A literatura fora do lugar na América Latina - três momentos indecisivos (um conto inacabado de Guimarães Rosa, dois textos irremediáveis de Bolaño e a escrita postergada de Macedonio)

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

A LITERATURA FORA DO LUGAR NA AMÉRICA LATINA: TRÊS MOMENTOS INDECISIVOS (UM CONTO INACABADO DE GUIMARÃES ROSA, DOIS TEXTOS IRREMEDIÁVEIS DE BOLAÑO E A ESCRITA POSTERGADA DE MACEDONIO).

Mario René Rodríguez Torres

Tese de Doutorado submetido ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura comparada). Orientador: Prof. Luis Alberto Nogueira Alves.

Rio de Janeiro Abril de 2016

A LITERATURA FORA DO LUGAR NA AMÉRICA LATINA: TRÊS MOMENTOS INDECISIVOS (UM CONTO INACABADO DE GUIMARÃES ROSA, DOIS TEXTOS IRREMEDIÁVEIS DE BOLAÑO E A ESCRITA POSTERGADA DE MACEDONIO). Mario René Rodríguez Torres Orientador Prof. Luis Alberto Nogueira Alves. Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Literatura comparada), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura comparada).

Aprovada por:

Presidente, Prof. Luis Alberto Nogueira Alves (UFRJ)

Prof. Luís Augusto Fischer (UFRGS)

Prof. Víctor Manuel Ramos Lemus (UFRJ)

Prof. Danielle dos Santos Corpas (UFRJ)

Prof. João Camillo Penna (UFRJ)

Rio de Janeiro Abril de 2016

 

Rodríguez Torres, Mario René. A literatura fora do lugar na América Latina: três momentos indecisivos (um conto inacabado de Guimarães Rosa, dois textos irremediáveis de Bolaño e a escrita postergada de Macedonio)/ Mario René Rodríguez Torres. - Rio de Janeiro: UFRJ/ LETRAS, 2016. viii, 247f. Orientador: Luis Alberto Nogueira Alves Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2016. Referências Bibliográficas: f. 232-245. 1. Fim da formação. 2. Ideias fora do lugar. 3. Literatura e Estados nacionais. 4. Guimarães Rosa. 5. Roberto Bolaño. 6. Macedonio Fernández. I. Nogueira Alves, Luis Alberto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura. III. Título.

AGRADECIMENTOS (En portuñol que es mi lengua de afecto): A mi orientador, Luis Alberto Alves, por el incentivo, el apoyo y los amistosos, pero serios debates. A los profesores que aceptaron gentilmente participar de la banca de este trabajo: Luis Augusto Fischer, Victor Lemus, Danielle Corpas y João Camillo Penna. A mis profesores y colegas de la UFRJ, especialmente, Martha Alkimin, Vera Lins, Ary Pimentel, Eduardo Coutinho, Dionisio Márquez, Karen Basaure, Diogo Cavalcanti, Henrique Monnerat. A Fátima y Patricia por la ayuda con las cuestiones burocráticas en la UFRJ. A Erna von der Walde. A los profesores de literatura de la Universidad Nacional de Colombia. A los colegas de apartamento con quienes discutía interdisciplinarmente: Leonardo Bermeo, William Pinto y Kathe Beltrán. A mi orientador de mestrado Marcos Natali y a mis colegas del grupo de estudios de la USP (Fabiana Carneiro, Raquel Parrine, Carolina Correia, Tiago Pinheiro, Virgínia Maciel, Marcelo Souza y Meritxell Hernando), con quienes esta tesis comenzó a gestarse. A los colegas y amigos de la UNILA. A mi familia paulistana: Claudia, Fernardo, Monse y Santiago. A mi familia de Bogotá y de Cúcuta, especialmente, a mi papá, mi mamá y mi hermano. A Adriana Sánchez y Bairon Vélez, por el cálido hospedaje en Floripa y las ricas discusiones. A mi maestro Mauricio Solano. A Olga Lucía Estévez. A Michín y a Naná. A Maya por sobrevivir y ayudarme a sobrevivir a este trabajo y a tantas otras cosas. A todos los demás que debería mencionar y no menciono. Sinceramente, obrigado.

A LITERATURA FORA DO LUGAR NA AMÉRICA LATINA: TRÊS MOMENTOS INDECISIVOS (UM CONTO INACABADO DE GUIMARÃES ROSA, DOIS TEXTOS IRREMEDIÁVEIS DE BOLAÑO E A ESCRITA POSTERGADA DE MACEDONIO). Mario René Rodríguez Torres Orientador Prof. Luis Alberto Nogueira Alves. Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Literatura comparada), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura comparada). Neste trabalho defendemos que não é possível dizer que a literatura é ou alguma vez foi uma ideia no lugar na América Latina. Tal defesa parte da constatação de que não houve formação de Estados nacionais soberanos e inclusivos, e não é mais possível acreditar que haverá; motivo pelo qual falar de uma literatura brasileira ou latinoamericana formada perdeu o sentido. Como consequência, afirmamos que é preciso reler com outra perspectiva os autores que foram considerados o ponto de chegada de um processo formativo. Em um primeiro momento, nos ocuparemos de alguns textos de um deles, Guimarães Rosa, escritor que, entre outras coisas, predisse que para o ano 2000 o colonialismo chegaria ao seu fim na América Latina. Posteriormente iremos analisar o conto “El gaucho insufrible” de Roberto Bolaño, que transcorre na crise da Argentina de 2001, um dos acontecimentos que desmentiram a previsão de Rosa. A análise do conto será seguida da do ensaio “Literatura + enfermedad = enfermedad”. Estes textos nos permitirão indagar sobre o significado de escrever “literatura” desde a “América Latina” em tempos sem perspectiva formativa. Renunciando intencionalmente a linearidade histórica, a tese termina com um estudo de Macedonio Fernández, cujos escritos não tem como horizonte a formação de uma literatura nem de um Estado nacional, mas sua histerização e suspensão. Com a análise dos autores citados tentaremos mostrar que se já não é mais possível acreditar em um fim formativo nos velhos termos, também não é possível simplesmente deixar de falar de literatura e da América Latina, nem de reivindicar uma formação global e local menos assimétrica. Palavras-chave: Fim da formação; Ideias fora do lugar; literatura e Estados nacionais; Guimarães Rosa; Roberto Bolaño; Macedonio Fernández.

LA LITERATURA FUERA DE LUGAR E N AMÉRICA LATINA: TRES MOMENTOS INDECISIVOS (UN CUENTO INACABADO DE GUIMARÃES ROSA, DOS TEXTOS IRREMEDIABLES DE BOLAÑO Y LA ESCRITURA POSTERGADA DE MACEDONIO). Mario René Rodríguez Torres Orientador Prof. Luis Alberto Nogueira Alves. Resumen da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Literatura comparada), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura comparada). En este trabajo defendemos que no es posible decir que la literatura es o alguna vez fue una idea en su lugar en América Latina. Tal defensa parte de la constatación de que no se dio la formación de Estados nacionales soberanos e inclusivos, y no es más posible creer que se dará; por este motivo, hablar de una literatura brasileña o latinoamericana formada dejó de tener sentido. En consecuencia, afirmamos que es necesario releer con otra perspectiva los autores que fueron considerados punto de llegada de un proceso formativo. En un primer momento, nos ocuparemos de algunos textos de uno de ellos, Guimarães Rosa, escritor que, entre otras cosas, predijo que para el año 2000 el colonialismo habría llegado a su fin en América Latina. Posteriormente, analizaremos el cuento “El gaucho insufrible” de Roberto Bolaño, que transcurre en la crisis argentina de 2001, uno de los acontecimientos que desmintieron la previsión de Rosa. Nuestra lectura del cuento será seguida de una del ensayo “Literatura + enfermedad = enfermedad”. Estos textos nos permitirán indagar sobre el significado de escribir “literatura” desde “América Latina” en tiempos sin perspectiva formativa. Renunciando intencionalmente a la linealidad histórica, esta tesis termina con un estudio de Macedonio Fernández, cuyos escritos no tienen como horizonte la formación de una literatura ni de un Estado nacional, sino su histerización y suspensión. Con el análisis de los autores citados intentaremos mostrar que si ya no es más posible creer en un fin formativo en los viejos términos, tampoco es posible simplemente dejar de hablar de literatura y de América Latina, ni de reivindicar una formación global y local menos asimétrica. Palabras clave: Fin de la formación; Ideas fuera de lugar; literatura y Estados nacionales; Guimarães Rosa; Roberto Bolaño; Macedonio Fernández.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................9 1. AINDA HÁ LUGAR PARA AS “IDEIAS FORA DO LUGAR”? ............................16 1.1. Um mundo muito misturado .............................................................................16 1.2. “As ideias fora do lugar” em seu lugar – contextualizando ..............................17 1.3. Ideias sempre no lugar e nunca no lugar versus “ideias fora do lugar” ...........20 1.4. O mundo, esse lugar tão brasileiro ...................................................................27 1.5. Parêntese: os índios e o fora do lugar da nação.................................................29 1.6. Um mundo ilimitadamente malandro (retomando) ..........................................39 1.7. Os críticos sem literatura, uma vez mais - De Machado a Caetano ..................46 1.8. A fixidez dos trânsitos: da ditadura à democracia e dos estudos literários aos estudos culturais ......................................................................................................52 1.9. O escritor confinado: o caso de Luiz Alberto Mendes .....................................56 1.10. A multiplicação das periferias .........................................................................60 1.11. As ideias fora do lugar como crítica da formação e o fora do lugar da literatura ...................................................................................................................63 2. FORMAS E DEFORMAÇÕES EM GUIMARÃES ROSA .......................................68 2.1. Um continente destinado à literatura: as profecias de Guimarães Rosa e Castro Alves.........................................................................................................................68 2.2. A formação em dois tempos. Antonio Candido e o cult(iv)o das letras............72 2.3. Guimarães Rosa, o letrado de dois gumes e a modernização do sertão ...........87 2.4. “Páramo”, um conto de (de)formação ............................................................101 3. ROBERTO BOLAÑO E A IRREMEDIÁVEL LITERATURA LATINOAMERICANA. ..............................................................................................................134 3.1. A culpa Argentina e latino-americana no “El gaucho insufrible”. ..................134 3.2. Naipaul e o insofrível da história ....................................................................159 3.3. A literatura entre o tédio e o horror ................................................................166 3.4. Pequeno verbete sobre o conceito de literatura ..............................................179 3.5. Josefina a cantora e as duvidosas benesses da autonomia artística .................182 3.6. A literatura e o irremediável ...........................................................................184 4. O COMPLÔ LITERÁRIO-ESTATAL DE MACEDONIO FERNÁNDEZ. ............188 4.1. Macedonio depois de tudo...............................................................................188

4.2. O projeto literário-político da campanha presidencial ....................................190 4.3. Histerizar a literatura e o Estado .....................................................................201 4.4. O complô do último romance ruim e do primeiro bom ..................................206 4.5. Um comunismo literário anacrônico? .............................................................221 4.6. O desvio latino-americano e os limites do complô macedoniano ..................224 CONCLUSÕES .............................................................................................................230 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................232

INTRODUÇÃO Nas últimas décadas é comum encontrar expressões de desconforto com denominações como “literatura brasileira” e “literatura latino-americana”. Escritores e críticos manifestam seu ceticismo de que exista algo que possa ser chamado dessa forma. Autores como Ricardo Piglia, Jorge Volpi, Martín Caparrós e Bernardo Carvalho, entre outros, tem feito esse questionamento, mesmo que com argumentos diferentes1. Sem querer negar o que há de novidade na situação, é o caso de apontar que a impressão de desajuste que causa o encontro desses nomes, “literatura” e “Brasil” ou “literatura” e “América Latina”, não é nova. Pelo contrário, é algo que retorna depois de um tempo em que o mal-estar parecia superado. Já em outros momentos foi comum sentir que não se podia falar da existência de uma literatura latino-americana, ainda que por motivos diferentes. Antes, a sensação era de que no Brasil e no resto da América Latina não se produzia verdadeira literatura. Hoje, pelo contrário, o problema não seria a literatura, que poucos duvidam que se produza verdadeiramente, mas que exista um aqui Brasil ou América Latina que imprima sua marca nela. Assim como antes a sensação de falta de uma literatura levava a questionamentos sobre os países da América Latina – que tipo de países eram esses que não tinham uma literatura digna do nome? –, hoje o questionamento sobre o caráter não determinante de escrever em um contexto brasileiro ou latino-americano leva a um questionamento sobre a literatura – que tipo de literatura é essa que se diz livre de determinações nacionais?

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Ver a respeito o artigo “Y finalmente, ¿existe una literatura latinoamericana?” de Jorge Fornet, e as reportagens “No existe literatura latinoamericana”, sobre Martín Caparrós, e “Não existe literatura nacional”, sobre Bernardo Carvalho. O artigo de Fornet está disponível em http://www.lajiribilla.co.cu/2007/n318_06/318_01.html; a reportagem sobre Caparros em http://www.eltiempo.com/archivo/documento/MAM-3208559; e a reportagem sobre Carvalho em: http://br.rfi.fr/geral/20150320-nao-existe-literatura-nacional-afirma-bernardo-carvalho-no-salao-do-livrode-paris. Última consulta 22 de fevereiro de 2016.

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É claro que a literatura pode e deve ser pensada desde outros lugares, o que, aliás, nos leva a pensar em outras formas de literatura (e para além dela). Estas sem dúvida são tarefas necessárias que vem sendo levadas a cabo nas últimas décadas; todavia, dispensariam elas a necessidade de pensar nesse outro marco ou dessa outra forma de relação, a da literatura e o Estado nacional? Se pode deixar de lado o Estado nacional mesmo que continue ele estando aí, e de que sua história seja indissociável da história da literatura no continente (ou o que veio a ser entendido por esta)? Talvez para poder deixar toda essa história para trás, seja preciso insistir em revê-la. O que quer dizer rever por que esses termos – “literatura” e “Brasil” ou “América-latina” – parecem hoje que nunca chegaram verdadeiramente a se encaixar. É a esse desencaixamento que o título desse trabalho faz referência: a literatura fora do lugar na América Latina. Como é evidente, nele se alude a Roberto Schwarz cujas reflexões sobre o que chamou de “ideias fora do lugar” nos parecem um bom ponto de partida para falar do desajuste referido. Partir de Schwarz significa tomá-lo como fundamento, mas igualmente se desprender dele, se movimentar em uma direção em que ele não vai, mas na qual possibilita pensar, como se verá no primeiro capítulo deste trabalho. Por enquanto, basta apontar que ao se falar de literatura fora do lugar na América Latina, não se quer dar a entender que a literatura esteja plenamente no seu lugar em alguma outra parte. Do mesmo modo que Schwarz pontua ao falar de ideias fora do lugar, este trabalho não tem a pretensão de dar um lugar às ideias, mas de nomear uma experiência de desajuste que se vivencia de maneira particular nesta parte do continente, devido ao papel que lhe coube na história da universalização do capitalismo. Como se verá, ao falar em ideias fora do lugar, Schwarz nomeava uma experiência comum no Brasil resultante do fato de que a passagem que levou o país da 10

situação de colônia à república independente não significou o estabelecimento de uma nova ordem, mas um rearranjo da ordem colonial. Rearranjo que se repetiria a cada novo ciclo de modernização. A continuidade dessa ordem, que desmente as promessas modernas de igualdade e autonomia com as quais convive, estaria na origem da sensação de ideias fora do lugar. E, como veremos, só da superação das desigualdades e desequilíbrios de matriz colonial caberia esperar o fim da sensação. Como é sabido, houve um tempo em que se pensava que a referida superação se daria via a formação de um Estado nacional verdadeiramente moderno, soberano e inclusivo. Neste processo de formação a literatura teria um papel fundamental, como espaço privilegiado para refletir (espelhar e pensar) o país. Quando Antonio Candido escreve, na introdução de seu clássico Formação da literatura brasileira, “comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca” (2000a, p. 10), o faz pensando que a literatura não deixava de ser um reflexo do Brasil, que comparado aos países grandes, era pobre e fraco. A nossa fraca literatura espelhava os nossos fracos Estados nacionais2, mas por isso mesmo ela seria digna de atenção. A literatura ofereceria ao Brasil uma imagem de si mesmo, permitindo-lhe pensar sobre suas limitações e possibilidades. Daí que Candido termine sua frase sobre a “pobre e fraca” literatura brasileira acrescentando: “mas ela, não outra, que nos exprime” (p. 10). Aliás, o que mostra Candido no seu livro é que dessa pobreza e fraqueza podia resultar algo como Machado de Assis, um equivalente local do melhor da literatura mundial, e por isso prova de que se podia ser moderno nos próprios termos. Partindo

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Na América hispânica, José Carlos Mariátegui exprime uma visão semelhante na sua resenha, de 1929, do livro Seis ensayos en busca de nuestra expresión de Pedro Henríquez Ureña, onde aponta que “el arte y la literatura no florecen en sociedades larvadas o inorgánicas, oprimidas por los más elementales y angustiosos problemas de crecimiento y estabilización” (2016, p. 2011), como seriam os nossos países.

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desta leitura, Schwarz dirá posteriormente que Machado de Assis achou uma forma3 ajustada para os desajustes do Brasil, oferecendo ao país uma imagem de sua figura vergonhosa, mas também do que ele era capaz de produzir. Na perspectiva do livro de Candido, a culminação do processo formativo da literatura brasileira é um fato fundamental na constituição do país, e não por acaso chama atenção para ele no final da década de 50. Então as condições pareciam dadas para que o Brasil se encaminhasse na direção de constituir, finalmente, uma nação moderna, inclusiva e soberana. Esse panorama esperançoso não tardaria em mudar, mas o tom otimista ainda se manterá por alguns anos a nível nacional e latino-americano. Prova disto é o ensaio “literatura e subdesenvolvimento”, em que Candido reformula alguns de seus argumentos da Formação da literatura brasileira em chave continental. Como é sabido, nas décadas de 60 e 70, se produz o chamado boom narrativo, que levou à sensação geral de que a literatura finalmente estava no seu lugar na América Latina e, mais ainda, que a literatura tinha se mudado definitivamente para esta parte do continente. Nesse momento o sucesso literário pareceu anunciar o sucesso de nossos países, que estariam prestes a superar as desigualdades e desequilíbrios de matriz colonial, e a ocupar um novo lugar na ordem mundial. Esse anúncio do iminente fim da formação resultou certo, mas às avessas, posto que os anos vindouros fizeram impossível acreditar que alguma vez se daria a culminação de um processo formativo estatal nacional nos termos pensados. Essa impossibilidade será produto das novas condições do capitalismo mundial, mas também dos crescentes questionamentos que foram lançados à literatura e aos Estados nacionais desde diferentes lugares – entre eles novas disciplinas, como os 3

É preciso não perder de vista a proximidade semântica das palavras “forma” e “ideia”. Ambas podem funcionar como sinônimos de “modelo”. “Formas fora do lugar” e “modelos fora do lugar” são variantes possíveis da expressão “ideias fora do lugar”.

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estudos culturais e os estudos subalternos. Questionamentos que apontavam que nem a literatura nem os Estados nacionais ofereciam verdadeiras alternativas para as desigualdades de matriz colonial dado que eles próprios, na sua formação, reproduziam essas desigualdades. Como resultado, desde pelo menos o final da década de 80 parecerá necessário pensar para além da literatura – em sentido tradicional – e do Estado nacional (ainda que isso nem sempre signifique, como veremos, pensar para além da lógica do capitalismo globalizado)4. Se a importância de continuar aprofundando essa tarefa está fora de dúvida, isso não quer dizer que pensar no Estado nacional e na literatura tenha passado a ser irrelevante, posto que, como se disse no começo, nem um nem outra deixaram de existir. Claro que o fato de que a perspectiva da formação tenha desaparecido do horizonte obriga a pensar neles de outra maneira. Haveria, por exemplo, que voltar aos chamados momentos decisivos e ver o que neles havia de indecisivo, ou seja, o que neles não encontrava – nem iria encontrar – uma forma. Hoje é preciso atentar para aquilo que faz sentir o que pareciam as formas mais ajustadas da literatura latino-americana não completamente justas. Isto é o que acontece, por exemplo, quando olhamos para Machado de Assis desde uma perspectiva que leva em consideração os indígenas. O objetivo disso não é, claro, rebaixar as obras de Machado ou de qualquer outro escritor, mas reformular a demanda de uma forma, posto que o que chamamos “fim da formação”, não implica uma resignação diante da (des)ordem existente. Pelo contrário, a demanda por outras formas resulta mais necessária do que nunca em uma época em que o capitalismo global se apresenta como a forma última do mundo. É por isso que defendemos, no primeiro capítulo deste

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Essa história, obviamente, não deixa de ter suas idas e vindas. Por exemplo, com os chamados governos progressistas, que favoreceram políticas de inclusão social, toda uma serie de esperanças ao redor do Estado nação foram reativadas, as quais, contudo, hoje voltam a minguar. Sobre este ponto, voltaremos no primeiro capítulo.

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trabalho, que ainda faz sentido falar em “ideias fora do lugar”, ainda que não exatamente da mesma maneira que antes. O segundo capítulo está dedicado a Guimarães Rosa, um escritor que faz parte do momento decisivo em que a literatura pareceu finalmente uma ideia no lugar na América Latina. Uma impressão compartilhada pelo próprio escritor mineiro que em 1965 previu que, para o ano 2000, a literatura mundial estaria “orientada para a América Latina” e o colonialismo teria chegado a seu fim. Nosso segundo capítulo começa com uma revisão crítica dessa história de formação bem-sucedida, que hoje não é mais possível ler assim. Posteriormente, iremos nos ater a Grande sertão: veredas, para problematizar a forma como essa obra tem sido frequentemente interpretada, ou seja, como uma síntese exemplar entre o tradicional e o moderno, o local e o universal. Finalmente empreendemos uma análise de “Páramo”, um conto de formação – espécie de mini-bildungsroman – que o escritor não chegou a concluir. Nosso objetivo será mostrar que se esse conto resulta digno de maior atenção hoje é porque nele os conflitos narrados não chegam a encontrar uma forma adequada, impossibilitando o tipo de leitura que frequentemente se faz das obras do autor. Ou seja, o interessante do conto residiria justamente naquilo que fez com que se prestasse escassa atenção nele até pouco tempo atrás. Como é sabido, para o ano 2000, os países da América Latina não tinham superado o colonialismo – como previsto por Rosa –, mas se encontravam esfacelados como consequência de anos de políticas neoliberais. O terceiro capítulo começa com uma análise de um conto que transcorre nesse momento, concretamente, na crise da Argentina de 2001. Trata-se de “El gaucho insufrible” de Roberto Bolaño, cuja análise será seguida da do ensaio “Literatura + enfermedad = enfermedad”. Estes textos nos permitirão indagar sobre o significado de escrever “literatura” desde a “América Latina” 14

em tempos sem perspectiva formativa. Como se verá, os dois termos são irrecusáveis para Bolaño, mas ele já não vincula nenhum tipo de esperança a eles. O que se formou sob esses nomes, antes do que algo que porta alguma esperança, é visto como um mal para o qual não haveria remédio a não ser sondar até o limite. Apesar de esboçar certo panorama histórico, e do esforço por pensar historicamente, este trabalho não pretende ser uma história de um período da literatura latino-americana, e ainda menos traçar uma linha evolutiva desta. Por isso o último capítulo não está dedicado a um escritor posterior a Bolaño, mas que começou a escrever bem antes de Guimarães Rosa: Macedonio Fernández. Como se verá, já em Macedonio não havia perspectiva formativa. Para ele não era preciso se esforçar na construção de uma literatura e um Estado nacional, mas na sua desconstrução ou, em termos mais macedonianos, na sua histerização. Algo a que, por outra parte, só se poderia chegar tomando conta da literatura e do Estado nacional. Se escolhemos terminar com Macedonio é porque em suas obras, bem como nas analisadas nos capítulos anteriores, os impasses da forma – a da literatura e a dos Estados nacionais na América Latina – aparecem como uma questão central. Impasses sobre os quais, insistimos, é preciso repensar numa época em que se já não é mais possível acreditar em um fim formativo nos velhos termos, também não é possível simplesmente deixar de falar de literatura e da América Latina, nem de reivindicar uma formação global e local menos assimétrica.

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1. AINDA HÁ LUGAR PARA AS “IDEIAS FORA DO LUGAR”? 1.1. Um mundo muito misturado Parte do título desta tese faz referência a uma sensação que parece anacrônica, aquela que Roberto Schwarz denominou de “ideias fora do lugar”; isto é, a sensação de que no Brasil e no continente, “nossas ideias, em particular as adiantadas, não correspondem à realidade local” (2012, p. 166). Em uma época de intensos fluxos de todo tipo, é difícil pensar que alguém ainda sinta realmente “estranheza”, “artificialidade” ou “mal-estar” ao encontrar esta ou aquela ideia por cá ou por lá. Os exemplos são muitos. Um deles é o do DJ Masa, Carlos Henrique Brandão, que trabalha, no Brasil, com músicas pops coreanas (k-pop). O Dj Masa começou a se interessar pelo pop oriental na adolescência (na primeira metade da década de 2000), assistindo animações japonesas pela TV aberta, em uma cidade no interior do Maranhão. Passou então, como amador, a misturar imagens e sons de vídeos de músicas de pop oriental que achava na internet e cujo resultado (os mashups) ele também colocava em linha. Os mashups de Carlos Henrique começaram a ser assistidos por milhares de pessoas do Oriente e da Europa, motivo pelo qual ele terminou sendo convidado para ir a esses lugares5. O trânsito do pop coreano do Oriente para o Maranhão e do Maranhão para a Europa e o Oriente de novo pode ser chamativo, mas não transmite uma sensação de falsidade ou incompatibilidade – para ninguém é realmente absurdo produzir k-pop no Maranhão. Fenômenos como este, que antes chamaríamos disparatados, porque conjugam elementos que parecem incompatíveis, já não são visíveis apenas na periferia do capitalismo. Um exemplo ainda do âmbito da música k-pop é o do vídeo alternativo de 5

No Youtube está disponível uma entrevista em que o DJ Masa conta os fatos mencionados: http://www.youtube.com/watch?v=V9gTH1e0LYY. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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“Gnam Style” filmado em MIT, e que contou com a participação de alguns professores da prestigiada instituição, entre eles, Noam Chomsky6. Mas consideremos os âmbitos e momentos a que se refere o ensaio de Schwarz. 1.2. “As ideias fora do lugar” em seu lugar – contextualizando Como é sabido, o texto foi publicado em português em 1973, na revista Estudos do Cebrap, tendo sido publicado anteriormente em francês, em 1972, com o título “Dépendance nationale, déplacement d'idéologies, littérature”, na revista “L’Homme et la société”. O texto faz parte da tese de doutorado de Schwarz na Universidade Paris III; tese que logo se converterá no livro Ao vencedor as batatas. O crítico tinha ido para a França, em 1968, como consequência do recrudescimento da ditadura civil-militar, da que faz a seguinte avaliação em 1970, no seu ensaio “Cultura e política, 1964-1969”: Enquanto na fase Goulart a modernização passaria pelas relações de propriedade e poder, e pela ideologia, que deveriam ceder à pressão das massas e das necessidades do desenvolvimento nacional, o golpe de 64 – um dos momentos cruciais da Guerra Fria – firmou-se pela derrota deste movimento, através da mobilização e confirmação, entre outras, das formas tradicionais e localistas de poder. Assim a integração imperialista, que em seguida modernizou para seus propósitos a economia do país, revive e tonifica a parte do arcaísmo ideológico e político de que necessita para a sua estabilidade. De obstáculo e resíduo, o arcaísmo passa a instrumento internacional da opressão mais moderna, como aliás a modernização, de libertadora e nacional passa à forma de submissão (2008, p. 73-74).

Com a ditadura, o Brasil entraria numa nova fase de modernização conservadora, que confirmaria a tese central da teoria da dependência: o chamado subdesenvolvimento não é algo destinado a desaparecer com o tempo, quando todos os países ou regiões atingirem o desenvolvimento dos países centrais do capitalismo, porque o subdesenvolvimento (o atraso contra o qual se define a modernização, e que esta última promete acabar) é funcional ao sistema e criado por ele. Em outras palavras o subdesenvolvimento sempre é reposto e por isso a modernidade nunca se faz

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O video pode ser visualizado no site: https://www.youtube.com/watch?v=lJtHNEDnrnY. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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completamente presente. Para Schwarz, nessa circunstância o convívio de elementos “novos” e “arcaicos” vira emblemático de países como o Brasil: A coexistência do antigo e do novo é um fato geral (e sempre sugestivo) de todas as sociedades capitalistas e de muitas outras também. Entretanto, para os países colonizados e depois subdesenvolvidos, ela é central e tem força de emblema. Isto porque estes países foram incorporados ao mercado mundial – ao mundo moderno – na qualidade de econômica e socialmente atrasados, de fornecedores de matéria prima e trabalho barato. A sua ligação ao novo se faz através, estruturalmente através de seu atraso social, que se reproduz em lugar de se extinguir. Na composição insolúvel mas funcional dos dois termos, portanto, está figurado um destino nacional, que dura desde os inícios. (p. 77).

Nesses inícios se debruça Schwarz em “As ideias fora do lugar” e, em geral, em Ao vencedor as batatas. Sua intenção não é a simples reconstrução histórica, mas tentar entender essa “figura” emblemática do Brasil ainda vigente no final da década de 60 e começos de 70. Seu comentário sobre Alencar é claro a respeito: “Estamos diante duma figura inicial daquela modernização conservadora cuja história ainda hoje não acabou” (2000, p. 71). A “figura” é definida em relação a Alencar como a “adesão simultânea a termos inteiramente heterogêneos, incompatíveis quanto aos princípios — e harmonizados na prática de nosso ‘paternalismo esclarecido’” (p. 70-71). Alencar combina uma forma europeia burguesa – o romance – e as formas de socialização locais não burguesas; combinação que pode ser englobada dentro dos desajustes que produz a presença das ideias liberais no Brasil escravocrata. Estes últimos são o eixo de “As ideias fora de lugar”, primeiro capítulo de Ao vencedor as batatas. Schwarz formula neste ensaio que os desajustes que definem o Brasil são o resultado da “falta de transparência social, imposta pelo nexo colonial e pela dependência que veio continuá-lo” (29). Uma e outra obrigam o país a adotar ideias e expressões culturais das metrópoles, apesar das diferenças da realidade local. Só que

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enquanto na colônia tal adoção podia ser vista como normal – pelas elites –, na independência passa a ser um problema7. Assim, com a independência, o Brasil adota “a ideologia liberal, que era a das jovens nações”, embora não tenha passado pelas revoluções sociais que modelaram essa ideologia na Europa. Aqui se mantinham as relações produtivo-sociais da colônia, ainda funcionais ao mercado mundial. Isto é, o país adotou as ideias liberais europeias sem mudar sua “relação produtiva fundamental”: a escravidão (p. 15). Como consequência, no Brasil as ideias liberais, que chocam com a realidade local, fazem “um movimento” particular, uma singular “harmonização”, que se manifesta não nas relações entre proprietários e escravos (explorados e silenciados à força), mas entre os primeiros e os homens-livres. Para Schwarz – que segue neste ponto as observações de Maria Sylvia Carvalho Franco em Homens livres na sociedade escravocrata – a relação ente o proprietário e homem livre (“na verdade dependente” [p. 16]) está mediada pelo favor. Este é tão incompatível com as ideias liberais como a escravidão, mas “as absorve e desloca, originando um padrão, particular” (p. 17). Assim, as ideias liberais, que deviam levar a uma crítica do favor, lhe servem de sustento ou, mais exatamente, de “aparente” sustento: dão-lhe uma “aparência” de relação racional e moderna. Com ironia, o crítico assinala que essa foi frequentemente a função dos argumentos “ilustrados” no Brasil:

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Em “Nacional por subtração” (1986) essa mesma ideia é formulada assim: “Digamos, esquematizando ao extremo, que na situação colonial o letrado é solidário da metrópole, da tradição do Ocidente e também de seus confrades, mas não da população local. Nestas circunstâncias, o cultivo do padrão metropolitano e o afastamento cultural em relação ao meio não aparecem como deficiência, até pelo contrário […]. Portanto a cópia não nasceu com a abertura dos portos e a Independência, como queria Sílvio [Romero], mas é verdade que só a partir daí ela se torna o insolúvel problema que até hoje se discute e que solicita termos como macaqueação, arremedo ou pastiche” (2002, p. 42). Nesse sentido, ainda que muito menos rico em sugestões, o título em francês, que antecedeu o de “ideias fora de lugar”, assinalava com maior clareza as questões que interessavam a Schwarz: “Dépendance nationale, déplacement d'idéologies, littérature”.

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servir como ferramenta para dar “lustre” (p. 18), como “marca de fidalguia” (p. 19) que fazia parecer distinguido e moderno. No Brasil da época, portanto no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente o que a burguesia europeia tinha elaborado contra arbítrio e escravidão; enquanto na prática, geralmente dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos e as noções em que implica (p. 18).

Por devir da harmonização de termos “heterogêneos”, “incompatíveis”, a figura resultante – a razão ilustrada a serviço do favor, ideias liberais em uma sociedade escravocrata – criaria a sensação de disparate, desproporção, artificialidade, de “ideias fora do lugar”. Uma sensação que acompanharia ao Brasil desde seus começos até o presente – no caso, 1973, a ditadura militar – dado que as ideias se transformariam e (mal ou bem) modernizariam sem que as relações sociais locais mudassem significativamente8. A sensação de fora do lugar seria, por isso, sintomática de um problema fundacional e ainda irresoluto do país9. 1.3. Ideias sempre no lugar e nunca no lugar versus “ideias fora do lugar” A interpretação proposta por Schwarz tem sido muito influente, mas também muito criticada. Em entrevista aparecida pouco tempo depois de “As ideias fora do lugar”, Maria Sylvia Carvalho Franco disse que não se pode falar de “ideias fora do lugar” porque não faz sentido dizer que no Brasil as ideias e razões europeias foram “adotadas sofregamente para nada” (p. 62), como dá a entender a afirmação de 8

“Consolidada por seu grande papel no mercado internacional, e mais tarde na política interna, a combinação de latifúndio e trabalho compulsório atravessou impávida a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República, e hoje mesmo é matéria de controvérsia e tiros” (p. 25). 9 Irresoluto até então, mas não só. Um exemplo de que a questão reaparece posteriormente o oferece o artigo “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, de 1983, em que Schwarz observa: “A nossa realidade sociológica não parava de colocar lado a lado os traços burguês e pré-burguês, em configurações incontáveis, e até hoje não há como sair de casa sem dar com elas” (2002, p. 13). Mais para frente, neste trabalho, veremos declarações mais recentes que insistem na vigência – ainda que sob novas configurações – do assunto.

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incompatibilidade das ideias liberais com o favor e a escravidão. Segundo a socióloga, antes do que imposto de fora, o ideário liberal burguês aparece no Brasil porque se ajusta à estrutura social e política do país, que forma parte do sistema capitalista. O exemplo central de Maria Sylvia é o conceito de igualdade que “emergiu no processo de dominação socioeconômica vinculado ao conceito de propriedade e por essa muito forte razão cumpre aqui, como lá fora, sua função prática de encobrir e inverter as coisas” (p. 63). Alfredo Bosi, o crítico que possivelmente mais tem debatido com Schwarz a respeito de “As ideias fora do lugar”, mantem uma posição semelhante à de Maria Sylvia Carvalho Franco. Para Bosi “a ideologia liberal foi hegemônica em todo o Ocidente na primeira metade do século XIX, massacrando tanto o trabalhador escravo das colônias e ex-colônias como o trabalhador assalariado nos países em vias de industrialização” (2010, p. 400n). Ou seja, Bosi, como Maria Sylvia, considera que cá e lá as ideais cumprem uma função e por isso é inapropriado falar de “ideias fora do lugar”. Em capítulos de Dialética da ilustração e de Ideologia e contraideologia, Bosi se propõe mostrar isso, insistindo que as ideias liberais foram tão (in)coerentes no Brasil (e outras ex-colônias) quanto na Europa. Para o crítico, no Brasil não haveria incoerência porque da ideologia europeia “filtrou-se tão somente o que convinha às práticas da dominação local” (1996, p. 213). Enquanto a Europa, Bosi mostra que lá também houve pensadores liberais que defenderam a escravidão em nome do direito de propriedade e lembra fatos como o restabelecimento da escravidão nas colônias por parte de Napoleão. Se para Maria Sylvia Carvalho Franco e Alfredo Bosi as ideias sempre estão no lugar, afirmar o contrário também é possível, isto é, que as ideias nunca estão no seu lugar. Essa crítica está implícita, nos seguintes comentários de Raúl Antelo sobre o uso 21

que faz Schwarz dos termos “disparate” e “sem sentido” em “Cultura e política, 19641969”:

para que algo sea el singular absoluto o, en palabras de Roberto Schwarz, el disparate patafísico, es decir, algo radicalmente sin sentido, como él, por ejemplo, afirma en relación al Tropicalismo, es necesario, no obstante, como condición de su posibilidad, afirmar la existencia contrastante, siempre y en todo lugar, de un sentido pleno, cuando sabemos muy bien que la ausencia de sentido deriva del sentido o, en otras palabras, sólo puede haber sentido a partir, precisamente, del sinsentido generalizado (2014, p. 241)

Para Antelo falar de “sem sentido” ou “disparate”, ou, em outras palavras, de “ideias fora de lugar”, implica pressupor um sentido pleno, a presunção de um lugar em que os termos seriam plenamente homogêneos, compatíveis, coerentes; algo que é inimaginável, posto que todo sentido é incompleto, há sempre algo que lhe escapa e que o desestabiliza, como os chamados pensadores pós-estruturalistas ensinam. O que tem em comum a crítica de Carvalho Franco, Bosi e Antelo é que os três rejeitam o dualismo que o ensaio de Schwarz parece propor: ideias que estão no lugar / ideias que não estão no lugar. Como veremos, é verdade que o risco de fazer desembocar a argumentação de “As ideias fora do lugar” nesse dualismo existe; mas não menos certo é que o ensaio não deixa de se movimentar noutra direção. O primeiro que devemos fazer para perceber isto é considerar que ao se falar de “ideais fora do lugar” não se faz uma descrição do estado real das coisas, mas – como diz Schwarz num artigo recente em que volta ao assunto – registra-se “uma sensação das mais difundidas no país e talvez no continente” (2012, p. 166). Lembremos que o ensaio começa justamente com citações que mostram como a sensação de “fora do lugar” estava difundida na intelectualidade brasileira da primeira República, tanto entre aqueles a favor como entre aqueles contra a escravidão. Nesse sentido, quando Schwarz fala de “ideias fora do lugar”, de “heterogeneidade”, de “incompatibilidade” ou de “sem sentido” não o faz em abstrato. Não se trata de que dessa forma se assinalem termos 22

essencialmente incompatíveis: a impressão de sua incompatibilidade é um produto histórico. É por causa da particularidade histórica e não por sua verdade essencial, que as ideias liberais foram sentidas como “fora do lugar” no Brasil. Para Schwarz é importante insistir em que a história das ideias não é igual aqui e lá. Na Europa, as ideias liberais resultaram de processos sociais que não se deram (ou não da mesma maneira) nas ex-colônias onde foram adaptadas. Isso não quer dizer que as realidades de cá e lá não estivessem vinculadas (Schwarz compartilha com Carvalho Franco e Bosi a consideração de que a ex-colônia forma parte do sistema capitalista mundial), mas sim que eram diferentes. Assim, por exemplo, se como diz Bosi, na Europa houve pensadores liberais que defenderam a escravidão, isso não tira o fato de que na Europa a escravidão não tinha a presença que tinha no Brasil; ou, em outras palavras, que a escravidão tinha uma visibilidade no Brasil que não tinha na Europa. No Brasil ficava escancarado algo que na Europa poderia passar despercebido. Isso que era motivo compreensível de vergonha para muitos, por outra parte, não deixaria de oferecer algum privilégio. Para Schwarz, se há alguma vantagem em estar na periferia do capitalismo é justamente que aí se faz evidente algo que é mais difícil de perceber nos centros. Se o Brasil era um lugar em que as ideias liberais criavam a sensação de “fora do lugar” era também um lugar em que se podia perceber com maior evidência que as ideias liberais não eram o que aparentavam: “ao tornarem-se despropósito, estas ideias deixam também de enganar” (p. 19). A sensação de despropósito que geravam as ideias liberais no Brasil (como também aconteceria na Rússia, segundo nos mostrariam seus escritores) desmentia sua suposta universalidade. De fato, depois de 1848, “a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a universalidade disfarça antagonismos de classe” (p. 20-21). Para Schwarz, portanto, pensar que as ideias liberais estão no lugar na Europa é um equivoco, pois lá também 23

enganavam, só que de maneira diferente: eram ideologia em primeiro grau. Esse caráter ideológico é o que desde sempre nos teria revelado nossa ideologia em segundo grau. Assim, Schwarz não estabelece a contraposição “ideias fora do lugar” no Brasil / ideias no lugar na Europa ou ideias não funcionais aqui / ideias funcionais lá10. O que ele sublinha é que na Europa as ideias liberais pareciam ajustar-se a realidade de uma maneira que não se repetia entre nós. Talvez se poderia dizer, recorrendo à tradição psicanalítica lacaniana, que lá (em alguns países da Europa) a realidade criava a impressão de recobrir bem o vazio do real (principalmente aos nossos olhos), enquanto no Brasil, e nos outros países da América Latina, a realidade não chegava a criar a impressão de consistência, daí que Schwarz ao falar de “ideias fora do lugar” fale também de um “oco dentro do oco” (p. 21). Postas assim as coisas, fica claro que o argumento de “As ideias fora do lugar” não pressupõe necessariamente um lugar da plena coerência. Contudo, se “As ideias fora de lugar” possibilitam tal interpretação, também é verdade, como já foi dito, que o risco de fazer desembocar o ensaio em uma interpretação dualística existe. Esse risco aparece, por exemplo, numa declaração que faz Schwarz numa entrevista de 1976. Nela o crítico afirma que Ideias estão no lugar quando representam abstrações do processo a que se referem, e é uma fatalidade de nossa dependência cultural que estejamos sempre interpretando a nossa realidade com sistemas conceituais criados noutra parte, a partir de outros processos sociais. Neste sentido, as próprias ideologias libertárias são com frequência uma ideia fora do lugar, e só deixam de sêlo quando se reconstroem a partir de contradições locais (2008, p. 143).

Com razão, Schwarz recusa afirmar que haja ideias que estejam no lugar pelo simples fato de que as consideremos libertárias. Como explicita em outros momentos, 10

Como se viu, Schwarz nunca disse que as ideias liberais não tivessem uma função no Brasil, insistindo na sua função ornamental. Isto não impede, por outra parte, o reconhecimento de que as observações de Bosi e Carvalho Franco obrigam a matizar algumas afirmações de “Ideias fora de lugar”, tais como “o escravismo desmente as idéias liberais” (p. 17).

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nem mesmo o marxismo pode ser pensado dessa maneira. Este também precisa de ajustes, e na sua adaptação na periferia levanta questionamentos às formulações do centro: a universalidade das categorias dos países que nos servem de modelo não convence e a sua aplicação direta aos nossos é um equívoco. Não tenho dúvida de que o ensaísmo periférico de qualidade sugere a existência de certa linearidade indevida nas construções dialéticas de Adorno e do próprio Marx — uma homogeneização que faz supor que a periferia vá ou possa repetir os passos do centro (2012, p. 49).

O problema na sua declaração de 1976 surge quando afirma que as ideias deixam de estar fora do lugar quando se reconstroem a partir de contradições locais, pois nesse momento inevitavelmente se produz a contraposição ideias no lugar / “ideias fora do lugar”, criticada por Carvalho Franco, Bosi e Antelo. Como bem coloca Elias José Palti em relação a passagens citada, não temos nenhuma forma segura de determinar quais ideias estão no lugar e quais não, quais se reconstroem adequadamente e quais não o fazem (como se viu para Carvalho Franco e Bosi o liberalismo o fez no Brasil), “siendo que las ideas que estarán supuestamente desajustadas serán siempre, como es previsible, las de los otros” (p. 271). A única forma de evitar esse impasse – como observa Palti – é renunciar a tentar determinar quando as ideias estão no lugar, assumindo, em troca, como faz Schwarz em outros momentos, que ao se falar de “ideias fora do lugar”, fala-se não de um fato, mas de uma sensação frequentemente vivenciada na periferia do capitalismo. Uma sensação frequentemente vivenciada na periferia – acrescentamos –, mas não exclusiva dela nem sempre presente. A questão, portanto, não é quais ideias estão no lugar e quais não, mas quais seriam as ideias que ajudam a entender e a mudar a situação que gera o desconforto de sentir “as ideias fora do lugar”. Como já se disse, a sensação se origina pelo deslocamento de ideias para lugares com condições sociais diferentes daqueles em que se produziram ou modelaram. Agora bem, a sensação de “fora de lugar” não é resultado 25

simplesmente desse deslocamento, mas das relações assimétricas de poder implicadas nele. Para Schwarz, se no Brasil frequentemente se produz a sensação de “fora de lugar” isso se deve à sua situação dependente que lhe submete a uma constante importação de ideias11, o que é enfatizado no título da versão francesa de seu ensaio: “Dépendance nationale, déplacement d'idéologies, littérature”. Por isso Schwarz afirma que a análise da sensação de “fora de lugar”, que é uma particularidade local, o levou a “refletir sobre o processo da colonização em seu conjunto, que é internacional”; assim como que “o tic-tac das conversões e reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um mecanismo planetário” (p. 30). Esse mecanismo é, para Schwarz, o do capitalismo que em sua expansão pelo globo gerou um desenvolvimento desigual e combinado, de que se desprenderia a sensação de “fora de lugar” (2008, p. 137). Este diagnóstico é reiterado por Schwarz noutro ensaio clássico, “Nacional por subtração” (1986), em que diz que aquilo que Sílvio Romero percebia como “disparates” do país eram na verdade as desarmonias ciclópicas do capitalismo mundial […]. Prendem-se à finalidade mesma do processo, que, na parte que coube ao Brasil, exige a reiteração do trabalho forçado ou semi-forçado e a decorrente segregação cultural dos pobres. Com modificações, muito disso veio até os nossos dias (2002, p. 45).

O fim da sensação das “ideias fora do lugar” passaria então necessariamente por uma crítica do capitalismo, e nesse sentido o marxismo, não sendo uma ideia no lugar, é sim uma das ideias mais pertinentes tanto no centro quanto na periferia, ainda que seja uma ideia que precisa ser incessantemente adaptada às contradições locais. Sem essa “adaptação”, sem o reconhecimento dos desajustes – que não são os mesmos em todos os lugares, mas dependem da posição que se ocupe na ordem assimétrica mundial – a possibilidade de uma crítica transformadora se vê enfraquecida. Daí a importância que teria Machado de Assis, posto que teria sido o primeiro escritor brasileiro em trabalhar 11

Isto não nega que, como diz Bosi, “os grupos culturais e políticos das nações dependentes não apenas sofrem como também escolhem e trabalham as influências dos pólos dominantes do sistema” (p. 237), mas sim enfatiza que essa influência não é recusável, trazendo para o primeiro plano a violência e a desigualdade das relações de poder em jogo.

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formalmente os desajustes do país. Para Schwarz, se Machado é um escritor tão no lugar (tão caracteristicamente brasileiro) é porque nas suas obras nos revela que o seu lugar (o Brasil) é o do desajuste. Agora, se o “fora do lugar” parece ter deixado de existir hoje, isso não é produto de uma redução dos desequilíbrios do mundo, mas de sua brasilianização.

1.4. O mundo, esse lugar tão brasileiro Em 2008, em entrevista para a revista Azougue, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fez o seguinte comentário: Outro dia, conversando com amigos, alguém falava sobre como o capitalismo tinha mudado no mundo todo, sobre o sistema de controle da mão-de-obra do capitalismo moderno, a precarização, informalização etc. E aí alguém lembrou que isso sempre existiu no Brasil. E eu fiquei pensando, sempre disseram que o Brasil era o país do futuro, iria ser o grande país do futuro. Coisa nenhuma, o futuro é que virou Brasil. O Brasil não chegou ao futuro, foi o contrário. Para o bem ou para o mal, agora tudo é Brasil (VIVEIROS, 2008, p.26).

A observação tem consonância com outra feita alguns anos antes por Paulo Arantes, um pensador certamente diferente de Viveiros de Castro: “na hora histórica em que o país do futuro parece não ter mais futuro algum, somos apontados, para mal ou para bem, como o futuro do mundo” (ARANTES, p.30).

Em ambos os casos é

reconhecido que o Brasil não se transformou naquilo que muitos esperavam: um país plenamente moderno, plenamente desenvolvido, os Estados Unidos do século XXI, ou então, uma sociedade de pleno emprego e plena cidadania. O que ocorreu foi o contrário, nos chamados países desenvolvidos se fizeram visíveis traços característicos do Brasil e os outros países “subdesenvolvidos”: perda de direitos laborais, enfraquecimento da proteção social, aumento da insegurança e da violência civil, fragmentação social, convívio de pobreza e riqueza em espaços contíguos; ou como diz Viveiros de Castro, “precarização, informalização etc”. 27

Como mostra Giuseppe Cocco, que rastreia a história da ideia de “brasilianização” do mundo no seu livro MundoBraz, Paulo Arantes e Viveiros de Castro recolocam desde o Brasil um conceito que vinha se formando desde fins da década de 1980 na Europa, se bem o nome só será cunhado em 1995, pelo norteamericano Michael Lind (p. 28).

