidade do entre-lugar. A fronteira que assinala a individualidade da nação interrompe o tempo autogerador da produção nacional e desestabiliza o significado do povo como homogêneo. [...] A nação barrada Ela/Própria [It/Self], alienada de sua eterna autogeração, torna-se espaço liminar de significação, que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural. (BHABHA, 2007, p. 209-210.)

Dessa forma, agora, na contra-narrativa de Posse, temos a suposta personagem histórica que tem a oportunidade de, mais uma vez, narrar a sua vida a partir de um discurso heterogêneo, de forma a suplementar a narrativa pedagógica da nação (Naufrágios). É importante

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ressaltar que a estratégia de suplementar sugere que “o ato de acrescentar não necessariamente equivale a somar, mas pode, sim, alterar o cálculo”. (BHABHA, 2007, p. 219). É o sinal da adição que vai compensar um sinal de subtração na origem, o movimento de esquecer para lembrar. O conquistador se vê obrigado a participar da sintaxe do esquecer ou esquecer para lembrar. Ser obrigado a esquecer para lembrar se torna necessário e base para recordar a nação, pois conforme teoriza Bhabha “ser obrigado a esquecer – na construção do presente nacional – não é uma questão de memória histórica; é a construção de um discurso sobre a sociedade que desempenha a totalização problemática da vontade nacional” (BHABHA, 2007, p. 226). É o autor contemporâneo, leitor do relato de Cabeza de Vaca, quem preenche as lacunas e pontos de indeterminação do discurso histórico, interferindo, dessa forma, na leitura atual daquele documento. O conquistador tem sua vida completamente modificada após a experiência do naufrágio. De volta à Espanha, ele não se reconhece mais, sente-se “outro” nesse espaço, que já não consegue mais chamar de seu. Com a vida e o corpo marcado pela cultura americana, não consegue se adaptar aos antigos costumes: “era otra vez don Alvar Núñez Cabeza de Vaca, el señor de Xerés. Pero era otro, por más que yo simulase. Era ya, para siempre, otro.” (POSSE, 2005, p. 179.) Essa perda de um “sentido de si”, pela qual Cabeza de Vaca passa, é chamada por Stuart Hall (2006), de

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deslocamento ou descentração do sujeito, e esse duplo deslocamento — descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos — constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. Também podemos analisar esse novo sujeito que retorna a partir da perspectiva do Unheimlich, do sentimento de nãopertencimento de que fala Freud. Cabeza de Vaca tornase um sujeito fragmentado, “composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). O conquistador assume identidades que não podem ser unificadas em um “eu” coerente, e “projeções exteriorizadas retornam para assombrar e dividir o lugar em que são produzidas.” (BHABHA, 2007, p. 211.) De conquistador a conquistado, Cabeza de Vaca passa por inevitável processo de transformação e volta à Espanha para assombrar o Império: de identidade única e estável - o sujeito cartesiano - situado no centro do conhecimento, a sujeito fragmentado, transculturado, que leva em si todas as partes que compõem a monstruosa estrutura social: aquela e a de hoje. No. Nada me une ya a mi pueblo ni a la ciudad de mi infancia (que es la misma, pero yo cambié). […] No. Ya soy definitivamente otro. La vida, los años, me fueron llevando lejos de mi pueblo. Ya ni su gracia, ni su odio, ni su hipócrita silencio, ni la alegría de sus macarenas, me pertenece. Soy otro. (POSSE, 2005, p. 118-119.)

