A LITERATURA É PARA SER LIDA

June 2, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Literary Theory
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A LITERATURA É PARA SER LIDA



Cunha e Silva Filho



Um ex-professor professor meu de literatura, A. Tito Filho (1924-
1992) no velho Liceu Piauiense (no meu tempo se chamava Colégio Estadual
"Zacarias Góis), nome respeitado e admirado do magistério, do
jornalismo, da boêmia literária, uma vez me levando, em sua Rural
Willlis, para casa de volta de um encontro, em lugar aprazível, se não
me engano, num sítio de um amigo comum de intelectuais e professores,
incluindo meu pai, me dissera:"Leia primeiro os autores, depois
complemente com a teoria. Só terá a lucrar com isso."
Essa recomendação, dirigida sobretudo a jovens, enfatizava a grande
importância da leitura intensiva e extensiva. Tal declaração do meu
professor aproveitei para citar no meu livro para estudantes de Letras,
Breve introdução ao curso de Letras: uma orientação (Litteris Editora;
Quártica, Rio de Janeiro, 2009, 120 p).
A sugestão inteligente de A. Tito Filho é ainda atualíssima, e assim
será sempre. Contudo, deve ser entendida, a meu ver, nos seguintes
termos: a leitura deve ser intensa e extensa, conforme assinalei acima,
mas acompanhada simultaneamente das leituras da teoria literária, com a
leitura dos críticos e ensaístas. Ela se põe, assim, num tripé, ou seja,
autor + leitor + teoria. Naturalmente, me estou referindo a alunos que
se destinem aos estudos literários, conquanto reconheça que leitores há
que gostam também de ler sobre o que teóricos e críticos pensam acerca de
ficcionistas, poetas, dramaturgos, cineastas, artistas em geral. O que
não deve acontecer é a hipertrofia, o excesso de leituras teóricas que
dizem mais respeito a acadêmicos das áreas das ciências humanas.ou até
científicas, pois conheço pessoas que, sendo engenheiros, ou mesmo
acadêmicos de engenharia ou de outras áreas tecnocientíficas, valorizam
a literatura, a linguística etc. Tanto é verdade que, no passado e no
presente, escritores existem que se graduaram em áreas não correlatas às
humanidades.
O que eu chamaria de leitura da perda da inocência não deve ser
entendido como aquela destinada ao divertimento, às horas ociosas do
leitor comum ou do leitor de bestsellers. Essa leitura, assim
especificada, seria a leitura dos estudantes de Letras, dos
professores de literatura, dos teóricos e ensaístas, do espaço
universitário.
Ao ser introduzido às noções de teoria literária que, em geral,
começam nas últimas séries do ensino fundamental e se complementam, em
nível intermediário, no ensino médio, o estudante das disciplinas língua
portuguesa e literatura luso-brasileira, ao ler ficção e poesia já vai se
familiarizando com a terminologia ou os elementos de teoria literária
que lhe propiciará entender a literatura como um refinamento da
linguagem, chamada lingua literária, diferente da linguagem da
comunicação ou das referencialidades ligadas à realidade empírica.
Se, por acaso, fosse um leitor que, por conta própria, gostasse
de ler ficção ou poesia ou as duas coisas, aí se depararia com aquela
leitura não contaminada pela perda da inocência, o que seria puramente um
leitor que, de uma forma ou de outra, também fruiria o prazer de ler
uma história e com ela se emocionar. Sentiria o prazer estético ainda que
num nível compatível com a sua instrução. .
Ao contrário, o estudante, instrumentalizado com as noções de
teoria literária, e notadamente, o estudantes que ingressa nos cursos de
Letras, aos poucos irá se desapegando da leitura ingênua, destituída
interferências crescentes metaficcionais. Iniciará uma nova etapa de
aquisição de um arsenal teórico tanto no campo da teoria literária quanto
no da linguística.
Ou seja, essa absorção fará parte de seu repertório de
conhecimentos mais profundos do fenômeno literário, gramatical,
filológico e linguístico, somados ao conhecimento de outras áreas
humanas, como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a história, a
política, a economia. Se já graduado em Letras, passará a conviver
profissionalmente com dois processos de intelectualização contínua dos
quais não mais se apartará. Se pender para a linguística, a gramática, a
filologia, a análise do discurso, a linguística textual, todo esse
background específico estará intimamente relacionado à sua vida
mental, seja pela dimensão da metaliteratura, seja pela dimensão da
metalinguística ou, em muitos caso, por ambas.
Por fim, a sua formação, no campo das ciências humanas, ainda
será invadida por outras disciplinas ou saberes dada a transversalidade
em que se encontram os estudos contemporâneos, com as fronteiras do
conhecimento intercambiáveis. O seu espectro de conhecimentos convocados
aos novos comportamentos exigidos pelos estudos do estudante e do
profissional acadêmico demandará outros campos epistemológicos, nas
disciplinas da psicanálise, da música, das artes em geral, da
antropologia e mesmo das ciências estatísticas, computacionais. Mutatis
mutandi, seria, a grosso modo, um "neoenciclopedismo" da modernidade
célere e em bases transnacionais.
Ora, todas essas transformações operadas no seio das literatura e
de terrenos do conhecimento correlatos ou não correlatos, por sua vez,
tornaram muito mais complexos e mais exigentes para os novos tempos
atravessados pela era digital e pelo mundo virtual.
Os antigos compartimentos estanques dos saberes já estão sepultados