Em termos gerais, podemos dizer que o termo

“brasilianização” tem sido usado para descrever os efeitos negativos do neoliberalismo, que para finais da década de 80 completava uma década de implementação na Europa (primeiro, por governos de direita, em países como a Inglaterra, a Alemanha e a Dinamarca; e logo, em países de governos euro-socialistas). Este logo ganha um novo alento com “a queda do comunismo na Europa oriental e na União Soviética [...] exatamente no momento em que os limites do neoliberalismo no próprio Ocidente [Europa] tornavam-se cada vez mais óbvios” (ANDERSON, p.17). Na década de noventa, o neoliberalismo não só se mantém na Europa, mas se espalha pelos ex-países comunistas e avança com ímpeto na América Latina, abrasileirando mais o Brasil. Como sabemos, na década seguinte, o Brasil – junto com outros países da América Latina – reagiu contra o receituário neoliberal, sem, contudo, renunciar por completo a ele. No Brasil, em palavras de André Singer, o presidente “Lula aproveitou a onda de expansão mundial e optou por caminho intermediário ao neoliberalismo da década anterior — que tinha agravado para próximo do insuportável a contradição fundamental brasileira — e ao reformismo forte que fora o programa do PT até as vésperas da campanha de 2002” (p. 21). Segundo Singer, o governo Lula realizou uma “expansão do mercado interno com integração do subproletariado ao proletariado via emprego (mesmo que precário), consumo e crédito, sem reformas anticapitalistas” (p. 200), atuação que se viu facilitada pela “boom de commodities” internacional (p. 21). A fórmula exitosa – pelo menos em aparência – fez com que muitos brasileiros voltassem 28

a sonhar com o Brasil como os Estados Unidos ou a Europa do futuro enquanto esses lugares terminariam de virar o Brasil do passado, não entendendo o ensinamento da “brasilianização” do mundo: “o Brasil é grande, mas o mundo é pequeno; então não adianta ficar pensando só no Brasil” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 27). Em outras palavras não adianta ficar sonhando com a retomada do desenvolvimento nacional – no caso, como corretivo do neoliberalismo –, desconhecendo que os recursos do planeta não são ilimitados. A destruição do planeta seria o preço último a pagar desse projeto desenvolvimentista, que antes também implicaria desigualdade e exploração social, dado que ele não pretende afetar os interesses dos mais ricos. Viveiros de Castro aponta que o que está em jogo atualmente é o mundo, o mundo como lugar, e por isso as teses de “As ideias fora do lugar” deixam de ter pertinência. A ecologia, uma “ideia sobre o lugar”, que coloca como questão central o lugar e não as ideias, e que por isso “jamais poderia estar fora do lugar”, as teria colocado “pra escanteio” (p. 27). O antropólogo pode ter razão em afirmar que hoje o que está em jogo é o mundo, mas que por isso deixe de ter pertinência as formulações de “As ideias fora do lugar” não é evidente. É preciso esclarecer este ponto antes de continuar adiante. 1.5. Parêntese: os índios e o fora do lugar da nação

Se, para Viveiros de Castro, as teses de “As ideias fora do lugar” perderam hoje sua vigência; se, na atualidade, manifestam esse desajuste temporal que as torna ideias fora de tempo, é, na verdade, porque elas foram desde sempre anacrônicas. Assim o indica outra passagem da entrevista que viemos citando, em que Viveiros de Castro se refere à antropofagia:

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A antropofagia foi a única contribuição realmente anti-colonialista que geramos, contribuição que anacronizou completa e antecipadamente o célebre clichê uspiano-marxista sobre as “idéias fora do lugar”. Ela jogava os índios para o futuro e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes, do indianismo (p. 25). [ grifos nossos].

A Viveiros de Castro lhe incomoda o (não) lugar e tempo que ocupam os índios em uma crítica (a de Schwarz e, mais genericamente, a que denomina “uspianomarxista”) que parece muito preocupada por determinar o lugar adequado das ideias, e que pensa sempre o lugar em termos nacionais, para a qual o lugar é a nação. A crítica é de interesse, mas é necessário precisá-la, considerando alguns matizes que, visando a polêmica, Viveiros de Castro deixa fora. Na entrevista citada, aparecem, de um lado – valorados de forma positiva, livres de qualquer crítica – a “antropofagia oswaldiana” e seus continuadores: os tropicalistas e os concretistas. Dos tropicalistas, o antropólogo afirma que foram “internacionalistas, simbioticistas, geléiogeneralistas, tecnoprimitivistas, que saíam por cima (ou por fora) e por baixo (ou por dentro) da mediocridade visada pelo projeto nacional-popular” (p. 24) [grifos meus]; dos concretistas, que teriam transversalizado “completamente os totemismos nacionalistas, colocando a arte brasileira em um campo estético poliglota e multívoco, sem hierarquias prévias ou extrínsecas” (p. 25) [grifos meus]. Do lado oposto de todos eles, como se pode ver, estão sempre os nacionalistas, entre os quais se incluem, os nacionalistas de esquerda (o alvo específico desses comentários). Ainda que não é explicitado, fica claro que entre estes últimos estaria Roberto Schwarz. É Schwarz um nacionalista? A questão leva, claro, ao ensaio “Nacional por subtração”, mas também a “Cultura e política 1964-1969”, o texto em que Schwarz faz sua avaliação daquele período referido por Viveiros de Castro em que se produz “a cisão fundamental na esquerda brasileira [...] entre o pessoal da contracultura e o pessoal da guerrilha, ou mais geralmente da militância política” (CASTRO, 2008, p. 24); uma cisão da que ainda teríamos ecos – como mostram os comentários de Viveiros 30

de Castro sobre Schwarz o deste último sobre Caetano Veloso, no seu recente ensaio “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo” – mas da qual nem sempre derivaram posições fáceis de localizar em um simples esquema binário. O anterior é justamente ilustrado por “Cultura e política 1964-1969” (1978). Se, nesse ensaio, Schwarz não tem palavras muito elogiosas para essa parte do “pessoal da contracultura” que eram os tropicalistas, em cujas obras reconhece certo potencial crítico, mas de cujo ponto de vista desconfia porque considera que é o “da vanguarda e da moda internacionais, com seus pressupostos econômicos”12 (2008, p. 77); também não é muito celebratório do pessoal militante do P.C., em quem reconhece “o grande mérito de difundir a ligação entre imperialismo e reação interna”, mas o grande erro de pôr “de lado a luta de classes e a expropriação do capital”, ao considerar como aliado o “setor industrial, nacional e progressista” das classes dominantes na luta contra o grande inimigo conjunto que seria o imperialismo, o que foi um erro de cálculo como mostraria o golpe de 64 (p. 65-66). Ou seja, neste ensaio, Schwarz toma distância tanto dos “internacionalistas” quanto dos “nacionalistas”. A diferença dos últimos, Schwarz não acredita que o chão nacional suspenda as diferenças de classe. Em “Nacional por subtração” (1986), a crítica ao nacionalismo de esquerda reaparece, mas se acrescenta que a pergunta sobre o que definiria a cultura nacional popular, que ainda podia parecer razoável no final de 60, é completamente inverossímil para meados da década de 80: como seria a cultura popular se fosse possível preservá-la do comércio e, sobretudo, da comunicação de massa? O que seria uma economia nacional sem mistura? De 64 para cá a 12

Uma desconfiança semelhante é expressa por Schwarz em relação a Oswald de Andrade, cuja visão positiva do convívio no país de elementos do Brasil colonial e o Brasil moderno não deixaria de se relacionar com o “progressismo conservador da burguesia cosmopolita do café” (2002. p. 27). A este respeito veja-se o artigo “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, no livro Que horas são?. No caso de Oswald e dos tropicalistas a visão otimista da (des)ordem brasileira não deixaria de responder a uma posição de privilégio favorecida por essa (des)ordem.

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internacionalização do capital, a mercantilização das relações sociais e a presença da mídia avançaram tanto que estas questões perderam a verossimilhança. Entretanto, há vinte anos apenas elas ainda agitavam a intelectualidade e ocupavam a ordem do dia. Reinava um estado de espírito combativo, segundo o qual o progresso resultaria de uma espécie de reconquista, ou melhor, da expulsão dos invasores. Rechaçado o Imperialismo, neutralizadas as formas mercantis e industriais de cultura que lhe correspondiam, e afastada a parte antinacional da burguesia, aliada do primeiro, estaria tudo pronto para que desabrochasse a cultura nacional verdadeira, descaracterizada pelos elementos anteriores, entendidos como corpo estranho. A ênfase, muito justa, nos mecanismos da dominação norte-americana servia à mitificação da comunidade brasileira, objeto de amor patriótico e subtraída à análise de classe que a tornaria problemática por sua vez (2002, p. 32).

Schwarz reafirma, então, sua crítica aos nacionalistas de esquerda que acreditaram – em consonância com os nacionalistas de direita – em uma “substância autêntica do país” que podia ser resgatada mediante a eliminação do não nativo, sem perceber que tal eliminação deixaria com as mãos vazias (ou ao sumo com um formigueiro, que é aquilo em que termina a procura pela origem em Quarup [p. 33]), e não com uma essência nacional ou unidade originária capaz de suspender as diferenças de classe. Mas além desta crítica, Schwarz acrescenta a afirmação de que as novas circunstâncias mundiais deixam claro que o Brasil nunca vai ser uma nação segundo a norma, ou seja, uma verdadeira nação.

Sobre este último ponto voltaremos adiante. Por enquanto, assinalemos que as observações anteriormente citadas do crítico indicam a distância que o separa do nacionalismo. Se a de Oswald de Andrade não é uma teoria do nacionalismo – para retomar o comentário de Viveiros de Castro –, a de Schwarz também não se pode afirmar – sem mais – que o seja. Dito isto, é inegável que para Schwarz é fundamental pensar a nação (tanto quanto para Oswald, pese a todas as diferenças do caso). E é que se bem para Schwarz não existe uma essência nacional, existem sim peculiaridades nacionais, dado que cada nação se distingue por relações sociais particulares que resultaram de seu processo de configuração; ou seja, a peculiaridade nacional é um produto sócio-histórico; processo não desvinculável, aliás, da “história do capital e de

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seus avanços”. Nesse sentido, refletir sobre a nação implica refletir sobre o estado do mundo. No caso do Brasil, como se viu em páginas anteriores, a peculiaridade nacional seria paradoxalmente o desajuste, a “má-formação”, pelo convívio entre o moderno e o arcaico, explicado resumidamente em “Nacional por subtração” da seguinte maneira: Digamos que o passo da Colônia ao Estado autônomo acarretava a colaboração assídua entre as formas de vida características da opressão colonial e as inovações do progresso burguês. A nova etapa do capitalismo desmanchava a relação exclusiva com a metrópole, transformava os proprietários locais e administradores em classe dominante nacional, virtualmente parte da burguesia mundial em constituição, e conservava entretanto as antigas formas de exploração do trabalho, cuja redefinição moderna até hoje não se completou (p. 45).

Estamos de novo, pois, ante o problema que dá origem à sensação de “ideias fora do lugar”, assim como a sensação correlata de “inautenticidade” da vida nacional, a qual se converteu em “algo como um penhor de identidade” (p. 44). Algo que é vivenciado como defeito nacional, mas que não deixa de decorrer “da história contemporânea” (p. 45). Em “Nacional por subtração”, Schwarz diz que o problema da sensação de “inautenticidade” e, por conseguinte, acrescentamos, de “ideias fora do lugar” não está na imitação – o que não é possível deixar de fazer –, mas da distância que há entre a elite, que tem acesso ao que se considera mais avançado internacionalmente, e os “pobres”, submetidos a velhas formas de exploração e “excluídos do universo da cultura contemporânea” – portanto, da nação e do mundo. Daí que neste ensaio Schwarz afirme que a solução do problema passa pelo “acesso dos trabalhadores aos termos da atualidade, para que os possam retomar segundo o seu interesse o que — neste campo — vale como definição de democracia” (p. 47). É de notar que esta solução não deixa de ter algo de antropofágica: apropriar – devorar – os termos da atualidade para usá-los segundo o próprio interesse. A diferença está no tipo de sujeito que realiza a ação. Não é o indígena oswaldiano, mas o 33

trabalhador, ou seja, alguém que já passou por certo processo civilizatório e que, portanto, é um integrado à sociedade moderna, mesmo que em condições precárias (como pobre). Diga-se de passagem, o indígena de Oswald não é exatamente o indígena em que pensa Viveiros de Castro. O primeiro, nas palavras de Schwarz, “é o brasileiro em geral, sem especificação de classe” – o que o assemelha ao sujeito dos nacionalistas – (2002, 38), enquanto que os indígenas em que pensa Viveiros de Castro são o oposto de um sujeito nacional ou, também, o que fica à margem deste13. Seja como for resta a pergunta sobre os motivos da exclusão do indígena no pensamento de Roberto Schwarz, que é o ponto forte da crítica de Viveiros de Castro. A resposta possivelmente está na maneira como Schwarz concebe “a história contemporânea” e os sujeitos capazes de intervir nela. Nesse sentido, é interessante o comentário que o crítico brasileiro fez à apresentação de Antonio Cornejo Polar na famosa reunião de intelectuais latino-americanos em Caracas, em 1982, cujo objetivo era discutir os parâmetros que deviam ser considerados na elaboração de uma história da literatura latino-americana. Na ocasião, Cornejo Polar falou da necessidade de não reduzir “la literatura latinoamericana exclusivamente a la escrita en lenguas europeas y bajo normas estéticas propias o derivadas de Occidente” (PIZARRO, 1987, p. 125). Para Cornejo Polar era preciso dar a mesma atenção e tratamento que recebia a literatura culta a outros sistemas literários, como os orais indígenas. A isto, Schwarz replicou que abandonar a preeminência do culto implicava o risco de fechar os olhos para “la

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Numa entrevista mais recente, o próprio Viveiros de Castro deixa claro que o lugar desde onde ele pensa a antropofagia não é o de Oswald, ou seja, o de uma classe dominante interessada em criar uma “teoria do Brasil” (!): “O Oswald, um homem da classe dominante, pensava no Brasil como uma coisa sobre a qual você podia pôr e dispôr. Nesse sentido, ele pertence à geração dos teóricos do Brasil, que eram todos da elite dominante paulistana ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Eduardo Prado. Os modernistas eram uma teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser organizado, governado”. A entrevista está disponível no site: http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-escravidao-venceu-no-brasilnunca-foi-abolida-1628151. Última consulta 4 de maio de 2014.

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realidad de la opresión” (p. 132). Além disso, acrescentou, seria preciso reconhecer o fato de que a tentativa de interpretar con máxima energía conceptual, imaginativa, la actualidad, tiene su lugar real en la literatura culta. Esto no se puede esperar de los otros sectores del imaginario social —lo que no los disminuye en absoluto— pero no viven bajo el signo de la historicidad (133).

Em outras palavras, setores como o indígena existem e podem ter seu valor, mas não interviriam no movimento da história ou, para usar outra expressão do crítico, no “curso real das coisas”. Isto devido ao lugar não decisivo que ocupariam na estrutura da sociedade contemporânea. No caso do Brasil, a estrutura objetiva esteve determinada, como já se viu, pelo triangulo escravos, homens livres e uma elite ao mesmo tempo mandonista e ilustrada, parte da burguesia internacional. O indígena ficava de fora desde o início. Como se sabe, para Schwarz, Machado foi um mestre na internalização formal na obra literária da estrutura social brasileira, labor a qual teria aludido ao dizer que devia ser exigido do escritor um “sentimento íntimo do seu país”. Assim sendo, não surpreende que já no ensaio de Machado “Notícia da atual literatura brasileira — Instinto de nacionalidade” (1873) o indígena seja visto como elemento irrelevante para a nação: É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe (p. 802)14.

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Este recorte do indígena operado por Machado foi tratado por João Camillo Penna em uma de suas aulas do seminário de pós-graduação “Elogio da ontologia” na UFRJ (período 2013-2). No ensaio “As idéias fora do lugar e o perspectivismo ameríndio”, Luis Augusto Fischer também se refere ao comentário citado de Machado de Assis. Segundo o crítico esse comentário, que hoje soa a “asneira”, se explica porque Machado “vivia no planeta Rio de Janeiro, na Corte (de que quase nunca se afastou, por sinal, e nunca a mais de uns cem quilômetros da cidade); vivia no planeta da plantation litorânea, que ele expressa profundamente e que ele supunha ser igual a ‘Brasil’; neste lugar, índio tinha morrido há muitas gerações, ou tinha dado um jeito de sumir para o sertão” (p. 176). Para Fischer uma limitação de

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O “elemento indiano” poderia aparecer como tema de poesia, mas não influiria na estrutura social nem literária do país. O problema de declarações como esta é que, mesmo não sendo sua intenção, “convalidan el orden social latinoamericano y reafirman sus condiciones de opresión y discriminación”, como observa Cornejo Polar (PIZARRO, 1987, p. 132). Certamente, essa própria ordem social impede uma romantização das culturas indígenas, pois elas subsistiram em condições muito desfavoráveis, como reconhece o crítico peruano, logo depois dos comentários de Schwarz no encontro antes mencionado. Mas se as expressões culturais indígenas estão marcadas pela opressão, não por isso – indica Cornejo Polar – deixam de ser expressões de resistência. Seu caráter resistente resulta inegável na atualidade, quando os movimentos indígenas têm obrigado a uma reconsideração sobre o papel e lugar de seus povos na sociedade contemporânea (no país e no mundo). Mesmo assim, ainda poderia ser discutido – em sintonia com Schwarz – se os indígenas podem intervir no “curso real das coisas”, entendida essa intervenção como capacidade de contestação do capital e seus avanços15. Mas se isto é discutível, o que não gera dúvida é que uma “definição de democracia” que desconsidera questões como a indígena não “vale” de muito, para retomar os termos de “Nacional por subtração”16.

perspectiva análoga, devido ao lugar a partir do qual pensam o Brasil, é detectável em Antonio Candido e Roberto Schwarz. 15 Viveiros de Castro sugere que a única forma de sobreviver à catástrofe ecológica, que já é uma realidade presente, é prestar atenção aos indígenas, que são sobreviventes do fim do mundo, do fim de seu mundo que acabou em 1492. Nesse sentido, a possibilidade de que haja um depois do capital, ou simplesmente, de que ainda haja um depois dependeria de aprender das formas de vida desses sobreviventes. A respeito veja-se sua palestra “Gaia e os terranos no contexto amazônico”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8C6EZXDb7G0. Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 16 O problema de termos como “estrutura objetiva”, “conflitos efetivos” e “curso real das coisas” em análises materialistas, como a de Schwarz, é que criam a impressão de que os conflitos que não são de classe são secundários, quando não falsos. Daí a crítica que Idelber Avelar dirige ao que ele, como Viveiros de Castro, chama “marxismo-uspiano”. Avelar critica sua “recusa (ou incapacidade, formule-se como se queira) a pensar as diferenças étnicas, sexuais, de gênero e de orientação sexual como parte constitutiva de uma política de esquerda. […] a estranha ideia de que a luta em torno a direitos indígenas ou quilombolas, por exemplo, é ‘cultural’ e a luta de esquerda clássica, centrada nas classes sociais, é ‘política’”. Não se trata de trocar um conflito por outro, a luta de classes por lutas identitárias, mas de questionar a própria possibilidade da separação entre “cultural” e “material” (ou “real”). Num artigo

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Se pensarmos desde o lugar dos indígenas, fica claro que a questão “da imposição ideológica externa e expropriação cultural do povo” (SCHWARZ, 2002. p. 34) não pode ser colocada em termos exclusivamente nacionais. Os indígenas obrigam a pensar em lugares não nacionais, assim como a repensar o Estado nação e os sujeitos que intervém nele. Talvez podemos afirmar que o Estado nação é uma ideia vivenciada como “fora do lugar” por alguns povos e que, por isso, devemos recusar “ao Estado a guarda do infinito e o privilégio da totalização”, como diz Viveiros de Castro. Mas o anterior quer dizer que as formulações de “As ideias fora do lugar” vão “para escanteio” ou foram desde sempre “anacrônicas” como afirma o antropólogo? Ao afirmar isto, Viveiros de Castro parece assumir que o objetivo do ensaio de Schwarz é colocar as ideias no seu devido lugar (nacional); um erro de avaliação que fica ainda mais explícito no prefácio ao livro Um artifício orgânico, ao qual Viveiros de Castro remete na entrevista citada da revista Azougue. Nesse prefácio, afirma: “A ‘ecologia’, é certo, é um discurso importado — como, de resto, o resto. Esqueça-se o clichê marxista sobre as ideias fora do lugar, em si mesmo um pouco deslocado e anacrônico” (p. 16). Como se tentou mostrar nas páginas anteriores, Schwarz não pretende colocar as ideias no seu lugar nem considera que seja possível não importar ideias. O problema, para ele, não é a importação, mas a maneira como ela acontece; as assimetrias que fazem que a importação constante de ideias dos centros do capitalismo seja vivenciada como uma condenação das periferias. A essas assimetrias se deve a sensação frequente de que o Brasil deve adaptar modelos aos quais o país não se ajusta. Portanto é isto o que fica

intitulado “Merely cultural” (“El marxismo y lo meramente cultural” na tradução para o espanhol, que cito a continuação), Judith Butler afirma que “el propio Marx era consciente de que estas distinciones son el efecto y la culminación de la división del trabajo y que, por lo tanto, no pueden ser excluidas de su estrutura” (2000, p. 119). A limitação das lutas identitárias, que tem por fim último o reconhecimento do Estado, é que aceitam também divisões desse tipo, no caso o isolamento desse elemento que seria a identidade. Sobre esta questão voltaremos. A crítica de Avelar se encontra na sua resenha do livro “A esquerda que não teme dizer seu nome” de Vladimir Safatle, e está disponível em http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/10/09/resenha-de-a-esquerda-que-nao-teme-dizer-seunome-de-vladimir-safatle/. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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por ver se abandonou o campo de jogo ou, na verdade, nunca esteve nele. Algumas declarações recentes do próprio Viveiros de Castro indicam o contrário. Em entrevista de 2014, na revista portuguesa Público, o antropólogo afirma que é preciso pensar noutras formas de civilização, porque “civilização não é necessariamente transformar um país tropical numa cópia de segunda classe dos Estados Unidos ou da Europa, ou seja, de um país do hemisfério norte que tem características geográficas e culturais completamente diferentes”17. Nessa definição do Brasil, como um país que faz cópias de segunda classe de modelos metropolitanos que não se adequam a realidade local, não é perceptível à sensação de “inautenticidade”, de “despropósito” ou “de fora do lugar” descrita por Schwarz? A impressão de que se trata justamente disso fica reforçada mais adiante quando, ao se referir à sua decepção com o fim da ditadura, Viveiros de Castro afirma: continuamos reféns do grande capital, dos grandes clãs, dos capitães hereditários que continuam mandando no Brasil, José Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros. Essa aliança entre o mais arcaico, que é Sarney, e o mais moderno do capitalismo, que são esses agronegociantes de alta tecnologia do Mato Grosso do Sul, todos eles combinados para manter a tranquilidade política: não deixemos as massas virem atrapalhar.

A passagem é quase uma citação de Schwarz, para quem a aliança perversa entre o mais moderno e as mais velhas formas de exploração é um traço que caracteriza o Brasil até hoje; aliança cujas origens são estudadas no ensaio “As ideias fora do lugar”. A questão, pois, reaparece, ainda que certamente a perspectiva não é a mesma. Quando Viveiros de Castro fala da necessidade de pensar em outras formas de civilização, está pensando em formas inspiradas nas comunidades indígenas. Ter em conta estas comunidades exige reformulações nos termos em que Schwarz pensa a questão do “fora do lugar” sem que, por isso, ela deixe de existir. Além disso, se a aliança entre moderno 17

A entrevista, intitulada “A escravidão venceu no Brasil. Nunca foi abolida”, está disponível em http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-escravidao-venceu-no-brasil-nunca-foi-abolida-1628151. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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e arcaico permanece definindo o Brasil pós-ditadura, aquilo que não permaneceu inalterado foi a imagem de contraste que os países “adiantados” do mundo ofereciam. Isto é, se o problema apontado por Schwarz em “as ideias fora do lugar” subsiste – como parece ser o caso –, certamente ele já não pode ser colocado da mesma maneira. 1.6. Um mundo ilimitadamente malandro (retomando) Em Cinismo e falência da crítica, livro de 2008, Vladimir Safatle afirma que “o tempo encarregou-se de mostrar que o esquema de Schwarz [exposto em “As ideias fora de lugar”] não era adequado apenas para descrever o sistema de ideias em países periféricos” (p. 79n). Segundo Safatle, essa “espécie de estrutura normativa dual” pela qual “sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas” (SAFATLE: pp. 78-79; SCHWARZ: 2008 p. 18), passou a ser tão visível no centro quanto na periferia. Por isso, na atualidade, mais do que de aparências enganosas (que eram termos empregados antigamente para descrever o funcionamento da ideologia), Safatle propõe falar de cinismo. Segundo o autor, o raciocínio cínico é aquele que consegue juntar a enunciação de uma norma ou valor e a da necessidade de sua inversão na aplicação. Um dos exemplos fornecidos por Safatle desse tipo de raciocínio é o do ex-primeiro ministro Tony Blair que se referindo aos muçulmanos que imigram para a Grã-Bretanha, declarou: “Nossa tolerância […] é parte do que faz da Grã-Bretanha a Grã-Bretanha. Conforme-se a isso ou não venha para cá. Nós não queremos os ‘hate-mongers’, independentemente de sua raça, religião ou credo”. “Conforme-se a isso ou não venha para cá”, comenta Safatle, é “um exemplo muito ilustrativo de tolerância” (p. 78)18.

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Para Safatle pensadores tão diferentes quanto Zizek, Agamben e Sloterdijk (de quem Safatle toma a denominação razão cínica) têm ajudado a elucidar este tipo de raciocínio. Por exemplo, Agamben, na sua análise do estado de exceção, mostra como este permite suspender legalmente a democracia (e a legalidade) em defesa da manutenção da democracia (e da legalidade).

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Como se disse, tal afirmação seria cínica não por ser uma expressão sem máscaras do próprio interesse, mas porque, em um mesmo movimento, enuncia uma norma e a inverte. Por isso ela não pode ser considerada como expressão de um engano “bem fundado nas aparências” (ideologia de primeiro grau), mas de algo como a desfaçatez da elite brasileira, que não se preocupava por parecer (nem podia ser) consequente ou coerente no seu uso das ideias mais modernas19.

Por outro lado,

enunciação e desrespeito da norma também lembra o comportamento popular brasileiro tal e como ele foi descrito por Antonio Candido no seu famoso “Dialética da malandragem” (1970); talvez, porque a desfaçatez e volubilidade das elites não tenha sido nunca outra coisa que a malandragem popular exercida do alto. Como é sabido, Candido afirmou que a malandragem, entendida como “dialética da ordem e da desordem”, era uma característica da sociedade brasileira, onde sempre teria havido uma visão da lei como algo abstrato e contornável, a diferença das sociedades protestantes capitalistas, onde a “presença constritora da lei, religiosa e civil” gerava sociedades e indivíduos com “grande força de identidade e resistência” (1970, p. 86). O crítico lembra que no Brasil, desde o século XIX, se dariam esforços disciplinadores para acabar com a desordem local e poder atingir o nível dos países modelo, mas esses esforços sempre fracassaram. O comentário é extensível aos países da América hispânica, onde as elites exprimiram frequentemente a frustração desse fracasso: o triunfo da desordem, o capricho e a incoerência que impediriam em nossos países a acumulação e desenvolvimento orgânico das sociedades modelo. Um retrato desta visão, sob chave paródica, o oferece o filme Memorias del subdesarrollo (1968)

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Sebastiaan Faber faz o seguinte comentário que aponta na mesma direção: “Curiosamente, Žižek, al explicar el funcionamento de la ideología en nuestras sociedades posmodernas e irónicamente autoconscientes, acaba proponiendo una idea parecida a la de Schwarz: es posible darse cuenta de la falsedad de las apariencias y sin embargo actuar como si no” (p. 149).

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de Tomas Gutiérrez Alea, baseado no livro homônimo de Edmundo Desnoes. Nele, o protagonista Sergio, intelectual cubano que vivencia as mudanças trazidas pela revolução de 1959, diz em relação a sua namorada Elena, também cubana:

Una de las cosas que más me desconcierta de la gente es su incapacidad para sostener un sentimiento, una idea, sin dispersarse. Elena demostró ser totalmente inconsecuente. Es pura alteración, como diría Ortega. Lo que sentía ayer no tiene nada que ver con su estado de ánimo actual. No relaciona las cosas. Esa es una de las señas del subdesarrollo: incapacidad para acumular experiencia y desarrollarse.20

Elena representa para Sergio aquilo que teria de vencer Cuba para ser como a Alemanha, o país natal de Hannah, a sua exemplar namorada de juventude, “más madura, más mujer que las muchachas subdesarrolladas de aquí”. É claro que no filme de Tomas Gutiérrez Alea o alvo da crítica não é o “povo” incoerente e indisciplinado, mas o intelectual que pensa que o problema do país é esse, reproduzindo os preconceitos dos colonizadores e eludindo olhar para as fraturas que o separam do resto da população. No caso do ensaio de Candido (quase contemporâneo de Memorias del subdesarrollo), também já não há lamento pela impossibilidade de atingir o modelo dos países centrais por causa da “irregularidade” popular local. Pelo contrário, esta passa a ser vista com certa positividade, como alternativa de formação de uma sociedade mais aberta e tolerante que as capitalistas de raiz protestante, onde o custo pago pela coesão seria a desumanização das “relações com os outros, sobretudo os indivíduos de outros grupos, que não pertencem à mesma lei” (p. 86). Interessa sublinhar que para o momento em que Candido escreve seu ensaio ainda as lógicas do cá e do lá pareciam claramente diferenciáveis. Em 1979, em “Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem”, Schwarz nos indica que as coisas já não seriam assim. Nesse artigo, o crítico afirma que “diante da extraordinária

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O filme está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QezOiMnDyHQ. A passagem referida começa no minuto 49:35. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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unificação do mundo contemporâneo sob a égide do capital” (2002, p.153), a ideia de que o Brasil funcionaria segundo uma lógica independente e alternativa da dos países capitalistas centrais já não pareceria sustentar-se (vale destacar que a observação é anterior da queda do muro de Berlim, que reafirmará a unificação global pelo capitalismo). No seu ensaio, Schwarz assinala que a ditadura no Brasil ensinou que a “dialética entre ordem e desordem”, que servia popularmente para burlar os rigores do capitalismo, também podia servir brutalmente aos interesses do capital. Para Schwarz, se Candido pensou que a “dialética entre ordem e desordem” podia dar lugar a uma formação alternativa, isto se deveu ao erro de considerar as histórias nacionais por separado e não como “termos de uma história comum”. Uma história de que seriam “parte e reveladores tanto as Memórias [de um sargento de milícias] quanto A letra escarlate, o Brasil como os Estados Unidos” (p. 153). Cabe acrescentar que esse também teria sido o erro dos intelectuais que antes lamentaram a incoerência nacional diante do funcionamento dos países centrais do capitalismo. Em relação a um lamento deste tipo, feito por Silvio Romero, Schwarz escreve em “Nacional por subtração”: Implícita na reclamação está a norma da cultura nacional orgânica, passavelmente homogênea e com fundo popular, norma aliás que não pode ser reduzida a uma ilusão da historiografia literária ou do Romantismo, pois em certa medida expressa as condições da cidadania moderna. É por oposição a ela que o quadro brasileiro [...] configura um disparate. Por outro lado, para situá-la realisticamente, note-se que a exigência de organicidade coincidia no tempo com a expansão de Imperialismo e ciência organizada, duas tendências que tornavam obsoleta a hipótese de uma cultura nacional autocentrada e harmônica (2002, p. 40-41).

A história comum que vinculava as culturas nacionais orgânicas,  passavelmente homogêneas, com o imperialismo, assim como a rigidez das sociedades de raiz protestante com a malandragem brasileira era a da expansão do capitalismo, indistinguível da expansão da modernidade21. Expandido o capital pelo globo,

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No livro Uma modernidade singular, Jameson afirma que acredita que “o único significado semântico satisfatório para modernidade” se encontra “na sua associação com o capitalismo” (p. 22), e propõe o experimento de substituir a palavra “modernidade” por “capitalismo” em todos os contextos em que a primeira aparece. Convém também lembrar que, segundo o chamado pensamento descolonial, a

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modernizados os “desclassificados da ordem colonial” – para usar uma expressão de Paulo Arantes (2004, p. 66) –, nem o Brasil virou uma nação moderna segundo o modelo das do centro, nem houve lugar para um modelo social alternativo. Certamente, a malandragem brasileira (e hispano-americana) facilitou sua “inserção num mundo eventualmente aberto”, mas aberto em sentido neoliberal. Essa abertura fez que o mundo ganhasse em “flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência”, mas não no sentido referido por Candido. Daí que, em “A fratura brasileira do mundo”, Paulo Arantes fale de uma “dialética brasileira da malandragem de ponta cabeça” (2004, p. 62). Nesse artigo, o autor descreve a mudança acontecida com as seguintes palavras – que parafraseiam ironicamente uma tese de Ulrich Beck –: na Primeira Modernidade tudo era uma questão de segurança, certezas e demarcações nítidas entre o sim e o não, agora, da economia à intimidade, tudo se encontra sob o novo regime do risco. Sobretudo a compra e venda da força de trabalho, domínio no qual passamos a exportar know-how em matéria de flexibilidade máxima (p. 64)

A “flexibilidade” quer dizer, antes que nada, flexibilidade do trabalho e, portanto, a palavra descreve a condição de indivíduos que hoje, cá e lá, têm de se virar porque não tem nada fixo, como o malandro popular clássico. Por este motivo, Arantes afirma que à flexibilidade do capitalismo global é preciso dar “seu verdadeiro nome brasileiro, a saber: um agravamento tal da espoliação e desamparo dos indivíduos flexibilizados a ponto de assumirem cada vez mais os traços dos ‘homens precários’ da periferia” (p. 65). Na visão de Arantes, hoje já não ficaria espaço para uma visão otimista da malandragem, posto que, por todos os lados, veríamos o predomínio de seus traços negativos: ilegalidade, crime, impunidade. Os setores populares não seriam a exceção como ilustraria o romance Cidade de Deus, segundo a leitura que dele faz Schwarz, citada por Arantes. Para Schwarz, o romance de Paulo Lins mostra que “a constelação cordata e otimista [da malandragem] vai ser questionada pela pobreza, o colonialidad, a modernidade e o capitalismo são indissociáveis e começam simultaneamente. A respeito ver “La perspectiva de la Colonialidad del Poder y el giro descolonial” de Laura Rita Segato.

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desemprego e, sobretudo, pelos primeiros cadáveres boiando no rio que corre ao lado da favela” (ARANTES, p. 68; SCHWARZ, 1999, p. 164). É de destacar que este texto de Schwarz já é da década de 90, isto é, posterior à queda do muro, e, portanto, de um tempo em que a ideia de que há lugar para modelos sociais alternativos ao capitalismo termina por se esvair. Segundo a análise de Toni Negri e Michael Hard, com a queda das “barreiras soviéticas ao mercado”, se estabeleceria uma nova ordem mundial que eles chamam Império, caracterizada “fundamentalmente pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites” (p. 14). Para Negri e Hard, o Império, em contraste com o imperialismo de épocas anteriores, “não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas. É um aparelho de descentralização e desterritorialização do geral que incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão” (p. 12). Os autores falam de um território mundial “liso” [smooth]22 e em que “não existe mais lado de fora” [there is no more outside]23, e que, por isso, não pode ser compreendido segundo as anteriores divisões espaciais: Com a descentralização de produção e a consolidação do mercado mundial, as divisões internacionais e os fluxos de trabalho e capital quebraram e se multiplicaram, de modo que já não é possível demarcar grandes zonas geográficas como centro e periferia, Norte e Sul. Em regiões geográficas como o Cone Sul da América Latina ou o Sudeste da Ásia, todos os níveis de produção podem existir simultaneamente lado a lado, dos mais altos níveis de tecnologia, produtividade e acumulação aos mais baixos. [...]. A geografia de desenvolvimento desigual e as linhas de divisão e hierarquia não são mais encontradas ao longo de estáveis fronteiras nacionais ou internacionais, mas em fronteiras fluidas infra e supranacionais (p. 357).

Negri e Hard esclarecem que o anterior não quer dizer “que Estados Unidos e Brasil, Inglaterra e Índia agora são territórios idênticos em termos de produção e circulação capitalista, mas sim que entre eles não existem diferenças de natureza, apenas 22

Prefiro a palavra “liso” à “suave”, empregada na tradução portuguesa de Império que cito. A colocação é devedora em boa medida de Fredric Jameson como os autores reconhecem: “‘O pósmodernismo’, diz-nos Fredric Jameson, ‘é o que se tem quando o processo de modernização se completa e a natureza desaparece para sempre’” (p. 207); “Podemos dizer, então, como Fredric Jameson, que a pósmodernização é o processo econômico que surge quando tecnologias mecânicas e industriais se expandem até cobrir o mundo inteiro, quando o processo de modernização está completo, e quando a subordinação formal do ambiente não capitalista atinge o limite” (p. 293).

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de grau” (p. 357). Na nova ordem imperial haveria diferenças, mas não grandes diferenças de funcionamento. Em todos lados encontraríamos a mesma lógica, a mesma gramática, encadeando elementos diversos. De fato, como lembra Nelly Richard, o capitalismo global, longe de acabar com toda diferença, estimula sua reprodução porque o mercado “cuenta con lo diverso para ampliar sua oferta de libre consumo y elección”24. Mas essa multiplicação das diferenças vem acompanhada de um achatamento das diferenças radicais, e da rejeição de tudo o que não se adapta às “reglas de acumulación flexible del mercado capitalista” (RICHARD, 2006, p. 48). Em palavras de Negri e Hard, o Império “consegue a inclusão universal pondo de lado diferenças que sejam inflexíveis ou inadministráveis, e que podem dar origem a conflito social” (p. 217). Dado o novo funcionamento do capitalismo global, não surpreende escutar hoje das antigas nações de raiz protestantes defesas de uma sociedade mais aberta e tolerante, como o exemplifica o comentário de Tony Blair citado páginas atrás. Comentário (malandro) que ensina também aquilo que passa a não ser tolerado: os grupos e indivíduos de “grande força de identidade e resistência” (CANDIDO, 1970, p. 86). É por meio da exclusão do resistente – do radicalmente diferente – que se forma esse espaço sem asperezas pelo que se podem deslizar sem conflito, por cá e por lá, uma grande diversidade de produtos, consumidores e produtores, como o exemplifica o caso do DJ Masa com que abrimos este capítulo. Negri e Hard denominam esse espaço “nãolugar”, dado sua carência de relevo e limites. Nome sugestivo que indica até que ponto

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A afirmação foi proferida por Richard na palestra “Localidades del saber: ubicación, contextos y traducción”, realizada na Universidad de Arcis, no ano 2011; disponível no site http://vimeo.com/32595501 (Última consulta 17 de fevereiro de 2016. A afirmação está no minuto 00:13:10). A palestra é uma nova versão do artigo “Los pliegues de lo local en el mapa de lo global: reticencia y resistencia” (2006) que cito umas linhas adiante.

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as coisas mudaram desde que Schwarz falou por primeira vez, em uma época de espaços ainda claramente diferenciados, de “as ideias fora de lugar”. 1.7. Os críticos sem literatura, uma vez mais - De Machado a Caetano Em uma entrevista de 2004, recolhida no seu mais recente livro, Martinha versus Lucrécia (2012), Schwarz reconhece que vivemos um momento em que essa ideia de sociedade, como algo circunscrito, com destino próprio, está posta em questão, para não dizer que está em decomposição. Já ninguém pensa que os países de periferia têm uma dialética interna forte — talvez alguns países do centro tenham, talvez nem eles. […] é fato que o processo social mudou de natureza. A circunscrição dele, no sentido em que você podia dizer ‘essa é a sociedade brasileira’, está deixando de ser efetiva” (2012, p. 292).

Essa perda de estruturação e circunscrição da sociedade se daria acompanhada de um fenômeno análogo nas obras literárias e artísticas que já não seriam tão arquitetadas e definidas quanto antes: “no campo das obras, com a entrada maciça do mercado e da mídia na cultura, é voz corrente que a ideia de arte mudou, e é possível que o padrão de exigência do período anterior tenha sido abandonado. Talvez os pressupostos da crítica dialética estejam desaparecendo.” (2012, p. 293). Os pressupostos da crítica dialética estariam desaparecendo, porque esta procura na forma bem estruturada das obras literárias um conhecimento sobre as relações sociais. As obras exigentes, como a de Machado de Assis, sintetizariam na sua forma o funcionamento da sociedade de um determinado lugar, e lhe corresponderia ao crítico decifrá-lo mediante uma “leitura ativa, que não se limite ao padrão passivo da leitura corrente”, o que é, aliás, “um aspecto decisivo da literatura moderna, em sentido próprio, aquela que busca o inconformismo.” (1999, p. 237). O que surpreende da afirmação anterior é que ela não é feita por Schwarz em referência a um clássico da literatura, mas ao diário de Helena Morley, uma obra “sem intenção literária”, mas que o crítico considera tem uma “arquitetura esplêndida”, 46

comparável em qualidade a Dom Casmurro – “composição elaborada ao máximo” –, ainda que a comparação tenha “um tantinho de provocação” (p. 238). A provocação relativiza a importância outorgada a “grande literatura”, sugerindo que esta não seria a única que encerra ensinamentos na sua estrutura formal. Obras – aparentemente – menores, como o diário de Helena Morley, também poderiam recompensar o esforço da leitura exigente. Aliás, cabe lembrar, que pela falta de uma tradição literária formada em nossos países até épocas relativamente recentes, o crítico literário teria de dedicar parte de seus esforços interpretativos a obras “menores”, como fizera, por exemplo, Antonio Candido em Formação da literatura brasileira e em “Dialética da malandragem”, considerado por Schwarz “o primeiro estudo literário propriamente dialético” no Brasil (2002, p. 129). E hoje, ante o que parece ser uma crescente multiplicação e descaracterização do literário, o crítico teria de atender, uma vez mais, obras que não são propriamente literatura, mas que se localizam na margem dela, como o exemplifica a recente leitura que faz Schwarz do livro Verdade Tropical de Caetano Veloso. O anterior indica que as boas obras literárias, depois de tudo, não seriam tão importantes para a crítica dialética. Todavia, é claro que Schwarz não considera que todos os produtos culturais peçam e recompensem da mesma maneira uma leitura exigente. Justamente em “Verdade Tropical: Um Percurso do Nosso Tempo” aparece a contraposição “arte exigente e indústria cultural” cujas barreiras, assim como as que separam “experimentalismo e tradição popular”, Caetano Veloso visaria derrubar no Brasil. Ao situar a indústria cultural como o extremo oposto da arte exigente – daquela que requer o esforço de leitura –, Schwarz segue na esteira de Adorno e Horkheimer, que afirmam que para a indústria cultural “toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada” (1986, p. 65). Assim, por exemplo (e 47

em primeiro lugar), os filmes “são feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do expectador, se ele não quiser perder os factos que desfilam velozmente diante de seus olhos” (p. 60). Para Adorno e Horkheimer, desta forma, a indústria cultural visa barrar qualquer “pensamento próprio” (p. 65), o estabelecimento de uma distância crítica diante do existente. Ela substitui o ideal de sujeito moderno, crítico e autônomo – que pensa por si mesmo –, pelo ideal do expetador passivo25. A indústria cultural seria expressão do avanço da lógica capitalista que, segundo advertiu Guy Debord, terminará mostrando-se capaz de transformar tudo em um espetáculo (em pura imagem) para ser consumido passivamente. Sem ânimo de exagerar as semelhanças entre os autores26, é de notar que os comentários de Schwarz sobre a crônica de jornal na época de Machado de Assis encaixam bem como descrição de um momento incipiente desse processo. Trata-se do momento de estabelecimento da imprensa, a imprensa moderna, que passa de tudo para tudo de maneira muito irresponsável sempre tentando captar a atenção do leitor que é um eventual comprador. Esse ângulo irresponsável da crônica, que é o ângulo do mercado, isso que é importante dizer... quer dizer, ele é sustentado pela experiência de mercado. A crônica desse tipo tem como única obrigação fazer que o leitor preste atenção e se comporte em última análise como um consumidor em escala planetária – ele consome crises na Turquia, ele consome cartolas da rua do Ouvidor ele vai consumindo e essa misturada faz o tom da crônica27.

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Em um artigo de 1967, em que volta sobre o assunto, Adorno escreve: “efeito de conjunto da indústria cultural é o de uma antidesmistificação, a de um anti-iluminismo (anti-AufKlärung); nela, como Horkheimer e eu dissemos, a desmistificação, a Aufklärung, a saber a dominação técnica progressiva, se transforma em engodo das massas, isto é, em meio de tolher a sua consciência. Ela impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente” (1971, 295). 26 Ismael Xavier sugere a existência de pontos de contato entre Schwarz e Debord no ensaio “O mundo tem as caras que pode ter”, que começa mostrando como algumas colocações feitas pelo primeiro em 1965, poderiam passar pelas de um leitor atual do segundo. 27 A declaração foi feita por Schwarz em um entrevista com José Miguel Wisnik para a série 'Obra Aberta', da TV PUC. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m5y1Tc5sKN8. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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O que faz a imprensa moderna, atuando segundo a lógica do mercado, é tirar fatos dos contextos mais variados e pô-los a circular (esvaziados) para seu consumo. Para Schwarz, então, produtos como este estariam no lado oposto da “arte exigente”. Ou pelo menos assim seria até “a entrada maciça do mercado e da mídia na cultura”, ou seja, até que a indústria cultural passou a abarcar todo tipo de produções, fazendo difícil diferenciar umas das outras, a que pede consumo passivo da que pede leitura exigente. Por outra parte, se a indústria cultural mostrou-se capaz de absorver a “arte exigente”, o caso de Machado de Assis – estudado por Schwarz – pode ser considerado como um dos primeiros exemplos, entre nós, de que os meios e os produtos da indústria cultural também podiam ser apropriados e usados em outros sentidos, que não o do chamado a passividade. Segundo Schwarz, Machado de Assis, que escreveu crônica de jornal, empregou o tom desta nos romances da segunda etapa para revelar a forma de funcionamento particular da sociedade brasileira desde o ponto de vista de suas elites. O tom seria o adequado, pois condiria com o comportamento daquelas elites de um país periférico, de herança colonial recente, acostumadas a assumir como moda (ou seja, como adorno, como pura imagem de prestígio) as ideias vindas do centro do capitalismo. O interessante do caso de Machado de Assis, pois, é que mostraria não só a possibilidade de uma apropriação crítica de formas literárias tradicionais europeias – ao tempo que daria continuidade, criticamente também, a seus antecessores brasileiros –, mas de uma forma recente como a crônica jornalística que, como expressão incipiente da indústria cultural, estimularia no leitor o consumo conformista do existente. A palavra a sublinhar aqui é crítica. Machado de Assis adota o tom da crônica, emprega um narrador que pula arbitrariamente entre temas e formas variadas, mas para expor o proceder da classe dominante, a qual esse narrador representa. Machado de

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Assis, portanto, não se identifica com o narrador e seus procedimentos, muito pelo contrário28. Já no caso de Verdade Tropical, o autor, Caetano Veloso, se identifica com seu narrador de tipo machadiano (como é de esperar, tratando-se de um livro de memórias), sendo o resultado a “renuncia à negatividade” (2012, 109), que fica substituída pela irreverência acrítica de Brás Cubas. Assim o considera Schwarz, para quem a irreverência tropicalista de Caetano, que faz uma “colagem de elementos que não casam, dissonantes pelos respectivos contextos de origem” (por exemplo, Chacrinha e Sartre), é, no fundo, apologética, dado que celebra uma rebeldia consonante com a lógica de funcionamento do mercado, que sairá fortalecida do 64. Se Brás Cubas é o representante da elite brasileira do fim do século XIX, Caetano o seria de uma geração de intelectuais que, antes de 64, se sentia impulsionada pelas aspirações de justiça social e “parecia ter diante de si a oportunidade de mudar profundamente a ordem das coisas”, mas que logo passaria a considerar o capitalismo “inquestionável”, adotando “os pontos de vista e o discurso dos vencedores da Guerra Fria” (2012, 109). É importante lembrar que mais do que a produção artística de Caetano Veloso – só tocada de forma muito tangencial – o que Schwarz critica do artista é um discurso historiográfico em que o protagonista rebelde acaba justificando o curso da história ou, então, em que a crítica e a apologia terminam por se confundir. É por esse acômodo ou confusão que Schwarz questiona a empreita de Caetano de derrubar as barreiras que separam a “arte exigente e indústria cultural, experimentalismo e tradição popular”; pois ao celebrar sem crítica essa derrubada, o artista terminaria celebrando o próprio avanço do capitalismo que fazia esta irremediável. Por outra parte, ao assinalar isto, o objetivo de Schwarz não é defender a separação entre as esferas culturais como positiva. Logo após ao comentário sobre a empreitada de Caetano, o crítico lembra que a derrubada das 28

Esta tese é exposta, entre outros lugares, em um Mestre na periferia do capitalismo (2000 p. 53-54).