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Cabeza de Vaca, tanto o do relato oficial quanto o do ficcional, passa por um profundo processo de transculturação — neologismo criado pelo antropólogo cubando Fernando Ortiz em Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), em substituição ao termo aculturação, que, segundo ele, há muito tempo vinha sendo questionado e utilizado de modo reducionista. Nesse novo processo, a cultura de origem não é desprezada, ela se revela resistente e ativa. Nessa concepção há um intercâmbio entre duas culturas, ambas contribuintes e cooperantes para o surgimento de uma nova realidade. Essas personagens têm suas vidas completamente alteradas depois do período de experiência com o outro e passam a viver entre duas identidades, em uma terceira margem, no espaço de liminaridade entre o discurso pedagógico e o performático, ou entre a História e a história. Conforme se sabe o encontro inicial das culturas europeias e americanas ocorreu de forma drástica e traumática: “una de ellas pereció, casi totalmente, como fulminada. Transculturación fracasada para los indígenas y radical y cruel para los advenedizos.” (ORTIZ, 1963, p. 101.) Os índios foram os que mais incorporaram elementos da cultura europeia, pelo fato de terem sido vítimas do violento processo de aculturação a que foram submetidos pelo conquistador europeu. Valendo-se do conceito antropológico de transculturação, o uruguaio Ángel Rama, na década de 1970, o transpõe para o plano das Artes, da Literatura

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e das operações culturais resultantes do contato entre culturas diferentes. Rama vê a transculturação de forma otimista, como um processo mediador e integrador da cultura dominada sobre a dominante. O uruguaio identifica o peruano José María Arguedas, o mexicano Juan Rulfo, o colombiano Gabriel García Márquez e o brasileiro João Guimarães Rosa como narradores transculturadores, que levaram a fundo o projeto transculturador: “escritores que son absorbidos por las capitales donde muchas veces cumplen su tarea literaria adulta, sin que por eso puedan desligarse de sus orígenes y de los moldes culturales formativos.”481 Tais escritores, provenientes de regiões que conservam suas particularidades culturais, como a costa peruana, o planalto de Jalisco, a costa colombiana e o sertão de Minas Gerais, respectivamente, dialogam diretamente com o moderno, mantendo, contudo, os valores de suas culturas regionais. Esses escritores se enquadram no grupo que Rama denomina de regionalistas plásticos: escritores que não se rendem ao projeto homogeneizante da modernização, ou seja, incorporam a cultura do outro de modo vivo e original, como “fermentos animadores”, recorrendo a componentes próprios e tendo como respostas formas inventivas e criativas. A plasticidade cultural permite ao regionalista apropriarse seletivamente de propriedades do “outro” e, com elas enriquecer sua experiência de mundo. Esses escritores mantêm um discurso literário ancorado em fortes tradições,

481 RAMA. Transculturación narrativa en América Latina, p. 95. 503 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

transitando, de forma plástica, entre as forças duais transcorridas desde a Conquista, tais como dependência/ autonomia; periferia/centro; regionalismo/ modernismo; modernização/ tradicionalismo; oralidade/ escritura. Cabeza de Vaca acredita ter se transformado em instrumento da vontade divina, com capacidade de predizer fenômenos da natureza e, desse modo, consegue produzir um discurso de poder que lhe permite manter controle sobre os índios tupinambás e evitar a própria morte em ritual canibal. O conquistador abre seu caminho de tribo em tribo negociando seu salvo-conduto por alimento e proteção. Sem que nem ele mesmo compreenda, o cristão europeu torna-se feiticeiro, com poderes curativos. O espanhol, com poderosa plasticidade cultural, envolve o processo de transculturação e “estende uma ponte” entre a crença europeia e a americana. A fim de atender aos seus objetivos, Cabeza de Vaca acrescenta às suas crenças (inventiva e criativamente) a dos indígenas. Nos dois relatos do conquistador, tanto no histórico quanto no ficcionalizado, fica evidente como o europeu foi influenciado pelos autóctones da América e vice-versa. O intercâmbio das culturas deu-se, principalmente, no que diz respeito às questões de sobrevivência. O estrangeiro, no entanto é, nesse momento, o que mais se adapta aos novos costumes. [...] Vencí repulsiones banales según las cuales la carne sangrante de un buey es un manjar, y no así los cangrejos de tierra, los huevos de hormigas rojas o las lombrices verdes

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de largos cuernos. Creo que comprendí que en la callada y disimulada vida de los seres del desierto podía encontrar también el sustento de mi propia vida482.