e com eles sofreram inflexão algumas áreas humanas, como, por exemplo, a
filologia, os estudos clássicos, com repercussão nos grandes centros
europeus e nas formulações de currículos do ensino médio e superior.
Os docentes dessas disciplinas não desejavam perder seu espaço e
prestígio cultural. A própria sociedade culta, os estudantes se
manifestaram contra as medidas das autoridades educacionais de exclusão
do latim e, se não laboro em erro, também do grego, como, não faz muito
tempo, aconteceu na França.
O Brasil sofreu dessa mesma espécie de aversão das autoridades
educacionais pela abolição da língua latina do ensino fundamental e médio
que se efetivou no início dos anos sessenta do século passado, com a
exclusão do latim do curso ginasial. Eu mesmo, tendo concluído o curso
científico, fiz um inflamado artigo criticando a exclusão do latim
Felizmente, ainda temos, em algumas escolas e cursos de direito pelo
menos, um ou dois semestres, do ensino do latim.
Por outro lado, apesar dos novos tempos globalizados, no tocante à
implantação da interdisciplinaridade professores mais conservadores de
universidades e do curso de Letras, sub-áreas de língua portuguesa e
filologia, ainda veem com certa má vontade (acredito que nem todos) que,
em congressos de língua e filologia, se apresentem trabalhos abordando
temas especificamente literários, ou seja, professores que ainda
insistem na clivagem entre estudos literários e estudos filológicos e
linguístico, o que é desconhecer os avanços dos estudos
interdisciplinares. Felizmente, creio que esses tabus com o tempo serão
superados.Um deles me chegou a fazer um comentário, no mínimo ingênuo, ao
me dizer que os professores de literatura "viajam muito" e se perdem em
especulações interpretativas intermináveis.
Retomando a questão da perda da inocência no que tange à leitura da
imaginação (romance, novela, conto, poesia, drama, teatro escrito) pelo
menos de uma boa notícia já dispomos. Foi exatamente de um ex-
estruturalista famoso, principalmente no auge do estruturalismo, tempo de
minha graduação em Letras, Tzvetan Todorov, que ouvimos uma forma de "mea
culpa" ao afirmar que o excesso de hermetismo teórico afastou os
leitores do "prazer" da leitura.
E acrescento eu, afastou, além de alguns estudantes de Letras,
até pessoas estudiosas no campo da literatura, provocando nelas ojeriza
pelo estruturalismo, pelas análises alicerçadas nessa corrente do
pensamento crítico. O estruturalismo foi atacado por alguns intelectuais
brasileiros, sendo um dos mais ferrenhos o então jovem crítico José
Guilherme Merquior (1940-). O aparato técnico e científico do
estruturalismo seguramente teria dias contados.As cansativas leituras
teóricas estruturalistas, com seus famosos "esquemas fonogramáticos" (de
árvores) ou os esquemas de "parentetização etiquetada," (Eduardo Lopes,
Fundamentos da linguística contemporânea, Cultrix, 1974) tomados aos
avanços na época da linguística. Sucede que, mesmo aos especialistas de
hoje aquelas cansativas visualizações que lembravam as decomposições dos
elementos da química ou funções algébricas, quadros esquemáticos,
estatísticos os especialistas, o estruturalismo dos anos 1970 já não diz
muita coisa.
Suponho tenha sido ele, o estruturalismo aproveitado da antropologia
de Lévi Strauss (1908-2009) e adaptado aos estudos literários, um dos
principais responsáveis pelo perda do antigo prazer de ler e de
escrever sobre literatura.
Críticos literários, com o tempo, encontrariam novas correntes do
pensamento crítico, da Nova crítica defendida por Afrânio Coutinho (1911-
2000) para formas mais abertas e não ortodoxas de estudar e analisar
o fenômeno literário, não necessariamente subordinadas à linguística e
ao vezo de, em vão, submeter a literatura a um formalismo
cintificizante e tecnicista.
Outras vias de abordagens de análise surgiriam, outras mais
aproveitariam o que de positivo encontraram nas diversas correntes
críticas, inclusive no estruturalismo, mas dando maior peso de análise
aos aspectos culturais, sociais e estilísticos da obra literária.
Quer dizer, approaches que dariam conta da análise literária e dos
estudos críticos tendo em consideração que a obra literária, sendo criação
humana, deve proporcionar prazer, emoção, sentimento, humanidade e
elaboração estética fazendo com que o leitor, o crítico e o teórico
sinalizem para a leitura como vida, gosto de ler, encantamento, enfim, um
diálogo constante entre o leitor e o criador no sentido de melhor
compreender os homens e tudo que há à sua volta.
Só pela citação de um pequeno trecho do livro A literatura em
perigo (Rio de Janeiro:DIFFEL,2009, p..25), de Todorov, de quem assisti a
uma conferência nos anos 1970, na Faculdade de Letras da UFRJ, pode o
leitor imaginar uma mudança de atitude diante da obra literária: "Na
escola não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam
os críticos."
Por isso, vejo com certo fundamento a minha referência, no
domínio da literatura de ficção, aquilo que chamei a perda da inocência
tão logo somos envolvidos intelectualmente com o arcabouço teórico
que, em si, é basilar, mas que, não posso negar, nos tira para sempre
a leitura pela leitura, ou seja, o encontro com um mundo de vidas e de
sentimentos, segundo assinalei acima, um pedaço da vida encontrada na
materialidade da palavra escrita. O que posso fazer se a pureza da
leitura se acaba na vida adulta de um estudioso?

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