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barreiras dava “prosseguimento, noutra chave, a tendências sociais e artísticas anteriores a 64” (p. 95). A diferença estaria em que: sob o signo do ascenso popular, a convergência entre inovação artística e dessegregação social antecipava, ilusória ou não, alguma forma de superação socialista, que colocava a experimentação estética no campo da busca de uma sociedade nova e melhor. Já sob o signo contrário, da derrota do campo popular, os mesmos impulsos adquiriam uma nítida nota escarninha, inclusive de autoderrisão, aliás indispensável à verdade do novo quadro. (p. 95 - 96).

Para Schwarz a divisão – moderna – entre “arte exigente e indústria cultural, experimentalismo e tradição popular” indicava fraturas sociais a ser superadas. Daí que considere que o apagamento daquela divisão em épocas recentes – na época da completa modernização ou expansão do capitalismo – é enganosa. Ela acontece sem que se produza uma diminuição da desagregação social, transmitindo uma falsa ideia de diluição dos conflitos, o que faz que a “autoderrisão” seja “indispensável a verdade do novo quadro”. Esta é a razão de que Schwarz não celebre o apagamento dessas divisões, e que desacredite que tal apagamento aconteça por completo; o que sugere, como tarefa para o crítico, ler os antagonismos mesmo lá onde tudo parece misturar-se alegremente. É por essa razão também que logo depois de afirmar que “talvez os pressupostos da crítica dialética estejam desaparecendo”, o crítico acrescente sua nota de ceticismo: “também não me convenço de que [ela] não seja mais possível”. Apontamento que, contudo, é seguido da ênfase: “Mas é fato que o processo social mudou de natureza”. A questão central, então, não é se ainda há ou não há grandes obras literárias para o exercício crítico dialético. De fato, mesmo com o avanço do mercado cultural – e dos lamentos de costume de um conjunto de críticos –, não há como assegurar que já não se escrevem, em nenhum lugar, obras com os parâmetros de exigência de outrora, se bem é verdade que identificar tais obras pode ter ficado mais difícil. A ênfase de Schwarz indica o que interessa é tentar entender e pensar a mudança acontecida, que inclui o fato de que o crítico dialético brasileiro se veja obrigado hoje, como outrora, a 51

considerar objetos que saem do “propriamente” literário. Na verdade, talvez a pretensão de que a crítica poderia permanecer exclusivamente no espaço da literatura ou, melhor, das literaturas nacionais formadas não foi mais do que uma ilusão de um momento específico. Como já se disse, parte do que mudou nos últimos tempos é que o ideal de formação de uma nação orgânica e autônoma caiu em descrédito. Nesse ideal a literatura tinha um papel central, posto que a intelectualidade viu nela um espaço de revelação e modelação do ser nacional, tanto no Brasil como em outros países da América Latina. Nesse sentido, não surpreende que a descrédito do ideal de nação orgânica tenha estado acompanhado de uma perda de centralidade da literatura. 1.8. A fixidez dos trânsitos: da ditadura à democracia e dos estudos literários aos estudos culturais Uma interpretação afim à anterior é proposta por Brett Levinson na introdução de The Ends of Literature29 (2001), onde vincula as mudanças sofridas pelo estadonacional e pela literatura em décadas passadas. Para Levinson, a literatura perdeu o lugar privilegiado que tinha “nas instituições da sociedade civil e, por conseguinte, no próprio Estado”; e neste último a ideia de soberania se volatilizou (p. 1). Segundo Levinson, a época em que aconteceram ambas as coisas é, no caso particular da América Latina, os anos oitenta e noventa. São os anos em que os estudos literários transitam para os estudos culturais (principalmente, acrescento eu, na academia norteamericana, desde onde exercem grande influência) e em muitos países de nosso continente fortes ditaduras de Estado transitam para a “abertura democrática”. “Mas [continua Levinson] as duas transições não só coincidem no tempo […]. Elas representam também denúncias semelhantes do Estado. De fato, de acordo com o ‘giro

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As traduções das citações dos textos que ainda não foram traduzidos para português ou espanhol são minhas.

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cultural’ a instituição literária é uma sinédoque do estabelecimento de um Estado muito forte” (p. 5). Assim, enquanto “a transição da ditadura para a democracia se opõe ao Estado em um esforço por abrir as portas para o retorno da sociedade civil, para novas associações culturais e para formas populares de expressão” (p. 6), os estudos culturais se voltam para o estudo de produções e sujeitos marginalizados, que não tinham cabimento no tempo em que a alta literatura era considerada o espaço privilegiado para a discussão e definição da identidade nacional (em instituições como a escola ou a universidade) 30. Ainda que o olhar de Levinson concentra-se no apelo a uma abertura democrática nos países do Cone Sul, é claro que o fenômeno faz parte de um movimento maior. Por exemplo, no caso da Colômbia, meu país de origem, desde fins da década de oitenta falou-se da necessidade de uma modernização do Estado e uma abertura democrática que permitisse a participação de setores antes excluídos fazendo desnecessária a continuação das lutas armadas. Tal apelo levou à redação da Constituição de 1991, que, entre outras coisas, reconheceu o país como multiétnico, multicultural e multiregional; mas ao mesmo tempo sentou as bases de uma série de medidas neoliberais, que levaram ao enfraquecimento das políticas públicas e abriram a

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A respeito vale a pena citar em extenso uma passagem do prólogo que escreve Julio Ramos para a edição chilena de Desencuentros de la modernidad en América Latina, que resume as mudanças acontecidas na crítica literária: “el libro –inicialmente una tesis doctoral presentada en Princeton en 1985– se armó en un momento muy creativo de la historia reciente de la crítica. Comenzaba a cuestionarse el privilegio estético, literario, en la constitución (disciplinaria) de los estudios humanísticos. Y si los estudios humanísticos, al menos desde la rectoría de Andrés Bello en la Universidad de Santiago de Chile, habían estado íntimamente ligados a la formación del Estado y a la educación ciudadana, la crisis del privilegio estético-cultural a partir de la década de los setenta (por lo menos), implicaba también el reposicionamiento de muchos intelectuales en la época que comenzaba a denominarse ‘postmoderna’. Era la época en que Rama escribía su irónica historia de los letrados, puntualizando el poder público de la escritura –de ciertas escrituras–, mientras Ludmer, ante la ley, tras leer a Onetti, entramaba El género gauchesco: un tratado sobre la patria, y Monsiváis recalcaba la importancia histórica de la crónica, de los géneros ‘menores’ y declaraba Entrada Libre. En el medio de los estudios latinoamericanos comenzaban a escucharse también las opciones propuestas por la crítica postcolonial –las genealogías del poder cultural, en los trabajos de E.W. Said, por ejemplo– que gradualmente estimularon las discusiones en las zonas más críticas del latinoamericanismo del Norte” (p. 45).

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porta a intensas privatizações, como aconteceu também no Cone Sul e em muitos outros lugares da América Latina. Nas palavras do analista Francisco Gutierrez-Sanín: “La Constitución democratizó con una mano, pero a la vez oficializó la implementación del neoliberalismo con la otra” (434)31. É justamente essa coincidência entre projetos de democratização e projetos neoliberais um dos motivos para que Levinson afirme – citando Alberto Moreiras – que a transição (a da ditadura para a democracia, mas também a dos estudos literários para os estudos culturais) se esgotou, não teria mais o que oferecer, chegou a seu final (pp. 56). Levinson esclarece que isto não quer dizer que nos anos da transição não tenha acontecido nenhuma mudança positiva, e de fato seria difícil deixar de reconhecer que certa ampliação democrática ocorreu; também não que se deva tentar uma volta atrás, ao Estado forte e à centralidade da literatura. Trata-se tão só da constatação de que não há mais o que esperar das transições (p. 6). Para Levinson, os ataques ao Estado muito rígido, nos levaram para o domínio do mercado muito variável, que desde a transição passa a ser visto como necessário e inevitável até por muitos “militantes” de esquerda. Por isso, ele considera que a tarefa que deixa o fim da transição é um “pensamento e uma praxis” que leve para “transição da transição” (p. 9), um fecho para a situação atual, que parece não oferecer a possibilidade de mais transições. Vinculando as colocações de Levinson com as de Rita Segato, em La nación y sus otros, podemos dizer que o esgotamento das transições coincide com o das políticas identitárias, que têm por centro a demanda de inclusão. Segato considera o mesmo período que Levinson só que em contexto maior, referindo-se a queda do muro de

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Outros textos sobre este tema que podem ser consultados: “La Constitución de 1991 y el Estado de la Nueva Era del Capitalismo” de Víctor Manuel Moncayo, “Mitos fundacionales, reforma política y nación en Colombia” de Miguel Angel Urrego, “Entre socialdemocracia y neoliberalismo: ¿mezcla virtuosa o viciosa?” de Iván Jaramillo Pérez y “2011: 20 años de una Constitución, 200 años de constitucionalismo republicano” de Medófilo Medina.

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Berlim e o abandono da tradicional luta de classes. A limitação das políticas identitárias seria que, ao abandonar a luta contra um objetivo maior (o capitalismo), reduziriam as identidades a simples diversidades que procuram se inscrever em um “mundo asentado sobre premisas y valores ya constituidos e incontestables” (2007, 17). Assim teríamos diferentes estilos de vida que compartiriam uma mesma forma ou estrutura de fundo, que permaneceria imutável, fechada a qualquer trânsito, como diria Levinson32. As colocações citadas de Levinson e, em parte, as de Segato foram elaboradas por volta do ano 2000, com base na experiência da expansão neoliberal no continente na década de 90. Isto é, antes do estabelecimento dos governos da chamada “guinada à esquerda” ou “onda rosa” [marea rosada], que muitos viram como a superação do neoliberalismo na América Latina. Contudo, como já se disse anteriormente, se bem os governos da “marea rosada” adotaram políticas públicas e sociais que os diferenciam inquestionavelmente dos governos abertamente neoliberais do período passado, eles não mudaram radicalmente sua forma de funcionamento. Na visão do crítico chileno Sergio Villalobos Ruminott os governos em questão tentariam “una crítica del neoliberalismo que no se reduce a una ruptura radical (e imposible) con su lógica de acumulación, sino que intenta adaptarse a él y dotarlo de un rostro más humano”33. Tal adaptação pode ser defendida como estratégica, um primeiro passo que deve dar lugar a mudanças mais radicais e assim levar, finalmente, ao desmonte total do neoliberalismo, como

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Para Segato “la lucha de los movimientos sociales inspirados en el proyecto de una ‘política de la identidad’ no alcanzará la radicalidad del pluralismo que pretende afirmar a menos que los grupos insurgentes partan de una conciencia clara de la profundidad de su ‘diferencia’, es decir, de la propuesta de mundo alternativa que guia su insurgencia. Diferencia que aquí entiendo y defino no con referencia a contenidos substantivos en términos de ‘costumbres’ supuestamente tradicionales, cristalizadas, inmóviles e impasibles frente al devenir histórico, sino como diferencia de meta y perspectiva por parte de una comunidad o un pueblo.” (2007, p. 18) 33 Cito del texto “La Marea Rosada Latinoamericana: entre Democracia y Desarrollismo”, disponível em http://www.panoramas.pitt.edu/content/la-marea-rosada-latinoamericana-entre-democracia-ydesarrollismo. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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parece sugerir Alvaro García Linera para o caso boliviano34. Contudo, observa Villalobos Ruminott, em casos “como el chileno y el brasileño lo que impera son gobiernos abocados a corregir la injusta distribución del ingreso y a mantener la disciplina fiscal y la gobernabilidad para facilitar la integración al mercado mundial”. Por isso, pergunta se é apropriado falar de “pós neoliberalismo” na América Latina, como alguns autores sugerem35, ou se é mais apropriado hablar de un neoliberalismo de segundo orden que, usando al mismo Estado como katechon o contención y mecanismo de desactivación de los movimientos sociales, mediante formas y grados diversos de represión y persuasión, asegura la hegemonía del capital cuidando el escenario macroeconómico indispensable para el despliegue de formas flexibles de acumulación en la actualidad. [...] El neoliberalismo de segundo orden no parece necesitar de dictaduras militares, sino que se articula inteligentemente con un Estado que ya no le parece interventor y al que le dejaría cierto margen de maniobra en el ámbito de políticas compensatorias o redistributivas, pero cuya responsabilidad sería asegurar los processos productivos y extractivos que están a la base de lo que Maristella Svampa ha llamado el consenso de las mercancías y el maldesarrollo.

Talvez, portanto, mudanças de fundo nunca estiveram verdadeiramente no horizonte de, pelo menos, alguns dos governos progressistas. Se hoje estes se encontram em crise, uma atividade conveniente parece ser avaliar sua própria responsabilidade nessa situação. Seja como for, seria errado afirmar que com os governos progressistas aconteceu “a transição da transição” de que fala Levinson. E pior, tal afirmação trabalharia em favor da suspensão ou impedimento de seu acontecimento. 1.9. O escritor confinado: o caso de Luiz Alberto Mendes O caso de um escritor brasileiro nos serve para ilustrar o tipo de impasse com que nos deixaram as transições mencionadas por Levinson. O escritor é Luiz Alberto 34

Ver por exemplo seus comentários na entrevista “Socialismo, comunidad e integración”. Disponível em http://eldesconcierto.cl/entrevista-alvaro-garcia-linera-socialismo-comunidad-e-integracion-parte/. Uma interpretação menos otimista do processo boliviano é desenvolvida por Salvador Schavelzon no texto “Podemos, Sudamérica, y la república plurinacional de España”. Disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=195069. Há uma tradução para o português disponível em http://uninomade.net/tenda/podemos-america-sul-e-republica-plurinacional/. Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 35 É o caso de Emir Sader, em “A ultraesquerda fracassou”. Disponível em: http://www.pagina13.org.br/internacional/emir-sader-a-ultraesquerda-fracassou/#.VOaSD_nF-So. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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Mendes, que em uma recente entrevista para a Globo News falou sobre sua vida e seu trabalho literário36. Mendes conta que passou mais de 30 anos na cadeia, um “inferno” do qual os livros o teriam salvado. Ele poderia ser considerado um exemplo do poder transfigurador, regenerador e integrador da literatura e da educação pregado pelos estudos literários tradicionais, pois, na cadeia, a leitura – a cultura literária – o afastou do crime e o levou à escrita. A literatura lhe mostrou outras possibilidades de vida, como se costuma dizer. Contudo, se dependesse dos estudos literários tradicionais, interessados só nos grandes clássicos, Mendes nunca teria obtido reconhecimento como escritor. Se na academia obteve esse reconhecimento, isto se deveu a ampliação de campo realizada pelos Estudos Culturais. Como se disse, são estes os que abriram um espaço para as produções tradicionalmente marginalizadas. Mas essa abertura, não deixa de impor suas limitações como Mendes bem reconhece: “na USP o que eu escrevo é literatura carcerária... Carcerária o caramba, rapaz! Eu li a vida toda, eu faço clássicos, eu disputo com qualquer um deles, cara!”. O problema que enfrenta Mendes hoje é que, apesar de seu desejo de ser considerado um escritor de clássicos e não só como um escritor marginal, só é reconhecido como o segundo. Seu valor como escritor na academia, e também no mercado (seu último livro, Cela forte, apareceu no selo “literatura periférica” da Editora Globo), está vinculado à identidade de escritor carcerário. Paradoxalmente, mesmo seu valor contestatário parece depender de que não deixe de ocupar “o lugar que lhe corresponde”. Nas letras, por enquanto, e depois de mais de 10 anos de atividade, parece que lhe está proibido sair da prisão.

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A entrevista está disponível em https://youtu.be/WnUPVxfzlcg/. Última consulta 17 de fevereiro de agosto de 2016.

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Mas Mendes confronta também outro tipo de confinamento bem mais material: “agora eu sou escritor, tenho quatro livros publicados e tudo mais, tenho coluna e tudo mais [na revista Trip], mas eu não tenho dinheiro, sou um duro. Eu estou preso aqui ao meu bairro e a minha casa, porque se eu sair daqui do meu bairro gasto pelo menos 50 reais. Eu não posso gastar 50 reais, porque eu não ganho 50 reais por dia”. Tal confinamento é compensado pelo espaço libertador e democrático da internet: “A minha liberdade é meu computador, a internet, né? A internet para mim é uma tremenda liberdade, eu me comunico com o mundo. Tem um livro meu, Tesão e prazer, que ele foi publicado na Rússia. Então, cada livro meu que é vendido, eu estou dentro dele, a minha liberdade é aquilo”. O fato de que alguém possa se comunicar com “o mundo” e, ao mesmo tempo, não possa sair da casa em que mora é bastante expressivo dos limites da participação na globalização, assim como da forma em que esta redefine fronteiras (e ainda haveria que falar dos limites da democracia na internet, onde, o controle do visível e da informação está nas mãos de companhias como Google e Facebook, por exemplo). Para Mendes é possível se comunicar com o mundo, participar dele, mas, ao mesmo tempo, o mundo continua a ser um lugar longínquo, além de onde ele está. Isto aparece mais claramente quando o escritor fala de seu projeto para os próximos 10 anos, que é o tempo que acha ainda terá de produtividade (Mendes tem 60 anos no momento da entrevista): “eu quero ser um escritor a nível internacional, sabe? Publicar meus livros em outros países e tudo mais; na Europa, nos Estados Unidos e tudo mais. E não para glória pessoal minha e sim para mostrar que uma pessoa que sai de um buraco, de uma cela forte pode chegar ao mundo de repente”. A declaração é interessante não porque nos revela que na globalização é de fato possível passar do buraco ao mundo (o que é colocado por Mendes como uma 58

possibilidade mais bem incerta, algo que “de repente” pode acontecer), mas porque nos diz que ainda há buracos, lugares em que apesar de todos os fluxos e trânsitos, não é possível sentir que se faz parte do universo. Não menos significativo é que o próprio Mendes, apesar de ter saído do buraco, de navegar na internet em casa, de ter Facebook, de escrever numa revista de ampla circulação –num país BRIC!–, de ter publicado 4 livros e ter sido traduzido na Rússia, ainda se veja confinado. Mendes espera sair desse confinamento virando um escritor “internacional”, publicando “na Europa, nos Estados Unidos e tudo mais”. A aspiração revela o que Beatriz Sarlo chama a consciência da periferia: “la conciencia de la periferia es siempre la conciencia de que uno no está donde está el centro, por eso es una conciencia muchas veces enajenada, alienada” 37. O anseio de estar no centro também pode ser traduzido como o de estar no lugar do sujeito, daquele que tem poder de decisão; porque estar na periferia, como também diz Sarlo, é estar no lugar donde no son tomadas grandes decisiones. Por ejemplo las decisiones […] sobre globalización: esas decisiones fueron tomadas en otros lugares que encontraron en la periferia sus actores, sus clases dominantes dispuestas a seguirla, pero donde hay centros de decisión que exceden aquello, aquel lugar donde yo vivo, que exceden las posibilidades y las potencialidades de ese lugar donde yo vivo.

Apesar das penúrias que se desprende disso, ainda ficaria à periferia aquela vantagem crítica destacada por Schwarz e por outros, como Michael Löwy. Nas palavras deste último: Se o fato de ser ‘periferia’ traz certas dificuldades evidentes, por outro lado pode ser também intelectualmente vantajoso: é lá — no Brasil, na América Latina, no Terceiro Mundo — que se percebem com mais agudeza as contradições do mundo moderno, os limites dos paradigmas ideológicos dominantes, as falhas do sistema (p. 336).

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A declaração é feita em uma entrevista publicada pela Freie Universität de Berlim, disponível em http://www.lai.fuberlin.de/forschung/lehrforschung/wissenproduktion_lateinamerikanischer_intelektuelle r/beatriz_sarlo/p/index.html. Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 59

No lugar em que se localiza Luiz Alberto Mendes as promessas de participação e mobilidade da globalização se juntam com seu contrário, exclusão e fixidez, deixando ver o que tem de enganosas e limitadas. Ou melhor, Mendes se encontra em um lugar em que as contradições da globalização são vivenciadas como uma farsa intolerável. Daí o desejo compreensível e legítimo de Mendes de se inserir no centro, na literatura “internacional”, ainda que fique claro que isso não muda a farsa, só a posição nela. 1.10. A multiplicação das periferias Retomando as colocações de Hard e Negri, mencionadas páginas atrás, podemos dizer que se a época do Império ou capitalismo global é a época dos “não lugares”, no sentido de que nas diversas partes do globo não encontramos formas de funcionamento radicalmente diferentes, isto não equivale a dizer que já não existam, de forma nenhuma, centros e periferias. Como o mostra o caso de Luiz Alberto Mendes as periferias estão aí, e elas continuam a ser lugares em que se tem uma experiência aguda de contradição, de desajuste, de fora do lugar. Cabe esclarecer que os próprios Hardt e Negri mais do que falar do fim dos centros e das periferias, afirmam a impossibilidade de seguir pensando as divisões que cria o capitalismo contemporâneo em termos de separações entre grandes zonas geográficas ou estados nacionais. Segundo os autores, Se o Primeiro Mundo e o Terceiro, o centro e a periferia, o Norte e o Sul realmente já estiveram separados por fronteiras nacionais, hoje eles claramente entornam uns nos outros, distribuindo desigualdades e barreiras ao longo de linhas múltiplas e fraturadas. […] A geografia de desenvolvimento desigual e as linhas de divisão e hierarquia não são mais encontradas ao longo de estáveis fronteiras nacionais ou internacionais, mas em fronteiras fluidas infra e supranacionais. (p. 357)

E ainda A equiparação geral ou o alisamento do espaço social, tanto no definhamento da sociedade civil como no declínio das fronteiras nacionais, não é, entretanto, indício de que as desigualdades e segmentações sociais tenham desaparecido. Ao contrário, em muitos sentidos elas se tornaram mais severas, mas numa forma diferente. Talvez seja mais exato dizer que centro e periferia,

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Norte e Sul, já não definem uma ordem internacional, na realidade chegaram mais perto uns dos outros. O Império é caracterizado pela maior proximidade de populações extremamente desiguais. (358).

O Império não significa portanto nenhuma superação da desigualdade, mas uma redefinição das fronteiras que dividem despossuídos e possuidores. Pode-se acrescentar que a desigualdade entre estes grupos não só é extrema no tocante ao que tem, mas também no seu tamanho, dado que, como se disse ao tratar da “brasilianização” do mundo, a expansão do capitalismo trouxe um aumento da espoliação e a precarização e, portanto, um aumento dos despossuídos. Na visão de Sasskia Sassem, el creciente número de personas que viven en condiciones abyectamente pobres; los desplazados que pasan años en campos de refugiados legales o ilegales; las minorías y los perseguidos que van a parar a las cárceles; las modestas clases medias de los países ricos que se empobrecen y proletarizan; los trabajadores cuyos cuerpos son destruidos por sus empleos y quedan inutilizados a una edad muy temprana; o las poblaciones “excedentes” con cuerpos aptos pero que son confinados en los guetos, las villas miserias, las poblaciones o las favelas. Estas y otras instancias de expulsión acumulan un número mucho mayor de personas que la tan publicitada “incorporación” de nuevos sujetos a la clase media en la India y China, cuyas economías también expulsan activamente a millones de personas.38

Sassen fala por isso de uma “multiplicação das bordas do sistema” [multiplication of systemic edges]39, entendendo por estas os lugares em que são jogados os despossuídos e precarizados pelo sistema capitalista atual. Essas bordas, ou periferias, podem ser caraterizadas também como os lugares em que se tem um mínimo (ou nenhum) poder de intervir ou de ser ouvido. Em consonância com Hardt e Negri, Sassen não considera que tais bordas coincidam com as divisões de estados-nacionais. Para autora, hoje presenciamos uma desestabilização e reconfiguração das fronteiras e das hierarquias que datam do período do estabelecimento dos Estados nacionais, ainda

38

A citação é tomada do ensaio de Sassen “La élite en tierras globales”. Disponível em https://elsudamericano.wordpress.com/2014/03/07/la-elite-en-tierras-globales-por-saskia-sassen/. Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 39 Ver a entrevista de Sassen para a revista Creative Time. Disponível em http://creativetimereports.org/2014/10/27/saskia-sassen-finance-climate-race-immigration-creative-timesummit/. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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que estas não desapareçam40. Convém enfatizar a última afirmação, pois se é verdade que as desigualdades hoje não podem ser compreendidas satisfatoriamente em termos de diferenças entre os Estados nacionais, estas diferenças também não passaram a ser insignificantes. Como diz Rita Segato, seguindo a Immanuel Wallerstein,

el poder bélico continúa a estar intra-estatalmente situado. En otras palabras, los ejércitos y los armamentos de guerra son nacionales - y esto no es un detalle de poca relevancia, porque este es el marco silencioso dentro del cual se establece una jerarquía de naciones de acuerdo a su grado de poder - bélico, económico y tecnológico (2007, 117).

Não seria então errado falar ainda de estados nacionais centrais e periféricos, mas essa divisão existiria junto de outras configurações do central e do periférico que redefinem as lutas. Se o que observamos na atualidade é uma multiplicação do periférico, como sugere Sassen, é possível também supor que antes do que o fim da sensação de “ideias fora do lugar” tenhamos sua multiplicação. Lembremos que estamos falando aqui de uma sensação de “desajuste”, “disparate”, “incoerência” produto das “desarmonias ciclópicas do capitalismo mundial”, e portanto não seria imaginável que ela desapareça sem que estas o façam também. Caberia aventurar que se as manifestações de “fora de lugar” parecem menos perceptíveis nos dias de hoje, isto é produto da sua multiplicação e universalidade. Elas apareceriam mais ou menos por todas partes, ainda que de maneiras diversas, isto é, não só segundo as manifestações clássicas descritas por Schwarz do desconforto sentido por intelectuais de países periféricos com relação a ideias vindas dos países centrais. Estas últimas continuariam existindo, mas não seria a única expressão de desajuste a ser considerada.

40

Este ponto em particular é tratado pela autora no texto “¿Quién traza los bordes globales?”. Disponível em: http://www.revistaenie.clarin.com/ideas/traza-bordes-globales_0_1253274685.html. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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1.11. As ideias fora do lugar como crítica da formação e o fora do lugar da literatura Segundo Bernando Ricupero por detrás das teses das “ideias fora do lugar” está “a aspiração de se superar definitivamente a situação de subordinação colonial, estabelecendo-se um quadro de maior autonomia, identificado com a Nação”, ou seja, “um processo de formação, que se completaria na forma” (2008, p. 64). Ricupero tem razão em que esse é o marco de preocupações em que Schwarz escreve seu ensaio, mas se as teses mantêm interesse não é por propor uma solução formal nacional, mas como configuração de um problema. O próprio Ricupero, em outro texto sobre o assunto, lembra que “as ideias fora de lugar” não é a tese, “mas o problema do qual parte a análise” (2013, p. 528), o que nos faz insistir em que o objetivo de Schwarz não era pôr as ideias no lugar – propor algo como uma via para atingir a forma nacional autônoma41 –, mas entender o porquê das frequentes manifestações de uma sensação que contradiz o que imaginamos devia ser sentido em uma nação independente. O anterior, me parece, explica o comentário que fez Roberto Schwarz a Luís Augusto Fischer, em um encontro acadêmico na UFRJ, em 2012, quando o último se referiu a conveniência de pensar as “ideias fora do lugar” em relação com a ideia de formação. Schwarz concordou, acrescentando que “as ideias fora do lugar” podem ser compreendidas como uma crítica da formação; uma crítica dos projetos formativos das elites brasileiras. Em outras palavras, a sensação de fora de lugar expressa o fracasso destes. Contudo, não deixa de ser verdade que, ao expressar esse fracasso, “as ideias fora de lugar” falam de algo que continua a requerer solução: as desigualdades de 41

Ou como diz Schwarz sobre Antonio Candido: “ele não escreve com o propósito militante de levá-la [a formação] a bom termo” (1999, p. 55).

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herança colonial, que se mantêm vigentes – ou melhor, funcionais – a cada nova etapa de modernização capitalista. Como sugere Schwarz em “Os sete fôlegos de um livro”, ensaio em que aborda diretamente o tema da formação, o abandono deste implica se desentender daquele problema. Em última instância, abandonar por completo qualquer preocupação pela formação de uma sociedade equivaleria a aceitar como única formação possível aquela que deixou “em suspenso” as formações nacionais: a forma disforme do capitalismo global42. Falar hoje de “ideias fora de lugar” é resistir a esse conformismo e insistir em que há um problema que requer uma solução formal, ainda que não implica apontar a nenhuma solução específica. Ou seja, não implica afirmar uma saída formativa nacional. Não implica isto, mas também não nega a necessidade de continuar pensando o Estado nacional como um problema a ser resolvido, pois ela segue aí, com suas desigualdades e exclusões, em concordância com a ordem do mundo. Desde está perspectiva crítica, então, o Estado nacional continua a ser um marco de análise importante, mas, ou mesmo tempo, insuficiente, posto que se reconhece que a nação (como a globalização) sempre deixa alguém do lado de fora. Para usar um termo de Saskia Sassen, sempre alguém é “expulsado”43. Tendo isto em mente, vale a pena retomar alguns dos comentários de Roberto Schwarz sobre a Formação da literatura brasileira de Antonio Candido em “Os sete fôlegos de um livro”. Schwarz lembra que, na época da sua publicação, o livro de Candido “alinhou-se entre várias obras de perspectiva paralela e comparável, que buscaram acompanhar a formação do país em outros níveis”, como “os livros de Caio

42

Negri e Hardt: “o Império é caracterizado pela fluidez da forma — um ir-e-vir de formação e deformação, geração e degeneração” (p. 221). 43 Neste ponto é que tomo distancia de Bernardo Ricupero, com quem concordo em que “as trocas desiguais, a começar pelas econômicas, não cessariam com a chamada globalização. Portanto, não se deveriam subestimar as diferenças entre o que algum dia foi apelidado de centro e periferia capitalista” e achar que as teses das “ideias fora do lugar” já não tem nenhuma vigência. Mas parece-me que Ricupero ainda é muito tendente a pensar essas desigualdades só em termos de países e blocos de países.

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Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado” (1999, 54). Contudo, a diferença deles, Candido não falava da formação de uma esfera – a literária –que se completaria no futuro, mas que se completou no passado, “mais ou menos à volta de 1870, antes da abolição da escravatura”. E ao mostrar isto, revelava que uma esfera podia se formar sem que acontecesse “uma transformação fundamental do país”, ao contrário do que os outros autores sugeriam (p. 55). No período, a revelação colocava uma nota de ceticismo no processo de nacional desenvolvimentismo em curso que alimentava as esperanças formativas. O livro de Candido indicaria que uma parte do país (as elites ou a parte das elites interessada nas letras) podia integrar-se e progredir sem que o mesmo acontecesse com o restante da população. Hoje, esse ceticismo parece plenamente justificado e nos possibilita cogitar que “o esforço de formação é menos salvador do que parecia, talvez porque a nação seja algo menos coeso do que a palavra faz imaginar” (55). O anterior não deixa de levantar perguntas sobre a formação literária que se dá por concluída. Schwarz observa que algo do déficit da não conclusão da formação do país integrado e independente “se transmitiu e se transmite à esfera literária, onde a falta de organicidade, se foi superada em certo sentido, em outro continua viva” (p. 53). Talvez seria o caso de ir um pouco mais longe e dizer que se a formação se completou em certo sentido – posto que se estabeleceu no país um conjunto de obras, público e autores, acompanhado de certo acúmulo –, em outro nunca teria sido completada, na medida em que o adjetivo “brasileira” aponta para uma totalidade de que não dá conta. A literatura brasileira nunca é totalmente brasileira, na medida em que algo sempre fica excluído. Daí que vários críticos tenham sentido a necessidade de mencionar autores e obras que a Formação da literatura brasileira não considera. Se essas críticas não desmentem a validade do critério escolhido por Candido para selecionar os autores de 65

seu estudo, que como explica Schwarz era que tivessem como horizonte a independência nacional, sim manifestam desconforto com a noção de nação que resulta da tradição que Candido traça, posto que sentem que ela não contempla o todo da nação. Por isso, propõem pensar a formação literária desde outros lugares; por exemplo, desde o barroco, como propõe Haroldo de Campos (1989), ou desde o sertão, como propõe Luis Augusto Fischer (2011). A tarefa de pensar a formação literária brasileira desde lugares não contemplados por esta é uma tarefa de máximo interesse. Um dos seus resultados é obrigar a ampliar o que se considera formar parte dela, mas não se deve pensar que com isto fica resolvida a questão formativa, acreditando que, ao somar o que faltava, esta fica verdadeiramente completa. De novo, a chamada literatura brasileira nunca é completamente brasileira, porque sempre algo fica de fora. Por isso, o melhor pode ser assumir que a literatura nunca terminou seu processo formativo; em outras palavras, a literatura não está, nunca esteve e nunca estará inteiramente no seu lugar no Brasil – nem nos países da América Latina, nem em nenhum outro país. A literatura só pode passar como estando no seu lugar no Estado nacional, efetuando o apagamento do que faria sentir essa ideia como estranha. E aqui cabe mencionar de novo que em “Instinto de nacionalidade”, ensaio que para Candido exprime a maturidade atingida por nossa literatura e por isso com ele fecha Formação da literatura brasileira, Machado de Assis ao tempo que proclama que o escritor deve ter “certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país”, esclarece que o indígena não faz parte do íntimo, mas do exterior à nação44.

44

Seguindo a sugestiva colocação de Jose Miguel Wisnik poderíamos dizer que, no momento, o índio ainda mais radicalmente do que o negro era “um lugar fora das ideias” (2008, p. 64).

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A observação não procura desvalorizar Machado de Assis que, como tem mostrado Schwarz e outros críticos, soube revelar formalmente desajustes fundamentais da sociedade brasileira, mas sublinhar que algo fica por fora da configuração formal de suas obras e que, uma vez considerado isto, não há como não sentir a própria literatura do escritor desajustada. Assumir que a literatura é algo que não se formou no Brasil e na América Latina implica aceitar que ela nunca encontrou uma solução formalmente ajustada aos desajustes formais de nossos países, a diferença do que se pensou em outro momento, em que se chegou a acreditar – como se verá – que as obras literárias mais acabadas podiam ser tomadas como um exemplo do que formalmente deviam atingir nossas nações periféricas. Antes do que superar as contradições de que trata, a literatura sempre participou delas. Por isso, se hoje uma tarefa crítica continua sendo atender as manifestações de contradição, de desajuste, de “fora de lugar” que, entre outros espaços, encontramos na literatura, outra tarefa é considerar as manifestações de desencontro e “fora de lugar” que produz a própria literatura, muitas das quais encontram-se, claro, em obras literárias.

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2. FORMAS E DEFORMAÇÕES EM GUIMARÃES ROSA 2.1. Um continente destinado à literatura: as profecias de Guimarães Rosa e Castro Alves. Falar da literatura como ideia fora de lugar na América Latina parece estranho hoje porque houve um momento em que ela, a literatura, deixou de ser sentida no continente como coisa de estrangeiros. De fato, por volta da década de sessenta do século passado, chegou-se a sentir que América Latina era o lugar destinado à literatura. Um exemplo disto o oferece Guimarães Rosa, que em 1965, profetizava: No ano 2000 a literatura mundial estará orientada para a América Latina; o papel que um dia desempenharam Berlim, Paris, Madrid ou Roma, também Petersburgo ou Viena, será desempenhado pelo Rio, Bahia, Buenos Aires e México. O século do colonialismo terminou definitivamente. A América Latina inicia agora seu futuro. (ROSA apud LORENZ, 1991, p. 97)

O autor dessa declaração foi um escritor com indubitável capacidade premonitória. Sabemos, por exemplo, que previu que morreria quando tomasse posse na Academia Brasileira de Letras, e que, durante a Segunda Guerra, antecipou que os ingleses seriam os primeiros a em entrar em Hamburgo45. Contudo, se hoje as palavras citadas acima causam perplexidade não é precisamente por sua exatidão. É verdade que, para o ano 2000, a literatura já não é sentida como algo alheio à América Latina, mas a visão de que o continente seria uma espécie de novo meridiano Greenwich da literatura, para usar a expressão de Pascale Casanova (2002, p.116), e que isto viria acompanhado da superação definitiva do colonialismo parece, no mínimo, exagerada. Basta lembrar que para o ano 2000 a situação, em geral, na América Latina é de crise produto da abertura neoliberal dos anos anteriores. Situação diante da qual a premonição de Rosa adquire um tom escarninho. Ou antecipava o escritor as reações

45

Isto último é lembrado por Aracy de Carvalho, a viúva do escritor, em entrevista recolhida no livro Memórias de vida e criação (GOLIN, 1999, p. 50).

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anti-neoliberais e a chamada virada à esquerda, ou, ainda mais, a chamada virada descolonial que então começa a se fazer sentir?46 Mesmo se fosse o caso, falar de fim do colonialismo para o ano 2000 não seria possível, e Rio, Bahia, Buenos Aires e México não passaram a desempenhar o papel que um dia desempenharam Berlim, Paris, Madrid ou Roma, ainda que as relações políticas culturais mundiais tenham mudado. A declaração de Rosa foi feita pouco depois do golpe civil militar no Brasil, o que, levado em consideração, faz aumentar a perplexidade diante de seu tom tão otimista. Contudo, este otimismo poderia ser justificado pelo fato de que, segundo Roberto Schwarz, a produção brasileira não se veria grandemente afetada pela ditadura até 68, não sendo raro até então o tom celebratório inclusive em artistas manifestamente de esquerda –  que ainda acreditariam que o país poderia dar um passo à frente, superando assim as mazelas do passado. Além disto, é preciso considerar que a declaração foi feita por Guimarães Rosa a Günter Lorenz, na sua dupla condição de escritor e diplomata, no marco do I Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Genova, que promovia a integração dos intelectuais e artistas da América Latina e a difusão de suas produções. Por isso, na sua declaração, Rosa não só falava como brasileiro, mas como um latino-americano, em um momento em que o continente chamava a atenção mundial tanto por suas produções literárias e artísticas quanto pelos processos de transformação sociais pelos quais atravessava (e uma coisa parecia estar intrinsicamente unida à outra, como o indicam as palavras do escritor mineiro). O clima no continente era, em geral, de otimismo. Um otimismo que decairá nos anos vindouros com eventos como a prisão do poeta Heriberto Padilla em Cuba (1971) e o golpe no Chile (1973). 46

Walter Mignolo se refere a estas duas viradas no artigo “¿Giro a la izquierda o giro descolonial? Evo Morales em Bolivia”, disponível em http://waltermignolo.com/giro-a-la-izquierda-o-giro-descolonial-evomorales-en-bolivia/. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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Ainda que o prognóstico de Guimarães Rosa responda a circunstâncias muito específicas, não deixa, ao mesmo tempo, de atualizar uma previsão já presente no começo de nossas nações republicanas. Em 1870, por exemplo, aparece em livro um poema em que já se afirma que as letras são o destino da América. Segundo este poema surpreendente elas estariam, por isso, desde sempre no seu lugar aqui – desde sempre quer dizer desde a chegada dos europeus no continente, quando o encontrariam “molhado inda do dilúvio”. Trata-se do famoso “O livro e a América” de Castro Alves: Por uma fatalidade Dessas que descem de além, O século, que viu Colombo, Viu Guttenberg também. Quando no tosco estaleiro Da Alemanha o velho obreiro A ave da imprensa gerou... O Genovês salta os mares... Busca um ninho entre os palmares E a pátria da imprensa achou...

Se a declaração de Guimarães provoca estranheza hoje, os versos de Castro Alves oferecem ainda mais motivos para o desconcerto. Como podia afirmar o poeta que a América era a pátria da imprensa se quase ninguém sabia ler nesta parte do mundo? No Brasil, segundo o censo de 1872, a taxa de analfabetismo era de “82,3% para as pessoas de 5 anos ou mais [...], situação esta que se mantém inalterada pelo menos até o segundo Censo, realizado em 1890 (82,6%), já no início da República” (FERRARO; KREIDLOW, 2004, p. 182). Em tais circunstâncias, não estranha que a indústria de livros praticamente não existisse no Brasil, “sendo a obra na maioria das vezes impressa na Europa por conta do próprio poeta” (ZAGURY, p. 19). Se Castro Alves finalmente não editou Espumas flutuantes na França, como era sua intenção, foi por razões econômicas; por isso o fez no Brasil, procurando em diferentes cidades assinantes para ajudar a custear a tarefa.

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Se na Europa – e particularmente na França – encontrava-se o lugar ideal para a edição dos livros, era também lá que – aos olhos do escritor local –se encontrariam os melhores leitores; assim o sugere Antonio Candido para quem “na medida em que não existia público local suficiente, ele [o escritor da América hispânica e o da América portuguesa] escrevia como se na Europa estivesse o seu público ideal, e assim se dissociava muitas vezes da sua terra” (1987, p. 148). Para Candido, o exemplo mais claro dessa dissociação da terra, desse despaisamento, seriam os autores que escreviam em francês ou outra língua estrangeira. Mas o raciocínio de Candido sugere que mesmo quando escreviam em espanhol ou português, e para os intelectuais locais, os escritores desta parte do continente não deixavam de escrever para a Europa, já que seus valores de referência eram de lá e os intelectuais locais se considerariam equivalentes dos melhores da Europa fora da Europa: “como o ambiente não os podia acolher intelectualmente senão em proporções reduzidas, e como os seus valores radicavam na Europa, para lá se projetavam, tomando-a inconscientemente como ponto de referência e escala de valores; e considerando-se equivalentes ao que havia lá de melhor” (p. 148). O resultado, segundo Candido, é que o escritor se considerava intocado pela “incultura dominante” no continente, considerando que a situação local devia passar por uma transformação que, fundamentalmente, não mudaria o próprio escritor. O outro iletrado era o que devia ser transformado pelo cultivo, tal como descreve “O livro e a América”. Chegando neste ponto, é preciso fazer um esclarecimento. Se bem o poema de Castro Alves afirma que o livro está na sua pátria, na América, com isto não sugere que o país já tivesse adquirido sua forma adequada, mas sim que estava a caminho de adquiri-la. Se o livro para o poeta estava no seu lugar aqui é porque precisávamos dele para participar no “concerto universal” das nações, para o qual –diz o poema– o continente despertava. Precisávamos dele como precisávamos do trem: 71

Agora que o trem de ferro Acorda o tigre no cerro E espanta os caboclos nus, Fazei desse “rei dos ventos” — Ginete dos pensamentos, — Arauto da grande luz!...

Castro Alves cria está imagem dissonante do trem (o moderno) junto ao tigre e o caboclo nu (o arcaico) para anunciar seu fim próximo: graças ao livro que o trem vai levar para o tigre e o caboclo, estes vão se transformar em algo em harmonia com o trem (seres produtivos?). Como observa Angela Maria Fanini, nos versos citados ocorre “uma visão dicotômica entre a civilização e a natureza”, ficando “animais e nativos […] no mesmo plano, indiferenciados” (p. 101). Animais e nativos são natureza que precisa ser plantada para que na América floresça a cultura. A cultura é sempre cultivo, plantação, colonização47 posta em ordem da natureza, como bem sabe o jovem Castro Alves que diz: “bendito o que semeia / Livros... livros à mão cheia...”. Para construir as nações da América, pois, o único que era necessário era lembrar a observação de Pero Vaz de Caminha, “em se plantando tudo dá”, inclusive os livros. 2.2. A formação em dois tempos. Antonio Candido e o cult(iv)o das letras Como se disse, para Antonio Candido a visão de Castro Alves é equivocada, por demasiado simplista, sem que – podemos acrescentar – deixe de concordar parcialmente com ele. Lembremos que Formação da literatura brasileira começa com o Arcadismo, porque este “plantou de vez a literatura do Ocidente no Brasil”, a qual acompanhará a marcha “de nossa formação como país civilizado” (2000b, p. 326). Ou seja, para Candido como para Castro Alves (e como para Guimarães Rosa) a construção do país independente, livre do passado colonial, era inseparável da construção da literatura que lhe dava expressão. Só que, para Candido, a marcha desse processo seria menos simples 47

A respeito do vínculo semântico entre estes termos ver o primeiro capítulo do livro A ideia de cultura de Terry Eagleton.

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do imaginado pelo poeta de “O livro e América”. Não bastaria “transplantar” a literatura ocidental, mas seria preciso um penoso processo de “aclimatação” (2000a, p. 10 y p. 102). Sem esse processo de aclimatação – produto de muitas gerações, como reconheceria Machado (2000b, p. 104) –, a literatura não deixaria de ser uma flor rara nos “jardins da imaginação tropical” (pp.16-17). O processo de aclimatação é o processo pelo qual o que era exógeno, finalmente, se transforma em interno. Daí que a conclusão do processo da formação literária brasileira, o estabelecimento de um sistema dinâmico entre autores-obras-público locais, coincida – para Candido – com o abandono das narrações “exóticas”, próprias do escritor que olha de fora, e a assunção do “sentimento íntimo” da nação de que fala Machado. Cabe sublinhar que, para o crítico, a cultura europeia que vem a transformar a terra americana, num processo civilizatório (de cultivo, de colonização), não deixará de ser transformada por ela. Assim é que, ao se impregnar da “seiva americana” – a expressão é do Alencar maduro, que, junto com Machado, é localizado por Candido no final do processo formativo (p. 326) –, a planta literária se transforma em algo local, ainda que sem deixar de ser “universal” (ocidental moderno). É nesse momento de transformação da literatura europeia em meio apropriado de expressão da realidade local que aquilo que até então tinha sido um processo de colonização e dependência, passa a ser afirmação de autonomia e independência do sujeito nacional formado... ou quase. Formação da literatura brasileira aparece alguns anos antes que Guimarães Rosa faça sua profecia sobre o ano 2000 e, como esta, não deixa de exprimir o otimismo do momento, em que parecia estar à mão a formação do país moderno e soberano, em que caberiam todos os brasileiros. Dito otimismo se transluz na sua ênfase “sobre a

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lenta, porém progressiva cristalização” da instituição literária que representava “realizações, mesmo que parciais e incompletas, do ‘moderno brasileiro’” (NOBRE p. 25). Como se disse, para Candido, como para Castro Alves e Guimarães Rosa, o processo de formação de uma literatura nacional – e/ou latino-americana – acompanha o processo de formação de um sujeito nacional independente, já não mais dividido pelas fraturas de origem colonial. Se anos depois Formação da literatura brasileira será lido em chave diversa, como revelação de que uma literatura nacional podia se formar sem que se formasse a nação (como faz Roberto Schwarz em “Os sete fôlegos de um livro”), será devido aos acontecimentos posteriores que defraudaram as esperanças do momento. Como aponta Gonzalo Aguilar, na produção do próprio Candido é possível sentir o impacto da mudança de expectativas que trouxe a crise do final de 60, que no Brasil significou o endurecimento da ditadura. Segundo o crítico argentino:

La relectura implícita de su propia obra que hace Candido en “Literatura y subdesarrollo” y en “Dialética da malandragem” transforma la Formação en el relato de la historia literaria de la clase dominante: esto es, que el proceso de formación de una literatura es concomitante al del Estado nacional y de sus grupos dirigentes (pp. 698-699).

Se, por um lado, a afirmação tem o problema de fazer imaginar um Candido que adota primeiro o ponto de vista dos grupos dirigentes para depois passar a adotar o dos subalternos, sendo ambas as coisas relativizáveis, por outro, não deixar de iluminar a resposta do crítico brasileiro às mudanças acontecidas. No momento de avanço de um projeto de modernização autoritário, Candido – nos ensaios citados por Aguilar – promove obras que se voltam para os historicamente excluídos e, nalguns casos, assumem seu lugar de fala. No caso de “Literatura e subdesenvolvimento”, claramente,

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nele a literatura é vista como um espaço em que, aos poucos, toma forma uma modernização inclusiva, alternativa àquela em marcha na época no Brasil48. Nesse ensaio,  de começo da década de 197049, Candido retoma os pressupostos formativos de seu livro de 1957 ainda que para reformulá-los para o contexto latinoamericano, de acordo com as circunstâncias do momento. Explicitamente, o ensaio não propõe descrever um processo de formação literária, mas descreve como a literatura acompanha um processo gradativo de desenvolvimento da consciência da América Latina sobre si mesma – ou seja, de formação do continente como sujeito –, de forma análoga à como fizera antes em Formação da literatura brasileira, onde uma tese central era que “os brasileiros tomaram consciência da sua existência espiritual e social através da literatura” (2000b, p. 327). Nesta ocasião, a descrição do processo de tomada de consciência começa com o romantismo, considerado uma “fase de consciência amena” de que é exemplo Castro Alves com seu “o livro e América”, e termina com o superregionalismo, como expressão de uma fase de “consciência dilacerada do subdesenvolvimento”, de que é exemplo a obra de Guimarães Rosa, entre outros autores. Como em Formação da literatura brasileira, neste ensaio o processo de aquisição de consciência é um processo de transformação do externo em interno. Esquematizando ao máximo, podemos dizer que a “consciência amena” ou “falsa

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Sobre os dois projetos de modernização em disputa no Brasil, nos anos do nacionaldesenvolvimentismo, ver “Da ‘formação’ às ‘redes’: Filosofia e cultura depois da modernização” de Marcos Nobre. 49 A primeira versão do ensaio apareceu em francês em 1970, com o título, “Sous-développement et littérature en Amérique latine”, na revista Cahiers d'Histoire Mondiale. Em 1972, apareceu a versão em espanhol, “Literatura y subdesarrollo”, no livro América Latina en su literatura, editado por César Fernández Moreno. Só em 1973 é publicada a versão em português, “Literatura e subdesenvolvimento”, na revista Argumento; posteriormente recolhida no livro A educação pela noite e outros ensaios (1989), de onde tomo as citações.