O processo de transculturação, aqui focalizado, acontece de forma invertida, se comparado com os dos narradores transculturadores (Arguedas, Rulfo, García Márquez, Rosa). A cultura dominante, no caso de Cabeza de Vaca, não é a que vem de fora, a do estrangeiro, e sim a natural da América, a que será, logo após, identificada como indígena. É importante destacar que, como um processo bem-sucedido, mediador entre as culturas, a exemplo do que ocorre com a cultura dominada, que não se rende ao projeto homogeneizante do outro, com a transculturação do europeu acontecerá o mesmo. Ainda que a premissa central da “viagem” de Cabeza de Vaca tenha se caracterizado pela aproximação, pelo encontro do “eu” com o “outro”, não se pode deixar de destacar que ele, antes de tudo, era espanhol. Cabeza de Vaca esteve caminhando por quase todo o tempo em que viveu na América, a fim de encontrar cristãos que o levassem de volta à Europa, e, diante disso, todos os lugares e cada situação com que se deparava lhe eram novos, sob a perspectiva do olhar europeu, que ele era e representava. Cabeza de Vaca, mediante a “plasticidade cultural”, também manterá seu discurso ancorado nas suas tradições e nos seus interesses. Vivendo na terceira margem, entre dois mundos, não afasta a possibilidade de imposição da

482

POSSE. El largo atardecer del caminante , p. 91. 505 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

“cruz” católica aos nativos, desde que por via pacífica: Embora essa gente mostrasse grande prazer em estar conosco, temíamos que quando chegássemos na zona de fronteira entre estes e os cristãos, onde estavam se dando os combates, fossem nos maltratar e fazer com que pagássemos pelo que os cristãos lhes estavam fazendo. Mas Deus Nosso Senhor fez com eles passassem a nos temer e a nos acatar, como faziam os demais com quem nos encontráramos antes. Isto vem demonstrar que toda essa gente pode ser atraída ao cristianismo e à obediência, à imperial majestade, desde que lhe seja dispensado um bom tratamento483.

O objetivo, aqui, não é questionar as atitudes do conquistador, o que convém perceber é como o encontro deste com os outros ocorreu de forma diferenciada dos seus contemporâneos. O que é relevante perceber é o fato de, ainda que nem sempre conseguisse cumprir, a convicção de que a Conquista poderia acontecer de forma pacífica acompanhou Cabeza de Vaca por toda a sua vida, e não só nos momentos difíceis vividos na América. Por esses aspectos, pode-se dizer que Cabeza de Vaca adquire profunda compreensão da cultura americana, vivendo como índio, e, com isso, aprende a respeitá-los, a admirá-los e a tratá-los com certa dignidade. Os homens ocidentais lutaram contra os aborígenes e, em raras

483 CABEZA DE VACA. Naufrágios & Comentários, p. 89-90. 506 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

situações, a favor deles. Como uma dessas exceções, encontra-se Cabeza de Vaca. Henry Miller, no prefácio a Naufrágios & Comentários484, afirma que a história desse europeu foi o primeiro momento glorioso que encontrou na historia sangrenta criada pelos conquistadores. A narrativa de Cabeza de Vaca e, especialmente, a sua experiência de vida na América, após o naufrágio, mostram o antes e o depois de um homem que se caracteriza pela sua capacidade de se misturar com o “outro”. Conforme já analisado, a contra-narrativa de Abel Posse advoga em favor de uma deslegitimação do lembrar para que fissuras de fatos que talvez não tenham sidos registrados pela historiografia sejam preenchidas. Fica evidente que ao utilizar do discurso pedagógico de Naufrágios, Abel Posse não tem como objetivo se prender a uma tradição, mas evidenciar novas possibilidades de leituras, mais contextual e crítica, baseada na perspectiva de desconstrução, da desconfiguração, assim como propõe Gayatri Spivak (2009). A escrita performática de Posse configura-se, assim, como aquele tipo de narrativa que tem como objetivo romper com fronteiras e binarismos, na perspectiva de possíveis trânsitos de textos canônicos com não-canônicos. Conforme visto, a desterritorialização dos referentes “legítimos”, o caráter não-legítimo e incompleto de sua obra é que permitirá que sejam criados laços inusitados com o discurso da Nação, a fim de contemplar versões esquecidas (subtraídas) da História.