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consciência” (o desenvolvimento da consciência é um processo de desmitificação50) corresponde a um momento em que os letrados latino-americanos olham para sua realidade com olhos estrangeiros (europeus), e como tal a narram, imitando servilmente os recursos literários de fora, mas, paradoxalmente, se considerando independentes e rejeitando como antinacional tudo que não descreve as “peculiaridades” da realidade local, transformada em algo exótico e pitoresco. Esta etapa é seguida de uma gradual interiorização que vai em duas vias: por um lado, o escritor deixa de ver a realidade como paisagem, e passa a vê-la como algo de que faz parte (que afeta e que lhe afeta), passando a adotar um ponto de vista interno. Por outro, o escritor se apropria livre e originalmente dos recursos literários vindos de fora, tarefa que leva adiante reconhecendo nossa inevitável dependência cultural. De fato, essa apropriação antropofágica das influências externas, junto com o estabelecimento de uma causalidade literária interna, seria fundamental para passar da dependência a interdependência cultural (p. 154). A colocação, como se disse, não é, no essencial, diferente da enunciada em Formação da literatura brasileira, salvo que o processo não culmina com Machado de Assis. Agora se afirma que houve algo que lhe faltou a este último: o reconhecimento dos “países-fontes”. Ou seja, Candido aqui coloca algo que a psicanálises tem ensinado: a identidade – no caso identidade literária formada – depende do reconhecimento externo, como bem o exemplifica a piada lacaniana do homem que se acha um grão de semente51. Segundo Candido, Machado 50

No começo do ensaio, Candido afirma que desde o romance do 30 “o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos” (p. 142); e quase no final, que “entre os que naquele momento propuseram com vigor analítico e algumas vezes forma artística de boa qualidade a desmistificação da realidade americana, estão Miguel Angel Asturias, Jorge Icaza, Ciro Alegría José Lins do Rego e outros” (p. 160). 51 A piada tem sido recontada por Slavoj Zizek em diferentes ocasiões, por exemplo, no livro Como ler Lacan: “um homem que acredita ser um grão de semente é levado ao hospital psiquiátrico onde os médicos fazem o que podem para convencê-lo de que ele não é um grão de semente, mas um homem. Quando ele está curado (convencido de que não é um grão de semente, mas um homem) e lhe permitem deixar o hospital, imediatamente volta tremendo. Há uma galinha perto da porta e ele tem medo de que

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“perdeu-se na areia de uma língua desconhecida, num país então completamente sem importância” (p. 153), por isso, não é ele, mas Borges quem na América Latina representa “o rito de passagem, marcando a maioridade literária através da capacidade de contribuição original”, o que na América hispânica se atribuiria erroneamente ao modernismo (p. 152). Contudo, mesmo recebendo esse reconhecimento, Borges não é a figura de maior destaque no ensaio de Candido, e até se menciona que Machado de Assis tinha “uma visão do homem” “muito maior” (p. 153)52. É difícil saber o que o crítico quer dizer exatamente com isso, mas é possível conjeturar que aluda ao fato de Borges não assumir o compromisso de transformação social do continente, de lutar pela inclusão dos excluídos na América Latina53. Assim chegamos a um ponto central do ensaio: o movimento de inserção do escritor na sua realidade implica, crucialmente, sua aproximação dos homens analfabetos, “incultos”, pobres. Segundo Candido, para a década de 30 e 40, “sem ter havido modificação essencial na distância que nos separa dos países ricos” e, por isso, sem que fosse possível seguir acreditando que o grande destino dos países novos era uma questão de tempo, o continente se enfrentaria com a realidade “dos solos pobres, das técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua incultura paralisante” (p. 142). O reconhecimento despertaria o sentimento de urgência de mudar a situação de pobreza e incultura geral, sem o qual os países do continente não iriam para frente. Na literatura,

ela vá comê-lo. ‘Meu caro rapaz’, diz o médico, ‘você sabe muito bem que não é um grão de semente, mas um homem’. ‘Claro que eu sei disso’, responde o paciente, ‘mas a galinha sabe?’” (2006, p. 115). 52 Este comentário não aparece na versão em espanhol do ensaio, é um acréscimo feito por Candido na versão em português. 53 Em outro ensaio da mesma época que “Literatura e subdesenvolvimento”, que inclui significativamente em seu título a palavra formação, refiro-me a “A literatura e a formação do homem”, Candido diz que o regionalismo brasileiro se apresentou como um “humanismo”, entendendo por este a “recuperação do homem posto à margem” (2002, p. 90).

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esse sentimento seria expressado principalmente pela narrativa regionalista, preocupada por falar dos excluídos e invisibilizados das regiões distantes dos centros urbanos. Ao falar de “incultura paralisante”, Candido se refere ao analfabetismo, à falta de aceso às letras, o que considera o traço básico de “nosso subdesenvolvimento no terreno” da cultura. Ao alfabetismo se ligariam “as manifestações de debilidade cultural” do continente, que não seriam outra coisa que manifestações da precariedade do tripé que dá forma ao seu sistema literário: falta de meios de comunicação e difusão (editoras, bibliotecas, revistas, jornais); inexistência, dispersão e fraqueza dos públicos disponíveis para a literatura, devido ao pequeno número de leitores reais (muito menor que o número já reduzido de alfabetizados); impossibilidade de especialização dos escritores em suas tarefas literárias, geralmente realizadas como tarefas marginais ou mesmo amadorísticas; falta de resistência ou discriminação em face de influências e pressões externas (p, 143).

Assim, se no ensaio de Candido, por um lado, a literatura do continente aparece como completamente formada, até pelo reconhecimento externo que atingiu, por outro, essa forma atingida aparece como instável, precária, em risco de desmanchar. Um estado que só poderia ser superado pela substancial aproximação de letrados e iletrados,  ou seja, de uma integração dos diferentes setores sociais. Essa integração é considerada central no projeto da versão democrática ou formativa – como a chama Marcos Nobre (2012, p. 16) – do nacional desenvolvimentismo, que começa da década de 30 e 40 (NOBRE, p. 15; MOREIRAS, 2001 pp. 207-208); a década da chamada, por Candido, “fase de pré-consciência do subdesenvolvimento” (p. 160). A centralidade que tem a tradição regionalista no ensaio de Candido, entendida em sentido amplo como a das produções literárias voltadas para as “regiões remotas”, tem a ver, portanto, com o fato de que nessas regiões “se localizam os grupos marcados pelo subdesenvolvimento”. Lá estariam os principais marginalizados da nação moderna, e é pela permanência desse contingente de marginalizados em nossos países que o 78

regionalismo ainda seria uma expressão válida e compreensível aqui, a diferença do que aconteceria nos países desenvolvidos (p. 158). Nesse sentido, também poderíamos dizer que por não termos países formados, integrados, a literatura regionalista ainda cumpriria, entre nós, o papel de mapear a nação e criar comunidade imaginaria, não tendo deixado de ser empenhada54. Por isso, longe de reiterar os ataques ao regionalismo de começo do século XX, como era costume no momento, Candido termina sublinhando o vínculo de parte da produção mais recente com essa tradição, a dos escritores que denomina “superregionalistas”, cuja obra descreve como “uma florada novelística marcada pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem, levando os traços antes pitorescos a se descarnarem e adquirirem universalidade” (p. 161). De alguma maneira, nestes autores se conciliaria empenho e alta qualidade estética (autonomia), não menos do que o local tradicional com o universal moderno.

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Sobre a importância que para Candido teve o romance de 1930 na tarefa mencionada vale a pena citar em extenso os seguintes comentários recentes do crítico: “Eu morava numa cidade do interior de Minas. O trem chegava 5 horas da tarde e nós ficávamos esperando para ver que livros chegavam pelo trem. […] Olha aqui, Jorge Amado, Suor! A gente pegava na hora. A difusão foi grande, isso ajudou a estabelecer a posição literária desses escritores que escreveram depois de 1930 […]. Se eu faço um retrospecto, a impressão que tenho é que para mim, pessoalmente, esses livros foram sobretudo de importância como descoberta do Brasil, porque naquele tempo o Brasil era muito disperso, o Brasil não se conhecia e os brasileiros não se comunicavam. Hoje, por exemplo, se eu quero ir à Bahia, eu tomo um avião e estou lá algumas horas depois. Naquele tempo eu tomava um navio e levava quatro dias. Por não falar de Belém do Pará, por exemplo. De maneira que nesse momento o Brasil era muito disperso. Para mim, essa literatura ficcional serviu para fazer conhecer o Brasil. […] Para mim, se eu me lembro, uma coisa muito importante foi essa unificação do Brasil através da ficção. Aliás, a ficção brasileira teve sempre uma função de descoberta. Quando a gente toma o romance brasileiro do século XIX, sobretudo o projeto grandioso de José de Alencar, a impressão que a gente tem é que ele falou: eu vou falar sobre o gaúcho, eu vou falar sobre o sertanejo, eu vou falar sobre o homem do interior de São Paulo... e falou sobre muitos deles. Há uma certa descoberta do Brasil através de Franklin Távora, através de Taunay, através de Manuel Antônio de Almeida. Então, o romance brasileiro foi, em grande parte e sobre certos aspectos, um romance de descoberta; e isso justifica que para mim, mocinho, esse romance teve antes de mais nada uma função de descoberta”. (grifos meus). É preciso esclarecer que se para Candido a literatura tem um lugar central no processo de “descoberta” unificadora do Brasil, isto não quer dizer que a considere o único elemento em jogo. Na ocasião, além da literatura, Candido mencionou como elementos fundamentais do processo a rádio e a música popular urbana da década de 30. O video com o depoimento de Antonio Candido, no Simpósio Graciliano Ramos - 75 anos do livro Angústia, está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=p3r-dY-0Ows.Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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O adjetivo florada merece destaque, porque é revelador do lugar que ocupam os “superregionalistas” (entre os que se inclui Guimarães Rosa, José María Arguedas, Juan Rulfo, Mario Vargas Llosa) na história da literatura latino-americana traçada por Candido. Lembremos que em “Literatura e subdesenvolvimento” o crítico retoma a metáfora do “galho secundário”, já presente em Formação da literatura brasileira, onde aliás se falava do “transplante” da literatura para este lado do mundo. Nesse sentido, falar de uma “novelística florida” é assinalar claramente o momento de maior esplendor do nosso processo formativo: o momento culminante no processo de aclimatação do que era um pobre galho à terra americana. O que culminariam com sucesso os “superregionalistas” seria a aproximação dos escritores ao homem “inculto”, que, na sua obra, deixa de ser o objeto de um olhar exotizante ou documentarista e se transforma num objeto de identificação empática. Acudindo a outros ensaios de Candido, assim como ao de outros críticos, podemos dizer que este momento se exprime literariamente no abandono das marcas que diferenciavam as falas das personagens “incultas” da do narrador e personagens cultos55. “Literatura e subdesenvolvimento” termina fazendo referência à obra destes escritores em que se verifica o duplo movimento de interiorização antes mencionado – o das influências externas e o da realidade local – num período de consciência combativa contra o subdesenvolvimento e em que parece estar se verificando o passo da dependência a interdependência cultural, dado o reconhecimento que a literatura latinoamericana atinge a nível mundial. Mas, apesar do tom otimista deste final, nem todo no

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No já mencionado “A literatura e a formação do homem”, em que se faz uma rápida menção de Guimarães Rosa como “superregionalista”, é exaltada a obra de um antecessor deste, Simões Lopes Neto justamente pelo abandono das marcas referidas, em contraposição ao que acontece na obra de Coelho Neto. Para o caso específico desse procedimento em Grande sertão: veredas ver, por exemplo, o capítulo 6, “A linguagem e a fala”, de As formas do falso de Walnice Nogueira Galvão e o capítulo 7, “Representação do povo e invenção da linguagem, do livro Grandesertao.br de Willi Bolle.

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texto oferece uma perspectiva tão alentadora. Antes é colocado que há um déficit sem perspectiva clara de superação: “na maioria dos nossos países há grandes massas ainda fora do alcance da literatura erudita, mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do rádio, da televisão, da história em quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de massa” (p. 145). Ou seja, se as obras dos “superregionalistas” exprimem uma aproximação das letras aos homens “incultos”, o contrário, a aproximação dos homens “incultos” às letras, não teria se verificado. Antes, o que se veria, segundo Candido, é uma espécie de “catequese às avessas [que] converte rapidamente o homem rural à sociedade urbana, por meio de recursos comunicativos que vão até à inculcação subliminar, impondo-lhe valores duvidosos e bem diferentes dos que o homem culto busca na arte e na literatura” (p. 145). Assim sendo, “Literatura e subdesenvolvimento” permite uma conclusão análoga à que tira Schwarz de Formação da literatura brasileira. Temos novamente a divisão entre o que toma forma na literatura, mas não no Brasil como um todo, nem no continente. Ou seja, o próprio ensaio, não sem pesar, “faz ver as coisas e o seu curso em linha menos polarizada e triunfalista, ou mais cética” (SCHWARZ, 199, p.56). A pertinência do ceticismo será confirmada pelo “comentário impiedoso da atualidade”, para usar a expressão de Schwarz em seu ensaio sobre “Dialética da malandragem”. Neste texto, Schwarz observa que a história revelou que não haveria lugar para o esperado “concerto de nações independentes, cujas diferenças seriam a riqueza da humanidade”, o qual está pressuposto como horizonte em “a dialética da malandragem” (2002, p. 153) e ainda mais claramente, acrescentamos, em “Literatura e subdesenvolvimento”. Se o tempo mostrou que não haveria lugar para histórias nacionais alternativas, agora, antes que procurar essa história no “superregionalismo” ou 81

na “dialética da malandragem” seria “mais plausível, como proposta, buscar os termos de uma história [mundial] comum — que hoje parece antes uma condenação” (p. 153). Um livro que vai nessa direção é Alegorias de la derrota de Idelber Avelar, que faz uma revisão do boom, entendido não como um conjunto de autores, mas como uma formação discursiva: “ciertas condiciones necesarias presiden el archivo de enunciados posibles, más allá de las polémicas y desacuerdos entre sus miembros. La misma concepción de la modernización cultural, entendida como universalidad finalmente conquistada” (2000, p. 44). Nesse sentido, podemos afirmar que tanto a profecia de Guimarães Rosa, em 1965, quanto a leitura que faz Candido do “superregionalismo” como universalização do regional se inscrevem na formação discursiva do boom. Para Avelar, “tras las dictaduras [del Cono Sur] la modernización periférica vino irrevocablemente a conllevar, para las élites latinoamericanas, integración en el capital global como socios menores” (p. 24). Por isso considera que, a partir da data simbólica de 11 de setembro de 1973, não é mais possível acreditar na leitura celebratória do período do boom e será preciso outra leitura.  Antes do que ver na literatura uma expressão de uma modernização integradora bem-sucedida, ou seja, da entrada da América Latina na universalidade sem submissão ou perda do local, seria preciso enxergá-la como compensação por aquilo que a “integración cada vez más estrecha en el mercado mundial” (p. 52) obrigava a deixar para trás. Em primeiro lugar, temos “la eliminación gradual de los enclaves precapitalistas” (p. 52), ou seja, das diferenças regionais, que são a fonte imaginária de uma identidade latino-americana que a literatura do período do boom diz ser capaz de resguardar e conciliar com a modernidade que ela, a literatura do continente, finalmente conquistava. Esta conquista era o produto do desenvolvimento do mercado e a 82

profissionalização do escritor, que possibilitava a autonomia de que a literatura latinoamericana careceu até então, tendo sido sempre empenhada – como disse Antonio Candido –, e, portanto, nunca plenamente literatura (em sentido moderno). Se a integração modernizadora acabava com o regional não moderno, criando a sensação de identidade perdida, a literatura latino-americana (finalmente digna do nome) do período expressava essa perda, ao tempo que parecia remediá-la

narrando modernamente una esfera premoderna, prelapsaria. Los ejemplos son legión: “el lado de acá” y el irónicamente nombrado Traveler, “él que nunca se había movido de la Argentina” en Rayuela, de Cortázar, las comunidades indígenas destruidas por la llegada de Fushía en La casa verde, de Vargas Llosa, el mundo idílico de la selva venezolana en Los pasos perdidos, de Carpentier, el Macondo edénico previo a la compañía bananera en Cien años de soledad, de García Márquez (p. 54).

É assim, portanto, que a literatura passa a ser vista como “el espacio en que podían coexistir y reconciliarse las fábulas de identidad y las teleologías de la modernización. Ningún modelo económico disponible podía armonizarlas, pero ‘nuestra’ literatura era irreductiblemente ‘latinoamericana’, y al mismo tiempo ‘moderna’, ‘avanzada’, al nivel del Primer Mundo” (p. 53)56. Contudo, assinala Avelar, esse poder da literatura, capaz de conciliar o que não encontrava solução noutras esferas, precisa ser lido, na verdade, como manifestação de sua impotência: “la literatura estaba adelantada porque estaba atrasada. Era precoz porque era anacrónica respecto a la tecnologización masiva del continente” (p. 50). Isto não só

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Cabe lembrar que na América hispânica é comum que todo lugar povoado que não seja uma grande cidade ou centro capital é chamado de “pueblo” ou “pueblito”. Isto é significativo posto que a forma como historicamente tem sido pensados esses espaços (desde os centros urbanos) evidencia muito claramente a tensão semântica do uso moderno da palavra “povo” assinalada por Giorgio Agambem. O povo dos “pueblitos” são a expressão mais definida da identidade do estado-nacional (o todo), mas ao mesmo tempo a expressão mais evidente do que fica fora deste: ele “é a fonte pura de toda identidade e deve, porém, redefinir-se e purificar-se continuamente através da exclusão, da língua, do sangue e do território. Ou seja, no polo oposto, é aquilo que falta por essência a si mesmo e cuja realização coincide, por isso, com sua própria abolição” (cito do ensaio “o que é um povo”, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/11/1547789-o-que-e-um-povo-analise-de-uma-fraturabiopolitica.shtml. Última consulta 17 de fevereiro de 2016). A solução dessas contradições da palavra povo é o que a literatura do boom parecia oferecer.

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porque com a expansão do mercado a literatura virava uma mercadoria a mais, mas porque

si siempre había sido instrumento clave en la formación de una élite letrada y humanista, ahora esa élite la dejaba de lado por teorías económicas más eficaces, importadas de Chicago; las facultades de literatura y filosofía habían sido medios vitales de reproducción ideológica, pero ahora la ideología llevaba la máscara neutral de la tecnología moderna (p. 49).

Além dos espaços regionais pré-capitalistas, o que se perde no período do boom, então, é a centralidade da literatura. À sua maneira, Candido já aponta para essas perdas em “Literatura e subdesenvolvimento”, ao observar, na passagem já citado, que “na maioria dos nossos países há grandes massas ainda fora do alcance da literatura erudita, mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do rádio, da televisão, da história em quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de massa” (p. 145). Candido identifica que, diante das novas mídias, a literatura não continuará a ter o papel central na formação da nação que Castro Alves, Guimarães Rosa e ele próprio lhe deram. Contudo, o crítico ainda pensa que a literatura pode oferecer uma resposta; algo em que, para Avelar, depois de 1973, não será mais possível acreditar, e que, portanto, como afirmou Schwarz, obriga a prestar atenção para aquilo que há de comum (e não de alternativa) em um história que parece uma condenação. Se há alguém para quem a história não oferece alternativas, ou seja, é uma condenação, é para o chamado homem “rural” ou “inculto”, posto que a história única é a da modernização, do desenvolvimento, da urbanização. Uma história com que, segundo assinala Avelar, é solidária a retórica do boom, com sua insistência na superação dos erros do passado e de “una grandiosa puesta al día” (p. 22). Os erros do passado estavam encarnados na forma de narrar da novela regionalista tradicional e sua superação na adoção das modernas (urbanas) estratégias narrativas. O domínio destas 84

permitiria atingir a atualidade e, por extensão, a universalidade. Nesta perspectiva da história, como diz Avelar, “lo urbano se hizo sinónimo de lo universal” (p. 22). Embora rejeite os preconceitos contra o regionalismo e manifeste estima pela cultura caipira, assim como dúvidas com relação ao tipo de modernização acontecida no continente, Candido não deixa de contar a mesma história de modernização. Isto pode ser observado nas metáforas arbóreas de que se serve para descrever o percurso da literatura no Brasil e na América Latina; metáforas que, aliás, também aparecem em outros reconhecidos historiadores da literatura do continente, como Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal, Pedro Henríquez Ureña (NATALI, 2006, p. 40). Como tem observado Marcos Natali, essas metáforas dificultam imaginar um fora: “O tronco nasce de uma raiz, seus galhos crescem em direção ao vazio; passa-se de uma unidade inicial a uma diversidade secundária, em que a dependência não pode senão ser inevitável” (p. 40). Para Natali, é esta lógica metafórica que permite a Candido afirmar: “Nunca se viu os diversos nativismos contestarem o uso das formas importadas, pois seria o mesmo que se oporem ao uso dos idiomas europeus que falamos” (pp. 151-152). Uma afirmação que surpreende dado que no mesmo ensaio Candido menciona a “pluralidade linguística ainda vigente, com as diversas línguas solicitando o seu lugar ao sol” – ainda que encarada como um fenômeno isolado dos “países de cultura pré-colombiana” (p. 143) – e se consideramos que na obra de alguns dos escritores “superregionalistas” as línguas indígenas aparecem em tensão com os “idiomas europeus que falamos”, como é o caso de Arguedas, Roa Bastos e Guimarães Rosa (!). Lembremos que este último escreve um conto, “Meu tio o iauaretê”, em que o português vai sendo minado por uma língua indígena e animal. Ángel Rama, mesmo tendo uma visão da história literária muito semelhante à de Candido, não deixa de considerar que escritores como os mencionados encontraram soluções literárias na narração oral e popular tradicional, em 85

contraposição as formas “modernas estrangeiras” (RAMA, 2008, pp. 52-53). Ou seja, seria sim possível imaginar uma contestação tanto das formas literárias “importadas” quanto dos idiomas que falamos. Se Candido afirma o contrário, é porque para ele a história é uma, ainda que com variantes, com galhos. É a história da integração com o mundo ocidental e moderno que (para o crítico) pode acontecer de forma satisfatória ou insatisfatória, mas não pode deixar de acontecer. É por esta inevitabilidade que Candido chega a colocar como positiva a catequese dos missionários coloniais frente a essa espécie de “catequese às avessas” da cultura massificada, que “converte rapidamente o homem rural à sociedade urbana” (p. 145). Há uma catequese apropriada e uma inapropriada. O que não é imaginável é uma não catequese. Como disse John Berverley,

Cándido hablaba en “Literatura y subdesarrollo” como un moderno, uno de esos modernos que creen que es la tarea de una intelectualidad marxista o progresista preservar y defender las instituciones de la cultura nacional, formadas por la burguesía en su ascenso al poder, de su perversión o degeneración en las manos de esa misma burguesía, la cual ha abandonado sus formas humanistas de auto-legitimación cultural a favor del poder descarnado de la manipulación mediática y del mercado (2004, p. 83).

O problema dessa posição não é, claro, a razoável defesa do acesso dos analfabetos e semialfabetizados à literatura e às letras, mas a relação de assimetria implicada. Como observou Alberto Moreiras “com o super-regionalismo, apenas o segmento super- regionalista da cultura latino-americana logra a interdependência” (p. 207). O homem “inculto” só pode ser interdependente depois de transformado, de cultivado, o que, pela assimetria de poderes, volta a significar aqui colonizado57. Nos encontramos assim diante do problema já clássico da impossibilidade da justa representação dos subalternos por parte dos letrados, independente da boa vontade

57

Talvez descolonização em um sentido radical implique abandonar a ideia de uma natureza como outro do homem civilizado que este deve cultivar.

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e sincera simpatia que os segundos possam sentir pelos primeiros (o que no caso de Antonio Candido está fora de dúvida). No Brasil, a questão apareceu emblematicamente colocada em Terra em transe, um filme pós-golpe, em que se faz uma revisão crítica das posições da esquerda da época. Numa cena do filme, o intelectual comprometido Paulo Martins aparece tampando a boca de um representante da massa dos excluídos, quem exprime para Martins a incapacidade do povo ignorante de defender seus próprios interesses. A cena parece ilustrar bem a famosa tese de Spivak de que o subalterno não pode falar através dos intelectuais, mas também não pode falar por si só. Isso é devido não a uma incapacidade do subalterno, mas à falta de condições para que um falar outro possa ser escutado58. Como se verá, o problema atravessa a narrativa de Guimarães Rosa, esburacando-a literalmente. Se sua obra pode ser lida, com razão, como uma resposta aos processos de modernização no continente, o rasgamento na representação nos impede lê-la como uma resposta formalmente adequada e, portanto, senti-la como uma ideia, finalmente, no seu lugar. 2.3. Guimarães Rosa, o letrado de dois gumes e a modernização do sertão. Boa parte da narrativa de João Guimarães Rosa está marcada pela querência. O escritor mineiro define esta palavra, no seu conto “Seqüência”, como “empolgo de saudade que adoece o boi sertanejo em terra estranha” (1969, p. 65). O assunto foi retomado pelo autor mais de uma vez, por exemplo, em “O burrinho pedrês”, em que se

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A tentativa de fazer audível e visível essa fala outra permanecerá central em Glauber Rocha quem afirma de seu filme O leão de sete cabeças: “No Filme eu coloquei a câmera e a tela abertas para o povo se manifestar. É um tipo de cinema onde o povo verdadeiramente cria seu movimento de cena, seus diálogos, que é diferente do cinema imperialista, do cinema burguês, em que o diretor determina da sua cabeça como o povo deve Funcionar”. A declaração foi recolhida no documentário Rocha que voa (2002), disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ZTAezEMvCCk&feature=youtu.be (ver minuto 34:35). Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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menciona que a “saudade em boi, eu acho que ainda dói mais do que na gente” (1970, p. 58), e em “Cara de Bronze”, onde se afirma que “gado […] não perdeu as memórias de donde veio” (1976, p. 104). O interesse do autor pelo tema se deve possivelmente a que um “empolgo de saudade” semelhante impulsionava sua escrita. Pelo menos isso indica Vilma Guimarães que, quando lhe perguntaram pelo motivo do “fascínio” de seu pai pelo sertão (que o fazia voltar uma e outra vez a ele na sua narrativa) respondeu: “no sertão seus olhos se abriram [...] longe dos campos verdes da infância, veio a saudade. E a lembrança da vida no sertão jamais se ausentou” (1999, p. 33). O apontamento de Vilma coincide com o de Luis Harss, queafirma que o próprio autor mineiro lhe teria indicado a nostalgia como motivo originário de sua escrita. Harss escreve sobre Rosa: “ha sido prácticamente un ciudadano del mundo, pero desde sus primeros días en el servicio, cuando empezó a escribir, como dice, por nostalgia de la buena tierra, sólo ha podido organizarse mentalmente en su país” (1981, p. 175.). Como sua personagem Grivo, Rosa viajaria pelo sertão para recuperar poeticamente um mundo distante que ficava no passado. Pelo menos sabemos que os apontamentos tomados nas suas viagens com a boiada de Manuel Nardy, pelo interior de Minas Gerais, serviriam para a elaboração de duas de suas obras mais importantes, Grande

sertão:

veredas

e

Corpo

de

baile,

ambas

aparecidos

em

1956

(VASCONCELOS, 1997, 9-10). Escrever para Rosa, portanto, teria a ver com um desejo de recobrar um mundo de que se teria afastado para se transformar em médico, diplomata e escritor; mas também um mundo em que o curso da história do país e global (e não só a história pessoal) pareceria querer deixar atrás. Isto último é o que nos transmite Riobaldo em comentários como “ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão” (2001b, p. 182) e “agora, o mundo quer ficar sem sertão” (2001b, p. 305). Contra esse acabar do sertão reage a narrativa de Rosa. A quase 88

onipresença do sertão na sua obra pode ser interpretada como sua resposta a uma história que fazia do sertão coisa do passado. Contra um mundo que queria “ficar sem sertão”, Guimarães se propôs fazê-lo aparecer em “toda parte”: “– Sempre nos Gerais? /Por sempre. Os Gerais tem fim?” (1976, p. 109). Apesar da indeterminação temporal que caracteriza a narração do jagunço Riobaldo em Grande sertão: veredas, este faz alguns poucos comentários que remetem a um momento histórico determinado; por exemplo, a famosa menção do passo da Coluna Prestes, “os revoltosos” que “vinham de Goiás” (ROSA, 2001d, p. 114). Atendendo a esta e outras referências, Walnice Nogueira Galvão comenta que “os limites máximos e mínimos [das ações narradas no romance], em toda a sua deliberada imprecisão, demarcam contudo o contorno da República Velha” (p. 63). O anterior também possibilita concluir que o momento em que o jagunço faz sua narração para o doutor, incluindo seu comentário de que o mundo quer ficar sem sertão, coincide com o período em que Guimarães começa a escrever suas obras. E, como é sabido, uma leitura viável do doutor de Grande sertão: veredas é como um alter ego de Guimarães Rosa – o escritor é, em alguma medida, tanto o jagunço que conta quanto o doutor que escuta. Sandra Vasconcelos descreve assim o contexto histórico em que o autor mineiro começa a escrever e publicar sua narrativa: o país emergia da Segunda Guerra Mundial integrado em escala nacional. Não só o povo invadia o espaço urbano, obrigando a uma reconfiguração desse espaço e das relações sociais, como o próprio processo de modernização em curso também começava a se fazer sentir no campo. A eleição e posse de Getúlio Vargas, em janeiro de 1951, abriram um novo ciclo e uma década de rápidas e importantes transformações que resultavam da ampliação e aprofundamento do duplo processo de industrialização e urbanização que se iniciara em 1930 (2006, p. 115).

No livro em Transculturación narrativa en América Latina, Ángel Rama observa que o ciclo modernizador vivenciado no Brasil é comum na América Latina em seu conjunto. Para o crítico uruguaio, a Primeira Guerra “en ciudades y puertos [del 89

continente] anunció el progreso e inyectó la tecnología” (1982, p. 221). Desde estes lugares a modernização se estenderia para as regiões do interior, ameaçando cancelar suas tradições culturais. Na linha da perspectiva adotada por Antonio Candido em “Literatura e subdesenvolvimento”, Rama considera que Guimarães Rosa faz parte de um conjunto de escritores que desde meados do século XX vão dar uma resposta literária àquela ameaça, fazendo uso de seus conhecimentos de primeira mão das regiões do interior, das quais são oriundos e se sentem pertencentes. A estes escritores, Rama os denomina “transculturadores” e inclui entre eles José María Arguedas, Juan Rulfo e Gabriel García Márquez, além de Guimarães Rosa59. Rama cita alguns textos de Arguedas, em que se descreve esse processo no Peru, que vale a pena lembrar. Em um deles, do ano 1956 (ano da publicação de Grande sertão: veredas), o peruano escreve:

Durante las últimas décadas de este siglo, la influencia de la cultura moderna en el Perú se hizo mucho más penetrante, como consecuencia de la apertura de las vías de comunicación mecánica. Estas vías redujeron el tiempo que duraban los viajes de la Capital a las provincias y de la costa hacia la sierra y la selva, en proporciones revolucionarias. En treinta años el Perú saltó del sistema de comunicación feudal al de las carreteras y aviones (apud Rama, 2008, p. 193).

Em outro texto, o autor de Los ríos profundos registra as mudanças que essa influência produz em Puquio, sua região de origem, à qual voltava depois de 20 anos, como “investigador antropológico” (quer dizer, ele também demudado pela “cultura moderna”):

la capital de una zona anticuada de tipo predominantemente colonial [...] se ha convertido en un centro comercial de economía activa [...] En lo que se refiere a los naturales, observamos que este proceso va encaminado a la independencia respecto del despotismo tradicional que sobre 59

Como Rama assinala, ao considerar este conjunto de escritores segue a divisão estabelecida por Arguedas nos diários de El zorro de arriba y el zorro de abajo para diferenciar os autores do momento. Arguedas diz, com tom combativo, que Rulfo, Rosa e, parcialmente, García Márquez são, como ele, escritores “provincianos”, em oposição aos que chama escritores “citadinos universalistas”. Para um analise detido sobre a relação entre este conjunto de autores remito a minha tese de mestrado Guimarães Rosa e outros escritores provincianos latino-americanos (Arguedas, Rulfo, Roa Bastos e García Márquez).

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ellos ejercían y aún ejercen las clases señorial y mestiza pero al mismo tiempo, el proceso está descarnando a los naturales de las bases en que se sustenta su cultura tradicional (p. 194).

Que Riobaldo se refere a uma experiência semelhante à descrita pelo peruano é indicado por afirmações como “ah, diz-se que o Governo está mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatu, por aí” (p. 43), “ao que, mais, no carro-debois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe resolve” (p. 118) e “com o que o Vupes noticiava: que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo valor” (p. 140). Agora, se a obra de Guimarães Rosa como a de Arguedas e dos outros – chamados por Rama – transculturadores pode ser lida como uma resposta aos processos de modernização, esta não consiste em representar de maneira idealizada o funcionamento tradicional das regiões interiores. No caso de Grande sertão: veredas, o romance a que viemos nos referindo, se ele oferece a imagem de um sertão povoado por jagunços regidos pelos altos valores da cavalaria, também é o espaço do “jagunço criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros” (p. 236). É o sertão dos gerais dos “rios bonitos” que “correm para o Norte”, mas também um lugar que revela que “sempre, nos gerais, é à pobreza, à tristeza” (p. 42). É a terra do “grande homem príncipe” Joca Ramiro, mas também do “judas” Hermógenes, e de Riobaldo, um filho órfão segundo o costume sertanejo, atormentado por sua desacostumada paixão por outro jagunço. As opiniões expressas por Riobaldo diante das mudanças que testemunha no sertão, também nos mostram que o romance de Rosa não propõe o simples binarismo do bom sertão antigo contra a indesejável modernização. Se bem é verdade que a narração do jagunço está marcada pelo saudosismo, seria um erro considerar que sua reação ante 91

os processos de modernização é sempre negativa. Por exemplo, frente à notícia da chegada do trem ao Curralinho, da conversão deste em “lugar comercial de todo valor”, o jagunço aponta: “Eu entrei no que imaginei – na ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno: e que eu me representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade” (p. 140). Rico e estabelecido é como termina Riobaldo, ainda que não como consequência de um empreendedorismo moderno, mas de sua união com os fazendeiros conservadores, que se fecha por meio do casamento com Otacília. Temos, pois, certa ambiguidade na posição do jagunço, para quem, diante da perspectiva de produção e acumulação de riqueza, se mostra bem disposto a assumir ora a via da modernização, ora a da tradição. Mas se a história de Riobaldo é uma história de sucesso com relação a esse objetivo, sabemos que sua narração cheia de culpa também nos fala de uma outra história que ficou truncada. A posição de Riobaldo diante da modernização e a tradição, portanto, é muito misturada, posto que o jagunço está atravessado por desejos encontrados tanto de permanência como de mudança do sertão. A respeito dos seus desejos misturados diz muito sua conflituosa relação com Zé Bebelo, o chefe que afirmava se propor a modernização do sertão, impor nele a “ordem e o progresso” da República. Pelo acaso das circunstâncias, Riobaldo começa lutando no bando de Zé Bebelo, a quem, posteriormente, abandona, insatisfeito com sua empresa de extermínio do jaguncismo em nome da referida modernização. Mais para frente, Riobaldo volta a combater com ele contra Hermógenes e Ricardão, representantes do pior do sertão tradicional – autoritário e brutal –, mas termina por lhe arrebatar a chefia do grupo, desconfiado de suas intenções. Nestas idas e vindas, Riobaldo acaba por se convencer de que as promessas de Zé Bebelo são retóricas. Assim quando se reencontra com o antigo líder, depois da morte de Diadorim, o jagunço dirá dos projetos e atividades que lhe refere Zé 92

Bebelo que eram “fanfarrices” e “bazófias” (p. 622), mostrando que ele não restabeleceu sua confiança nas palavras do chefe que, na Fazenda dos Tucanos, recorreu a escrever cartas aos “seus amigos soldados do Governo”. Mas, mesmo descrente de Zé Bebelo, o velho jagunço não deixará de lhe outorgar uma “alta valia”, sendo o último comentário que faz sobre ele antes de concluir sua narração: “só Zé Bebelo, mesmo, para meu destino começar de salvar” (p. 623). Por que Riobaldo outorga esse valor a Zé Bebelo? Seria tão só por ter aprendido dele a arte do discurso para o governo dos outros (BOLLE, p. 131 y p. 324)? Zé Bebelo não vai ser quem modernize o sertão em grande escala, mas não sumirá deste sem propiciar uma ação nesse sentido: o julgamento. Como assinala Fábio de Souza Andrade, o julgamento – invento de quem aspirava a ser um “legislador (i.e. deputado)” da República Velha (Andrade, p. 152) – representa no romance a chegada ao sertão de uma “lei civil, não tradicional e não local” (p. 150). O normal e normativo no velho sertão seria aquilo esperado e temido por Riobaldo: a morte do combatente derrotado. Mas, se o julgamento é algo novo, só em parte romperá com a tradição, porque ele será levado a cabo segundo os valores do sertão antigo. Daí que Zé Bebelo se comporte como um valentão durante o julgamento, sabedor de que só atuando em concordância com os valores tradicionais poderia sair com vida. Paradoxalmente, neste julgamento civilizado, o diálogo sem intermediários entre juiz e réu – Joca Ramiro e Zé Bebelo – assemelha-se a um desafio de cantadores: ‘O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei’; ‘Velho é o que já está desencaminhado. O velho valeu enquanto foi novo’ (ANDRADE, p. 153; ROSA, p. 276).

Por isso, se o julgamento de Zé Bebelo é algo novo no sertão, fora deste não teria sentido nenhum:

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O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão...’ – o senhor dirá. Pois: por isso mesmo [...] no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! ( p. 301) .

Riobaldo acrescenta ainda sobre o julgamento: “digo: aquilo para mim foi coisa séria de importante” (p. 301). É possível conjeturar que essa importância se deva a que ele desencadeou os acontecimentos que marcaram tragicamente a vida do jagunço, mas também a que, mesmo frustrada, representa para ele o tipo de solução ideal para o encontro entre o sertão tradicional e o novo: algo assim como uma modernização segundo a lógica do interior. Segundo Luiz Roncari, essa era justamente a solução que Guimarães Rosa procurou materializar com sua obra, seguindo a perspectiva de modernização conservadora enunciada pelo crítico Alceu Amoroso Lima. Para Roncari, o episódio do julgamento de Zé Bebelo corresponde a “apreensão de um raro momento daquilo que chamamos de modernização conservadora”, posto que o novo, a instituição legal da cidade não era assimilada pelo costumeiro como só um arcabouço formal e abstrato imposto de fora; ela sofria adaptações, ia se acomodando às hierarquias e valores reconhecidos, adquiria com isso organicidade e aparecia como uma gestação dos próprios homens do lugar (2004, p. 299).

É de destacar como a descrição que faz Roncari deste processo de assimilação do novo pelo costumeiro tem semelhanças com a descrição que faz Ángel Rama dos processos de transculturação adotados por escritores como Guimarães Rosa como resposta aos processos de modernização, de modo a assegurar “la continuidad histórica de formas culturales profundamente elaboradas por la masa social, ajustándola con la menor pérdida de identidad, a las nuevas condiciones fijadas por el marco internacional de la hora” (2008, p. 87-88). Rama fala de uma “plasticidad cultural” que consiste na seleção e rearticulação de elementos da cultura local e dos aportes exteriores, que leva a “invenciones con un ‘ars combinatório’ adecuado a la autonomía 94

del propio sistema cultural” (p. 46), observando que os escritores transculturadores realizam essas rearticulações em três níveis: a linguagem, a estrutura literária e a cosmovisão (pp. 47 - 64). Roncari, por sua vez, ao descrever o julgamento de Zé Bebelo, se refere à flexibilidade da tradição e o seu processo de assimilação. Ela nem se mantém rígida no seu “costume velho de lei” justiçando o derrotado sem passar por um julgamento, nem importa a instituição do tribunal segundo as regras estabelecidas fora do sertão. Ela adapta o tribunal aos seus costumes, respeitando as hierarquias e os valores que haviam norteado até então as suas ações (2004, p. 303).

Contudo, o fato de que Roncari fale de “modernização conservadora” para descrever este episódio, que considera ilustrativo da posição estética e política defendida por Guimarães Rosa, nos indica que localiza o escritor mineiro num lugar diferente daquele em que pensa Rama. Enquanto para o crítico uruguaio o trabalho transculturador de Rosa forma parte de uma tradição que desafia o poder homogenizador e controlador do que chama “ciudad letrada”, ou seja, da elite que “conserva ferreamente la conducción intelectual y artística” do continente (2008, p. 76), as colocações de Roncari fazem pensar em numa transculturação de cima, isto é, numa resposta surgida da elite (da cidade letrada) às mudanças que trazem os processos de modernização. Roncari, claro, não fala nestes termos, mas, como foi dito, isto se desprende de seu comentário de que Rosa tentou realizar com sua obra a saída imaginada por Alceu Amoroso Lima, a qual Roncari tilda significativamente de “quase miraculosa”: a “harmonização das forças contrárias” que dividiriam o país, tais como “caudilhismo e cesarismo, patriarcalismo e ordem familiar burguesa, regionalismo e cosmopolitismo” (p. 24). Curiosamente,

a

dúvida

que

levanta

Roncari

sobre

essa

“solução

harmonizadora”, ao qualifica-la de “miraculosa”, é meio que deixada de lado por ele quando passa a descrever o julgamento de Zé Bebelo e o define como exemplo de 95

modernização conservadora bem sucedida, em que a nova instituição legal da cidade é assimilada pelo costumeiro e, portanto, não é vivenciada como uma imposição de fora (como ideia fora do lugar). Mas, como mostrou Wille Bolle, desde outros ângulos, essa assimilação não deixa de ser o que Roncari chama de “um arcabouço formal e abstrato”, ou seja, o que poderíamos considerar uma expressão de modernização conservadora no sentido brasileiro costumeiro, uma modernização que conserva as velhas iniquidades sociais; ou, na conhecida formulação de Schwarz, “reprodução moderna do atraso” (2012, p. 283). Daí que Bolle não fale de assimilação, mas de encenação (p. 126). Para Bolle, o julgamento de Zé Bebelo não passa de “um arranjo cordial entre um chefe da oposição e um mandadeiro do Governo” (p. 137); entre Joca Ramiro, que “representa o tópos da guerra por amizade” (p.129) e Zé Bebelo, “o representante do estamento administrativo [que] consegue se impor ao estamento guerreiro por meio do poder do discurso” (p. 132). Assim, o julgamento não seria outra coisa que o tradicional pacto entre os poderosos que não muda nada substancialmente; ou, pergunta Bolle, “alguém entre os mais de quinhentos sertanejos ali reunidos manifesta o interesse de fazer a máquina da guerra parar, liquidando com o oficio que é seu sustento de vida?” (p. 126). Devido à desmontagem que o texto possibilita da leitura do julgamento de Zé Bebelo como saída feliz para o choque entre o costumeiro e o moderno, Bolle discorda que o episódio possa ser considerado como “expressão de supostas utopias políticas de Guimarães Rosa” (p. 98). Na visão do crítico “a única utopia do romancista — com uma estratégia não iluminista, mas luciférica — é a invenção de uma nova linguagem” (p. 122). Segundo Bolle, por meio de “uma arte combinatória múltipla”, que bebe tanto das fontes populares quanto dos clássicos da literatura, Rosa inventou uma linguagem em que se faz presente tanto o “Grande sertão: a grandiloquência dos donos do poder”, quanto as “veredas, a fala humilde do povo” (pp. 17 – 18). Nessa aproximação de falas 96

múltiplas, Rosa cifraria a possibilidade da integração do país, da culminação de seu malogrado processo formativo: “as inovações poéticas e estéticas postas em obra por Guimarães Rosa configuram uma utopia que não é apenas literária, mas também política: reinventar o português do Brasil, em forma de uma língua que sirva para o diálogo entre as classes” (p. 443). A observação de que em Rosa se vincula uma utopia literária com uma política não difere do proposto por críticos como Roncari e Rama, e parece indiscutível. Já vimos que o escritor vinculava sua escrita a um processo de resistência da desaparição do sertão diante dos processos de modernização e, no começo de este capítulo, citamos uma declaração em que Rosa ligava o futuro glorioso da literatura latino-americana com o fim do colonialismo. O que chama a atenção na leitura de Bolle, não é o reconhecimento desta utopia político literária, mas o fato de que o mesmo crítico que se mostra tão cético diante das leituras utópicas do julgamento de Zé Bebelo, esteja tão disposto a acreditar numa utopia da linguagem roseana. Principalmente quando sua leitura de Grande sertão: veredas oferece elementos para desconfiar dela. Bolle interpreta o romance de Rosa como um bildungsroman em que se resgata “a ideia original que norteou Goethe a invernar o paradigma do romance de formação. [...] Goethe, em vez de defender, como a Revolução, o confronto armado entre as classes em conflito, propôs o diálogo entre elas” (p. 10). Mas é o mesmo Bolle quem assinala que em Grande sertão: veredas não há diálogo harmonizador, mas choque: “[o] contraste entre a fala grandiloquente dos poderosos e a fala dos humildes, de cuja perspectiva Riobaldo chega a se aproximar, confirma o que está inscrito programaticamente no título do romance: uma montagem em choque de dois universos linguísticos e sociais conflitantes” (p. 19, grifos meus).

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Talvez Bolle responderia que a utopia a que ele se refere não está no estabelecimento de um diálogo explícito, mas na multiplicidade de vozes que compõem Grande sertão: veredas, representando a possibilidade de que todo o país fale e tenha a possibilidade de ser escutado (mesmo os tradicionalmente excluídos). Segundo o crítico, no romance as múltiplas falas se atravessam as umas às outras e nenhuma é priorizada ou idealizada. Assim, voltando a citar a passagem anterior, mas em extenso: o discurso de Riobaldo atravessa o discurso do seu padrinho Selorico Mendes, porta-voz da historiografia laudatória dos potentados que comandam os rumos da política no Brasil desde os inícios. O discurso de Riobaldo atravessa igualmente as declarações e os programas de Zé Bebelo, representante do desenvolvimentismo, do populismo e do discurso eleitoreiro dos candidatos a cargos públicos. Esse contraste entre a fala grandiloqüente dos poderosos e a fala dos humildes, de cuja perspectiva Riobaldo chega a se aproximar, confirma o que está inscrito programaticamente no título do romance: uma montagem em choque de dois universos lingüísticos e sociais conflitantes. Assim como o seu criador, o protagonista-narrador é um exímio conhecedor de ambas essas esferas de linguagem, sendo o romance deliberadamente construído no campo de tensão entre elas. Quando Riobaldo, depois do pacto, torna-se dono do poder, ocorre também uma mudança em seu discurso, a ponto de ele incorporar a mentalidade daqueles que criticou: os seu Habão, seu Zé Bebelo, seu Selorico Mendes... Nessa fase, o discurso de Riobaldo, por sua vez, é atravessado por falas críticas de sertanejos. (p. 439)

Para Bolle, estas últimas falas contribuem na criação de uma “instância metanarrativa” que permite avaliar criticamente a postura do narrador, sem que isto queira dizer que elas sejam inquestionáveis para o autor: apesar do peso decisivo das intervenções críticas de sertanejos comuns, o romancista não idealiza a linguagem do povo. A relação de Guimarães Rosa com a linguagem popular é afetiva, mas não sentimental ou idealizadora. Num comentário crítico sobre a ‘sintaxe popular’, ele se refere a ela como ‘filha da ignorância, da indigência verbal, e que leva a frouxos alongamentos, a uma moleza sem contenção’. Ele, ao contrário, ‘procura a condensação, a força, as cordas tensas’. (pp. 440 – 441).

Nestas observações, Bolle é bastante convincente. O problema começa quando o crítico passa de afirmar que Grande sertão: veredas inclui falas críticas de sertanejos que problematizam o relato de Riobaldo a dizer que essas falas permitem “montar um retrato do Brasil articulado pelo próprio povo” (p. 438). Ao afirmar isto, Bolle dá a entender que, como diz num artigo que é uma versão anterior do seu último capítulo de Grandesertão.br, Rosa “em vez de falar sobre o povo, faz com que o povo se

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autorepresente, através de suas próprias falas” (2002, p. 357). No seu artigo, Bolle chega a considerar que essas falas do povo sertanejo permitem montar “um quadro exato do seu ambiente social, de sua história cotidiana e mentalidade” (p. 360). Ao afirmar isto, o crítico não parece disposto a problematizar até que ponto a mediação de Guimarães Rosa interfere na “autorepresentação” do povo, nem quem tem a autoridade de determinar se essa representação oferece “um quadro exato” – certamente é o crítico e não um sertanejo quem diz isso. Com essa limitação esbarra, em Grandesertão.br, o exame de Bolle do que chama a “autoreflexão” de Guimarães Rosa sobre o papel que tem cumprido os letrados na história do Brasil. Bolle lembra que o escritor mineiro foi “um alto funcionário do governo federal, ao qual serviu com dedicação e lealdade”, e como tal “foi um letrado a serviço do poder, embora se abstendo, na medida do possível, de discursos de maior envolvimento ideológico” (p. 389). Mas, ao mesmo tempo, o escritor também teria cultivado “a existência de um letrado autônomo” (p. 389), que usou sua escrita contra o poder dos letrados. O autoretrato dessas duas caras do escritor seria Riobaldo, o jagunço letrado que “defende os interesses e o discurso da classe dominante”, mas que “se sente corresponsável e chega a ser um porta-voz dos humildes” (385). Para Bolle o que temos aqui são os dois gumes da literatura de que falou Antonio Candido no seu ensaio de 1968. Por um lado, “na sociedade duramente estratificada, submetida à brutalidade de uma dominação baseada na escravidão [...] os escritores e intelectuais reforçaram os valores impostos”, mas, por outro, “puderam muitas vezes [...] usar a ambiguidade do seu instrumento e de sua posição para fazer o que é possível nesses casos: dar a sua voz aos que não poderiam nem saberiam falar em tais níveis de expressão” (CANDIDO apud BOLLE, 2004, p. 390).

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De maneira interessante, Bolle assinala que essa descrição caracteriza bem “o caso de Riobaldo e do autor de Grande sertão: veredas”. Ou seja, nem Rosa nem Riobaldo estariam de um único lado, não seriam só exemplo de um tipo dos escritores mencionados por Candido, mas dos dois simultaneamente. Agora, se isto é assim, se a posição de Rosa e Riobaldo é essencialmente ambígua, como saber quando eles estão dando voz verdadeiramente aos que não podem “falar em tais níveis de expressão”? Não seria melhor dizer que o discurso ambíguo e cheio de incertezas de Riobaldo não nos permite determinar esse momento de expressão verdadeira? Se Riobaldo “oscila entre o discurso de legitimação e a autoacusação”, qual é o sentido dessa autoacusação, senão advertir que não se deve tomar sua fala como fiel a alguém? E como acreditar que Riobaldo e Guimarães Rosa dão voz “aos que não poderiam nem saberiam falar em tais níveis de expressão” se estes últimos não podem atestar a justeza dessa fala, e, ao final, é um letrado quem a determina? A afirmação, portanto, não termina acionando o gume que corta em favor dos valores impostos? Todas estas são perguntas que remetem a debates já antigos na crítica literária, suscitados principalmente pelos chamados estudos subalternos, não considerados por Bolle no seu estudo. Dá a impressão de que é porque Bolle não considera esse tipo de questões, ou mais claramente, porque não problematiza o suficiente a questão das assimetrias sociais, em particular no tocante ao poder de falar e ser escutado, que pode terminar seu texto de forma esperançosa, julgando que experiências como a alfabetização por meio da obra de Guimarães Rosa, assim como as novas tecnologias podem auxiliar na construção de uma nova história do Brasil, em que cada pessoa possa participar como “formador da língua” (p. 446). Ainda que bem intencionada, esta solução para os problemas do país não deixa de ser “quase miraculosa”, para usar a expressão com que Luiz Roncari qualifica o projeto de modernização conservadora. 100

Como se viu, que em Grande sertão: veredas fale a multidão de vozes que compõem o Brasil, assinalando um possível diálogo entre classes, é tão pouco evidente quanto que ele presente uma harmonização entre o costumeiro e o moderno, mesmo se esta foi sua intenção; por isso, antes do que aderir à utopia linguístico literária de Guimarães Rosa, parece conveniente aprofundar nos momentos de autoreflexão crítica que aparecem na obra do escritor. E talvez em nenhuma outra obra essa reflexão tenha ido mais longe do que em “Páramo”, um conto que, significativamente, Rosa não conseguiu concluir.

2.4. “Páramo”, um conto de (de)formação. Até muito pouco tempo, “Páramo” não tinha suscitado praticamente nenhum interesse na crítica, dando a impressão de que fosse uma obra menor de um grande escritor, com pouco a oferecer. Meu trabalho faz parte de um conjunto de textos que, nos últimos anos, vão noutro sentido, defendendo que o conto é digno da maior atenção, ainda que, no meu caso, isso não implique querer mostrar que o conto é uma grande realização. Meu propósito, pelo contrário, é analisar por que “Páramo” não chegou a bom termo e é difícil estar em bons termos com ele, pois são indagações como estas as que, a meu ver, fazem com que valha a pena ler o conto hoje. Se “Páramo” não é uma narração tão acabada como outras do autor mineiro (por exemplo, Grande sertão: veredas ou “A terceira margem do rio”), isto se deve, em primeiro lugar, ao fato de que ela não foi terminada. Guimarães Rosa não a concluiu, ainda que faltasse pouco para que o fizesse. Para que o conto tivesse o aspecto de estar

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completo só faltou que o escritor preenchesse um espaço vazio entre o último e o penúltimo parágrafo, no qual deveria aparecer a citação de um livro60. Guimarães Rosa morreu sem preencher esse espaço e, aparentemente, sem se decidir a incluir o conto em Estas estórias61. O livro, incluindo “Páramo”, só foi publicado postumamente. Não cabe dúvida de que o conto era uma aposta ariscada para autor, pois nele incursionava narrativamente em um espaço inabitual para ele – e para a literatura brasileira em geral –, já que “Páramo” não se passa no sertão (do qual demonstrou ser um narrador muito habilidoso), mas em uma cidade da cordilheira dos Andes, da qual pouco se ouvia falar no Brasil da época. Talvez essa eleição já condenava o conto a não chegar a um bom desfecho ou, no mínimo, ao desfecho que se espera de uma obra de Guimarães Rosa. Antes de seguir adiante com “Páramo”, convém lembrar, com Danielle Corpas, que o período que vai da gestação de Rosa como escritor até a publicação de seus primeiros livros de peso, incluindo Grande sertão: veredas (1956), coincide com o período em que vários intelectuais brasileiros publicam obras que tinham como foco comum a formação nacional: Refiro-me a Casa grande e senzala (Gilberto Freyre, 1933), Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda, 1936), Formação do Brasil contemporâneo (Caio Prado Jr., 1942), Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (Raymundo Faoro, 1958), Formação econômica do Brasil (Celso Furtado, 1959), e Formação da literatura brasileira (Antonio Candido, 1959). (2008, p. 264n).

Todos eles, diz Corpas seguindo um texto de Paulo Arantes, “entre os anos 30 e 50, haviam sistematizado linhas evolutivas na experiência social, econômica ou política locais” (p. 266), impulsionados por um “ideal de formação”, isto é, da crença em um 60

Aparência de estar completo não é o mesmo, claro, que estar pronto para seu autor. Na versão que se conserva do conto é perceptível que Guimarães Rosa cogitava a possibilidade de substituir algumas palavras, e, certamente, ao revisar o texto, poderia ter feito outras mudanças. 61 Nos índices de contos que Guimarães Rosa fez de modo tentativo para Estas Estórias nem sempre aparece “Páramo”.

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processo em “direção do ideal europeu de civilização relativamente integrada” (ARANTES apud CORPAS p. 266). Resulta tentador pensar que este contexto em que se forma como escritor Rosa tem a ver com sua predileção por escrever obras que tratam da travessia ou a viagem na qual um indivíduo descobre o mundo e a si mesmo, o que faz com que várias delas possam ser associadas com a tradição do romance de formação ou bildbungsroman. Tal associação tem sido feita pela crítica especialmente com relação a Grande sertão: veredas, ainda que de maneiras muito diversas e, inclusive, contraditórias. Por exemplo, há quem defenda que o romance de Rosa recupera o modelo de romance de formação paradigmático pensado originalmente por Goethe (Willi Bolle), quem afirme que ele se inscreve parcialmente nessa tradição (Marcos Mazzari, David Arrigucci Jr) e quem veja nele uma inversão do modelo estabelecido por Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, pois nele não haveria acumulação de experiência, superação e desenvolvimento (Jose Antonio Pasta). Como se verá, a questão pode ser rediscutida a partir de “Páramo”, uma narrativa formativa, cujo termo é o inacabamento. O conto começa com o narrador e personagem principal anunciando que vai contar sua travessia da morte à ressurreição, como parte do processo de aperfeiçoamento pelo que atravessaria toda vida humana: “Cada criatura é um rascunho, a ser retocado sem cessar, até à hora da liberação pelo arcano, a além do Lethes, o rio sem memória” (2001a, p. 262). De entrada, pois, a narrativa nos coloca diante da questão da formação, entendida aqui como processo de aperfeiçoamento transcendental, retomando o contexto místico de que possivelmente se desprendeu a moderna Bildung, como informa o Dictionary of untranslatables: O dicionário etimológico de Friedrich Kluge […] explica que o termo Bildung (bildunga em alto-alemão antigo), que deriva de Bild, “imagem”, significava no início criação, fabricação, o fato de dar forma. A transição para a ideia de instrução intelectual [intellectual training] e depois

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de educação se pensa que provêm da linguagem mística, na qual înbilden designa a aquisição de uma representação figurativa, estabelecendo uma relação de facto entre Bildung y Embildung (imaginação). (ESPAGNE, 2014, p. 112).

O caráter místico da narrativa parece confirmado pela maneira como o narrador se refere a seus virtuais interlocutores, aos quais chama de “irmãos”, com tom de quem dá um sermão, como bem apontou Paulo Moreira (2013, p. 86). Contudo, depois de duas páginas, esta forma de interpelação é abandonada, o que indica desde cedo que o misticismo pode não passar de uma estratagema de um narrador que, como cada vez vai ficar mais claro, tenta com dificuldade dotar de sentido e justificação os acontecimentos pelos que passou, à maneira de Riobaldo em Grande sertão: veredas. Mas não nos adiantemos. Voltemos aos primeiros parágrafos de “Páramo”, em que se anuncia uma viagem formativa, que inclui o inevitável momento de perda de toda certeza: “todo verdadeiro grande passo adiante, no crescimento do espírito, exige um baque inteiro do ser, o apalpar imenso de perigos, um falecer no meio das trevas; a passagem. Mas, o que vem depois, é o renascido, um homem mais real e novo” (p. 262). Prometer narrar um processo formativo é prometer narrar experiências em sentido forte, que é aquilo que só pode ser adquirido com “o apalpar imenso de perigos”. Martin Jay destaca o vínculo que há entre experiência e perigo lembrando que a palavra inglesa experience deriva mais diretamente da experientia latina, que denotava ‘teste, prova ou experimento’ [trial, proof, or experiment]. A experiénce francesa e esperienza italiana ainda podem significar uma experiência científica (quando na forma indefinida). Na medida em que ‘testar’ [to try] (expereri) contém a mesma raiz que periculum, ou ‘perigo’, há também uma associação secreta entre experiência e perigo, o que sugere que se trata de ter sobrevivido a riscos e aprendido alguma coisa com o encontro (2004, 10).

Por exemplo, continua Jay, pode significar “emergir [a coming forth from]” ou, se traduzimos nas palavras do narrador de “Páramo”, um “grande passo adiante”. Jay ainda faz referência a palavra alemã Erfahrung que teria adquirido, entre seus significados, 104

uma noção de experiência mais alongada temporalmente com base em um processo de aprendizagem, a integração de momentos distintos de experiência em um todo narrativo ou uma aventura. Este último ponto de vista, que é chamado às vezes de noção dialética de experiência, tem a conotação de um progressivo, se não sempre liso, movimento ao longo do tempo, o que está implícito no Fahrt (viagem) integrado em Erfahrung e na ligação com a palavra alemã para perigo (Gefahr) (p. 11).

Antoine Berman também tem escrito sobre o conceito alemão de experiência, vinculando-o explicitamente com a Bildung, que – diz – chegou a ser concebido na cultura alemã, como “um auto-processo em que há um 'mesmo' que se desdobra até adquirir sua plena dimensão” (p. 81). Nesse contexto, experiência implicaria alargamento e infinitização, passagem do particular ao universal, prova de cisão, do finito, do condicionado. É viagem, Reise, ou migração, Wanderung. Sua essência é jogar o mesmo numa dimensão que vai transformá-lo. Ela é o movimento do “mesmo” que, mudando, encontra-se “outro”. “Morra e transforme-se”, disse Goethe (pp. 81 – 82).

Quando o narrador de “Páramo” fala de morte, a entende justamente no sentido de passar por encontrar-se “outro”, que é quando “nós mesmos [...] nos estranhamos”: às vezes sucede que morramos, de algum modo, espécie diversa de morte, imperfeita e temporária, no próprio decurso desta vida [...]. É um obscuro finar-se, continuando, um trespassamento que não põe termo natural à existência, mas em que a gente se sente o campo de operação profunda e desmanchadora, de íntima transmutação precedida de certa parada; sempre com uma destruição prévia, um dolorido esvaziamento; nós mesmos, então, nos estranhamos (pp. 261 - 262).

E em “Páramo” esse estranhamento acontece justamente no meio de uma viagem. São todos estes elementos, mobilizados pelo narrador no começo da sua história, os que nos fazem pensar que “Páramo” conta uma experiência formativa. Inclusive, a impressão inicial é que estamos diante de uma espécie de minibildungsroman, não sendo o eixo da narrativa muito diferente daquele que tradicionalmente define o romance de formação: “a trajetória de um personagem central (o indivíduo “problemático” divisado por Lukács) ‘em busca de si mesmo’ – pressupondo-se porém que o caminho rumo a essa meta passa sempre pelo confronto educativo com o mundo e o encontro com o ‘outro’” (MAZZARI, p. 87). Definição a que cabe o reparo de Willi Bolle, quem diz que na conceitualização de romance 105

formativo de Goethe, na trajetória desse personagem central o que está em jogo não é só uma formação individual, mas social62. A viagem do narrador de “Páramo” o leva, certamente, a confrontar-se com o mundo, de que descobre uma face desconhecida. No começo da narrativa diz ter ido a uma cidade no estrangeiro, onde “tão só, tão alto” lhe “é dado sentir os pés frios do mundo”; mais adiante comenta ter descido a “um mundo de ódio” – como compreenderia a partir de seu encontro com uma índia (a imagem por excelência do outro americano) –, e ainda depois se refere a “um mundo desconhecido. O mundo que você não pode conceber” (p. 276). Aliás, no último parágrafo de “Páramo” o narrador dirá voltar “para tudo. A cidade hostil, em sua pauta glacial. O mundo” (p. 290); uma afirmação que parece vir bem como fecho de uma narrativa formativa, ainda que para esse momento já não seja possível acreditar que “Páramo” vai atingir a forma que prometia. Para entender tudo o que está em jogo nessa promessa de mini-bildungsroman que não chega a bom termo, que é “Páramo”, é preciso descer do terreno dos modelos “universais” (literários, místicos, filosóficos) e das generalizações abstratas às particularidades do texto de Rosa. Isto implica, atender a elementos que, na perspectiva de uma história universal, muitas vezes são considerados, periféricos, sem importância. Claro que a perspectiva universalista, adotada por parte da crítica de Rosa, foi estimulada pelo próprio escritor para quem os problemas que contariam eram os metafísicos63. Mas apesar do seu gosto pelo metafísico, Rosa só em aparência evita o

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Em concordância com Bolle, Michel Espagne assinala que “é fácil mostrar que as várias fases da aquisição da Bildung em Wilhelm Meister correspondem às fases pelas quais a cultura alemã passou no século XVIII, tornando assim o desenvolvimento individual da personalidade uma alegoria da educação do próprio povo alemão” (p. 119). 63 À respeito, além dos conhecidos comentários de Rosa a Günter Lorenz, é bastante ilustrativa a seguinte anedota contada por Antonio Candido: “tive uma conversa com ele e com outra pessoa, que era o cônsul

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concreto. Por regra geral, ainda que de forma sutil e dissimulada, o escritor introduz nas suas obras referências a lugares e momentos específicos, por motivos que cabe indagar. No caso de “Páramo”, a cidade do estrangeiro onde o protagonista vai se confrontar com um “dolorido esvaziamento” é introduzida com as seguintes palavras Era uma cidade velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre chuvosa e adversa, em hirtas alturas, num altiplanície na cordilheira, próxima às nuvens, castigada pelo inverno, uma das capitais mais elevadas do mundo. Lá no hostil espaço, o ar era extenuado e raro, os sinos marcavam as horas no abismático, como falsas paradas do tempo, para abrir lástimas, e os discordiosos rumores humanos apenas realçavam o grande silêncio, um silêncio também morto como se mesmo feito da matéria desmedida das montanhas (p. 262).

O nome desta cidade não é mencionado em nenhum momento, e se poderia supor que é só uma criação imaginaria do autor, inspirada nas histórias de aparecidos e fantasmas. Contudo, pouco depois aparece uma referência geográfica concreta: “‘En la cárcel de los Andes...’ — dizem-se os desalentados viajantes que aqui vêm ter, e os velhos diplomatas, aqui esquecidos” (264), e gradualmente se acrescentam outros elementos que fazem a cidade facilmente identificável, pelo menos para aqueles que conheçam razoavelmente Bogotá. De fato, a identificação da capital colombiana como cenário da crise do narrador do conto não é uma novidade, mas em geral, quando tem sido feita, é apenas como curiosidade, praticamente sem incidência na interpretação da narração64. A exceção é o crítico Bairon Oswaldo Vélez – não por acaso um bogotano

brasileiro em Genova naquele tempo [do Congresso de Escritores Latino-Americanos], num restaurante à beira mar muito bonito, creio que na região de Portofino; em que eu no decorrer da conversa, por motivos de que estávamos discutindo as posições ideológicas no congresso, eu declarei que eu era socialista e para mim aquelas posições eram normais. Guimaraes Rosa disse que ele achava referente normal o socialismo, que por ele todo mundo seria igual e feliz, sem problema nenhum, que o ideal na Terra seria justamente a igualdade de todos, mas que isso não era um problema fundamental. O único problema fundamental do homem era saber se Deus existe ou não”. O vídeo com o depoimento de Candido está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=nn9YMb6S7VQ (ver o minuto 5). Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 64 Já em 1978, por exemplo, no livro A galecidade na obra de Guimarães Rosa, Valentín Paz-Andrade menciona que a cidade de “Páramo” pode ser identificada como Bogotá. O crítico mexicano Héctor Olea, na sua dissertação de mestrado de 1987 – dirigida por Roberto Schwarz na Unicamp –, que é, muito provavelmente, o primeiro estudo detalhado de “Páramo”, identifica também a cidade do conto como Bogotá, oferecendo inclusive vários dados como prova, mas, sem tirar maiores consequências disso, talvez por assumir que “em textos como PÁRAMO, a história não acontece no tempo, mas na eternidade; [...]. Os problemas histórico e artísticos mutuamente se anulam; a história está se passando sempre entre textos” (p. 483).

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que fez seus estudos de pós-graduação no Brasil –, que tem mostrado que as alusões à capital da Colômbia no conto são bem mais numerosas do que se costuma apontar, e não estão aí simplesmente para compor um telão de fundo para as ações da narração65. Com Vélez coincido completamente neste ponto, ainda que, como se verá, nossas interpretações vão por caminhos diferentes e as vezes opostos. Na tese de doutorado de Vélez pode ser encontrada uma lista detalhada das referências bogotanas que há em “Páramo”. Aqui me limito a mencionar algumas das alusões óbvias para quem, como já disse, conheça razoavelmente bem Bogotá. Na passagem com que se introduz a cidade no conto, acima citada, já aparecem alguns dados reveladores: a aparência colonial do lugar, a chuva, a altitude. Mais para frente, descobrimos que os habitantes da cidade falam um espanhol que inclui expressões caracteristicamente bogotanas como “chirriado” (p. 271) – que tem o sentido de “elegante”, “atrativo” ou “encantador”. As ruas da cidade do conto, como as de Bogotá, estão divididas em “calles” e “carreras” (p. 284), o cemitério central fica próximo da “carrera 13” (pp. 285 - 286) e as igrejas de San Diego e de San Francisco foram afetadas por um “grande terremoto […] há quase dois séculos” (p. 270); clara referência ao terremoto que sacudiu Bogotá em 1758 e destruiu parte de duas igrejas do centro da cidade que têm esses nomes. Além disso, como no caso da cidade de “Páramo”, a poucas horas de Bogotá há “tierra templada” (p. 278), como a da famosa cidadezinha de Melgar, à qual se acessa saindo pelo sudoeste, por uma rodoviária que passa por uma “célebre cachoeira […] o salto” onde “muitas pessoas vão dispor bruscamente de seu desespero, pelo suicídio.” (p. 279). Trata-se do Salto del Tequendama, que inspirou muitas crônicas de jornal na década de 30 e 40 por ser um lugar predileto dos suicidas

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Ver sua tese de doutorado, na UFSC, O Páramo é do tamanho do mundo: Guimarães Rosa, Bogotá, iauaretê (2014), e o artigo “Guimarães Rosa y su declaración de Bogotá”.

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na época66. Estes exemplos são suficientes para indicar que as coincidências entre a cidade representada e a capital colombiana são tais que não seria difícil traçar em um mapa de Bogotá o roteiro do narrador de “Páramo”, de maneira análoga ao que alguns críticos fizeram com a trajetória de Riobaldo pelo sertão. Aliás, é de notar que o título de ambas as duas obras remitem a espaços geográficos, o que é um indicativo do protagonismo que eles têm nas obras. Assim como o nome da cidade do conto não é mencionado, mas pode ser deduzido, o mesmo acontece com a data em que decorrem os acontecimentos. Em “Páramo” não se menciona data alguma, mas se faz referência a um “médico judeu, muito loiro” que “tivera de deixar sua terra” porque “longe, em sua pátria, era a guerra. Homens loiros como ele, se destruíam, de grande, frio modo, se matavam” (p. 268). A menção do judeu exilado por causa da guerra faz pensar, de imediato, nos anos da Segunda Guerra Mundial; e se se atende a biografia de Guimarães Rosa, não é difícil concluir que a narração recria a cidade de Bogotá nos anos 1942-44, quando o escritor morou nela como segundo secretário da embaixada do Brasil. É inclusive tentador pensar no protagonista do relato – um homem culto, possivelmente um diplomático, à que uma “freira de ar campesino” chama de “Su Señoría Ilustrísima” (p. 271) – como em um alter ego do escritor. Como aponta Edna Calobrezi, com base numa resenha biográfica escrita por Paulo Ronai, Rosa sofreu de “soroche” na Colômbia e tinha medo de morrer ao igual que o narrador do conto (2001, p. 139). O soroche, ou “mal-dasalturas”, é o mal-estar físico que provoca a altitude naqueles que não estão acostumados com ela, e inclui entre seus sintomas a sensação de asfixia, tal como descreve o narrador 66

O jornalista José Joaquín Jiménez, apelidado “Ximénez”, virou famoso na década de 40 por ser um especialista nesse tipo de crônica. O escritor colombiano Juan José Hoyos lembra que “Ximénez ponía en el bolsillo de las víctimas versos de su autoría firmados con el seudónimo de ‘Rodrigo Arce’, lo que despertó todo tipo de especulaciones entre sus lectores. Murió a los veintinueve años, víctima de una pulmonía que contrajo mientras cubría una ronda de suicidios en el Salto del Tequendama” (2009, p. 632).

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de “Páramo”: “Nessa manhã, acordei — asfixiava-me. Foi-me horror. Faltava-me o simples ar, um peso imenso oprimia-me o peito” (p. 267). Rosa escreveu de sua estadia em Bogotá a seu tio Vicente, no dia 21 de setembro de 1942: até agora, não tive jeito de escrever, porque tôdas as minhas energias físicas e morais estavam enfeixadas, na tarefa fisiológica da adaptação à altura. Porque, não é brincadeira esta altitude de 2.660 metros; oxigênio aqui é manga-de-colête, e passei uns dez dias aprendendo a respirar nesta atmosfera rarefeita. Passava as manhãs em terrível dispnéia, e as tardes com tremenda angústia e dores de cabeça. Felizmente, já venci a etapa, que foi duríssima. Não desejo, sinceramente, a nenhum de vocês, a vinda a estas regiões tão próximas do céu, que são paragens apropriadas para anjos e não para criaturas humanas (GUIMARÃES, 1972, p. 166).

Esta carta termina, aliás, com uma imagem da cidade muito próxima à oferecida por “Páramo” e com uma menção à melancolia, um estado também experimentado pelo protagonista do conto67: Eu fico aqui, na velha cidade colonial de Jimenes (sic) de Quesada, aninhada junto às nuvens, entre a cordilheira central e a cordilheira oriental; escutando os sinos das igrejas antigas, contemplando a savana melancólica, e pensando em vocês, com saudades e tôda a sorte de bons desejos (p. 167).

Apesar de escrever, na carta, ter superado “felizmente” a “dispneia” – “as tardes com tremenda angústia e dores de cabeça” –, Rosa acrescenta não desejar “a nenhum de vocês, a vinda a estas regiões tão próximas do céu, que são paragens apropriadas para anjos e não para criaturas humanas”. Mesmo adaptado, Guimarães Rosa não se sentiria a vontade em Bogotá, e parece que suas lembranças da cidade ficaram vinculadas a algo desagradável, que não deixava de voltar. Outro exemplo disto, é a seguinte anedota recuperada por Paulo Moreira: Uma vez, no México, Guimarães Rosa impressionou Gabriel Garcia Márquez e Álvaro Mutis com um conhecimento íntimo da paisagem urbana de Bogotá quando se encontraram na casa de Virginia Fagnani Wey, tradutora de Guimarães Rosa. Antes da chegada dos dois escritores colombianos, Guimarães Rosa tinha se queixado amargamente sobre seus anos em Bogotá, a ponto de alarmar seus anfitriões, mas quando os dois colombianos apareceram, Guimarães Rosa cumprimentou-os pedindo notícias sobre um vagabundo famoso, que costumava deambular pelas ruas de Bogotá e encantou-os com vários contos da vida nas ruas da cidade colombiana (p. 217).

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O protagonista de “Páramo” diz: “Meus maiores inimigos, então, iriam ser a dispneia e a insônia. Sob a melancolia — uma águia negra, enorme pássaro” (p. 268).

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A diplomática atitude de Rosa com García Márquez e Mutis, não tira que o primeiro que vem com a lembrança de Bogotá é a amargura. Mas qual é a importância destes dados biográficos? Certamente, não é mostrar a fidelidade com que Guimarães Rosa recriou sua vivência bogotana em “Páramo”. A questão que interessa indagar aqui não é a da fidelidade, mas a da representação, isto é, a pergunta: por que o escritor mineiro fez aquela representação da Bogotá dos anos 40 – ou de uma cidade cheia de alusões óbvias a Bogotá dos 40 – em “Páramo”? Por que a representou como uma espécie de Comala, uma cidade dos mortos, ainda que às avessas, fria e na altura, onde o narrador se sente paranoicamente perseguido por um homem com “ar de cadáver”? Como se verá, uma resposta satisfatória não pode deixar de considerar certas relações entre o texto narrativo e o tecido biográfico. Na sua breve interpretação de “Páramo”, Silviano Santiago ensaia um passo nesta via, sugerindo que traços dos cem dias de internamento do cônsul [Guimarães Rosa] em Baden Baden sobressaem na asfixia sofrida pelo personagem em virtude da rarefação do ar nas alturas dos Andes. Coação marcial e pressão atmosférica se somam e levam o prosador a dramatizar em ficção simbólica a angústia existencial por que ele passa e que toma conta do mundo em guerra68.

Segundo Santiago, então, a angustia ativada pelo soroche que retrata “Páramo”, se encadearia com a provocada pela atmosfera irrespirável da Segunda Guerra e, em particular, com o evento traumático do confinamento que sofreu o escritor em um hotel da Alemanha. A hipótese é plausível, mas é preciso prestar maior atenção a outro acontecimento apenas mencionado por Santiago, “a segunda viagem a Bogotá, feita em 1948”, que não só pode ser relacionada com a angústia do narrador de “Páramo”, mas também com seu riobaldiano sentimento de culpa.

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O texto completo de Santiago, aparecido no Estadão com o título “Soroche o mal das alturas”, está disponível em http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,soroche-o-mal-das-alturas,903349. Última consulta 31 de julho de 2015.

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Mas antes de nos deter nessa segunda viagem, convém considerar outro aspecto, que pode ser delineado a partir da comparação de “Páramo” com outro testemunho literário da Bogotá da década 40, escrito por um autor colombiano com algumas preocupações próximas às de Rosa: Gabriel García Márquez. Em sua autobiografia Vivir para contarla, García Márquez lembra a Bogotá à qual chegou nos anos 40 do seguinte modo:

Bogotá era entonces una ciudad remota y lúgubre donde estaba cayendo una llovizna insomne desde principios del siglo XVI. Me llamó la atención que había en la calle demasiados hombres deprisa, vestidos como yo desde mi llegada, de paño negro y sombreros duros. En cambio no se veía ni una mujer de consolación […]. Fue un derrumbe moral. La casa donde pasé la noche era grande y confortable, pero me pareció fantasmal por su jardín sombrío de rosas oscuras y un frío que trituraba los huesos. […] Mi mayor impresión fue cuando me deslicé bajo las sábanas y lancé un grito de horror, porque las sentí empapadas en un líquido helado. Me explicaron que así era la primera vez y que poco a poco me iría acostumbrando a las rarezas del clima. Lloré largas horas en silencio antes de lograr un sueño infeliz. (2002, pp. 221 - 222).

As coincidências com “Páramo” são notórias. Aqui também aparece uma Bogotá chuvosa, fria, lúgubre e fantasmal que provoca em García Márquez, como no narrador do conto de Guimarães Rosa, a devastação moral e o pranto69. Como explicar isto? Considerando a biografia dos autores, se poderia insistir no peso do componente geográfico. Escritores originários de regiões cálidas e localizadas ao nível do mar, não poderiam estar cômodos e felizes em uma cidade fria localizada na altitude. No entanto, como sabemos, as explicações ecológicas desse tipo sempre ocultam o fundamental: os conflitos sociais. O problema – como bem indica o texto de Márquez – não é simplesmente que Bogotá seja fria, mas sim que nela caia a mesma chuva desde o começo do século XVI: “García era entonces una ciudad remota y lúgubre donde estaba cayendo una llovizna insomne desde princípios del siglo XVI” (2002, p. 221). No trecho a seguir de Vivir para contarla a questão aparece de maneira ainda mais clara:

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“Por vezes sobrevir-me-ia automático choro, ao qual não devia resistir” (ROSA, 2001, p. 268).

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Hoy pienso que […] la vida en Colombia, desde muchos puntos de vista, seguía en el siglo XIX. Sobre todo en la Bogotá lúgubre de los años cuarenta, todavía nostálgica de la Colonia [...]. Para comprobarlo bastaba con sumergirse en el centro neurálgico de la carrera Séptima y la avenida Jiménez de Quesada, bautizado por la desmesura bogotana como la mejor esquina del mundo. Cuando el reloj público de la torre de San Francisco daba las doce del día, los hombres se detenían en la calle o interrumpían la charla en el café para ajustar los relojes con la hora oficial de la iglesia. Alrededor de ese crucero, y en las cuadras adyacentes, estaban los sitios más concurridos donde se citaban dos veces al día los comerciantes, los políticos, los periodistas -y los poetas, por supuesto-, todos de negro hasta los pies vestidos, como el rey nuestro señor don Felipe IV (pp. 307 – 308).

Desta passagem não é difícil deduzir que o que incomoda García Márquez na Bogotá de 40 é a sua falta de modernidade, seu conservadorismo. Esta última característica da cidade, com seu específico viés hispano-católico, aparece muito explícita também em “Páramo”. Pense-se, por exemplo, nas procissões que o narrador encontra quando sai a caminhar de manhã: “A esta hora, os velhos sinos solenizam. Por vezes, há procissões, desfilam confrarias, homens todo ocultos, embiocados em suas opas e capuzes, cuculados, seguindo enormes santos em andores absurdos” (269); ou na “freira de ar campesina” que embrulha uns doces “em folha de jornal”, mas não deixa que o narrador observe essas folhas, tentando esconder “aquela parte do jornal, onde havia anúncios com figuras de mulheres” (271)70. Ainda, a imagem mais expressiva do conservadorismo hispano-católico da cidade talvez seja a das noites “cruelmente frias”, quando surgem ante o narrador algumas das figuras entrevistas durante o dia, “pelas ruas velhas” (p. 273 – 274). Nesse momento, diz o narrador, ele tem a impressão de que ou bem aquelas figuras se corporizam transportadas “a outra era” ou então é ele quem está “a perfazer de novo, por prodígio de impressão sensível ou estranhifício de ilusionário, as mesmas ruas, na capital do Novo Reino, dos Ouvidores, dos Vice-Reis” (p. 274). Como não ter a sensação de retorno de ou “a outra era” – podemos perguntar

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A repressão sexual do narrador, na cidade, é evidente. Ele insiste em vários momentos na carência de amor que enfrenta (“não tenho um amor” [p. 64], “a morte me atraíra até aqui — sem amor” [p. 267], “eu ia findar ali, no afastamento de todo amor [p. 283]), ainda que nessa carência há algo de ambígua renúncia voluntária, como se verá.

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seguindo García Márquez – se naquela Bogotá as pessoas ainda se vestiam como “el rey nuestro señor don Felipe IV”? Cabe lembrar que a sensação de estar voltando para a época dos “Ouvidores, dos Vice-Reis” também acometeu ao escritor argentino Miguel Cané diante do expresidente e gramático colombiano Miguel Antonio Caro. Para Cané, este colombiano ilustre não vivia no mesmo século que ele, o XIX, mas no XVI: Nada tengo que ver con sus ideas sobre la marcha de las cosas en Colombia, ni con las respetabilísimas inspiraciones de su conciencia; pero cae bajo el dominio de la crítica su apasionamiento ilimitado por las cosas que fueron la glorificación constante del pasado, del pasado español, contra todas las aspiraciones del presente, aun del presente español. Si la casualidad ha hecho que el cuerpo del señor Caro venga a aumentar la falange humana en suelo colombiano, su espíritu ha nacido, se ha formado y vive en pleno Madrid del siglo XVI71.

Miguel Antonio Caro foi um dos letrados promotores da política de “Regeneración” em Colômbia nos fins do século XIX, sem a qual provavelmente Bogotá não teria adquirido a fisionomia retratada por García Márquez e Guimarães Rosa. Como escreve Erna von der Walde, a “Regeneración”, encabeçada pelo presidente e poeta Rafael Nuñez, “aspiraba a ordenar y unificar un país fragmentado por luchas civiles y arduas condiciones geográficas alrededor de un Estado autoritario y de la Iglesia católica”. Para os ideólogos da “Regeneración”, a religião católica e a língua espanhola eram os dois elementos que ligavam a população da malograda nação colombiana. Por isso, vigiar o bom comportamento linguístico e religioso da população foi considerado fundamental para a manutenção da unidade e estabilidade do país. Isto fez com que a elite conservadora colombiana estabelecesse uma equivalência entre ordem gramatical, ordem religiosa e ordem social. Nesse sentido, é ilustrativa a afirmação –lembrada por David Jiménez– do presidente

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Tomo esta citação do artigo “Lengua y Poder: el Proyecto de Nación en Colombia a finales del Siglo XIX” de Erna von der Walde Uribe; a este artigo remeto de novo nos parágrafos seguintes. O artigo está disponível na seguinte página de Internet: http://elies.rediris.es/elies16/Erna.html. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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Marco Fidel Suárez en su famoso discurso ‘El castellano en mi tierra’: ‘El que altera perversamente la sintaxis (...) no sólo es prevaricador del habla (...) sino de su raza y de su patria’; afirmación que se corona en la frase final del discurso, con la fusión de gramática, raza y patria en la síntesis suprema del ‘Reinado de Dios’. (Jiménez, 1992, p. 12).

Este é um exemplo do que Ángel Rama definiu, em seu clássico estudo La ciudad letrada, como a substituição do projeto de construção de “sociedades democráticas e igualitárias […] por la formación de minoritarios grupos letrados que custodiaban la sociedad jerárquica tradicional” (1998, p. 58); visto que, como diz Erna von der Walde, a “Regeneración” como

proyecto de nación que remite a la raíz hispánica y católica es un proyecto excluyente de las mayorías mestizas del país, por no mencionar a las poblaciones indígenas, sobre las que recayó la fuerza de este proyecto civilizador. Los saberes letrados, la fe católica, el hispanismo serían dominio de unos pocos que legitimarían con ello su derecho al poder. Fueron efectivos en su rechazo a las ideas modernas, y privaron de ellas a todos por medio de la educación religiosa que se impartió a los pocos que tuvieron acceso, y por la total negación de instrucción a los demás.

A representação que fazem Guimarães Rosa e García Márquez da Bogotá da década de 40 mostra uma cidade que ainda carrega claramente as marcas de tal projeto, apesar da ruptura da hegemonia conservadora e o período de relativa modernização que vivenciou a Colômbia durante a chamada República Liberal (1930-1946). Trata-se da Bogotá orgulhosa de ser o lugar em que se falava o melhor espanhol do mundo, ainda que a maioria não falasse o espanhol correto das elites72; a “Atenas sudamericana”73 em que dificilmente se encontraria um ateniense, mas na qual com facilidade era possível ver homens com “os sombreros de jipijapa, os escuros ponches [ponchos] ou ruanas” e “as mulheres vestidas com trajes de lanilha preta ou cor-de-café, carmelita, ou curtas 72

Para falar verdade, este é um mito que, mesmo enfraquecido, persiste até hoje. Em 2007, a influente empresa de rádio e televisão colombiana Caracol noticiava que “Víctor García de la Concha, director de la Real Academia de la Lengua Española, la casa matriz y la institución más antigua del español en el mundo, dijo que es cierta la fama que tiene Colombia de hablar el mejor español”. Ver: http://www.caracol.com.co/noticias/entretenimiento/en-colombia-se-habla-un-buen-espanol-dice-la-realacademia-de-la-lengua/20070118/nota/380061.aspx. Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 73 De tal modo é ainda definida no vídeo de 1946 que fez a Pan American Union de Washington D.C, organização que deu origem a atual OEA, em documento assinado por representantes dos 21 países membros em Bogotá, em 1948. O vídeo está disponível em: http://www.globalimageworks.com/stock?text=bogota%20capital&textMode=phrase. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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saias de indiana, com chapéus de palha também, ou de feltro preto, chapéus de homens”, isto é, “a gente pobre e simples” descrita em “Páramo” (p. 287). Dado o interesse do caribenho García Márquez e o sertanejo Guimarães Rosa por tradições populares tradicionalmente desvalorizadas e marginadas pelos letrados, não é de surpreender que tenham encontrado dificuldades de respirar em Bogotá. Na verdade, essa dificuldade era sentida também por muitos bogotanos, como o mostrou o 9 de abril do 1948, testemunhado por ambos os autores; García Márquez como estudante de direito e Guimarães como secretário-geral da delegação brasileira à IX Conferência Panamericana. Aliás, como foi dito antes, não se deve considerar que “Páramo” fala só da Bogotá de começos da década de 40, mas também e – fundamentalmente – da Bogotá do 9 de abril de 1948. À luz dos acontecimentos desse dia, do chamado bogotazo, podemos ter uma maior compreensão (ou pelo menos mais interessante) do desenrolar narrativo do conto; ou melhor, seu não desenrolar, seu não desenvolvimento, pois, afinal, em “Páramo” não há superação que lhe permita ao narrador terminar afirmando sua volta à vida, como prometera ao início. Por último, na narrativa, não se resolve o desencontrado encontro da vida e da morte, como não se resolve o do narrador culto e cosmopolita com os humildes moradores locais. A primeira vista, a proposta de ler “Páramo” à luz do bogotazo pode parecer descabida, mas, como bem mostrou Bairon Vélez, na narração aparecem elementos que nos indicam que a Bogotá de começos dos 40 está sendo vista desde o futuro. O mais claro deles é “uma citação do poema ‘A máquina do mundo’ que Carlos Drummond de Andrade publicaria individualmente em 1949, e em 1951 como um dos poemas do livro Claro enigma” (VELEZ, 2014, p. 129). A citação não está dissolvida no corpo do texto, 116

mas marcada com aspas74, isto é, se ressalta com clareza este elemento que quebra a temporalidade sugerida pelos outros elementos da narrativa (a descrição da cidade, a alusão à Segunda Guerra Mundial). Ou seja, o narrador quer que o leitor perceba isto, não que perceba que está diante de uma obra de ficção sem compromisso com a realidade, ou coisa parecida, mas que perceba que quem narra já sabe o que vai acontecer no futuro, e encontra na Bogotá de começos de 40 o vindouro, “a lembrança dum porvir”, para dizê-lo com o título de um documentário de Chris Marker. Por isso, como aponta Velez, o narrador diz, ao descrever os bondes da cidade, que “são belos e confortáveis, de um vermelho sem tisne”. A falta de “tisne” nos remete ao depois, quando os bondes – los tranvías – ficarão tisnados pelas chamas na revolta popular em Bogotá, no dia 9 de abril de 1948 (VÉLEZ, p. 183), momento a partir do qual nunca mais serão utilizados como transporte público da cidade. Diante desse encontro dos tempos, adquirem um novo sentido as palavras do narrador: “esta cidade eu já a avistara, já a tinha conhecido, de antigo, distante pesadêlo” (p. 264). Guimarães Rosa avistou Bogotá mais de uma vez e, como se disse, presenciou o pesadelo do bogotazo. Um pesadelo que, na perspectiva de “Páramo”, já se manifestava na cidade que o escritor conheceu no início dos anos 40; e um pesadelo que, como ao narrador de seu conto, vai persegui-lo, posto que Guimarães Rosa não deixará de defrontar-se com ele enquanto não conclui a escrita de “Páramo”, o que, finalmente, não acontece. Rosa só deixa de escrever o conto porque morre. Mas em que consistia exatamente esse pesadelo? O que vivenciou o escritor em Bogotá no dia 9 de abril de 1948? É claro que seria pretencioso demais supor que o podemos saber. Possivelmente o mais importante pertence ao terreno do indizível como todo evento traumático. Mas 74

“Ali, em antros absconsos, na dureza da pedra, no peso de orgulho da terra, estarão situados os infernos — no ‘sono rancoroso dos minérios’?” (p. 265). O “sono rancoroso dos minérios” é o trecho tomado de Drummond.

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alguns testemunhos nos permitem algumas conjeturas e nos oferecem outros elementos para pensar “Páramo”. Recentemente a revista online Continente publicou, com o título “Guimarães Rosa nos pergunta: Como vão os sobreviventes?’”, alguns fragmentos de uma crônica de Joel Silveira, em que este relembra os sucessos do 9 de abril de 1948, os quais presenciou como um dos jornalistas brasileiros encarregados de cobrir a IX Conferência Panamericana. Me permito citar esses mesmos fragmentos da crônica de Silveira pois eles nos oferecem o panorama resumido de que precisamos: Primeira semana de abril de 1948. Instala-se em Bogotá a IX Conferência Interamericana. O propósito da reunião era um só, embora não estivesse dito explicitamente no temário: agregar todos os países da América do Sul e da América Central para que, juntos e sob (é claro) a liderança norte-americana, incrementassem a luta contra o comunismo. Os jornalistas brasileiros – Antônio Callado, Nahum Sirotsky, Murilo Marroquim, Octávio Thyrso e eu – encontramos Bogotá fervilhando. O Partido Liberal havia se cindido. A ala mais à esquerda lançara um candidato próprio: Jorge Eliécer Gaitán. Só se falava nele. Sua popularidade era imensa. Gaitán recebeu os jornalistas brasileiros que haviam solicitado uma entrevista dois dias antes. Falou de tudo, uma voz pausada, grave, desancou a IX Conferência, “um expediente dos Estados Unidos para reforçar a presença norte-americana na América Latina”. Confessou ter como certa a vitória: – Não tenham dúvida. Eu serei o próximo presidente da Colômbia. Não foi. Três [dias] após o nosso encontro, precisamente às 13h15 do dia nove de abril de 1948, quando deixava o escritório em companhia de dois amigos, o carismático líder popular era abatido pelo revólver de Juan Roa Sierra, figura anônima, que o baleou pelas costas. O que aconteceu em seguida, em Bogotá, é conhecido. O “Bogotazo”, a incontrolável rebelião popular, espontânea, explosiva e sem liderança aparente, praticamente pôs fogo ao centro da cidade. Passado o furacão, Antônio Callado me convidou: – Vamos até a Embaixada conversar com Guimarães Rosa, saber o que ele está achando de tudo isso? Famosa gravata borboleta, rosto bem barbeado, aquele eterno sorriso nos lábios, Rosa nos recebeu com alegria: – Como vão os sobreviventes? Quando lhe pedimos a opinião sobre as terríveis ocorrências dos últimos dias, ele me fez um ar de enfado e disse: – Querem saber mesmo o que é que eu acho? Pois aí vai: para mim, este povo colombiano é muito sem-modos, muito mal-educado. E mudou de assunto75. 75

Tomado de http://www.revistacontinente.com.br/secoes/artes-visuais/1056-a-contenente/colunas/diariode-uma-vibora/17073-Guimar%C3%A3es-Rosa-nos-pergunta--%E2%80%9CComo-v%C3%A3o-os-

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Acrescento só alguns breves dados a mais76. Em 1946, o partido conservador ganha as eleições presidenciais, com Mariano Ospina Pérez, e volta ao comando do país (que tinha perdido em 1930), aproveitando as divisões internas do partido liberal. Para as eleições de 46, este último partido apresentou duas candidaturas, a oficial de Gabriel Turbay e a dissidente de Jorge Eliécer Gaitán, quem celebremente proclamava que na Colômbia o confronto não era entre dois partidos políticos, o liberal e o conservador, mas entre o povo e uma oligarquia conformada por liberais e conservadores, ou, nos outros termos que costumava usar, entre “el país nacional” e “el país político”. Um diagnóstico ao qual não deixará de dar razão o desfecho do 9 de abril de 48, que culminou com a decisão dos dirigentes liberais de não apoiar a insurreição popular contra o governo conservador, mas de fechar uma aliança com este. A ordem pública foi restabelecida por meio dessa aliança e da militarização da cidade com regimentos vindos de toda Colômbia. Contudo, a partir do 9 de abril, ao longo do país, se intensificará o novo ciclo de violência que tinha começado com a volta dos conservadores ao poder e sua cruenta perseguição aos liberais. Gaitán, que se perfilava como o mais forte candidato para as eleições de 1950, nas quais concorreria como candidato único do partido liberal, se via a si mesmo como um representante do “povo” e, certamente, assim era visto tanto por amplos setores populares como por boa parte da elite do país77, que se referiam a ele às vezes como “el negro Gaitán” e outras como “el índio Gaitán”, por suas marcas físicas, como pele sobreviventes?%E2%80%9D. Os fragmentos publicados nesta página formam parte da crónica “Bogotá está em chamas”, que apareceu por primeira vez no livro se Silveira Tempo de contar (1985), e republicada no volume Memórias de alegria (2001), de que tomo as futuras citações. 76 Para uma boa descrição e contextualização do acontecido em Bogotá o 9 de abril de 1948, recomendo, entre os inúmeros materiais que existem à respeito, dos documentários de Maria Valencia Gaitán, neta de Jorge Eliecer Gaitán: “¡Gaitán sí!” (1998) e “9 de Abril 1948” (2001). Nestes documentários – que apresentam depoimentos de intelectuais, políticos e gente do comum, além de materiais de arquivo – se baseiam principalmente as observações que seguem. 77 O historiador Marco Palácio argumentou famosa e polemicamente que a presidência de Gaitán teria sido o governo populista que, finalmente, nunca teve Colômbia, para o mal do país. Ver seu livro De populistas mandarines y violencias (2001).

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escura e nariz aquilino. É interessante notar que ao descrever os seguidores de Gaitán, Joel Silveira diz que eram justamente índios ou descendentes de índios, que olhavam para ele – Silveira – com olhos cheios de ódio: Do nosso segundo dia em Bogotá, no início da primeira semana de abril de 1948, lembro que chamei a atenção de um dos meus colegas para os olhos que nos punha a gente local, nas ruas, nos cafés, nos restaurantes, até mesmo no restaurante novinho em folha que o governo havia inaugurado para servir principalmente aos membros das delegações e aos jornalistas estrangeiros presentes à IX Conferência. Eram olhos inimigos, cinzentos, ameaçadores - olhos de quem estava com raiva, de quem ruminava um rancor surdo. Particularmente o olhar da população de origem índia mais acentuada, ou mesmo os índios puros, que perambulavam soturnos pelas ruas do Centro como manchas escuras (2001, p. 194).