484 9.

CABEZA DE VACA. Naufrágios & Comentários, p. 507 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

A possibilidade de existência de uma maior verdade na ficção que nos discursos apresentados como verdadeiros ou historicamente confiáveis é, talvez, a mais sobressalente discussão do romance histórico contemporâneo. É importante ressaltar novamente, assim como o faz o próprio Abel Posse que esse tipo de romance não deixa de lado a racionalidade histórica (o pedagógico); ela entra como seu fundamento, constitui a sua razão de ser. A ficção, a partir do mecanismo da semelhança, satisfaz relações com a realidade mediadas pela imaginação do autor. Essa é uma boa plataforma para um exercício de Literatura Comparada, que se oferece como instrumento capaz de possibilitar novas leituras do passado e modos renovados de acesso ao mundo a partir de um novo lugar de enunciação, mediado por um olhar crítico que se fixa na cultura e no social.

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508 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina, 1979-1992. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. MOREIRAS, Alberto. O fim do realismo mágico. In: ______. A exaustão da diferença. A política dos estudos culturais latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p. 220-247. ORTIZ, Fernando. Contrapunteo Cubano del tabaco y el azúcar. Habana: Universidad Central de Las Villas, 1963. POSSE, Abel. El largo atardecer del caminante. Buenos Aires: Booket, 2005. RAMA, Angel. Novísimos narradores hispanoamericanos en “Marcha”, 1964/1980. México: Marcha Editores, 1981. RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. México: Siglo Veintinuo Editores, 2004. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Muerte de una disciplina. Santiago: Palinodia, 2009.

509 A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora

CARTA DO EDITOR A literatura e a vida: por que estudar literatura? encerra de maneira solar nosso primeiro ano de publicações. Chegamos até aqui com mais de 25 mil cópias de nossos livros distribuídas gratuitamente aos leitores. Esse número espetacular para livros acadêmicos foi alcançado em apenas seis meses por nossos três primeiros livros: Últimas notícias: histórias do webjornalismo no Século 20, Brasil em Crise: o legado das jornadas de junho e Balão Mágico: movimento estudantil e a formação em comunicação social, todos disponíveis no blog da editora, que pode ser acessado em www.praiaeditora.blogspot.com.br. Parte desse sucesso deve-se à opção que fizemos para circular nossas publicações e fazer chegar aos leitores a produção científica. Adotamos nosso modelo de economia, ao mesmo tempo simbolizado pela expressão e realizado por meio do ato: #DownloadLivre. Utilizamos “livre” em vez de “grátis”, pois o conceito vai além de prescindir o dinheiro: também não exigimos cadastro e não chupamos dados e metadados enquanto o leitor baixa nossos livros. Diversas são as motivações para empregar trabalho, tempo, dinheiro e ocupar amigos que assumiram a ideia para produzir livros que custam dinheiro, mas que não são vendidos aos leitores, são distribuídos pela Internet. Uma é que a ideia não é nova, somos tributários do Fanzine Ao Vivo, produzido por mim nos anos 1990 e distribuído também em suas versões impressas e digitais. Outra é abrir um canal para que levar aos estudiosos a produção acadêmica dos alunos e professores das universidades públicas. Acreditamos ser esta uma maneira de devolver em produção o investimento da sociedade em comunidades acadêmicas. E que venham novos autores e novos leitores! Gilberto Medeiros, Editor

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