Segundo Silveira, depois descobrirá que esse olhar estava relacionado com os altos custos da IX Conferência e a exclusão de Gaitán nela. Mas aquele olhar também podia ter motivos bem mais antigos. Em consonância com a crônica de Silveira, o narrador de “Páramo” percebe que tem descido a um mundo de ódio justamente por conta de uma índia, e faz referência a seu olhar: “Baixei a um mundo de ódio. Quem me fez atentar nisso foi uma mulher, já velha, uma índia [...] Vi-a vibrar os olhos, teve um rir hienino. Era uma criatura abaçanada, rugosa, megeresca, uma índia de olhos fundos” (p. 274). Isto acontece justo depois de que o narrador tem a estranha sensação de estar “a perfazer [...] as mesmas ruas, na capital do Novo Reino, dos Ouvidores, dos ViceReis” (p. 274), assim que, na narração de Rosa, fica bastante explícito o vínculo entre o ódio no olhar da população índia e ressentimentos de origem colonial. Agora bem, ao se falar de “índio” aqui é preciso ter cuidado, posto que, ainda que seja verdade que muitas das fraturas sociais na Colômbia do metade do século XX – como da atual – são de origem colonial, seria um erro pensar que elas podem ser entendidas em termos de índios contra espanhóis, ou coisa semelhante. Igualmente errado seria identificar Gaitán como líder de um movimento indigenista. Ele nunca teria se definido dessa maneira, assim como a maioria de seus seguidores não se autodenominariam índios. “Indio” neste contexto (e talvez sempre), antes do que a uma 120

identidade étnica ou racial específica, se refere aos excluídos na construção do Estado nacional, sem que deixe de ser verdade que a discriminação racial sempre tem tido um grande peso na Colômbia e que muitos dos excluídos levam marcas corporais que se atribuem aos índios, assim como também aos negros. Assim pois, “el índio Gaitán”, “el negro Gaitán” não era o líder de um conjunto social que se auto identificava como índio ou como negro, mas de uma massa heterogênea de excluídos que conformava “o povo”. A esse povo, Gaitán tinha dito: “si avanzo, seguidme. Si me detengo, empujadme. Si os traiciono, matadme. Si muero, vengadme”78, e o último foi o que saiu a fazer nas ruas de Bogotá, o 9 de abril de 48. Saiu para vingar a morte de Gaitán, mas também, na explosão do ódio acumulado, a se apropriar do que nunca teve acesso (assim muitas pessoas entraram nas lojas para pegar joias, móveis, roupas, eletrodomésticos79) e satisfazer desejos reprimidos (várias igrejas e templos foram profanados e homens assaltaram conventos e mosteiros tentando satisfazer suas fantasias sexuais [BRAUN, 2009, p. 216]). O quadro bem poderia ter sido a fonte de

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Segundo o historiador Jorge Orlando Melo, provavelmente Gaitán tomou essa frase de “Mussolini, quien la dijo en abril de 1926. Pero Mussolini se la había robado al contrarrevolucionario francés Henri du Vergier, Comte de La Rochejacquelein, quien la pronunció en 1793 para entusiasmar a las tropas que defendían la religión de los ataques de la revolución francesa.Y vaya uno a saber de dónde la tomó Vergier: quizás de algún general romano. Ahora, en Internet, dicen que es del Che Guevara”. Ver o artigo “Frases prestadas”, disponível em http://www.jorgeorlandomelo.com/frases.htm. Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 79 García Márquez diz ter presenciado o saqueio do comercio da rua “Octava, que era el más rico de la ciudad. Las joyas exquisitas, los paños ingleses y los sombreros de Bond Street que los estudiantes costeños admirábamos en las vitrinas inalcanzables, estaban entonces a la mano de todos, ante los soldados impasibles que custodiaban los bancos extranjeros. El muy recafé San Marino, donde nunca pudimos entrar, estaba abierto y desmantelado, por una vez sin los meseros de esmoquin que se anticipaban a impedir la entrada de estudiantes caribes.Algunos de los que salían cargados de ropa fina y grandes rollos de paño en el hombro los dejaban tirados en medio de la calle. Recogí uno, sin pensar que pesaba tanto, y tuve que abandonarlo con el dolor de mi alma. Por todas partes tropezábamos con aparatos domésticos tirados en las calles, y no era fácil caminar por entre las botellas de whisky de grandes marcas y toda clase de bebidas exóticas que las turbas degollaban a machetazos. Mi hermano Luis Enrique y José Falencia encontraron saldos del saqueo en un almacén de buena ropa, entre ellos un vestido azul celeste de muy buen paño y con la talla exacta de mi padre, que lo usó durante años en ocasiones solemnes. Mi único trofeo providencial fue la carpeta de piel de ternera del salón de té más caro de la ciudad, que me sirvió para llevar mis originales bajo el brazo en las muchas noches de los años siguientes en que no tuve dónde dormir” (pp. 314 – 315).

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inspiração da descrição que faz Riobaldo, em Grande sertão: veredas, do que poderia acontecer se os catrumanos saíssem de suas brenhas e invadissem as cidades: E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar (2001b, p.405).

Mas, o que fazia Guimarães Rosa enquanto acontecia algo como isso em Bogotá? Antonio Callado nos oferece outro testemunho. Depois do bogotazo, em que perdeu o contato com ele, Callado teria encontrado o escritor e lhe perguntado: “Puxa, Rosa! Onde é que você andou?” E ele me respondeu: “Estava todo o tempo na residência do embaixador”. A casa ficava no bairro mais chique de Bogotá, era enorme e tinha um parque imenso. “Mas você não viu o que aconteceu em Bogotá? Puxa, parecia a história de Augusto Matraga, de tanto que mataram gente... Isso aconteceu no meio da rua, o tempo todo!” Foi então que ele me disse: “Ora, Callado, o que tenho que escrever já está tudo aqui na minha cabeça. Não preciso ver coisa alguma... Já fiz um livro, estou fazendo outros”. – “Mas Rosa, olha, eu garanto que você ficaria impressionado. Foi um espetáculo terrível... O que você fez durante todos esses dias?” Ele disse: “Eu reli o Proust”. Vejam só! Ele havia descoberto Proust, numa edição francesa, na embaixada num bairro de Bogotá, e simplesmente se sentou para reler Proust. Ignorou a cidade que pegava fogo porque já tinha todas as guerras de que precisava dentro da cabeça. (p. 82)

A resposta do escritor neste caso, como no do testemunho de Joel Silveira, é tão desconcertante que gera descrença80. Será possível que Rosa falasse isso? Teria dado mostras de se importar tão pouco pelo que aconteceu a sua volta? Ou foram suas palavras tão só uma forma de fugir de temas que não gostava, posto que sempre evitava falar de política? Segundo Callado, Rosa disse não ter interesse pelos acontecimentos do bogotazo, porque já tinha tudo o que precisava escrever na cabeça. Mas não desmente “Páramo” isso? E cada vez que Rosa voltava ao conto não voltava àquilo pelo que disse não se importar? Teria o escritor mudado de opinião sobre a importância do bogotazo 80

Por este tipo de respostas, Rosa será objeto de uma impiedosa sátira por parte de Glauber Rocha que, por outro lado, não deixava de admirar o escritor mineiro. Nessa espécie de homenagem demolidora que é Riverão Sussuarana, Rocha escreve: “Em Janeiro de 1965 voei Los Angeles Milão escrevendo a tese – ‘Estetyka da Fome’ pro ‘I CONGRESSO DO TERCEYRO MUNDO’ em Genova e conheci Guimarães Rosa [...] todo mundo falou e o maior escritor disse besteira. Os fofoqueiros o exculhambavam nos corredores e Restaurantes. ‘Viu o que disse? Que não entendia de política.’ Pois sim: no tal Bogotazo da Colombya, contou- me Antonio Callado, estava seu Rosa no Hotel curtindo um proustezinho enquanto o povo tocava fogo na cidade” (1978, pp. 10 – 11).

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com o passo dos anos? Pouco antes de morrer, Rosa pensaria em retomar “Páramo”, duvidando se devia inclui-lo ou não no novo volume de estórias que preparava. É também nesse período final da sua vida que o escritor mineiro faz sua única referência pública ao acontecido no 9 de abril de 48, no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em que rende homenagem a João Neves da Fontoura, seu antecessor na Academia e chefe da delegação brasileira na IX Conferência Panamericana. Rosa escreve: Nem esqueço, em Bogotá, quando a multidão, mó milhares, estourou nas ruas sua alucinação, tanto o medonho esbregue de uma boiada brava. Saqueava-se, incendiava-se, matava-se etc. Três dias, sem policiamento, sem restos de segurança, o Governo mesmo encantoado em palácio. Éramos, bloqueados em vivenda num bairro aristocrático, cinco brasileiros, e penso que nem um revólver. Recorro a notas: "12. IV.48 22 hs. 55'. Tiros. Apagamos a luz." Mas, o que, com João Neves, por sua calma instigação, então discorríamos, a rodo, eram matérias paregóricas: paleontologia, filosofia, literatura; ou lembrava tropelias brilhantes de seu Sul, citava o saudoso nosso Dr. Glicério Alves, nobre tipo humano, do melhor gaúcho e amigo. E, todavia foi sua determinada e ativa decisão um dos ponderáveis motivos por que a IX Conferência se manteve na capital andina, adiante e a cabo (1999, p. 509).

Este testemunho de Rosa, dado quase 20 anos depois dos acontecimentos, tem diferenças significativas com o de Callado e o de Silveira. Depois de sublinhar a violência dos acontecimentos que tomaram conta da cidade, recorrendo a um símil tipicamente seu (“tanto o medonho esbregue de uma boiada brava”), o escritor afirma ter ficado com João Neves discorrendo de “paleontologia, filosofia, literatura”, mas não por desinteresse ou indiferença, mas como forma de manter a calma e/ou a saúde diante da situação, como dá a entender a denominação “matérias paregóricas” – segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss 3, paregórico, vem de “parégorikós,ê,ón 'próprio para consolar, acalmar'”81. Mesmo assim, a declaração de Rosa não deixa de gerar certo incômodo, posto que mostra que o escritor que dizia preferir conversar com vaqueiros antes do que com os doutos professores (LORENZ, 1983, p. 92) no momento de uma 81

Com este sentido de “calmante”, e com conotação medicinal, a palavra aparece na novela “Dãolalalão”, do livro Noites do sertão. Soropita começa a passar mal, pelo ciúme e raiva que sente pelo negro Iládio, e então, ante a insistência de Doralda por saber o que tem, pede “um trisco de elixirparegórico, como porque podia vir a doer-lhe uma cólica” (p. 75).

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revolta popular ficou do lado da elite intelectual e política, chegando inclusive a festejar que, por intervenção de João Neves da Fontoura, se mantivesse “na capital andina, adiante e a cabo” a IX Conferência, que obedecia claramente aos interesses norteamericanos no continente. Dito isto, que outra coisa poderia ter feito o funcionário do governo e escritor Guimarães Rosa? Caberia esperar que ele, qual Fidel Castro, que também estava em Bogotá aquele dia, ficasse do lado do “povo” – porque é ele quem sofre na Colômbia e em todos lados –, roubasse umas botas militares, procurasse um fuzil e se juntasse à multidão, ainda que fosse para descobrir que a revolta não acabaria em nada?82 É Claro que isso não faria muito sentido. É preciso evitar a tentação de querer julgar Rosa; renunciar ao desejo de querer condená-lo, mas também de absolvê-lo. É neste ponto que, me parece, minha leitura da relação entre “Páramo”, Rosa e o bogotazo se afasta significativamente da de Bairon Vélez, o crítico que mais tem se debruçado sobre o assunto. Ainda que não seja seu objetivo declarado – nem talvez consciente –, Velez parece empenhado em demostrar que há uma boa justificação para tudo o dito e escrito por Rosa, pelo que, ao final, o escritor e sua produção ficam livres de toda possível dúvida ou suspeita. Assim, por exemplo, depois de se referir a resposta dada pelo autor a Callado, isto é, que releu Proust em quanto a cidade pegava fogo, o que faz o crítico é assinalar como “Em busca do tempo perdido, precisamente, poderia ser uma boa entrada” para “Páramo” (2014, p. 123). Não que isso não possa ser verdade, mas nesse tipo de colocação é difícil não ver a costumeira atitude defensiva do acadêmico que 82

Aludo a alguns dos apontamentos que Fidel Castro faz no seu reconto do 9 de abril de 48 em Bogotá, onde se encontrava organizando um congresso paralelo e contestatário do Pan-Americano – o Congreso Latinoamericano de Estudiantes. O relato integral de Fidel, de que Silveira cita alguns trechos em “Bogotá está em chamas”, pode ser lido em http://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS12731753. 17 de fevereiro de 2016.

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esquiva qualquer possível questionamento ao grande autor e sua obra (a típica atitude defensiva da cidade letrada?). Se é preciso evitar a tentação de condenar as respostas que deu Guimarães Rosa ao bogotazo, “Páramo” incluído, é preciso também ter o cuidado de não apagar o que elas tem de inapropriadas ou desajustadas. Uma impropriedade ou desajuste de que não se diz o suficiente se só definido como produto do trauma do bogotazo, do encontro com o real lacaniano que o conto tematizaria. Aquilo que fica faltando se sente de forma bastante clara na análise que Vélez faz das referências a obras de arte (Boecklin, Goya), com que o narrador tenta interpretar sua vivencia na cidade andina. A análise se dedica a mostrar como essas obras encaixam bem com o estado melancólico do narrador de “Páramo” (VÉLEZ, 2014, pp. 154 - 158, por exemplo). A leitura é convincente, mas, e se mudamos o foco? Se abandonamos a perspectiva do narrador e tentamos assumir a dos pobres moradores da cidade andina? O que sentimos ao fazer isto não é o desajuste antes do que a pertinência dessas referências? Desde esse outro ponto de vista comparar os moradores pobres da cidade, que levam o caixote de uma criança ao cemitério, com um capricho de Goya não parece excêntrico, e até mesmo, eurocêntrico? Neste ponto, concordo com Maria Luiza Scher Pereira, para quem, em “Páramo”, o “diplomata letrado e iluminista tenta recorrer ao seu acervo cultural para interpretar o mundo adverso” (além de Goya e Boecklin, o narrador cita Joaquín Bartrina, Carlos Drummond), mas a narrativa acaba por mostrar que esse mundo “resiste a se deixar representar pelas referências da cultura e da arte da modernidade a que pertence o intelectual exilado, e com as quais ele se identifica” (p. 16). Entre um e outro não há ponto de contato: Soledade. E de que poderiam aliviar-me, momento que fosse, qualquer um de entre os milhares de pessoas desta cidade, e, delas, as pouquíssimas com quem frequentarei, se não os sinto iguais

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a mim, pelas vidraças das horas? Passo por eles, falo-lhes, ouço-os, e nem uma fímbria de nossas almas se roça. (ROSA, 2001a, p. 269). Minhas roupas são diferentes; meu modo, meu aspecto, saberão que sou estrangeiro, de classe diversa, de outra situação social (p. 286).

A distância que há entre os pobres da cidade andina e o cosmopolita diplomata do conto também fica visível nas referências que o último faz sobre sua vida amorosa. O narrador diz ser tentado por uma mulher russa e outra francesa, tentações as quais resistiria por sua fidelidade à espanhola dona Clara. Três mulheres europeias. Com razão Pereira sugere que o narrador diplomata do conto se sentiria menos desconfortável em Paris ou Hamburgo do que na cidade andina (p. 11). Seus principais pontos de referência claramente estão lá. Não é de estranhar por isso que mesmo sufocado pelo catolicismo conservador da cidade dos Andes, o afeto do narrador se incline – de maneira meio pacata, afastando tentações – por uma mulher que remete à alta tradição ibérica, aos Leguía, os Condemar ou os Izázaga (p. 280). Depois de tudo, o narrador pertence mais ao mundo das “damas, à luz de lanternas conduzidas por criadas”, que ao das índias ou campesinas locais. “Páramo” nos coloca assim diante de uma distância intransponível. Talvez tão intransponível como a que separava o diplomata Guimarães Rosa do “povo” bogotano no dia 9 de abril. Seria exagerado ver em “Páramo” a tentativa de Guimarães Rosa de ajustar contas com o acontecido aquele dia? É abusivo vincular o sentimento de culpa que sente o narrador, assim como sua sensação de ser perseguido por um homem com aspecto de morto (nunca chamado exatamente da mesma forma, sempre cambiante) com o que aconteceu no bogotazo, com os inumeráveis mortos que deixou? Não se deixa ouvir a própria voz de Rosa na fala do narrador: “E tive de ficar conhecendo — oh, demais de perto! — o ‘homem com a semelhança de cadáver’. Esse, por certo eu estava

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obrigado a defrontar, por mal de pecados meus antigos, a tanto o destino inflexível me obrigava” (p. 267, grifos meus)? 83 Como Riobaldo, em Grande sertão: veredas, o protagonista de “Páramo” é um narrador cheio de culpa que narra vivencias do passado tentando entender o sentido destas, ou melhor, dar-lhes um sentido. Sentido que parece ameaçado pelo mal, cuja presença é ilustrada em ambas as obras por meio de uma série de causos. Se em Grande sertão: veredas temos os causos do Aleixo, o menino Valtêi e Maria Mutema, entre outros, em “Páramo” temos o causo da menina emparedada84, o do mendigo que carrega a caveira do homem que matou e o do padre que usava “objetos de tamanho enorme”. Causos estes em que o mal adquire o aspecto do ódio e da loucura. Como se disse no começo desta análise, muito se tem discutido se Riobaldo atinge seu objetivo em Grande sertão: veredas. Se, ao final, o vivido revela seu sentido na narração e o ex jagunço termina sendo um narrador que conta uma experiência de que se fez dono, superando as dificuldades do passado e tendo um “crescimento do espirito”, para usar uma expressão de “Páramo”. Ou seja, se tem discutido muito se Grande sertão: veredas constitui ou não um romance de formação. No caso de “Páramo”, vimos que de maneira explícita os primeiros parágrafos prometem uma narrativa formativa que, não obstante, vai se embaralhando. Com o avançar das páginas, percebemos que todas as possibilidades de sair desse embaralho e, portanto, de que a 83

Sobre o estranho homem com “a semelhança de cadáver” se diz mais para frente que, de todos os moradores da cidade, ele “é o mais morto”. Uma observação que, de novo, como no caso do olhar cheio de ódio dos índios, parece fazer eco da crônica de Joel Silveira, pois na última parte desta, o jornalista diz que nunca na sua vida, “nem mesmo nos meses de guerra”, esteve “diante de mortos tão mortos” (p. 206) como os que viu no cemitério central um dia depois do bogotazo. Os mortos mais mortos são os que mais atormentam os vivos, permanecendo indeléveis (vivos?) na sua memória. A crónica de Joel Silveira é de 1985, mas inclui fragmentos de textos publicadas na época dos acontecimentos, como a parte titulada “Um menino morto” de que faz parte o trecho. Não é improvável que Rosa tenha lido esses textos. 84 Bairon Velez mostra que este “causo” é o resumo de uma crônica do escritor colombiano do século XIX Cordovez Moure (2014, p. 184). Chama a atenção que o narrador de “Páramo” se sinta obrigado a indicar que está citando Drummond, e explicitamente se refira ao poeta catalão Batrina, mas guarde silêncio sobre Moure. Coisa das assimetrias na literatura mundial?

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narração formativa chegue a bom termo se concentram em um objeto. Trata-se de um livro de poemas85 (escrito assim, em minúscula no começo), que o narrador diz comprar para se esquecer do homem “com aspecto de cadáver”, mas que quase de imediato se converte no Livro (com maiúscula), um objeto que o angustiado protagonista sente capaz de decidir seu destino para bem ou para mal. Naquele instante, o protagonista narrador dirá não estar preparado para abrir e ler o Livro, e, como é de se esperar, aquilo só acontecerá na parte final de “Páramo”. Esta transcorre no cemitério da cidade, ponto de chegada de um “cortejo fúnebre”, ao qual o narrador se junta para poder dissimular uma súbita crise de pranto. Já no cemitério, o narrador se afasta do cortejo e se esconde em um ponto “fechado entre lápides e ciprestes”, onde não há “sentido externo e humano” (p. 287), ou seja, em um espaço que pertence aos mortos. Nesse espaço o narrador sente o impulso de abrir e ler o Livro, mas desiste por “repentino medo” e “sinistra agouraria” de que esse ato o faça ficar para sempre lá, morto entre os mortos, sem desenvolvimento, sem “futuro” (p. 288)86. Então o narrador decide fugir e abandonar o Livro lá, porque ele pertenceria aos mortos, seria o pago de uma dívida do narrador para com eles: “Abandoná-lo-ia [...] e era então como se deixasse algo de mim, que deveria ser entregue, pago, restituído. Naquele livro, haveria algo de resgatável” (288). Adiantando-nos à conclusão, observamos que resulta muito tentador pensar que esse Livro representa a “Páramo” dentro da narrativa, pois “Páramo” pode ser lido como o texto com que Guimarães Rosa resgataria sua dívida com os mortos do passado em Bogotá.

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Nesse primeiro momento o narrador tão só diz “suponho seja de poesias” (p. 271), mas depois confirma que se trata de um “Livro de poemas” (p. 282). 86 É tentador dizer que o narrador sente medo de que lhe passe o mesmo que a Juan Preciado, que termina sendo um morto mais em Comala. Tanto o título do conto de Rosa como sua temática fúnebre faz pensar em Pedro Paramo, pelo que não parece errado conjeturar que, entre muitas outras coisas, “Páramo” seja uma homenagem a Juan Rulfo. Assim o interpreta Paulo Moreira no seu livro Literary and cultural relations between brazil and mexico.

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O narrador abandona o Livro, mas quando está a ponto de sair do cemitério é alcançado por um dos pobres homens do cortejo que acompanhara, que lhe traz o Livro de volta. Se estabelece então um diálogo caricato entre o ilustre narrador e aquele homem do povo, que só reafirma a distância entre os dois. Ciente disto, o narrador rapidamente se despede e segue seu caminho de regresso para a cidade: “Estávamos tão perto e tão longe um do outro, e eu não podia mais suportá-lo. Estouvada e ansiadamente, despedi-me. Voltava, a tardos passos. Agora, a despeito de tudo, eu tinha o livro. Abri-o, li, ao acaso” (p. 290). É pois, nesse momento, que o narrador decide abrir o livro (agora de novo em minúscula, como anúncio de que não será aquilo que o narrador espera?) e ler um trecho. Mas o que o leitor encontra na continuação não é a citação de nenhum texto, mas um espaço em branco que Guimarães Rosa não chegou a preencher, e depois dele o último parágrafo da narração. Que citação poderia ter preenchido esse espaço? Que livro teria feito que o narrador levasse a bom termo sua narrativa de formação? Retomando o dito umas linhas antes, parece evidente que esses versos teriam de ser uma sinédoque de “Páramo”, claro que de um “Páramo” acabado, que não há. Não sabemos em que texto pensou Rosa, mas podemos especular que foram alguns versos em espanhol, pois o livro (de poemas) é comprado na capital andina87. Talvez alguns versos vinculados com o tema da amada espanhola perdida, dona Clara, de que diz o narrador: “se algum dia eu ressuscitar, será outra vez por seu amor”, numa passagem que termina significativamente com a palavra de “saudação e apelo: Evanira!” (p. 282). Evanira é o título de um poema que Rosa

87

Para apoiar essa suposição poderíamos aqui também considerar um relato biográfico. Segundo Paulo Moreira, Walquiria Wey , a tradutora para o espanhol de Primeiras estórias, lhe contou que “Guimarães Rosa disse a ela que um dia tinha seguido um humilde cortejo fúnebre pelas ruas de Bogotá (não de um homem jovem, mas sim de uma jovem mulher); depois de terem chegado no cemitério, ele se escondeu em um canto afastado; quando ele estava saindo do cemitério, se deparou com um dos homens que havia levado o caixão da jovem mulher; ambos falaram da menina morta e o homem o surpreendeu ao lhe devolver o livro que Rosa havia trazido, uma antologia de poesia em castelhano” (p. 220 n.36).

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público em 1961, e depois recopilado em Ave, Palavra!, cujo tema é justamente a separação e reencontro dos amantes, como parte de um processo que deixa um aprendizado, a necessidade da saudade. Assim o deixa claro a descrição que antecede cada uma das partes finais: Cap. V — O Narrador sabe-se transformado novamente e que passou por uma espécie de morte, propiciatória e necessária. (Descobre que, já antes de encontrar a Amada, tinham saudade, sem o saber — e que a própria, e ignota, fora que os trouxera ao lugar consagrado.) (1978, p. 36) Cap. VI — O Narrador se reconhece em novas alturas de amor e adivinha o trabalho da saudade. A Amada e ele voltavam a encontrar-se. (p. 37) Cap. VII — Narrador e Amada imploram que a saudade nunca os abandone, livrando-os dos gelos que entorporam, da opacidade que retarda, do sangue que corrompe e das trevas que separam. (Não há fim.). (p. 38)

Evanira é assim uma espécie de versão poética do que seria “Páramo” como narrativa formativa bem sucedida. Para que “Páramo” fosse tal, o narrador deveria, afinal, entender (achar) um sentido para seu encontro com os outros da cidade andina e tirar um ensinamento deste, que o faria reavaliar suas negativas percepções antigas88. Como resultado disso, o narrador superaria o perigo de morte e voltaria à vida com um “crescimento do espírito”. Mas a imagem que nos oferece o último parágrafo do conto não é essa. Pelo contrário, o narrador sai do cemitério para a cidade igualmente confuso como no começo, sem saber se está entre vivos ou mortos (como já anunciava a epigrafe) e sem um sentido que organize o vivido em um todo coerente: “Eu voltava, para tudo. A cidade hostil, em sua pauta glacial. O mundo. Voltava, para o que nem sabia se era a vida ou se era a morte. Ao sofrimento, sempre. Até ao momento derradeiro, que não além dele, quem sabe?” (p. 290). O que fica claro é que seja qual for o texto que Rosa pensava colocar no espaço que ficou em branco, ele não teria implicado que o narrador completasse seu processo 88

Que “o Homem com o frio de cadáver” poderia mudar de signo e revelar um aspecto positivo chega a ser insinuado na passagem em que o narrador diz que a lembrança dele o salvou das tentações dos “amores falsos” (pp. 279 – 280).

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formativo como anunciado no começo de “Páramo”. Nesse sentido, qualquer texto poderia estar aí, porque nenhum poderia cumprir aquela tarefa. Ora, não diz isto algo sobre o lugar da literatura? Esse espaço em branco da narrativa não aponta para a impossibilidade de que ela ocupe o lugar de detentora da chave de um processo formativo seja este individual, nacional ou latino-americano? Ou ainda que ela possa ajustar algo, ser uma forma ajustada, uma forma que faz justiça ou que narra com justiça algo (por exemplo, o acontecido em Bogotá em 1948)? Como vimos a literatura na época do boom e, em particular, a literatura de Rosa parecia indicar que era possível um encontro feliz entre o tradicional e o moderno, entre o local e o global, entre tradições orais e escritas. Juntando esses opostos, a literatura mostraria a possibilidade de superar as fraturas que dividiam os países da América Latina e, portanto, de dar o passo adiante que culminaria nossos processos formativos. Como comenta John Beverley, “había cierta ideología de lo literario, de la función de la literatura implícita en el éxito del Boom, una ideología que se expresa, sobretodo, en la idea de transculturación narrativa de Ángel Rama. Para Rama, la novela sirve como una especie de modelo hacia un Estado nacional más inclusivo”89. Mas na mesma época em que se consolida esta interpretação que se tornará hegemônica, e da mão de um dos escritores que mais serve para alimentá-la, aparece “Páramo”, que vai exatamente no sentido contrário. Ao final de “Páramo” não temos o encontro feliz entre o ilustre intelectual cosmopolita e os humildes iletrados do povo (o encontro que faria dar um passo adiante à pacata cidade hispânica?), mas o desencontro irreconciliável entre ambos. E um espaço vazio donde deveria aparecer a citação de um obra literária que – segundo o prometido pelo narrador no começo de “Páramo” – 89

O comentario é feito por Beverley em uma entrevista publicada pela revista online El hablador. Disponível em http://www.elhablador.com/entrevista18_beverley.html. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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deveria apontar para a junção desses dois termos numa síntese formativa. Tarefa que, ao final, fica claro, nenhuma obra levaria a cabo. Nesse sentido, melhor do que qualquer citação, esse espaço vazio dá sua forma final a “Páramo”, essa narrativa formativa que não atinge uma forma. Talvez desse espaço em branco da narrativa poderíamos dizer que é “uma fenda, uma falha, um buraco de bala de disjunção total”, ou seja, um evento de escrita como aquele que, para Alberto Moreiras, acontece em El zorro de arriba y el zorro de abajo (2001 p. 245); obra que, tão só dois anos depois da morte de Rosa (que deixa inacabado “Páramo”), finaliza com o suicídio de Arguedas, ficando definitivamente “inconclusa” (p. 244)90. Tematizado na própria obra desde o começo, o suicídio de Arguedas põe fim a sua escrita, e vira o fim propriamente do livro. Para Moreiras, esse fim é também o fim da transculturação em um duplo sentido: o da sua realização máxima e sua impossibilidade. Isto, porque Arguedas levaria ao extremo sua tentativa de reelaborar nos termos de uma racionalidade local não hegemónica a violenta modernização pela que atravessava Peru. Uma tentativa cujo termo seria (como realização impossível) a implosão da significação, a fenda ou buraco que os disparos do suicidou deixaram na obra91. Em “Páramo” também temos um buraco no lugar da obra que resolveria os problemas do narrador e cifraria, ao tempo, a resolução dos problemas da nação, dada a relação que há entre os problemas do protagonista (a depressão que o impele para a morte) e as fraturas sociais que dividem os países da América Latina. Ainda que por uma via muito diferente, e certamente menos extrema e dramática, “Páramo” como El 90

Cabe lembrar que nos diários de El zorro de arriba y el zorro de abajo, Arguedas declara se sentir próximo de Guimarães Rosa e Rulfo, os quais considera escritores “provincianos” como ele. 91 A interpretação de Moreiras se encontra no seu ensaio “O fim do realismo mágico. O significante apaixonado de José María Arguedas”, incluído no livro A exaustão da diferença.

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zorro de arriba y el zorro de abajo coloca em tela de juízo que a literatura latinoamericana possa ser lida como cifra de uma formação bem sucedida. Por isso, parece aconselhável voltar às obras de Rosa e dos outros escritores do momento com uma mudança de enfoque. Uma mudança como a que acontece em “Páramo”, em que a figura do narrador mediador, tão comum em Rosa, é abandonada pela do letrado cosmopolita – de tintes autobiográficos – que diz não conseguir se comunicar com os pobres moradores de uma conservadora cidade andina. Ou seja, convém deixar de enfatizar a capacidade de mediação de obras como as do escritor mineiro, e atentar mais para as disjunções inconciliáveis de que nos falam. Talvez isto nos ajude a entender por que o que veio não foi o passo adiante formativo e a modernização alternativa dos países latino-americanos, que em algum momento pareceram tão próximos. Nesse sentido ainda, deveríamos ler a Rosa e seus contemporâneos de forma análoga a como o escritor mineiro leu a Bogotá de começos da década de 40, com olhos de quem sabe que o futuro é uma catástrofe.

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3. ROBERTO BOLAÑO E A IRREMEDIÁVEL LITERATURA LATINOAMERICANA.   3.1. A culpa Argentina e latino-americana no “El gaucho insufrible” No capítulo anterior vimos que, em 1965, Guimarães Rosa previa que, para o ano 2000, a literatura latino-americana seria o ponto de referência mundial, e que vinculava este fato com o fim definitivo do colonialismo no continente. A previsão sugere que, depois de um longo processo histórico, finalmente, um sujeito latinoamericano autônomo adquiriria forma. Ele seria dono de si e de uma voz que lhe exprimiria e representaria: a literatura. Contudo, para o ano 2000, o panorama geral do continente será bastante diferente, pra não dizer, o oposto. América Latina está no auge da crise generalizada como consequência de anos de políticas neoliberais, tendo toda expetativa formativa desaparecido. Para o fim do século XX e começo do século XXI é ainda comum falar de literatura latino-americana, mas não se entende por ela uma expressão discursiva de um sujeito latino-americano formado ou em vias de formação. De fato, um questionamento repetidamente formulado passou a ser quem fala na literatura? O que e quem ela representa? Questionamentos como esses atravessam as próprias obras literárias como o mostra o caso do escritor latino-americano de maior repercussão nos últimos anos, Roberto Bolaño, e, em particular, o conto “El gaucho insufrible” (2003), que tem como cenário a crise argentina de 2001. Apesar de ter esse cenário e suas personagens serem argentinas, “El gaucho insufrible” não é um conto argentino, nem é, simplesmente, um conto sobre a Argentina. Antes é um conto que revisita autores e temas da literatura argentina para se aproximar daquilo que seu protagonista, a certa altura do conto, denomina “la culpa argentina o la culpa latinoamericana” (2003, p. 45).

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A denominação é, evidentemente, enigmática. Como é bem sabido, Bolaño gostava muito de romances policiais e na suas obras frequentemente assumia o esquema destes. “El gaucho insufrible” não é precisamente um conto desse tipo, mas ao falar de “culpa” não deixa de colocar uma tarefa detetivesca para o leitor. A tarefa aqui não é, a princípio, achar um culpado, pois este é declarado, ainda que hermeticamente: a culpa é argentina ou latino-americana. A tarefa primordial é entender o sentido da culpa, entender a que culpa se refere o advogado retirado Héctor Pereda – o protagonista do conto –, para assim julgar sua acusação. Culpa? Que culpa? Culpa de quê? Uma primeira resposta poderia ser, claro, a culpa da crise de 2001. É com relação a crise que aparece pela primeira vez a palavra culpa na narração, ainda que não na boca de Héctor Pereda, mas na de sua cozinheira e de sua empregada. A primeira escreve uma carta para seu patrão contando da situação da casa dele em Buenos Aires e de fofocas sobre os vizinhos; fofocas tingidas de “fatalismo, pues todos se sentían estafados y no vislumbraban ninguna luz al final del túnel” (p 32). Então, vem a observação: “la cocinera creía que la culpa era de los peronistas, manta de ladrones, mientras que la sirvienta, más demoledora, echaba la culpa a todos los políticos y en general al pueblo argentino, masa de borregos que finalmente habían conseguido lo que se merecían” (32). O peronismo e a mansidão serão também alvos da crítica de Pereda e aparecerão em cena quando o personagem proferir sua enigmática sentença sobre a culpa. Contudo, Pereda não dirá, como sua empregada, que a crise é culpa da mansidão do povo, mas falará de uma culpa argentina ou latino-americana que transformou os corajosos gaúchos em mansos gatos. Pereda, portanto, se refere a uma culpa que antecede e excede a da crise e para a qual nenhum lugar da pátria ofereceria saída.

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Quanto à crise, o advogado tinha procurado uma escapatória no campo argentino, depois de se convencer que não a encontraria em Buenos Aires. No começo da crise, que percebe antes de que seus amigos aposentados92, Pereda participa das “caceroladas”, com “viejos de todas las clases sociales”, assim como das “manifestaciones junto con los piqueteros”, isto é, junto com os desocupados de estratos mais baixos; manifestações que – segundo a narração – “no tardaban en convertirse en algaradas” (p 20). É só depois de que na Argentina se sucedem três presidentes em poucos dias e a “nadie se le ocurrió pensar en una revolución, a ningún militar se le ocurrió la idea de encabezar un golpe de Estado” que Pereda “decidió volver al campo” (p 20). Com evidente ambiguidade, Pereda, que participa com simpatia nas manifestações de rua, decide voltar ao campo, ao ver que não haverá uma mão dura que venha a estabelecer, como diria Borges, um cosmos ordenado no caos em que caíra a democracia93 (lembrando que Pereda considera Borges um dos dois melhores escritores da Argentina, sendo o outro seu filho). Ou seja, o advogado que se anima com a presença de velhos de todas as classes sociais na rua, porque lhe parece um signo “de que algo estaba cambiando”, é o mesmo que abandona a cidade porque não haverá golpe de Estado ou revolución libertadora, aquilo que a história do país tinha lhe ensinado caberia esperar. Pereda compreende que não é mais possível seguir morando em Buenos Aires como se fosse um lugar civilizado. Diante desta impossibilidade, e da falta de dinheiro 92

“Un día se levantó más nervioso que de costumbre. Comió con un juez jubilado y con un periodista jubilado y durante toda la comida no paró de reírse. Al final, mientras tomaban cada uno una copa de coñac, el juez le preguntó qué le hacía tanta gracia. Buenos Aires se hunde, respondió Pereda. El viejo periodista pensó que el abogado se había vuelto loco y le recomendó la playa, el mar, ese aire tonificante. El juez, menos dado a las elucubraciones, pensó que Pereda se había salido por la tangente. Pocos días después, sin embargo, la economía argentina cayó al abismo” (p. 19). 93 Em uma nota de 1983, depois das eleições que significaram a retomada da democracia na Argentina, Borges afirma sobre o golpe de 1976: “Nos enfrentaba un caos que, aquel día, tomó la decisión de ser un cosmos. […] Nadie ignora las formas que asumió esa pesadilla obstinada. El horror público de las bombas, el horror clandestino de los secuestros, de las torturas y de las muertes, la ruina ética y económica, la corrupción, el hábito de la deshonra, las bravatas, la más misteriosa, ya que no la más larga, de las guerras que registra la historia” (BORGES, 2001, p. 307).

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– “todo estaba en el corralito bancario, es decir, todo estaba perdido” (p. 21) –, o advogado decide voltar para o campo. Voltar para o campo quer dizer retornar à velha estância familiar, mas também para a “origem” da identidade argentina na procura de um novo começo diante do fracasso do Estado nacional. Por isso, para Pereda, voltar significa que, daí em diante, atuará como um gaúcho; um gaúcho selvagem, segundo o modelo da literatura do fim do século XIX, e não mais como um homem portenho civilizado. É claro que atuar desse modo, no começo do século XXI, só pode gerar uma impressão de farsa, como o conto se compraz em mostrar. Todavia, merece destaque o fato de que o conto também exibe que essa farsa não substitui, no caso de Pereda, uma vida anterior mais autêntica, mas igualmente farsesca. O realismo não é, em momento nenhum, um traço definidor de Pereda, como o indicam já as linhas que abrem a narração: A juicio de quienes lo trataron íntimamente dos virtudes tuvo Héctor Pereda por encima de todo: fue un cuidadoso y tierno padre de familia y un abogado intachable, de probada honradez, en un país y en una época en que la honradez no estaba, precisamente, de moda. Ejemplo de lo primero es el Bebe y la Cuca Pereda, sus hijos, que tuvieron una infancia y adolescencia feliz y que luego, cargando la intensidad del reproche en cuestiones prácticas, le echaron en cara a Pereda el haberles secuestrado la realidad tal cual era. (p. 15, grifos meus).

O honrado advogado Héctor Pereda deu uma infância e adolescência feliz para os seus filhos, ao preço de deixar de lado questões práticas da vida e, possivelmente, fazer vista grossa dos horrores da época, ou seja, do que tinha de “pesadilla obstinada” o cosmos ordenado da ditadura, para usar de novo as palavras de Borges. De fato, os horrores da ditadura é uma espécie de dado reprimido da história de Pereda (que é também uma história da crise), o qual a narração faz aflorar de forma inesperada em frases como: “cuando hablaban de política nacional e internacional el cuerpo del abogado se tensaba como si le estuvieran aplicando una descarga eléctrica” (p. 19) e

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“había gauchos que hablaban al calor de la lumbre de electroshocks” (p. 44). Como observa Federico Pous, “la ironía de la ‘descarga eléctrica’ funciona como un efecto retardado de las prácticas sistemáticas de tortura llevadas a cabo por la dictadura: su decreto más nefasto, que aparece aquí como el latigazo de un recuerdo” (2012, p. 6). Antes da crise, essas “descargas” não incomodavam a vida de Pereda, que era feliz, mesmo depois de sofrer a perda de sua mulher, acontecida quando seus dos filhos ainda eram crianças. Para o Pereda de então ainda era possível dizer para si mesmo: “es difícil […] no ser feliz en Buenos Aires, que es la mezcla perfecta de París y Berlín, aunque si uno aguza la vista, más bien es la mezcla perfecta de Lyon y Praga” (p. 17). O quanto Buenos Aires podia ser civilizadamente europeia é expresso no dia a dia de Pereda, que às onze da manhã tomava “dos o tres copitas de vino nacional o chileno, salvo en las ocasiones señaladas, en las que el vino, necesariamente, era francés”, e às tardes “repasaba con sus hijos las lecciones del colegio o asistía en silencio a las clases de piano de la Cuca y a las clases de inglés y francés del Bebe, que dos profesores de apellidos italianos iban a darles a casa” (p. 17). Para alguém como Pereda, estar em Buenos Aires é como estar na Europa, ainda que em uma Europa um tanto marginal: Buenos Aires não é a mistura perfeita de París e Berlín, mas de Lyon e Praga, e os sobrenomes dos professores de Cuca e Bebe não são franceses ou londrinenses, mas italianos. Esses sobrenomes são uma reminiscência de que os europeus que vieram civilizar a nação não foram os esperados por Sarmiento, entre fins do século XIX e começos do XX. Como Beatriz Sarlo resume: Entre 1880 y la Primera Guerra Mundial llegaron a Buenos Aires decenas de miles de inmigrantes. Básicamente españoles e italianos, pero también alemanes, rusos, judíos centroeuropeos y asiáticos. La mayoría española e italiana no responde del todo al perfil del inmigrante ideal fantaseado por las elites (que buscaban artesanos y campesinos nórdicos que, a su vez, sensatamente, preferían inmigrar a Estados Unidos). […] En el puerto de Buenos Aires se hacinan los pobres de Europa, tan analfabetos como los gaúchos que supuestamente debían desalojar con sus costumbres de orden y trabajo. (2007, p. 39).

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Um José de Alencar argentino poderia ter falado de Buenos Aires como uma Europa no seu respectivo tamanho portenho94. Contudo, a distância que separava Buenos Aires de seus principais modelos não impediu que gerasse a inveja nos países vizinhos por ser a cidade mais europeia da América Latina. Essa boa reputação, que atravessa o século XX, se verá duramente abalada na crise de 2001, quando atinge seu auge o chamado processo de latino-americanização da Argentina. Segundo Raquel Árias Careaga as palavras que melhor definem o sentimento do país naquele momento talvez sejam as que utilizou Carlos Fuentes numa resenha sobre Santa Evita de Tomas Eloy Martínez. O escritor mexicano fala de um país

autoengañado, que se imagina europeo, racional, civilizado, y amanece un día sin ilusiones, tan latinoamericano como El Salvador y Venezuela, más enloquecido porque jamás se creyó tan vulnerable, dolido de su amnesia porque debió recordar que también era el país de Facundo, Rosas y de Arlt, tan brutalmente salvaje como sus militares torturadores, asesinos, destructores de familias, generaciones, profesiones enteras de argentinos (FUENTES Apud ÁRIAS, p. 102).

A “latino-americanização” da Argentina é uma variante da chamada “brasilianização” do mundo, a qual nos referimos no primeiro capítulo. Nomeia os efeitos indesejados do neoliberalismo, que se sentiram com força no país, como no resto da região, na década de noventa (a citação de Fuentes é de 1996). Conforme argumenta Beatriz Sarlo, aludindo ao “Poema conjetural” de Borges, Buenos Aires encara, nesse momento, seu destino “sudamericano”. Sarlo descreve assim as mudanças pelas que atravessou a cidade naquela década:

La Buenos Aires de los años noventa atraviesa cambios evidentes: en primer lugar, el éxodo desde la ciudad hacia los suburbios por parte de las elites económicas y de los sectores de las capas medias que pudieron adaptarse a la transformación neoliberal; en segundo lugar, la conversión del centro de la ciudad en espacios turísticos (donde se construyen grandes hoteles internacionales), zonas museificadas elegidas por su pintoresquismo y embellecidas expulsando a sus anteriores habitantes, y zonas completamente deterioradas donde proliferan los vendedores ambulantes, los excluidos del mercado de trabajo y los homeless. […] Y los extranjeros hoy se dividen entre los latinoamericanos pobres, y los turistas que deambulan por el norte de la ciudad con un guía que les informa que Buenos Aires es la ciudad más europea de América (p. 45). 94

Alencar dizia que a falta de grandeza de seus romances, comparados com os europeus, se explicava porque estavam escritos no seu respectivo “tamanho fluminense”.

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Segundo Sarlo essas mudanças são o produto do fim do “optimismo proyectual y estatista de las elites de fines del siglo XIX”, que cedeu o lugar ao “juego de las fuerzas del mercado en un espacio urbano convertido en escena de meganegocios” (p. 44). Uma data central nessa virada seria 1976, quando se instaura a ditadura militar. Na visão da crítica argentina:  

Durante esos años terribles, los militares llevan adelante en Buenos Aires una política tecnocrática, de modernización autoritaria, que comienza por la expulsión de pobres y migrantes hacia afuera del casco urbano y la consolidación de desigualdades materiales que dividen más que nunca en zonas ricas y pobres (p 44).

Tudo isto faz parte de uma espécie de transfundo oculto em “El gaúcho insufrible”, em que só se menciona que Pereda foi um homem de “probada honradez, en un país y en una época en que la honradez no estaba, precisamente, de moda”, acusado por seus filhos de sequestrar a “realidad”, e feliz em uma Buenos Aires que considerava a mistura perfeita de Lyon e Praga. Mas esse homem feliz deixará de sê-lo pouco antes do desencadeamento da crise, quando ele parece enxergar que terá, junto com a cidade, que enfrentar seu “destino sudamericano”. Só que esse enfrentamento, diferente daquele de Francisco Laprida do poema de Borges, não é precisamente contra “los bárbaros, los gaúchos” que recusam as letras e as leis, nem contra os cabecitas negras que ganharam espaço e visibilidade durante o primeiro governo de Perón, para desgosto de Borges que escreve seu poema movido por esse acontecimento, em 194395. Ainda que sob um governo peronista, em sua versão mais neoliberal, a barbárie que enfrenta Pereda não é a dos excluídos, mas a do endividamento externo, o ajuste e a privatização que o termina aproximando destes. O “destino sudamericano”, no caso, é o de se descobrir um velho empobrecido numa cidade em crise. O advogado, portanto, 95

Borges disse a Osvaldo Ferrari: “Cuando yo publiqué ese poema, el poema no sólo era histórico del pasado sino histórico de lo contemporáneo; porque cierto dictador acababa de asumir el poder, y todos nos encontramos con nuestro destino sudamericano. Nosotros, que jugábamos a ser Paris, y que éramos, bueno, sudamericanos, ¿no? De modo que en aquel momento quienes leyeron eso lo sintieron como actual: ‘Al fin me encuentro / con mi destino sudamericano’. Sudamericano en el sentido más melancólico de la palabra, o más trágico de la palabra”. (BORGES; FERRARI, 2005, p 32).

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não enxerga na sua frente a morte heroica no campo de batalha de Laprida – cheia de sentido, pois ela é “la letra que faltaba, la perfecta / forma que supo Dios desde el principio”96 –, mas algo que se parece mais com uma morte indigna e vazia em uma clínica, como aquela que se nega a ter Dahlmann, no conto “El sur”. E é justamente em “El sur” que Pereda encontra a resposta que sem saber procura nos livros, nos dias que antecedem o estalar da crise:

Empezó a levantarse temprano y a buscar en los viejos libros de su biblioteca algo que ni él mismo sabía qué era. Se pasaba las mañanas leyendo. Decidió dejar el vino y las comidas demasiado fuertes, pues comprendió que ambas cosas abotargaban el entendimiento. Sus hábitos higiénicos también cambiaron. Ya no se acicalaba como antes para salir a la calle. No tardó en dejar de ducharse diariamente. Un día se fue a leer el periódico a un parque sin ponerse corbata. (p. 19)

Quando já não serve de nada manter as boas aparências, Pereda compreende que só resta ser o outro, o incivilizado. Só que, como atesta a situação, as formas da incivilização são variadas. Não obstante a sua fugaz aproximação dos piqueteros, Pereda não escolhe ser o outro incivilizado que corta as ruas. Dando as costas a estes e seguindo suas leituras, ele decide ser o outro incivilizado moldado pela tradição literária nacional: o emblemático gaúcho do sul selvagem. Um outro à medida de seus desejos urbanos – pura convenção, imagem esvaziada que pode ser preenchida à vontade. Se Dahlman conseguiu fugir para um sul “que era suyo” (BORGES, 1984, p. 529), por que Pereda não poderia fazer o mesmo? Ele, portanto, decide repetir a escolha de Dahlmann, ainda que com uma diferença fundamental. Se Dahlmann ainda podia confundir

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À respeito destes versos, escreve Jose Pablo Feinmann: “Borges, aquí, imagina la nacionalidad como una mixtura imposible: la que se teje entre el puñal de los gauchos y los cánones de los cultos. Laprida, con el pecho endiosado por un júbilo secreto, descubre en su muerte el rostro del país como totalidad. Los gauchos no son los otros. Son quienes lo han entregado a la tierra y a la furia y a la sangre. Son quienes lo han completado, ya que él, Laprida, era un hombre incompleto, un hombre al que le faltaba una letra, un hombre que aún no había accedido a la secreta forma que la divinidad conocía desde el principio. Ahora, ahí, muerto tras la batalla, encuentra su rostro eterno. El círculo se ha cerrado. Y la totalización de la circularidad es la expresión inapelable de lo absoluto. (Nota: el poeta Borges se acerca aquí, más que nunca tal vez, a la dialéctica de Hegel, c)”. O artigo de Feinmann, “Borges y la barbarie”, de que tomo a citação está disponível em: http://www.pagina12.com.ar/1999/99-07/99-0712/contrata.htm. Última consulta novembro 15 de 2015.

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realidade e delírio (fantasia) – e no conto de Borges ambos são indiscerníveis –, para Pereda tal confusão já não é mais possível justamente por ter lido “El sur”. Em seu conto, Borges explicita que o sul de Dahlmann era antes de tudo “nostálgico y literário” (p. 527). Ou seja, o conto dá a entender que fala sobre um sul construído pela tradição literária argentina, que o “directo conocimiento de la campaña” (p. 527) revelaria como artificial. Por isso depois de Borges a volta ao sul só pode parecer uma farsa, uma má atuação. Mas se Borges ensinava que o “sul” dos gaúchos é “nostálgico y literário” e não uma descrição realista do existente, também mostrava que, ainda assim, pode ser vivenciado como realidade. De alguma forma, esse foi o “hábil error” (p. 268) de que dependeu o nacionalismo literário contra o qual Borges escreveu “El escritor argentino y la tradición”. Pereda cientemente escolhe reproduzir esse erro habilidoso e é por isso que enquanto esperava por alguém que o levasse para sua estância Álamo Negro, na estação ferroviária de Capitán Jourdan, lembrou “como era inevitable, el cuento El Sur, de Borges, y tras imaginarse la pulpería de los párrafos finales los ojos se le humedecieron” (p. 24). Dalhmann é o modelo de Pereda, porque lhe ensina que pode morrer no sul de seus sonhos e leituras, independente da falta de realidade destes. Essa é a escolha de Pereda e, por isso, não desiste de seu empreendimento, mesmo que se defronte a todo momento com uma realidade que o contradiz97. As manifestações de que o sul, no começo do século XXI, não tem nada a ver com aquele retratado pela tradição literária começam desde o próprio trem que leva a Pereda para Capitán Jourdan, onde compartilha vagão com “un tipo aindiado [que] leía

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Nisto se diferencia o advogado e dom Quixote. Se Pereda é um dom Quixote que, por causa dos livros, decide ser um cavalheiro andante fora de época, a diferença entre as duas personagens está em que o advogado a todo momento se mostra ciente de que a realidade não se ajusta a seu projeto, e mesmo assim segue em frente.

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un cómic de Batman” (p. 22). Como assinala Raquel Arias Carreaga, Bolaño intencionalmente apresenta um pampa que no se corresponde con el del mito, con gauchos que vendieron sus caballos al matadero y se desplazan en bicicleta o en autostop, indios que regentan ferreterías y no saben nada de caballos, boleadoras manejadas por niños o hacendados que hablan como la gente de la ciudad. La imagen que se da en el texto de las pulperías está en la misma línea […]. En la pulpería de Capitán Jourdan se pasa el tiempo en juegos tan inocentes como el truco o las damas, y en casos especiales, los gauchos pueden estar hasta el amanecer jugando al monopoly. (pp. 104 - 105).

Esses gaúchos, aliás, ficam desconcertados com o comportamento de gaúcho tradicional que assume Pereda. Por exemplo, quando este lhes pede para que se afastem porque vai cuspir, eles “asustados y sin entender nada, sólo alcanzaron a dar un salto” (p. 30). A reação dos gaúchos atuais diante desse gaúcho tradicional, que Pereda encarna, é análoga a que têm os coelhos do pampa diante das quatro vacas que o advogado consegue para sua estância: “los conejos, que en su vida habían visto una vaca, las miraban con asombro” (p. 46). No sul que nos apresenta “El gaucho insufrible” já não há vacas e mal se encontram cavalos. O que há por todas partes são coelhos. Este é o golpe de graça de Bolaño ao sul mítico, porque sem vacas nem cavalos não seria imaginável a atividade de gaúcho nem sua produção. Em outras palavras, Bolaño tira as condições de existência dos gaúchos. Como aponta Josefina Ludmer, o gênero gauchesco se institucionalizou na Argentina porque o gaúcho foi, desde fins do XIX, mão de obra fundamental dos produtos de exportação que geravam a riqueza nacional (e lá não se institucionalizaram os gêneros indigenista e anti-escravocrata, porque os negros e os índios nunca ocuparam esse lugar)98. Abrindo um parêntese: a presença dos coelhos no conto de Bolaño, no lugar das vacas e os cavalos, poderia dizer algo sobre as fontes de produção da riqueza na Argentina de começo do século XXI? 98

Me refiro aqui a alguns comentários de Ludmer na primeira de sus palestras sobre “Gauchos, negros e indios”, realizadas na Universidad de San Martín, no ano 2012. A palestra está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hB2fEor0Tko. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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A pergunta, claro, é descabida, pois os coelhos de Bolaño não têm apoio na realidade (ainda que na internet seja possível encontrar algum artigo isolado sobre o risco da reprodução do coelho silvestre europeu para o gado doméstico no nordeste da Patagônia Argentina99). De fato, os coelhos são a manifestação mais expressiva de que se Bolaño escreve contra os relatos míticos do sul, não é para contrapor nenhum quadro realista do que seria o sul atual. Bolaño não pretende ser realista – ou pelo menos não no sentido convencional. Pelo contrário, introduz no seu relato um elemento que perturba o senso de realidade, na linha tradicional da literatura fantástica do Rio da Plata; em particular, Júlio Cortázar, Antonio Di Benedetto e Juan Rodolfo Wilcock100. Os coelhos de “El gaúcho insufrible” são perturbadores, em primeiro lugar, porque, apesar de seu aspecto inocente, tem um comportamento brutal. Um deles, por exemplo, pula e morde o pescoço a um editor de literatura, que vai de visita à estância Alamo Negro. Outro exemplo de brutalidade é visto por Pereda através da janela do trem que o leva para o sul. Nesse momento, ele observa um coelho fugindo de um grupo de outros coelhos que o perseguem correndo “en tándem, como los ciclistas perseguidores en el Tour de Francia. El que relevaba daba un par de saltos y el que iba en cabeza bajaba hasta el último puesto, el tercero se ponía en el segundo, el cuarto en el tercero y así el grupo cada vez iba restando más metros al conejo solitario” (p. 23). Não demora muito e os coelhos perseguidores alcançam o coelho solitário e se jogam sobre este “con saña, clavándole las garras y los dientes” (p. 24). Os coelhos resultam aterradores por seu violento comportamento, mas também por sua pouca naturalidade. 99

Aludo ao artigo “Interacción trófica entre el conejo silvestre europeo y el ganado doméstico en el noroeste de la Patagonia Argentina” de Never Bonino. Disponível em http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1667-782X2006000200005. Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 100 Gustavo Faverón Patriau, que faz uma reconstrução exaustiva das referências literárias em “El gaúcho insufrible”, lembra que os três autores mencionados escreveram relatos que falam de invasões de coelhos na Argentina: “Carta a uma señorita en París” – Cortázar –, “Los conejos” – Wilcock” – e “Conejos” – Di Benedeto –. O artigo em questão de Faverón, “El rehacedor: ‘El gaucho insufrible’ y el ingreso de Bolaño en la tradición argentina”, faz parte da coletânea crítica Bolaño Salvaje.

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Seu acionar parece mecânico, ou melhor, artificialmente programado: eles correm “en tándem, como los ciclistas perseguidores en el Tour de Francia”. Nestes coelhos a distinção entre natural e não natural se desfaz. Os coelhos são o elemento fundamental que irrompe e perturba a fantasia “nostálgica e literária” de Pereda, para lhe fazer sentir que talvez esteja “encarcelado en un sanatorio”, como intui Dahlmann no trem de “El sur”. Daí o desconsolo de seu grito: “Vacas, [...] ¿donde están?” (p. 44). Como se disse, fica claro que o intuito de Bolaño não é oferecer nenhuma imagem realista do sul em contraposição a sua imagem mítica, mas antes colocar em cheque que a narração possa fazer visível, com limpidez realista, a verdade do sul atual. Contudo, isso não quer dizer que o conto não ofereça um exercício de especulação imaginativa das mudanças que podem ter acontecido no campo argentino para a virada de século e de capturar algo nesse sentido. Ou seria melhor dizer que a realidade terminou por capturar, ainda que parcialmente, o conto? Digo isto, porque ao dar uma olhada nas notícias sobre o campo Argentino nas últimas décadas se faz perceptível que, se não se fala de invasões de coelhos, fala-se de algo que, de alguma maneira, é equivalente: a sojización. Carla Gras explica que o termo sojización

alude a la preeminencia que a partir de mediados de la década de 1990 alcanza este cultivo en el total de la superficie con granos y posteriormente en la superficie total agropecuaria. Diversos autores hacen uso de este término para referir tanto a la ampliación del área sojera como a los procesos que la acompañan en términos del uso del suelo: reducción del área dedicada a la ganadería y otros cultivos, así como también al corrimiento de la frontera agraria hacia tierras con montes y bosques, o consideradas improductivas por sus características agroecológicas. (p. 336, grifos meus).

A soja não só invadiu o campo argentino como os coelhos do conto, mas o fez com seu mesmo aspecto inocente que, contudo, gera inquietação, entre outros motivos, por sua natureza alterada. A produção do grão desafia a velha divisão natural/artificial, com efeitos incertos: 145

las cosechas de soja récord logradas desde 2002 se basan principalmente en aumentos de productividad derivados ya no de la fertilidad natural de las llanuras pampeanas, sino de la incorporación de las más avanzadas tecnologías (semillas transgénicas, fertilizantes, herbicidas, maquinarias de punta) y de modernos modelos de gestión que utilizan tecnologías de información101 (339).

Se os coelhos são uma figura cifrada da soja, então eles sinalizam literariamente o momento em que não é mais possível a leitura do campo como espaço em que se vive segundo os velhos ciclos naturais. São uma expressão de que o campo passou a ser controlado pelas técnicas mais modernas (sob administração de multinacionais), com a consequência paradoxal do aumento do risco de efeitos incontroláveis. Os coelhos podem ser lidos como cifra da inquietação que gera o campo na era dos transgênicos e da agroindústria. Retomando a história do conto, dizíamos que Pereda, apesar de todas os elementos que perturbam sua visão mítica do sul, coelhos incluídos, insiste em se comportar como se fosse um gaúcho da literatura do século XIX, na expectativa constante de poder consumar seu destino sonhado em um duelo. Tal oportunidade parece, finalmente, se concretizar uma noite, quando, cansado de escutar os velhos gaúchos

soltar frases deshilachadas sobre hospitales psiquiátricos y barrios miserables donde los padres dejaban sin leche a sus hijos por seguir a su equipo en desplazamientos legendarios, les preguntó qué opinión tenían sobre la política. Los gauchos, al principio, se mostraron renuentes a hablar de política, pero, tras animarlos, al final resultó que todos ellos, de una forma o de otra, añoraban al general Perón. Hasta aquí podemos llegar, dijo Pereda, y sacó su cuchillo. Durante unos segundos pensó que los gauchos harían lo mismo y que aquella noche se iba a cifrar su destino, pero los viejos retrocedieron temerosos y le preguntaron, por Dios, qué le pasaba, qué le habían hecho ellos, qué mosca le había picado. La luz de la fogata concedía a sus rostros un aspecto atigrado, pero Pereda, temblando con el cuchillo en la mano, pensó que la culpa argentina o la culpa latinoamericana los había transformado en gatos. Por eso en vez de vacas hay conejos, se dijo a sí mismo mientras se daba la vuelta y se dirigía a su habitación (p. 45).

A tentativa de duelo se frustra e mais uma vez fica em evidência a distância entre o sul fantasiado por Pereda e o sul “real”. A conversa rotineira dos gaúchos sobre 101

O ano mencionado, 2002, extrapola um pouco a data em que transcorre o conto, ainda que não a de sua escrita, 2003.

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hospitais psiquiátricos, bairros pobres e peregrinações atrás de times de futebol revela que estes não têm nada de pessoas do campo, dedicadas às tarefas tradicionais das estâncias; antes parecem deslocados de algum bairro periférico de uma cidade, onde, quando crianças, possivelmente, vivenciaram as primeiras presidências do general Perón e seu posterior desterro. Ou seja, são gaúchos tão deslocados quanto o próprio Pereda. Este último, que é borgeano não só em literatura, mas em política, assim que escuta o nome de Perón tira a faca102, mas só para ver os “gaúchos” retrocederem espantados. Então, Pereda pensa na culpa, “la culpa argentina o la culpa latinoamericana” que transformou os “gaúchos” atigrados em mansos gatos. “Gaúchos” aos que a própria denominação não encaixa bem, posto que já são outros (e, certamente, já receberam outros nomes: orilleros, povo, subalternos). A culpa argentina e latinoamericana parece se relacionar, então, com o que se fez nos países da região com esses “gaúchos”, com aqueles que estão na fronteira da cidadania. Segundo a leitura borgeana, invocada na cena acima, com o General Perón, uma boa parte destes teriam sido transformada em atores e expectadores de um melodrama inverossímil, ou seja, em peças de má literatura, como escreveu Jorge Panessi. Segundo este crítico, para Borges, “como el estúpido nazismo, en el régimen de Perón no solamente campea la estupidez, sino la irrealidad y la burda representación escénica” (2007, p. 34).

Uma

representação que se manteria pela demagogia e a violência (a violência é sempre o que vem a ser aplicado contra aqueles que ameaçam a representação).

102

Já no começo do relato encontramos uma referência ao antiperonismo de Pereda, quando se menciona que este dizia que não se casou de novo porque considerava que “el gran problema de Argentina, de la Argentina de aquellos años, era precisamente el problema de la madrastra. Los argentinos, decía, no tuvimos madre o nuestra madre fue invisible o nuestra madre nos abandonó en las puertas de la inclusa. Madrastras, en cambio, hemos tenido demasiadas y de todos los colores, empezando por la gran madrastra peronista. Y concluía: Sabemos más de madrastras que cualquier otra nación latinoamericana” (p. 16).

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Sem entrar em questionamentos sobre essa leitura, reproduzida por Pereda, “El gaúcho insufrible” dá uma virada e oferece uma outra perspectiva histórica. Mostra que a farsa do General Perón, que foi seguida com fervor por amplos setores da população – aos que, depois de tudo, oferecia algo em troca103 –, foi substituída no final do século por outra farsa que não oferece nada e que dispensa os antigos crentes. É por causa desse caráter farsesco do presente que a Pereda se podem fazer as mesmas perguntas que ao protagonista de outro relato de Borges, “El simulacro”, do livro El hacedor, e se pode responder de forma semelhante. O relato conta que, em 1952, em um povoadozinho do Chaco, um homem teria colocado em um caixão de cartão uma boneca loira para que fosse velada como Evita. Quem era esse homem?, indaga Borges no relato, “¿un fanático, un triste, un alucinado o un impostor y un cínico?”. E depois conclui: “La historia es increíble pero ocurrió y acaso no una vez sino muchas, con distintos actores y con diferencias locales. En ella está la cifra perfecta de una época irreal” (p. 789). De Pereda também é possível dizer que não é um caso de alucinação ou cinismo excepcional, mas cifra de uma época. Uma época que gera uma impressão de irrealidade maior, posto que não abundam os gestos de convencimento. A impressão de irrealidade aumenta pela falta de projetos de construção comum, ou seja, pela desagregação social, que faz com que tudo se mostre como arbitrariedade e capricho.

103

Como disse Rodolfo Mario Pandolfi, em 1956, na revista Contorno, “si el proletariado vio la única salida posible en lo que solo era una trampa demagógica, es porque la demagogia, para postergar la revolución, le dio ‐por el clásico recurso paternalista‐ realmente algo, algo que no era simplemente propaganda, algo que no era simplemente piruetas de payaso” (PANDOLFI apud SCHIAVI, 2009). Sobre as posições dos intelectuais reunidos na revista Contorno, que fizeram uma crítica do peronismo diferenciada dos intelectuais do círculo da revista Sur - a que pertencia Borges -, ver “Contorno y el peronismo” de Marcos Schiavi. Disponível em: http://www.revistaafuera.com/NumAnteriores/pagina.php?seccion=SociedadeHistoriadelasIdeas&page=0 7.letrasypensamiento.schiavi.htm&idautor=145. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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Que Pereda não é nenhum caso excepcional, mas uma cifra de época, o indicam os outros visitantes de Álamo Negro. Por exemplo, a psiquiatra que parece “una figurante de El anillo de los Nibelungos” (p. 41) e que no meio de uma cavalgada pelo pampa, começa a “citar versos de Hernández y de Lugones”, e logo depois passa a se perguntar “en voz alta dónde se había equivocado Sarmiento” (p. 42). Para a psiquiatra, como também para Pereda, a viagem para o sul se vincula com uma volta à origem da pátria, na tentativa (caricata) de entender o fracasso do Estado nacional e de figurar um novo começo. Só que quando a psiquiatra aparece, já Pereda tem assumido ser o outro, e portanto não se reconhece nessa mulher da cidade. Por isso, ele próprio apontará o quanto seus julgamentos são disparatados sobre aqueles deixados à margem do Estado nacional (e à margem do humano, posto que falam uma língua de “consonantes, de gañidos, de rencores”); esses outros que despertam ao mesmo tempo, na psiquiatra portenha, sentimentos maternais (aquilo que, como veremos adiante, Bolaño, seguindo os passo de Borges, denominará “canalla sentimental) e desconfiança:

a buen trote, seguían impertérritos hacia el oeste, hasta lugares adonde el mismo Pereda no había llegado nunca y a los cuales se alegraba de encaminarse en tan buena aunque en ocasiones latosa compañía. A eso de las cinco de la tarde divisaron en el horizonte el esqueleto de una estancia. […] Cuando por fin llegaron salieron a recibirlos cinco o seis niños desnutridos y una mujer vestida con una pollera amplísima y excesivamente abultada, como si debajo de la pollera, enroscada sobre sus piernas, portara un animal vivo. Los niños no le quitaban ojo a la psiquiatra, la cual al principio insistió en un comportamiento maternal, del que no tardaría en renegar al sorprender en los ojos de los pequeños una intención torva, como luego le explicó a Pereda, un plan avieso escrito, según ella, en una lengua llena de consonantes, de gañidos, de rencores. Pereda, que cada vez estaba más convencido de que la psiquiatra no estaba muy bien de la cabeza, aceptó la hospitalidad de la mujer. (pp. 43-44).

Apesar de se sentir seduzido pela beleza germânica da psiquiatra, que em certa forma lembra a de sua ex mulher, Pereda escolhe a outra, a quem convidará para Álamo Negro. Tempo depois, por lá aparecerá a humilde mulher, que aceita a proposta de Pereda, mas sem se conformar com uma posição completamente subordinada. Ela se enfiará no quarto de Pereda e tomará conta da estância, com o qual esta, finalmente, conhecerá um pouco de prosperidade. 149

Mas antes de tudo isso, Álamo negro recebe a visita de outro estrangeiro: o editor Ibarrola, a quem Pereda chamará mentalmente de “vasco de mierda” (p. 39). O encontro entre as duas personagens parece reencenar o conflito de começo do século XX entre os criollos e os imigrantes europeus pobres que “invadiram” a Argentina; só que as correspondências aqui, uma vez mais, são falhas. Se Pereda é um criollo em que não ajusta a fantasia de gaúcho, Ibarrola não é nenhum imigrante pobre, mas o editor do Bebe – o filho de Pereda – e paga a viagem deste e de dois escritores mais para Álamo Negro, como amante que seria dos “libros y la naturaleza” (p 38). Uma vez na estância, Ibarrola monta em uma égua, feliz de poder ir para “echar uma miradita a los campos”, e durante duas horas elogia “la vida bucólica y asilvestrada que, según él, hacían los vecinos de Capitán Jourdan” (p. 39). O “según él” (dito pelo narrador? Dito por Pereda?) marca ironicamente a distância que há entre o que afirma o editor e o que realmente é a vida no sul (que nem o narrador nem Pereda conhecem). Logo depois que Ibarrola termina seus elogios à vida no campo, empreende o galope e recebe a resposta da natureza; é mordido selvagemente no pescoço por um bucólico coelho. A comicidade da cena seguinte se desprende tanto da falta de grandeza do incidente quanto da embaralhação dos referentes: Pereda empreende uma cauterização, sem anestesia, com uma faca esquentada, que lembra não tanto a tradição gauchesca mas alguns filmes hollywoodianos de ação. Apesar de que nada corresponde com a visão que do sul exprime Ibarrola, este, como Pereda, não deixa de atuar como se essa correspondência existisse, encenando uma versão atualizada do que Roberto Schwarz chamou de ideologia em segundo grau, ao descrever o comportamento das elites brasileiras no século XIX. Depois da brutal cauterização, o editor, que tinha desmaiado, acorda e diz “sentirse mejor que nunca

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aunque esa misma noche se marchó con los escritores a Buenos Aires”, levando uma cicatriz que “solía mostrar con orgullo y que explicaba era debida a la picadura de una culebra saltadora” (p. 41). Ibarrola capitaliza a ferida que lhe deixaram o coelho e Pereda, como também capitalizará as obras literárias dos escritores para quem pagou a viagem para Capitán Jourdan, em um empreendimento que, na sua mistura de arte e turismo, lembra tanto os filmes sobre cidades de Woody Allen quanto o projeto de “amores expressos” da Companhia das Letras. Em um tempo em que os gaúchos já não produzem riqueza trabalhando na estância, ainda podem produzir riqueza como espetáculo turístico104. Num conto cheio de referências à tradição literária argentina, as figuras de Ibarrola e o Bebe representam a literatura recente e seu lugar no meio da crise do Estado nacional argentino, sinédoque da crise latino-americana no fim do século XX. Sobre Bebe se diz já no comecinho do conto que “se dedicó a la literatura, es decir, triunfó en la literatura” (p. 18), o que dá a entender que o filho de Pereda virou um escritor profissional e não precisa fazer nada mais do que escrever  para ganhar a vida. A prova do sucesso literário do Bebe é ter publicado um livro na Espanha: “Le entregó [a Pereda] un libro, uno de los muchos regalos que le había traído, y le dijo que se había publicado en España. Ahora soy un escritor reconocido en toda Latinoamérica, le aseguró” (p. 39). Nesse comentário está implícito aquilo que Josefina Ludmer dirá explicitamente um par de anos depois: “Los autores que conocemos acá son decididos 104

Em um estudo sobre agroturismo na América Latina, os peruanos Hernando Riveros e Marvin Blanco apontam no ano de publicação de “El gaucho insufrible”: “En América Latina, son Argentina, Chile, Uruguay y Colombia los países que tienen mejor desarrollado el turismo rural y bajo un concepto similar al de los países europeos. En Argentina, la actividad cobró fuerte impulso en la década de los noventa fundamentalmente a partir de estancias ubicadas en la Patagonia. Se calcula que existen unos 1500 emprendimientos bajo alguna modalidad de turismo rural, constituyendo una de las estrategias de diversificación de la producción agropecuaria que genera grandes expectativas entre los empresarios del sector rural (II Foro… 2002). En Colombia, la crisis ha obligado a los cafeteros a buscar alternativas para mantener sus fincas dándose cuenta que son muy apreciadas por los turistas, lo que ha originado el proceso de convertirlas en hoteles rurales” (BLANCO; RIVEROS, 2003, p. 11). Na Colômbia, o boom do turismo cafeteiro coincide com a perda de importância da produção de café na economia do país.

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en España. [...] La literatura hoy pasa por los aparatos de distribución y difusión, y esos aparatos hoy están en manos españolas y centrados, fundamentalmente, en Barcelona”105. Em seu libro Aquí en América Latina, Ludmer se refere aos fatores que levaram a o estabelecimento desse quadro. Por um lado, o enfraquecimento das editorias nacionais, muitas das quais desaparecem ou são absorvidas por multinacionais como resultado de um processo que começa na década de 70, com o favorecimento do investimento estrangeiro (ver Ludmer 2010, p. 208). Por outro, o forte investimento no mercado na língua que fez Espanha desde sua entrada na União Europeia na década de 90: “las inversiones de las multinacionales españolas en Latinoamérica crecen exponencialmente. Y los líderes españoles insisten en la unidad cultural entre España y Latinoamérica” (p. 205). Devido a isto, para o ano 2000, publicar em um editorial espanhol reconhecido passa a significar, para um escritor latino-americano, tanto ampla circulação na América Latina quanto prestígio106. É isso o que Bebe dá a entender ter conseguido, e o que permite que o escritor esteja muito bem no preciso momento em que o país afunda. Fica implícito que Bebe conseguiu esse privilégio achando uma forma de dizer, e provavelmente criando certas imagens “latino–americanas”, que vendem bem. Algo atrás do que andariam os autores do momento. Este último é o que intui Pereda quando, na sua volta a Buenos Aires para a venda da sua casa, vai ao café em que seu filho costuma se reunir com seus amigos artistas, e ao ver da janela um grupo de escritores sente que é como um grupo de publicitários: “El Bebe presidía, junto a un viejo (¡Un viejo como yo!, pensó Pereda), una de las mesas más animadas. En otra, más cercana a la ventana desde donde 105

A declaração foi feita por Ludmer em entrevista concedida à Revista Ñ, no ano 2010. Disponível em http://edant.revistaenie.clarin.com/notas/2010/08/14/_-02207340.htm. Última consulta 23 de novembro de 2015. 106 Cabe notar que o outro lado da desnacionalização das grandes editoriais argentinas, como assinala Ludmer, é o “surgimiento de nuevas editoriales locales, nacionales, independientes, como Adriana Hidalgo desde 1999” (p. 88), ou a paradigmática Eloisa Cartonera.

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espiaba, distinguió a un grupo de escritores que más bien parecían empleados de una empresa de publicidad” (p. 50). Poderia se pensar que o retrato que Bolaño faz dos escritores, no seu conto, é uma diatribe contra aqueles que se entregaram ao mercado. Uma diatribe feita por alguém que falaria em nome da verdadeira literatura, da literatura que resiste. Mas essa interpretação é atrapalhada pelo fato de que o triunfo literário do Bebe espelha o triunfo de Bolaño. Como lembra Sarah Pollack:

Como sucede con la mayoría de los autores latinoamericanos, él era prácticamente un desconocido hasta el momento en que un prominente editor de España aceptó publicar sus novelas; seis libros suyos habían salido a la luz en pequeñas editoriales cuando Seix Barral publicó en 1966 La literatura nazi en América y, subsecuentemente, Anagrama, cuyo director era Jorge Herralde, se convirtió en su editorial oficial, publicando trece de sus obras. Tanto Seix Barral como Anagrama, ubicadas en Barcelona, gozan de una amplia distribución en España y América Latina, lo cual hizo de Bolaño un autor muy visible107.

O fato obriga a uma outra interpretação. Antes do que uma acusação contra um tipo de literatura, o retrato mostraria que a literatura, como o sul, não oferece nenhuma saída, que ela também não é um espaço intocado, à margem dos poderes do mercado, que produziram a crise argentina e latino-americana de fins do século XX. Como aponta Thiago Pinheiro, Bolaño não usa a paródia para assegurar-se diante da ilegitimidade de uma situação, isolando-se dela para dispor de um lugar de enunciação seguro, suficientemente externo para denunciá-la, mas para reafirmar a incontornabilidade dessa situação como condição escritural, necessitando pôr sua validade em questão, enfrentando-a (PINHEIRO, 2014, p. 105).

A respeito Pinheiro lembra a seguinte declaração de Bolaño, em entrevista com argentino Sebastián Noejovich, no ano 2001, isto é, a data em que transcorre “El gaúcho insufrible”:

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O artigo de Pollack, “América Latina translated”, está disponível em http://mxfractal.org/RevistaFractal56SarahPollackRobertoBola%C3%B1oAmericaLatinaTranslated%20.h tml. Última consulta 23 de novembro de 2015.

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- [Noejovich] El tono siempre paródico con el que te acercás a esos ámbitos literarios, ¿será una forma de conjuro, una manera de mantenerte a salvo de esa grandilocuencia y gravedad que es tan característica de algunos "hombres de letras"? - [Bolaño] Yo creo que en el fondo la parodia sólo disfraza el deseo enorme de ponerse a llorar. Y sobre mantenerse a salvo de lo que sea, no sé qué decirte, en literatura es casi imposible mantenerse a salvo. Todo mancha. Supongo que hay novelistas que opinan lo contrario. Dios les conserve su candor (o su estupidez) por mucho tiempo. (Apud PINHEIRO, p. 105)108

Que na literatura é quase impossível se manter a salvo o confirma justamente o sucesso literário de Bolaño, cujo ponto mais alto, como lembra Pollack, será seu boom de vendas em inglês pela “casa Farrar, Strauss, and Giroux (fsg) [...] parte del grupo Mcmillan, una de las editoriales más importantes del planeta”. O uso da palavra boom é proposital, posto que o sucesso literário de Bolaño, como muitas vezes tem sido observado, só parece comparável ao de García Márquez, um escritor com o qual o autor de 2666 nunca quis ser associado. Mas isso não impediu que o romance Los detectives salvajes tivesse um destino semelhante a Cien años de soledad diante do público norteamericano. O destino de se transformar em certo estereótipo consumível da América Latina. Segundo Pollack,

esta representación reductora […], como sugiere [Silvia] Molloy, resulta atractiva por varias razones: le ofrece a los lectores de Estados Unidos la ‘ilusión de una familiaridad cómoda, la ilusión de la traducibilidad y por lo tanto crea en ellos la ilusión de ser cultos’; al relatar cosas que ‘nunca podrían’ suceder aquí, aporta además cierta distancia temporal y espacial entre Estados Unidos y América Latina, ‘una región cuya cercanía es acaso amenazadora’; y proporciona una liza imaginaria adonde se pueden escenificar fantasías occidentales en un espacio extranjero, al mismo tiempo que controla y ‘vigila (…) la representatividad cultural’.

Para Pollack, se Cien años de soledad, mediante uma “singular (des)lectura”, permitia entender a América Latina como espaço da fábula e do maravilhoso, com Os detetives selvagens passa a ser o espaço

adonde uno puede satisfacer su anhelo de la rebelión y de aventuras de todo cariz: políticas, sexuales, espirituales, toxicómanas, literarias. Como dice un crítico, “The savage detectives es,

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A entrevista está disponível em: http://www.letras.s5.com/rb260505.htm. Última consulta 23 de novembro de 2015.

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sin lugar a dudas, un libro muy ‘latino’ y entregarse a los placeres de su lectura es semejante a tomar unas largas vacaciones en el Sur de la frontera.109

Assim como o Bebe e outros escritores (a quem o editor Ibarrola pagou a viagem para Álamo Negro) devem oferecer as novas imagens exotizantes do sul da Argentina, Bolaño terminará oferecendo no mercado norte-americano as novas imagens exotizantes desse outro sul, o que começa no Rio Bravo. Se Bolaño pudesse presenciar esse destino de sua obra, seguramente não sentiria estranhamento, porque como vimos não se imaginava em um lugar a salvo, em um espaço diferente daquele em que está o Bebe e o grupo de escritores que pareciam publicitários. Contudo, Bolaño sinaliza também uma diferença com estes últimos, ao retratá-los como figuras do dissimulo e do fingimento, que pretendem habitar um espaço à parte. Em “El gaúcho insufrible” o máximo representante deste tipo de escritor é o velho que preside uma das mesas mais animadas de artistas junto com seu filho. Este velho “a cada cierto tiempo se untaba con polvos blancos la nariz y peroraba sobre literatura universal” (p. 50). A proximidade dessas duas ações dá a entender que ambas estão inter-relacionadas, ambas seriam formas do ocultamento. Um ocultamento que Pereda desafia com sua mirada. No conto se diz que os olhos do velho e os de Pereda se encontram de repente e, então, ambos se contemplam “como si la presencia del otro constituyera una rajadura en la realidad circundante” (p. 50). O que a mirada desconcertada de Pereda faz emergir é a inverdade do velho que quer seguir falando de universalidade – de literatura universal – em uma época em que tem ficado claro que universalidade

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Á respeito da edição do livro nos Estados Unidos, Pollack conta que “en la solapa de la contracubierta y en ésta, aparecen uno tras otro comentarios publicitarios, recordando el empaque de la reciente reedición facsimilar de On the Road, de Jack Kerouac, la cual conmemora el cincuenta aniversario de la aparición del libro en 1957. La solapa de la cubierta presenta una fotografía de Bolaño, pero no la imagen que es ya icónica en el mundo de habla hispana (y que New Directions también utiliza en sus títulos de Bolaño), aquélla del novelista a los cuarenta años con el pelo corto, una chaqueta negra, anteojos redondos y en la mano un cigarrillo; en cambio, la de FGS muestra la fotografía de un hombre joven de cabello largo y tenue bigote que para los lectores estadounidenses representa una nostálgica reminiscencia de la rebeldía sociocultural de los años sesenta y setenta”.

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significa mercado globalizado. Fingindo se colocar em outro espaço, o da literatura universal, que estaria livre de culpa da crise do estado-nacional, o escritor se coloca do lado do mercado global (e da história colonial que o possibilita), isto é, do esvaziamento, da apropriação indevida, da exploração; tudo aquilo que a crise de 2001 fez aflorar violentamente em Buenos Aires. Talvez isso explique por que Pereda considera que enfiar a ponta da faca no corpo do velho é um ato de desagravo, e depois disso cogita ficar na cidade como um “un campeón de la justicia” (p. 51); como alguém que se enfrentaria com os culpáveis da Argentina e da América Latina. Mas em nome de quem faria justiça Pereda? Do Estado nacional? Da literatura nacional ou continental? Dos gaúchos de hoje? Dos gaúchos de ontem? Neste ponto, é inevitável lembrar o que há na origem do gênero gauchesco e do Estado nacional, que quer recuperar Pereda. A conversão dos “gaúchos” atigrados em gatos, de que fala o advogado, pode ser retrotraída a ela. Segundo a famosa tese de Josefina Ludmer, o gênero gauchesco usou a voz do gaúcho porque seus corpos precisavam ser usados, primeiro como soldados nas guerras de independência e depois nas estâncias. Uma vez concluída a constituição definitiva do Estado, que incorpora o gaúcho como trabalhador das estâncias, o gênero se fecha; o que aconteceria por volta de 1880 (2000, p. 39). Depois o que haveria é produção de literatura a partir não dos gaúchos (que já não existem como fora da nação), mas do gênero gauchesco, em um novo ciclo que fecharia Borges. Veronica Garibotto faz uma leitura dos duelos de Martín Fierro, “El Sur” e “El gaucho insufrible” que avança na linha interpretativa de Ludmer. Garibotto afirma que o duelo de La vuelta de Martín Fierro (1889) – que já não é um duelo de homens armados, mas de cantadores – significa a incorporação do gaúcho à lei (aquela mesma

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que em La ida o gaúcho infringira, ao matar o negro). Assim, o gaúcho se transforma no gaúcho bom que servirá de emblema “sobre el que cimentar la iconografia nacional” (2015, p. 180). Já o duelo do conto “El sur” de Borges colocaria fim aos usos nacionalistas da personagem, e com eles às empreitadas nacionalistas da literatura:

Escrito en 1944 (inmediatamente después del golpe de estado de 1943 y en pleno ascenso del peronismo) este gesto antinacionalista no puede no leerse como un gesto político, un gesto a través del cual Borges proyecta (paradójicamente) el deseo de una literatura que sea un espacio autônomo, una utopia post-nacionalista y post-política (p. 155).

Por sua vez, o duelo de “El gaúcho insufrible” viria colocar fim à utopia borgiana da literatura autônoma:

Si Dahlmann moría para que pudiera nacer la literatura universal, Pereda mata para que el escritor que perora sobre literatura universal muera. Y este gesto puede interpretarse como el reverso del gesto borgeano: en lugar de a una fantasía post-política, alude a una fantasía de religación de literatura y política. Con la muerte del escritor mueren aquellos escritores que más bien parecen empleados de una empresa de publicidad, intelectuales de café que se dedican a hablar sobre literatura universal en la calle Corrientes mientras que a su lado el país se precipita al abismo. (p 181).

Dizer que Pereda termina religando literatura e política, não quer dizer que reivindica nenhum estado anterior da literatura argentina (ou latino-americana). O duelo de Pereda não faz justiça a nenhum passado literário diante de um presente degenerado. Se o advogado nos faz ver que não há literatura por fora da política, simultaneamente, nos mostra que não há literatura por fora da culpa. A literatura nacional nasce culpada, vinculada com a domesticação utilitária do gaúcho. Como se disse, o gênero gauchesco fez uso da voz dos gaúchos para fazer uso de seus corpos na produção do Estado nacional; para produzir o Estado nacional e para produzir a riqueza do Estado. Por isso, se o presente nacional não está livre de culpas, o passado também não. Para Pereda não há um “fora da culpa” onde se instalar. Ele pode atuar como justiceiro ao ferir o velho escritor que perora de literatura universal, mas isso não quer dizer que esteja em uma posição mais transparente ou verdadeira que ele. Pereda se 157

localiza em um espaço tão inautêntico quanto o do velho escritor, e assim como advogado traz a primeiro plano a inverdade deste, o último faz o mesmo com Pereda, que, afinal, não é mais do que um “viejo vestido a medias de gaucho y a medias de trampero de conejos” (p. 49), que encena um duelo gaúcho na cidade e contra um literato. Por isso o conto diz que um para o outro constituem “una rajadura en la realidad circundante”. E não em vão o advogado reconhece no escritor: “¡un viejo como yo!” (p. 50). Isso explica também porque, depois do duelo, Pereda não acha seu destino, como esperava, segundo o modelo da tradição literária, mas pelo contrário permanece como pisando em falso, sem saber o que escolher entre duas saídas que nada prometem: virar um justiceiro em Buenos Aires ou voltar para o pampa da que agora confessa é um desconhecedor:

¿Qué hago, pensó el abogado mientras deambulaba por la ciudad de sus amores, desconociéndola, reconociéndola, maravillándose de ella y compadeciéndola, me quedo en Buenos Aires y me convierto en un campeón de la justicia, o me vuelvo a la pampa, de la que nada sé, y procuro hacer algo de provecho, no sé, tal vez con los conejos, tal vez con la gente, esos pobres gauchos que me aceptan y me sufren sin protestar? Las sombras de la ciudad no le ofrecieron ninguna respuesta. Calladas, como siempre, se quejó Pereda. Pero con las primeras luces del día decidió volver (p. 51).

A decisão de Pereda não decide nada, posto que não resolve nada. Pereda decide voltar, mas o que irá acontecer permanece incerto. Mesmo assim resulta tentador, hoje, ver na decisão de Pereda uma indicação da única saída possível para a crise do momento: uma nova aliança social (e não foi isso o que conseguiu fazer o Kirchnerismo?). Uma aliança que, como o deixam ver as palavras de Pereda – procuro hacer algo de provecho, no sé, tal vez con los conejos, tal vez con la gente, esos pobres gauchos que me aceptan y me sufren sin protestar –, funcionaria ambiguamente, podendo significar tanto um fazer junto com quanto um novo fazer uso de.

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3.2. Naipaul e o insofrível da história. Segundo Pereda, os pobres gaúchos o aceitam e sofrem, e é porque o aceitam e sofrem que, para ele, a possibilidade de voltar para Álamo Negro se mantém aberta, mesmo que como uma possibilidade incerta. Porque se aceita e sofre, isto é, porque se aguenta, a história pode continuar, mesmo no meio do desastre. Mas o título de conto, “El gaucho insufrible”, sinaliza que há outra parte da história. Nela há também algo de insofrível, insuportável, horroroso. Uma experiência que paralisa no meio da continuidade do transcorrer histórico. Uma parte não narrada – e inenarrável – mas onipresente. Aquela parte que se projeta como uma sombra em todo o conto desde o adjetivo do título, “insufrible”. Com esse outro lado da história argentina entra em contato o escritor Vidiadhar Surajprasad Naipaul em outro conto de Bolaño; ou, mais precisamente, um esboço de conto que apareceu postumamente no livro El secreto del mal. Se trata de “Sabios de Sodoma”, onde Bolaño se refere a seu projeto de escrever sobre os dias que passou Naipaul na Argentina, na década de 70, para redigir “el largo reportaje sobre Eva Perón recogido en un libro que en España publicó, en 1983, la editorial Seix-Barral” (2007, p 51). Bolaño diz que o prêmio Nobel, nascido em Trinidad e Tobago, “recorría las calles de Buenos Aires y, de alguna manera, presentía el infierno que se cernía sobre la ciudad” (p. 52). Com o passo dos dias, essa sensação de entrar em contato com algo infernal se intensificaria e ampliaria no escritor, em um processo que será caraterizado por Bolaño com o mesmo adjetivo do título de seu conto sobre o “gaúcho” Pereda, “insofrível”: “Conforme pasan los días el país, y no sólo la ciudad, se le hace más insufrible, más insoportable. Uno diría que con cada nueva persona que conoce, con cada visita que hace, se acrecienta su malestar con respecto al lugar en donde se

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encuentra.” (p. 53, grifos meus). No caso fica claro que o insofrível se vincula com uma experiência do horror paralisante (“Cuando digo «inmovilizado por el horror» no lo digo en un sentido peyorativo sino literal” [p. 52]) que, como toda experiencia traumática, resiste à narração (“el problema era que ignoraba cómo descifrar ese lenguaje” [52-53]) e é só recuperável de forma indireta (“Por las noches, mientras dormía después de cada jornada agotadora, Naipaul soñaba con Buenos Aires y con la pampa, de hecho soñaba con Argentina, con toda Argentina, y los sueños indefectiblemente se transformaban en pesadillas”[p. 53]). No texto de Bolaño, Naipaul compreende, com o passo dos dias, que a sombra de horror que percebe na cidade de Buenos Aires se estende geograficamente, para o resto do país, assim como temporalmente. A forma como entendia esses vínculos geográficos e temporais não é explicada por Bolaño, mas se encontra, de fato, nas crônicas que começou a publicar alguns anos antes do golpe de Estado de 76 e terminou poucos meses depois. Em uma delas, Naipaul escreve uma sentença que soa surpreendentemente atual e aplicável para a América Latina em extenso: “La tierra en la Argentina […] sigue siendo sólo una mercancía” (p. 177)110. E acrescenta:

Es algo que puede enajenarse sin pena. La riqueza de la Argentina está en la tierra; esta tierra explica la gran ciudad que se alza a orillas del estuario. Mas la tierra ha pasado a no ser el hogar de nadie. El hogar está en otra parte: Buenos Aires, Inglaterra, Italia, España. Puedes vivir en la Argentina, dicen muchos argentinos, sólo si puedes irte. La Argentina creada por los ferrocarriles y por los fusiles Remington del presidente Roca todavía tiene la estructura y el propósito de una colonia. (p. 177).

A Argentina que veria Naipual seria ainda a Argentina criada por Roca (o presidente que ordenou a Guerra do Deserto), a qual, por sua vez, ainda teria “la

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Recentemente o crítico Juan Duchesne Winter apontava: “Desde la Conquista europea América ha sido pensada y tratada como una tierra de extracción. Y esa verdad continúa intacta todavía”. A frase é do artigo “Hacia una cosmopolítica”, aparecido na revista porto-riquenha 80 grados. Disponível em: http://www.80grados.net/mas-alla-de-la-tierra-de-extraccion-hacia-una-cosmopolitica/. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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estructura y el propósito de una colonia”. A estrutura colonial continuaria, sob novos arranjos, a cada nova época111. Na crônica citada, Naipaul é particularmente insistente nos vínculos entre a Argentina do momento e o genocídio indígena na Guerra do Deserto à fins do século XIX. Nesse sentido, chega muito próximo do David Viñas que cogita: “quizás, los indios, ¿fueron los desaparecidos de 1879?” (1983, p. 12). Naipaul escreve: “La tierra está llena de nombres militares, los nombres de generales que les arrebataron la tierra a los indios y, con una rapacidad que todavía hiere la imaginación, se concedieron a sí mismos amplias extensiones de terreno, fincas, estancias, grandes como condados” (p. 175). Este último fato também é aludido em “El gaucho insufrible”, onde, como observa José Amicola, encontramos uma “sucesión de estaciones [de tren] con nombres de próceres inventados que reproducen la toponimia argentina consagrada a militares vencedores en las campañas del siglo XIX contra los pobladores originarios (‘Capitán Jourdan’, ‘Coronel Gutiérrez’)”112. E esse não é o único ponto em que o texto de Naipaul e Bolaño se encontram. Inclusive, é tentador pensar que Bolaño pode ter seguido os apontamentos de Naipaul (mesmo que inconscientemente) quanto decidiu escrever um conto sobre a Argentina caraterizado pela inautenticidade e falta de correspondências; já que Naipaul escreveu (com tom involuntariamente schwarziano): “Dentro de la metrópoli importada está la estructura de una sociedad desarrollada. Pero a menudo los hombres parecen remedar sus propias funciones. […] Escribir con realismo sobre esta sociedad presenta dificultades peculiares; describirla fielmente en la ficción podría resultar imposible” (pp. 180-181).

111

Isto é o que Roberto Schwarz denomina de “reprodução moderna do atraso”. O artigo de José Amicola, “Los gauchos insufribles”, está disponível em: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1851-31232010000200012. Última consulta 17 de fevereiro de 2016. 112

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Segundo o escritor de língua inglesa, os homens argentinos são um arremedo, são homens diminuídos que só encontram uma forma de compensar sua inferiorização: o machismo, “la conquista y la humillación de las mujeres” (p. 181). Uma observação que, de novo, nos faz pensar em “El gaúcho insufrible”, onde, como notou Federico Pous,

las mujeres se presentan de acuerdo a su capacidad laboral (sirvienta, cocinera, psiquiatra) y carecen sistemáticamente de un nombre propio. Solamente la señora Hirshman (viuda de Pereda), la Cuca (su hija) y Rebeca (“una jovencita” pues nunca tuvo novias [16, 18]) acceden a esa nominación. (2008, p.5)

Claro que nisto – como diz Pous – o texto segue o próprio gênero gauchesco, que é um gênero de machos113; mas dado o interesse de Bolaño pelas crônicas argentinas de Naipual, não se pode deixar de considerar também suas observações a respeito. De fato, são estas as que convidam a pensar no machismo para além do gênero gauchesco, como traço ainda marcante da sociedade argentina. Da permanência dessa marca fala o conto de Bolaño não só através da ausência de nomes nas personagens femininas, mas ao retratar que são algumas dessas mulheres anônimas as que mantêm em pé tanto a casa de Pereda na cidade quanto a estância Álamo Negro. Em Buenos Aires, sua cozinheira e empregada; na estância, a mulher de pollera, que “no hablaba mucho pero sin duda trabajaba más que los seis gauchos que para entonces Pereda tenía en nómina” (p. 44). “El gaúcho insufrible”, então, nos revela a concordância de Bolaño com várias das observações de Naipaul sobre Argentina, ainda que em “Sabios de Sodoma”, o autor

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Diz Ludmer: “La patria del gaucho pertenece, ella sola, al género masculino. […] El género, el del gaucho, se ha definido definitivamente por lo bajo para definirse como argentino: en el ejército argentino y bajo la ley argentina de levas. Los universales de los derechos del hombre puestos por Hidalgo en la patria son ahora los universales corporales de cada sexo” (2000, p. 48). Em “El gaucho insufrible”, Pereda caracteriza a pampa como “directa, varonil, sin subterfugios” (p. 23).

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nascido no Chile não deixe de marcar também alguma distância com o prêmio Nobel114. Mas para além dessas concordâncias e discordâncias sobre o país sul-americano é preciso sublinhar que, para Bolaño, Naipaul era exemplar, antes de nada, por sua aproximação ao horror:

En mi cuento, pese a sí mismo, Naipaul era así. Tenía los ojos abiertos y la lucidez que suele caracterizarlo. Tenía algo que los españoles llaman mala leche y que sirve de antídoto para combatir los embates de la canalla sentimental. Pero también captaba, o sus antenas captaban, la estática del infierno en las noches callejeadas de Buenos Aires. (p 52).

Captar a “estática del infierno” com “los ojos abiertos”, “lucidez” e algo de “mala leche”115 define o que o próprio Bolaño considerava sua tarefa como escritor; como escritor latino-americano segundo ele proprio se descreveu: “– ¿Usted es chileno, español o mexicano? – Soy latinoamericano” (2006, p. 62). Ao se descrever assim, Bolaño aludiria, precisamente, a certa experiência análoga do horror. Ou seja, com o adjetivo não se referiria a certo tipo de subjetividade unificada que o autor representaria na sua obra, ainda que esta possa ser traduzida assim, como vimos, pelo mercado editorial.  Ao se definir como latino-americano, Bolaño não queria dizer que podia falar indistintamente como chileno, mexicano ou argentino. Como argentino, certamente, não fala em “El gaucho insufrible”, como se pode comprovar com facilidade ao examinar a língua em que está escrito o texto. Neste se encontram toda uma serie de termos que fazem pensar que o autor está usando uma língua própria do lugar; por exemplo, 114

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Bolaño se mostra cético diante das explicações do cronista com relação ao que considera o costume argentino da sodomia. Um costume que, na verdade, Naipaul não considerava só um mal da Argentina, mais um traço comum de vários países da região: “sodomizar a las mujeres reviste una importancia especial en la Argentina y en otros países latinoamericanos” (p. 183). Para Naipaul esse costume, expressão máxima do machismo argentino (ou latino-americano), seria herdado dos imigrantes italianos e espanhóis, o que para Bolaño é uma explicação não só “inconsistente”, mas carente “de fundamentos históricos o sociales”. Assim que Bolaño pregunta: “¿Qué sabía Naipaul acerca de las costumbres sexuales de los labriegos y terronis españoles e italianos de los últimos cincuenta años del siglo XIX y de los primeros veinticinco años del siglo XX?” (p 55). Se Naipaul é um agudo observador da realidade argentina, também é o estrangeiro que, por momentos, não consegue compreender nada. A “mala leche” [má vontade] é necessária para evitar o paternalismo ou, para usar um termo mais próximo a “El gaucho insufrible”, maternalismo. Isto é, converter o outro em objeto da compaixão ou em vítima passiva, completamente dependente da ação salvadora de um agente externo. Bolaño chama, com Borges, de “la canalla sentimental” a quem faz isso.

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“algaradas”, “bombachas”, “chiripa”, “visteo”, “pelotudo”. Assim como também se pode observar o uso do “voceo” portenho: “Me parece que precisás una compresa” (p. 51). Mas para os familiarizados com a variedade do espanhol rioplatense, a artificialidade desses recursos é evidente. O crítico argentino Daniel Altamiranda, por exemplo, diz que a frase “les hablaba de Argentina, de Buenos Aires y de la pampa” é estranha posto que o natural seria dizer – na variedade do espanhol local –: “les hablaba de la Argentina, de Buenos Aires y de la pampa” (2015, p. 25n, grifos meus). Veronica Garibotto, mais categórica, sentencia “el texto está escrito en ‘lenguaje Anagrama’ y no, como uno esperaría, en español rioplatense” (2015, p. 175). Podemos imaginar que isso tenha sido calculado por Bolaño. Intencionalmente, o escritor usaria uma máscara tão desajustada quanto às que vestem os personagens do seu conto. Uma máscara que deixa ver que quem escreve não é um argentino, mas sim alguém que se movimenta pela América Latina, examinando as diferentes expressões de experiências análogas. Experiências como a referida por Pereda, isto é, a da culpa, e também a do horror (ou do insofrível). Nesse sentido, poderiamos dizer que o conto fala da Argentina como, segundo Bolaño, fala do México, o romance Mantra de Rodrigo Fresán (escritor nascido em Buenos Aires a quem está dedicado “El gaucho insufrible”): “probablemente es el mejor libro de Fresán, un libro desmesurado, lleno de humor, en ocasiones hiperviolento, que trata, en primera instancia de México, pero que en realidad habla de Latinoamérica: México, en este caso, funciona como los ojos de Latinoamérica”116. Dizer que o romance funciona como os olhos da América Latina é dizer que ele vê o

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Bolaño faz esta afirmação em uma entrevista com Gonzalo Aguilar para a Revista Ñ, que foi titulada “El territorio del riesgo”. A entrevista está disponível em: http://edant.clarin.com/suplementos/cultura/2002/05/11/u-00601.htm. Última consulta 17 de fevereiro de 2015.

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que geralmente não se vê ou não se quer ver. Em outras palavras, que ele é como os olhos de Naipaul que se mantêm abertos diante do horror. O horror é o real latinoamericano que esfacela uma realidade que aqui, como disse Schwarz e reitera “El gaúcho insufrible”, nunca pareceu muito consistente.

Essa mesma atitude também se encontraria em História de Mayta, de Mario Vargas Llosa. Um autor que não era dos prediletos de Bolaño, mas no qual reconhece a virtude de ter escrito um romance que

se puede leer como un cuadro de una situación cultural y política no sólo peruana sino latinoamericana, la de los años que van desde finales de los 50 y principios de los 60, con las primeras luchas armadas, luchas hechas en nombre de la revolución y por tanto de la Ilustración, hasta los años 80, la época de Sendero Luminoso y las guerrillas milenaristas, en donde se desata, sobre todo en Perú, aquello que se dio en llamar el horror latinoamericano. (2004, p. 298)

 

Jorge Volpi, com algo de grandiloquência, disse que Bolaño foi o último escritor latino-americano. Certamente, é incomum que um escritor das últimas duas décadas se defina dessa maneira. Mas ao se definir assim, Bolaño não pensava que a obra dele tivesse uma representatividade continental, ou seja, que ele acreditasse naquilo que ninguém mais parece acreditar. O próprio Volpi se apressa a esclarecer que ser latinoamericano para Bolaño quería dizer “cargar acuestas” uma tradição literária, a dos chamados “escritores latinoamericanos que le irritaban y conmovían por igual, en especial esa caterva amparada bajo esa rimbombante y algo tonta onomatopeya, Boom” (2008, pp. 236-237). Na visão de Volpi, carregar essa tradição não seria tanto uma fatalidade quanto uma tarefa cientemente assumida por Bolaño, que escolheria os autores do boom como os contendores contra os quais escreveria sua obra. Bolaño rejeita o que foi objetivo de muitos dos autores do chamado boom: falar em nome de um sujeito latino-americano. A obra do escritor chileno não pretende ser a expressão literária adequada de um sujeito formado ou em vias de formação. Antes o 165

que faz é trazer a primeiro plano uma sensação de mal-estar no latino-americano, cuja origem, podemos adivinhar, estaria no que ficaria reprimido nas tentativas da formação dos estados nacionais da região. Daí que fale de culpa e que fale de horror. Ser latinoamericano para Bolaño quer dizer isso: não que acredite que os países desta parte do continente compartilhem (compartilharam ou compartilharão) uma identidade, mas sim que passaram por experiências análogas de culpa e de horror, e isto não simplesmente como produto de uma história regional, mas mundial. Talvez poderíamos estabelecer uma analogia entre a atitude de Bolaño diante do latino-americano e sua atitude diante da literatura. Apesar de não acreditar na existência de um sujeito latino-americano plenamente constituído ou em vias de se constituir, Bolaño não abandona a definição. E apesar de considerar que a literatura não está à margem da horror e da culpa, e de não acreditar que ofereça solução nenhuma para estas, não abandona a literatura. Para esclarecer este último ponto, nos deteremos em outro texto de Bolaño publicado no mesmo volumem do conto “El gaúcho insufrible”, o ensaio “Literatura + enfermedad = enfermedad”. 3.3. A literatura entre o tédio e o horror. No ensaio “Literatura + enfermedad = enfermedad”, Bolaño toma como ponto de partida a narração de uma experiência pessoal (uma de suas tantas visitas a um hospital público de Barcelona) para desenvolver uma reflexão geral sobre o que pode fazer a literatura frente à doença. A doença entendida não só como mal-estar individual, mas social. Ou melhor, sem explicitá-lo, o autor explora diferentes sentidos da doença – do somático individual ao psicossocial –, assim como diferentes formas de encará-la. Uma dessas formas é falando (escrevendo) sobre ela. Falar da doença quando se está gravemente doente, diz Bolaño – quem no momento se encontrava nesse estado –, 166

pode ser “un acto de masoquismo o de desesperación. Pero también puede ser un acto liberador” (2003, p. 136). Libertador na medida em que possibilita ao autor “escribir mal, hablar mal, […] proponerme a la compasión ajena y luego insultar a diestra y siniestra, escupir mientras hablo” (p. 137). O fato de estar à beira da morte, assim como de escrever literatura, permite ao autor dizer o que bem entende, abandonando os modos civilizados – as leis da civilidade – sem medo de punição117. Há nesse gesto uma expressão de firmeza, de vitalidade, de saúde, mas paradoxalmente limitado, porque o gesto só é possível àquele que se encontra em situação de fraqueza, impotência, doença. Com freudianismo debochado, Bolaño afirma que “follar es lo único que desean los que van a morir. Follar es lo único que desean los que están en las cárceles y en los hospitales. Los impotentes lo único que desean es follar” (p. 140). O reconhecimento livre de travas desse desejo se confronta com as possibilidades limitadas da sua realização: “Follar cuando no se tienen fuerzas para follar puede ser hernioso y hasta épico. Luego puede convertirse en una pesadilla” (p. 141). Contudo, na margem, em redutos do “incivilizado” dentro da civilização, em espaços em que se está frequentemente entre a vida e a morte – ou entre a ordem e a desordem, como disse Antonio Candido – formas não normativas de satisfação do desejo seriam possíveis. Por exemplo, nas prisões do México onde, segundo Bolaño, homens feios, maus e mal cheirosos se amam. Mas mesmo ao apontar isto, o escritor não celebra o que seria um “mundo sem culpa”, um mundo livre da carga da lei da civilização; antes poderíamos dizer que enfatiza a observação de Candido: “a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai ao crime” (1970, p. 87). Segundo Bolaño, se alguém chamasse, equivocadamente, os homens da prisão 117

Esta afirmação parafraseia uma observação de Derrida sobre a literatura que retomaremos adiante.

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mexicana de homossexuais, “ellos se enojarían tanto, se sentirían tan ofendidos, que primero violarían brutalmente al ofensor y luego lo asesinarían” (p. 141). Haveria pois uma ambiguidade na liberdade da margem da civilização, que encerra ao tempo promessas de felicidade, mas também o fácil descambo para o criminoso ou a agressão descontrolada. Uma ambiguidade que também aparece no gesto de Victo Hugo, que “era capaz de comerse una naranja entera de un solo bocado, prueba máxima de salud, según Daudet, típico gesto de cerdo, según mi mujer” (p. 141). Se por um lado temos expressões de saúde na doença como essas, que oscilam entre a explosividade e a impotência, por outra, temos seu reverso inseparável, as expressões de doença na saúde, que não consistem só em el mal y la mezquindad de cierta pequeña burguesía o de aquello que aspira a formar parte de la pequeña burguesía, sino que con el paso del tiempo y los avances del progreso encarnan, a estas alturas de la historia, a casi la totalidad de lo que hoy llamamos clase media, una clase media de izquierda o de derecha, culta o analfabeta, ladrona o de apariencia proba, gente provista de buena salud, gente preocupada en cuidar su buena salud, gente exactamente igual (probablemente menos violenta y menos valiente, más prudente, más discreta) que los dos pistoleros mexicanos que viven su amor encerrados en un penal. (p. 142).

Contra o que era essa pequena burguesia, no momento de seu auge no século XIX, teria se manifestado a poesia francesa moderna, que, a continuação, examina Bolaño. O autor volta a esse momento paradigmático não para mostrar como a literatura teria se configurado como um espaço privilegiado para desenhar alternativas à uma sociedade doente, mas, pelo contrário, para nos mostrar como ela desde o momento mesmo de seu surgimento exprimia que não quebrava, mas fazia parte dessa fita de moebios da sociedade moderna (capitalista) que articula nos seus giros doença e saúde, civilidade e incivilidade. A volta de Bolaño à poesia moderna francesa o leva, claro, à figura emblemática de Baudelaire, o “poeta da modernidade” ou do “auge do capitalismo”, segundo as conhecidas definições de Hugo Friedrich y de Walter Benjamin. Mas antes de falar do 168

primeiro poeta moderno, Bolaño se detêm no último de sua linhagem no XIX, Mallarmé. Em particular, no seu poema “Brise marine”, que cita na tradução espanhola de Alfonso Reyes:   La carne es triste, ¡ay!, y todo lo he leído. ¡Huir! ¡Huir! Presiento que en lo desconocido de espuma y cielo, ebrios los pájaros se alejan. Nada, ni los jardines que los ojos reflejan sujetará este pecho, náufrago en mar abierta ¡oh, noches!, ni en mi lámpara la claridad desierta sobre la virgen página que esconde su blancura, y ni la fresca esposa con el hijo en el seno. ¡He de partir al fin! Zarpe el barco, y sereno meza en busca de exóticos climas su arboladura. Un hastío reseco ya de crueles anhelos aún suena en el último adiós de los pañuelos. ¡Quién sabe si los mástiles, tempestades buscando, se doblarán al viento sobre el naufragio, cuando perdidos floten sin islotes ni derroteros!... ¡Más oye, oh corazón, cantar los marineros! (p.144).

Bolaño interroga sobre o significado enigmático dos dois primeiros versos, assim como da viagem de que falam os outros versos: ¿Pero qué quiso decir Mallarmé cuando dijo que la carne es triste y que ya había leído todos los libros? ¿Que había leído hasta la saciedad y que había follado hasta la saciedad? ¿Que a partir de determinado momento toda lectura y todo acto carnal se transforman en repetición? ¿Que lo único que quedaba era viajar? ¿Que follar y leer, a la postre, resultaba aburrido, y que viajar era la única salida? (p. 144-5).

E responde: Yo creo que Mallarmé está hablando de la enfermedad, del combate que libra la enfermedad contra la salud, dos estados o dos potencias, como queráis, totalitarias; yo creo que Mallarmé está hablando de la enfermedad revestida con los trapos del aburrimiento. La imagen que Mallarmé construye sobre la enfermedad, sin embargo, es, de alguna manera, prístina: habla de la enfermedad como resignación, resignación de vivir o resignación de lo que sea. Es decir está hablando de derrota. Y para revertir la derrota opone vanamente la lectura y el sexo… (p. 145, grifos do autor).

A resignação é a característica da “pequeña burguesía o de aquello que aspira a formar parte de la pequeña burguesía” assim como da quase “totalidad de lo que hoy llamamos clase media”.

Pessoas com medo de perder os pequenos privilégios

conquistados (ou que tem posibilidades de conquistar) e por isso “menos valiente, más prudente, más discreta” que “los dos pistoleros mexicanos que viven su amor encerrados en un penal” (p. 142). A resignação pode ser compreendida como acômodo 169

a uma realidade que se defende a todo custo; e um dos custos é “el aburrimiento”, o tédio (l'ennui ou spleen), que – como disse Benjamin – “anula o interesse e a receptividade” (1989, p. 103). Por isso, o tédio fecha a possibilidade de se abrir a uma diferença ou uma mudança em sentido forte e garante permanência na mesmice. Mallarmé, nos diz Bolaño, teria tentado sair desse estado de coisas por meio dos livros e da carne, ou seja, da literatura e do sexo, duas formas de sair de si ao encontro de um outro (no caso da literatura, isto acontece no ato de escrever ou de ler). Mas nesses caminhos não teria encontrado saída nenhuma, assim que declara que para ele o único que fica é viajar. Ao afirmar isso, Mallarmé renunciaria à “coartada perfecta” que seria dizer que o único que “queda por hacer es rezar o llorar o volverse loco” (p. 146). Mas o poeta, em vez disso, afirma que o único que fica é viajar, que “en una escala jerárquica, es el primer peldaño de cierto aprendizaje poético. El segundo peldaño es el sexo y el tercero los libros. Lo que convierte la elección mallarmeana en una paradoja o bien en un regreso, en un volver a empezar desde cero” (p. 146). Esse voltar ao começo não faria sentido, posto que já Baudelaire tinha escrito que a viagem também não levava para nenhuma saída, e “la posibilidad de que Mallarmé no haya leído a Baudelaire está fuera de toda consideración” (p. 155). Mallarmé coloca, portanto, um enigma, que Bolaño tentará esclarecer ao final de seu ensaio. Antes o escritor se detém no poema aludido de Baudelaire, “Le voyage”, do qual diz que é “un poema enfermo, un poema sin salida, pero acaso el poema más lúcido de todo el siglo XIX” (p. 147)118. Nesse poema se encontram os seguintes versos, na tradução espanhola do poeta Antonio Martínez Sarrión citada por Bolaño,   

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¡Saber amargo aquel que se obtiene del viaje! Monótono y pequeño, el mundo, hoy día, ayer, Como vimos, a lucidez era também uma virtude que destacava Bolaño em Naipaul. Os grandes escritores seriam lúcidos, ou seja, não se entregariam a fáceis consolos ou autoenganos.

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Mañana, en todo tiempo, nos lanza nuestra imagen: ¡En desiertos de tedio, un oasis de horror! (p. 151).

Segundo o autor de Los detectives salvajes, com esse último verso, la verdad, ya tenemos más que suficiente. En medio de un desierto de aburrimiento, un oasis de horror. No hay diagnóstico más lúcido para expresar la enfermedad del hombre moderno. […] En un oasis uno puede beber, comer, curarse las heridas, descansar, pero si el oasis es de horror, si sólo existen oasis de horror, el viajero podrá confirmar, esta vez de forma fehaciente, que la carne es triste, que llega un día en que todos los libros están leídos y que viajar es un espejismo. Hoy, todo parece indicar que sólo existen oasis de horror o que la deriva de todo oasis es hacia el horror. (p. 151-152).

Baudelaire já advertiria, então, que toda tentativa de fugir do tédio conduzia ao oásis de horror. Um oásis não é uma saída do deserto, mas é uma parte do deserto. Os oásis de horror podem ser compreendidos como algo que brota do próprio deserto e é funcional à sua existência. Bolaño reformula assim algo que aparece também no conto “El gaúcho insufrível”, do mesmo livro: não há um fora onde fugir. O assunto, de fato, será continuamente explorado por Bolaño em suas obras, por exemplo, no seu descomunal romance 2666, que não por acaso tem como epígrafe os citados versos de Baudelaire: “Un oasis de horror en medio de un desierto de aburrimiento”. 2666 está cheio de encontros sexuais, literatura e viagens que só levam a esse oásis. Como é sabido, as ações principais do livro transcorrem em Santa Teresa, uma cidade da fronteira entre o México e os Estados Unidos, onde três críticos literários procuram Benno von Archimboldi, um enigmático e grande escritor alemão (grande tanto em sua qualidade literária quanto na sua estatura física), e, simultaneamente, a polícia procura o responsável dos assassinatos de mulheres que acontecem diariamente no lugar. Como explica Gabriela Muniz, “Santa Teresa es el nombre ficticio de una ciudad que se corresponde en gran medida a Ciudad Juárez. Santa Teresa es el nombre de un barrio en los suburbios de Ciudad Juárez donde la violencia y la impunidad no tienen límites, de ahí que el nombre sirva como una metonimia apropiada para referirse a Ciudad Juárez” (2010, pp. 37-38). 171

Com habilidade, Bolaño vincula, na narração, a Santa Teresa atual com outros tempos e lugares em que se produziram também a eliminação sistemática de grupos sociais como as ditaduras do cone Sul (Amalfitano, um professor da universidade de Santa Teresa, é um exilado chileno) e a Primeira e a Segunda Guerra Mundial (na primeira participou o pai de Archimboldi e na segunda, Archimboldi, que no momento usava ainda seu verdadeiro nome, Hans Reiter). O que traz a primeiro plano esses vínculos é que em Santa Teresa, que faz parte de um estado democrático, é um lugar em que se dá uma suspensão da lei e tudo é possível como nos centros de detenção das ditaduras ou nos campos de concentração nazi. Nesse sentido, o livro serve de ilustração da famosa tese de Benjamin retomada por Giorgio Agamben: “o estado de exceção [...] tornou-sea regra” (Benjamin apud Agamben, 2004, p. 18)119. Aliás, o amplo espectro geográfico pelo que se movimenta o romance mostra como o que acontece em Santa Teresa não é um fato isolado, mas um produto do capitalismo global. Santa Teresa é uma cidade caracterizada pelo trânsito de pessoas e mercadorias, onde se gera uma enorme quantidade de riqueza e uma quantidade de dejetos, entre eles os corpos de milhares de mulheres. Como diz uma personagem, a cidade tem tudo: fábricas, maquiladoras, un índice de desempleo muy bajo, uno de los más bajos de México, un cártel de cocaína, un flujo constante de trabajadores que vienen de otros pueblos, emigrantes centroamericanos, un proyecto urbanístico incapaz de soportar la tasa de crecimiento demográfico, tenemos dinero y también hay mucha pobreza, tenemos imaginación y burocracia, violencia y ganas de trabajar en paz. (2008, p. 362).

É pela própria dinâmica de funcionamento de Santa Teresa que as mortes de mulheres não param, mesmo que os policiais – ainda que a maioria sem muita vontade – procurem o assassino serial e achem os responsáveis de alguns casos particulares. A 119

No seu livro Agamben se apoia em algumas colocações de Herbert Tingsten, para quem “A Primeira Guerra Mundial - e os anos seguintes aparece [...] como laboratório em que se experimentaram e se aperfeiçoaram os mecanismos e dispositivos funcionais do estado de exceção como paradigma de governo” (2004, p. 19).

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questão é que o assassino serial das mulheres não é um indivíduo ou uma série de indivíduos, mas a estrutura social. O que desmascara o não aparecimento do assassino em 2666 é o que Zizek chama de violência sistêmica, aquela que fica oculta pelas manifestações mais óbvias da violência com que a mídia nos bombardeia diariamente: “Estamos hablando aquí de la violencia inherente al sistema: no solo de violencia física directa, sino también de las más sutiles formas de coerción que imponen relaciones de dominación y explotación, incluyendo la amenaza de la violencia” (2009, p. 20). Em 2666 Bolaño se propôs narrar os dejetos do capitalismo global como Baudelaire fez com os do capitalismo do século XIX120. Ou seja, se propôs falar do horror, mas ao fazer isto teve de enfrentar um paradoxo, que a sua maneira também enfrentou Baudelaire: como escrever sobre aquilo que resiste à escrita? Benjamin apontava que o problema de Baudelaire era como escrever poesia para leitores “afeitos ao spleen (melancolia), que anula o interesse e a receptividade”, e a partir “da experiência da vida normatizada, desnaturada das massas civilizadas” (1989, p. 103). Essas perguntas já antecipavam a questão adorniana: como escrever poesia depois de Auschwitz? Adorno afirmou que “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que se tornou impossível escrever poemas” (1998, p. 26). Citada geralmente de forma errônea, costuma-se interpretar esta passagem como se Adorno estabelecesse uma proibição: é proibido escrever poemas depois de Auschwitz. Essa proibição, claro, seria supérflua porque, como diz Zizek, não é preciso proibir o que não pode ser feito (2008, p. 27). Mas 120

Eles são, no caso de Baudelaire, na enumeração de David Jiménez, “la mendiga adolescente ‘cuya ropa entre los rotos permite ver la pobreza y la hermosura’ (A una mendiga pelirroja), los monstruos decrépitos que un día fueron bellas mujeres (Las viejecitas), los espectros encorvados y andrajosos que pululan por la ciudad hormigueante (Los siete viejos), el proletario agobiado por el trabajo al cual devuelve el vino dominguero en la taberna las esperanzas en un mundo mejor (El alma del vino), el bebedor solitario, el jugador, el asesino y hasta la malabaresa de finos pies desnudos que aún no ha llegado a la ciudad, pero ya el poeta le advierte lo que le aguarda: ‘cuando el brutal corsé oprima tus flancos y tengas que buscar tu cena en nuestros lodos y vender el perfume de tu exótico encanto’ (A una malabaresa)” (2004, pp. 4 - 5).

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Adorno não estava proibindo escrever poemas. O que disse é que escrever poemas depois de Auschwitz é um ato de barbárie; e com escrever poemas queria dizer, como ele próprio esclareceu depois, “escrever bem, literariamente falando” (1993, p. 7). O que Adorno afirma sobre o poeta é análogo do que afirma sobre o narrador, cuja posição se caracterizaria também “hoje por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija narração” (2003, p. 55). O poeta não pode escrever poesia, o narrador não pode narrar. O que está em jogo nestas colocações paradoxais para Adorno é a questão de como escrever sem transformar “a real brutalidade” em objeto de contemplação estética ou, o que tem vido a significar o mesmo, de consumo. Daí que, em seu ensaio sobre o narrador, cite autores (Kafka, Proust, Rilke) que responderam à situação atacando a distância estética. Ao atacar a distância estética, esses narradores (como também fariam os poetas ao não estetizar, ao não escrever belamente sobre o horror) impediriam a contemplação ou, para empregar a feliz formulação de Gianni Vattimo, a observação, palavra que tanto em português como em italiano tem pelo menos dois significados: “olhar” e “obedecer”. Observar (contemplar) a realidade é acatar a realidade (2009, pp. 9-10). Bolaño se defronta também com esta questão, mas sua solução já não será a dos narradores mencionados por Adorno. Como assinala Gabriela Muniz, em 2666, o escritor narra as mortes das mulheres empregando linguagem forense que muitas vezes encontramos nos jornais. A característica dessa linguagem é que “posibilita comentar eventos no reproducibles en el lenguaje cotidiano por su fuerte impacto emocional” (2010, p. 36). A linguagem forense, com sua “objetividade científica”, faz com que o leitor não se sinta emocionalmente afetado pelos fatos narrados. Por isso, o leitor dificilmente se sente comovido pelas descrições das mulheres mortas em 2666. Só que Bolaño combina essa linguagem com as imagens do desinteresse (tédio) dos habitantes 174

de Santa Teresa por centos de páginas, de tal forma que traça um gigantesco quadro de indiferença no qual o leitor pode se reconhecer: El último caso del año 1997 fue bastante similar al penúltimo, sólo que en lugar de encontrar la bolsa con el cadáver en el extremo oeste de la ciudad […]. La víctima, según los forenses, llevaba mucho tiempo muerta. De edad aproximada a los dieciocho años, medía entre metro cincuentaiocho y metro sesenta. El cuerpo estaba desnudo, pero en el interior de la bolsa se encontraron un par de zapatos de tacón alto, de cuero, de buena calidad, por lo que se pensó que podía tratarse de una puta. También se encontraron unas bragas blancas, de tipo tanga. Tanto este caso como el anterior fueron cerrados al cabo de tres días de investigaciones más bien desganadas. Las navidades en Santa Teresa se celebraron de la forma usual. Se hicieron posadas, se rompieron piñatas, se bebió tequila y cerveza. Hasta en las calles más humildes se oía a la gente reír (pp. 790-791).

Antes do que tentar transmitir o horror na sua obra – de procurar mecanismos para reproduzir o impacto traumático inenarrável –, o que Bolaño faz é retratar as formas como o horror se dilui. Isto, porque se para o escritor falar do horror era preciso, seria também – como para Adorno – impossível. No ensaio “Literatura + enfermedad = literatura” é apontada essa impossibilidade. No apartado “Enfermedad y documental”, Bolaño faz referência a um documentário produzido pela televisão da Alemanha ou da França sobre um artista de Nova Iorque que sabe que vai morrer e decide filmar sua morte. Ao final do documentário, “una voz, la del narrador francés o alemán, se despide del neoyorquino y luego, cuando la escena se funde en negro, dice la fecha de su muerte, pocas semanas después” (p. 154); a câmera do artista de Nova Iorque “por el contrario, sigue paso a paso su agonía, pero eso ya no lo vemos, sólo podemos imaginarlo, o fundir la imagen en negro y leer la aséptica fecha de su muerte, porque si lo viéramos seríamos incapaces de soportarlo” (p. 154). Ainda que Bolaño afirme que não poderíamos suportar a imagem da morte do artista, o que nos dizem suas obras literárias é que o problema não é exatamente esse: o problema é que já não há cabimento para o horror, ou não para um horror mais que momentâneo, posto que não há nada que não possa ser transformado em espetáculo. Converter o horror em espetáculo quer dizer transformá-lo em uma imagem de 175

consumo, em mercadoria. Uma imagem que se esgota rapidamente e que faz parte do fluxo de imagens sem nexo e substituíveis com que nos enfrentamos diariamente. Por isso o espetáculo não provoca transformações, mas o contrário. Como diz Guy Debord, a realidade desdobrada no espetáculo se transforma em “objeto de pura contemplação” (1997, p.13), ou – podemos acrescentar, retomando a formulação de Vattimo referida anteriormente – da pura “observação”. Que o horror é una forma do espetáculo – isto é, uma imagem consumível, uma mercadoria – o mostra, por exemplo, as filmagens de mortes reais ou filmes snuff, dos quais se faz uma longa referência em 2666. Outro exemplo que nos oferece o romance é o do artista Edwin Johns. Johns está internado numa casa de repouso na Suíça, onde chegou depois de ter amputado sua própria mão e tê-la colocado num quadro. Apesar de estar numa casa de repouso, Johns não está louco; pelo contrário, mostra uma extrema lucidez. Ele não amputou a mão como Van Gogh amputou a orelha, ou seja, por causa de uma crise. Quando indagado pelos motivos desse ato, ele responde sinceramente: por dinheiro. Fora a literatura de Bolaño, um exemplo óbvio da espetacularização do horror o oferecem nossos meios de comunicação. O jornal O Globo do Rio de Janeiro, por exemplo, logo após o massacre de crianças em Realengo, em 2011, exortava aos leitores de sua página de internet que enviassem imagens do ocorrido com as seguintes palavras: “Você presenciou a tragédia de Realengo? Envie seu relato, fotos e vídeos”. E o mesmo pedia uma página de UOL notícias quando aconteceu o terremoto do Haiti em 2010121.

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“Você está no Haiti ou conhece alguém que esteja no país? Mande seu relato, fotos e vídeos para o UOL”. O site com este comentário ainda está disponível em http://noticias.uol.com.br/ultnot/internacional/2010/01/13/ult1859u2203.jhtm. Última consulta 17 de fevereiro de 2016.

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Que hoje não conheçamos outra linguagem que não seja a do espetáculo para narrar as que deveriam ser nossas experiências mais traumáticas é o que nos sugere o conto “El retorno”, do livro Putas asesinas (2001), em que o narrador nos diz que seu regresso da morte se deu exatamente como ocorre numa das piores cenas de Ghost: Como tantas otras personas yo también fui a ver Ghost, no sé si la recuerdan, un éxito de taquilla, aquella con Demi Moore y Whoopy Goldberg, esa donde a Patrick Swayze lo matan y el cuerpo queda tirado en una calle de Manhattan, tal vez un callejón, en fin, una calle sucia, mientras el espíritu de Patrick Swayze se separa de su cuerpo, en un alarde de efectos especiales (sobre todo para la época), y contempla estupefacto su cadáver. Bueno, pues a mí (efectos especiales aparte) me pareció una estupidez. Una solución fácil, digna del cine americano, superficial y nada creíble. Cuando me llegó mi turno, sin embargo, fue exactamente eso lo que sucedió (p. 130).

De fato, a sobrevida de Bolaño tem sido assim, espetacular. Depois de morto ele virou uma excelente mercadoria, pois a indústria editorial soube aproveitar sua imagem de escritor rebelde que morreu antes do tempo. Como já se disse, é bem provável que isto não tivesse espantado o autor que se mostrava muito ciente dos vínculos entre literatura e mercado. Longe de pretender ocultá-los, se referiu a eles repetidamente tanto na suas obras como fora delas. Por exemplo, quando falou sobre os motivos pelos quais passou a escrever mais narrativa que poesia: “nunca he dejado de escribir poesía. Lo que pasa es que cada día escribo menos poesía por razones obvísimas: el dinero lo gano con la prosa” (BOLAÑO Apud HERRALDE, 2005, p. 63). Um conto emblemático sobre o tema é “Sensini”, que trata sobre um escritor de talento que mora com sua família em um diminuto apartamento de um “barrio desangelado de Madrid” e que ganha a vida concorrendo em concursos literários de província, aos quais muitas vezes envia o mesmo texto com diferente nome. Como é sabido, participar de concursos literários para se ganhar a vida, foi algo que o próprio Bolaño fez. Aliás, também sabemos que o escritor escreveu 2666 com a urgência de ter que assegurar um futuro para sua família.

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Mesmo tendo dirigido constantemente críticas aos autores que escreviam obras de fácil compreensão para poder vender mais, Bolaño sabia não estar em nenhum espaço diferente do deles, livre de condicionamentos. Isto nos leva de volta a “Literatura + enfermedad = enfermedad” em que Bolaño nos lembra que já Baudelaire dizia que só haviam oásis de horror em um deserto de tédio. Como antes apontamos, ao retornar a poesia moderna francesa, Bolaño retorna ao momento em que a literatura passa a ser compreendida predominantemente como autónoma. Hugo Friedrich, que parte de Baudelaire em seu estudo da lírica moderna, mas que também considera alguns “preâmbulos” dele, afirma que já com o romantismo francês  a fórmula usada, ainda em 1801, por Mme. De Stäel, segundo a qual a literatura seria a expressão da sociedade, perde seu sentido. A literatura repete o protesto da Revolução contra a sociedade vigente, torna-se literatura de oposição ou uma literatura do “futuro”, afinal, uma literatura da segregação, com crescente orgulho pelo isolamento (1978, p. 31).

Mas se Bolaño recupera este momento, não é para afirmar que efetivamente a poesia moderna era um espaço independente e, por isso, adequado para a crítica da sociedade e para imaginar alternativas a ela. Pelo contrário, será para mostrar que os grandes poetas modernos na sua tentativa de segregação e isolamento da sociedade se deram conta de que não existiam “foras”, mas só oásis de horror que são parte funcional do deserto de tédio. Em outras palavras, Bolaño retorna ao momento em que passa a ser predominante o conceito de autonomia, para mostrar um outro lado dele ou, o que é o mesmo, um outro lado da literatura. Um lado menos esperançoso. Retornar ao momento que passa a ser predominante o conceito de autonomia é voltar aos inícios da literatura, porque esta é indissociável daquele. Ao falar em “literatura” pensamos aqui em um conceito especificamente moderno, seguindo a interpretação de autores como Derrida, que afirma: “O conjunto de leis ou convenções que fixaram aquilo que chamamos de literatura na modernidade não era indispensável 178

para a circulação das obras poéticas. Parece-me que as poesias grega ou latina, as obras discursivas não europeias, não pertencem, em sentido estrito, à literatura”. (1992, p. 40) Para compreender melhor a posição de Bolaño em “Literatura + enfermedad = enfermedad”, é preciso lembrar aqui, mesmo que seja de forma extremadamente rápida e parcial, alguns detalhes da história dessa “estranha instituição chamada literatura”, como a define Derrida, assim como de alguns dos questionamentos que se tem feito a ela. 3.4. Pequeno verbete sobre o conceito de literatura O conceito de literatura parece ter se consolidado no século XVIII na Europa, como a própria modernidade. Rene Wellek, na entrada “Literature” do Dictionary of the History of Ideas122, lembra-nos que no século XVII e XVIII a concepção da tarefa da poesia em termos puramente didáticos e miméticos perdeu força. Nesse momento, a poesia lírica passa a ser valorada como central em detrimento do drama e da épica, como provariam os comentários de escritores como “J. G. von Herder na Alemanha, G. Leopardi na Itália e J. S. Mill na Inglaterra”, que defendem a superioridade da poesia lírica “em termos não raro extravagantes”. Como sabemos, por outros especialistas, estamos às portas do romantismo na Europa, quando “imaginação” é uma das palavras que passa a definir a lírica, que então é entendida como contraposta à razão científica, cujas limitações – de alguma maneira – superaria123. No mesmo período – continua Wellek – se produz a valorização do romance, um gênero antes desdenhado. A palavra literatura permitiria, então, reunir em uma mesma denominação esse gênero agora apreciado junto com as outras formas da prosa e com a poesia. 122

A versão completa do Dictionary of the History of Ideas está disponível para consulta no site: http://onlinebooks.library.upenn.edu/webbin/book/lookupid?key=olbp31715. Última consulta 23 de novembro de 2015. 123 Nesse sentido veja-se, por exemplo, o clássico estudo de H. M. Abrams O espelho e a lámpada.

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Como diz Wellek, uma das razões que comumente será usada para defender tal agrupamento é que todos esses gêneros falam de “ficções” ou de produtos da “imaginação”, posto que “as afirmações de um romance, um poema ou um drama não são literalmente verdadeiras; elas não são proposições lógicas”, mesmo que tenham por referente o chamado “mundo real”. “Incluso na subjetividade lírica o ‘eu’ do poeta é um ‘eu’ dramático e ficcional”. A aceitação deste argumento – que apropria e reelabora algumas concepções clássicas sobre os gêneros tradicionais, como a concepção aristotélica de verossimilhança – fica evidente no fato de que o termo “ficção” tenha chegado a funcionar como sinônimo de literatura. Italo Calvino, por exemplo, escreve no início de Seis propostas para o próximo milênio: “é perfeitamente natural que eu, escritor de fiction, inclua no mesmo discurso poesia em versos e romance” (1990, p. 9).   Ficção neste caso não se refere a qualquer tipo de divagação fantasiosa, mas ao produto de uma imaginação educada, uma imaginação que segue critérios estéticos. Daí que, como também observa Wellek, a visão de que existe uma arte particular da literatura que inclui tanto a poesia como a prosa enquanto “imaginativa” e que, portanto, excede o discurso informativo, os dados científicos e mesmo a persuasão retórica […] era evidentemente impossível antes de ser colocado o problema central da estética, antes mesmo da invenção do termo por Baumgarten em 1735, com a discussão do gosto, do je ne sais quoi, da virtù, da imaginação, do gênio e com o próprio termo “belles lettres”.

Com Baumgarten e, principalmente, com Kant essas discussões se transformam no “projeto de uma ciência específica ou uma filosofia da beleza que enfatiza o caráter desinteressado e universal da resposta humana a ela” (Pécora, p. 1306). Por isso, no princípio da modernidade, a literatura parece um espaço de valores elevados no meio de uma sociedade cada vez mais obcecada pelo material e o prático124. O elevado não está nos temas (que agora podem ser os mais corriqueiros e reles), mas na forma como estes 124

Por outra parte, como aponta diz Vicent Pécora, “a ideia de que a literatura se refere em primeiro lugar a um tipo particular de escrita –imaginativa– também quis dizer que a palavra podia significar uma ocupação profissional particular” (p. 1306).

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são tratados. Em autores como Baudelaire e Flaubert – exemplos por excelência de escritores modernos – é observável isso: por um lado, a consideração da literatura como um valor supremo, algo que está acima dos valores predominantes na sociedade moderna (e, portanto, digno dos maiores esforços); por outro, na sua obra tocam os aspectos menos “dignos” dessa sociedade. Como sabemos, na França de meados do século XIX, tocar em tais aspectos ainda era capaz de provocar escândalo e ambos os autores foram processados por isso; mas a visão predominante desde então será a defendida pelo advogado de Baudelaire, cujos argumentos foram lembrados recentemente por Dolores Gil em um artigo da Revista Ñ da Argentina:

La poesía de Baudelaire es sublime, dice Chaix D´est Ange, incluso cuando pinta los horrores menos pensados. “Lesbos” y “Mujeres condenadas”, dos de los poemas más problemáticos para el tribunal, son para el defensor, desde el punto de vista poético, dignos del más alto elogio. El abogado parece intuir que hay en la poesía una fuerza, algo que no es de este mundo, y cuando se le agotan los argumentos dice: “Oigan. Escuchen qué versos. ¿Quién puede condenar a un poeta como éste?” En efecto, este tribunal lo condenó, aunque no por el cargo de ofensa a la moral religiosa, pero sí por ofensa a la moral pública y a las buenas costumbres.125    

O advogado de Baudelaire defende a posição moderna de que a literatura pode dizer o que quiser, sendo o único julgamento pertinente a respeito o estético. É por isso que o surgimento da literatura implica uma nova legislação, que vai além do estabelecimento dos direitos autorais. Nas palavras de Derrida, “a instituição da literatura no Ocidente, na sua forma relativamente moderna, está vinculada a uma autorização para dizer tudo” (p. 37). É por esse direito que a literatura vai ser considerada um espaço privilegiado de crítica da sociedade moderna; além de ser vista também, por permitir o livre voo da imaginação, como um espaço privilegiado para a

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O artigo de Dolores Gil, “El juicio a los malditos”, está disponível http://www.revistaenie.clarin.com/literatura/Flaubert-Baudelaire-Madame-Bovary-Floresmal_0_593940634.html. Ultima consulta 23 de fevereiro de 2015.

no

site

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construção de imagens alternativas dela. Ou, como diriam os românticos, para a transfiguração do real pelos poderes da imaginação. 3.5. Josefina a cantora e as duvidosas benesses da autonomia artística Pouco antes de morrer, Kafka escreveu um conto em que trata desses privilégios da arte: “Josefina, a cantora ou o povo dos camundongos”. Sobre Josefina, a artista da sacrificada sociedade dos ratos, em que “uma geração […] empurra a outra” e em toda geração tem vida efêmera, o narrador diz que ela parece estar “acima da lei, que lhe é permitido fazer o que quer, mesmo quando põe em perigo a comunidade, e que tudo lhe é perdoado” (1984, p. 29). Josefina parece gozar de uma liberdade “a ninguém mais assegurada, e que na verdade contraria as leis” (p. 29). Contudo, segundo o rato narrador, isto não é mais do que uma aparência e, portanto, também o é a pretendida superioridade da arte de Josefina. Ainda que o narrador chegue a reconhecer que o assobio de Josefina “está liberado das cadeias da vida cotidiana e nos liberta também por um curto espaço de tempo” (p. 28), nem por isso, para ele, seu assobio é mais do que um simples assobio e ninguém pode assegurar que ele seja canto ou música. De fato, seria um erro colocar esse assobio acima do assobio que “um trabalhador comum da terra […] emite sem esforço o dia inteiro enquanto realiza o seu trabalho” (p. 21). Assim o conto coloca em dúvida a questão do desinteresse e universalidade da arte: o que para uns é a música mais bela para outros não é mais do que um assobio de rato. Um determinado grupo social seria quem define o que conta como arte e que não. Como lembra Canclini – citando Bourdieu – o pretenso desinteresse da arte leva a que esta seja apropriada como elemento de distinção e, portanto, de dominação:

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Ante la relativa democratización producida al masificarse el acceso a los productos [en la modernidad], la burguesía necesita ámbitos separados de las urgencias de la vida práctica, donde los objetos se ordenen –como en los museos– por sus afinidades estilísticas y no por su utilidad. […] La separación del campo del arte sirve a la burguesía para simular que sus privilegios se justifican por algo más que la acumulación económica (1990, pp. 36 - 37).

Assim como Josefina diz ter direito a privilégios sobre os demais ratos trabalhadores, cujos assobios considera de menor valor, sabemos que os ingleses usaram Shakespeare e Milton para defender seus privilégios na Índia colonial, colocando esses autores acima das narrativas locais (Bassnett, pp. 17-20). Ou seja, como elemento de distinção da cultura europeia frente as culturas colonizadas. A história colonial nos mostra que a literatura, hoje, é universal não porque consagra valores universais, mas simplesmente porque ela se universalizou, junto com a modernidade europeia. E como as outras instituições modernas (a democracia, por exemplo), ela chegou da Europa nos outros lugares se apresentando como um instrumento crítico e emancipador, mas ao mesmo tempo, como um mecanismo de dominação. E sobre isto último ainda é possível dizer algo mais. A questão que levanta o narrador do conto de Kafka a respeito de se o assobio de Josefina é mais do que um assobio também lembra a questão de se o mictório de Duchamp é algo mais do que um mictório. O que mostrou Duchamp é que aquilo que chamamos arte não depende de qualidades intrínsecas ao objeto, mas da forma e do lugar em que ele aparece na sociedade, de seu lugar institucional. Algo que, anos depois, Stanley Fish colocaria em relação à literatura no seu ensaio “How to recognize a poem when you see one”, no qual conta que tem observado que os alunos de literatura assumem que uma lista de nomes é um poema e fazem uma leitura dela como tal pelo só fato de estar escrita no quadro.

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É justamente por ocupar um lugar institucionalizado que o rato narrador de Kafka afirma, com razão, que só em aparência Josefina “contraria as leis”, ainda que seja verdade que ela tem privilégios. Josefina não faz mais do que a lei lhe permite, sua ruptura da lei é prevista pela própria lei. Como diz Mladen Dolar, na sua interpretação do conto, a voz de Josefina “que abre uma brecha na continuidade sem costuras da lei, é traída e destruída pela própria condição da arte, que a reintroduz e fecha o espaço aberto” (p. 324). A questão aqui é a mesma colocada por Néstor García Canclini em Culturas híbridas:

¿Cuál es entonces la función social de las prácticas artísticas? ¿No se les ha asignado – con éxito – la tarea de representar las transformaciones sociales, ser el escenario simbólico en que se cumplen las transgresiones, pero, dentro de instituciones que demarcan su acción y eficacia para que no perturben el orden general de la sociedad (p. 49).

A literatura, e as artes em geral, portanto, poderiam ser consideradas espaços de controle na sociedade moderna semelhantes aos manicômios: o louco pode dizer tudo, mas tem de ser no hospício. Se, por um lado, a literatura tem o direito de dizer tudo; por outro, o que ela diz sempre pode ser considerado só “literatura” ou só “ficção”. Daí a advertência de Derrida: o “poder revolucionário da literatura pode converter-se em um poder muito conservador” (p. 12). E não surpreende que o conto de Kafka termine com um comentário irônico sobre a desaparição de Josefina: “Possivelmente, portanto, não sentiremos muita falta” (p. 33). 3.6. A literatura e o irremediável  

“Quizá nosotros no perdamos demasiado, después de todo” é a tradução para o espanhol da mesma passagem, tal e como aparece na epígrafe do livro El gaucho insufrible, que inclui o ensaio “Literatura + enfermedad = literatura”. No começo deste, como vimos, Bolaño se refere a liberdade que se tem de falar quando se está à

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beira da morte126 e desde a literatura, mas para sublinhar a situação de impotência em que se produz essa liberdade. Ao longo do ensaio, a literatura aparecerá como um dos oásis de horror no meio do deserto de tédio. Um desses oásis que antes que um fora são partes constituintes e funcionais do deserto. O horror que se pode sentir diante da literatura resulta, sem dúvida disto, de descobrir o quanto pode ser conservadora apesar de sua aparência transgressora. Mas a palavra “horror” parece indicar algo mais ainda. Apontar para a violência que há na sua constituição como espaço privilegiado de fala. A literatura é um oásis de horror porque antes de ser um espaço alternativo à violência, se fundaria nela e favoreceria sua reprodução. Assim o sugere insistentemente Bolaño na suas obras. Em uma delas, o narrador, um brilhante crítico literário pertencente ao Opus Dei, participa de reuniões literárias na companhia de escritores (alguns deles de esquerda), enquanto no porão da mesma casa são realizada sessões de torturas de presos políticos (Nocturno de chile). Em outro de seus romances, um dos protagonistas é um escritor de vanguarda que escreve poemas no céu com a fumaça de um avião e faz uma exposição com fotos de restos de cadáveres de pessoas que ele próprio assassinou (Estrella distante). Ele é só um dos escritores nazis da América cujo catálogo completo temos em outro livro de Bolaño (La literatura nazi em América). E ainda poderíamos mencionar os críticos literários de 2666 que pouco se importam com as mortes de mulheres em Santa Teresa. Como diz Ignacio López Vicunha, nas obras de Bolaño, “todo comienza con talleres literarios y poesía, y termina com asesinatos, tortura y violencia, ya sea en el desierto del norte de México o en los bosques del sur de Chile” (p. 200). Na visão deste crítico: “Bolaño muestra las huellas de la violencia política en la literatura, pero no concibiendo la escritura como resistencia frente a la

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Bolaño diz que depois de falar com seu médico, que só tem más notícias para lhe dar, a visão que tem do hospital é a de um manicômio (p. 138). Quem está à beira da morte se encontra em uma posição próxima da loucura.

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violencia, sino como su reverso íntimo” (p. 202). Ou seja, se em Bolaño tudo começa em literatura e termina em violência é porque, para ele, o processo funciona também no sentido inverso: tudo começa em violência e termina em literatura. Tiago Pinheiro, em sua tese de doutorado, em que faz uma análise minuciosa dos vínculos de violência e literatura na obra de Bolaño – da violência que torna possível a literatura e que a literatura, por sua vez, torna possível – aponta que, justamente por mostrar esses vínculos, se poderia pensar que o mais coerente seria que o autor concluísse que a literatura devia ser abandonada, algo que Bolaño não fez, ainda que chegue a flertar com a possibilidade. Para Pinheiro, o escritor não dá este passo porque reconhece que não há um lugar de enunciação verdadeiro ou transparente pelo qual possa deixar a literatura (2014, pp.27 -28). A observação nos ajuda a entender o final de “Literatura + enfermedad = enfermedad”, onde, como vimos, Bolaño pergunta como Mallarmé podia afirmar que depois de não achar saídas nos livros e na carne, para ele, só ficaria a viagem, se sobre a viagem já tinha escrito Baudelaire que também não leva a lugar nenhum; e optar pela viagem seria optar por fazer de novo o caminho de “cierto aprendizaje poético”, ou seja, seria refazer o caminho da literatura. A explicação que oferece Bolaño para o interrogante é que

Mallarmé quiere volver a empezar, aun a sabiendas de que el viaje y los viajeros están condenados. Es decir, para el poeta de Igitur no sólo nuestros actos están enfermos sino que también lo está el lenguaje. Pero mientras buscamos el antídoto o la medicina para curarnos, lo nuevo, aquello que sólo se puede encontrar en lo ignoto, hay que seguir transitando por el sexo, los libros y los viajes, aun a sabiendas de que nos llevan al abismo, que es, casualmente, el único sitio donde uno puede encontrar el antídoto (p. 155).

O que teria entendido Mallarmé também o teria o autor da epígrafe do El gaucho insufrible, Kafka. Bolaño termina seu ensaio lembrando um comentário de Caneti sobre Kafka, segundo o qual este último teria compreendido “que ya nada le separaba de la

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escritura el día en que por primera vez escupió sangre”. Para Bolaño, esta afirmação, que reconhece em parte ilegível, quer dizer

que Kafka comprendía que los viajes, el sexo y los libros son caminos que no llevan a ninguna parte, y que sin embargo son caminos por los que hay que internarse y perderse para volverse a encontrar o para encontrar algo, lo que sea, un libro, un gesto, un objeto perdido, para encontrar cualquier cosa, tal vez un método, con suerte: lo nuevo, lo que siempre ha estado allí. (p. 155)

A beira da morte, sabendo que já não havia remédio que o pudesse curar, Kafka compreenderia que o único que lhe restava era escrever. Escrever não porque essa fosse uma via de salvação para sua vida, mas para encontrar o novo. O novo seria aquilo que só poderia aparecer levando até o limite a escrita e a própria vida. Pinheiro se refere a esse levar até o limite, em Bolaño, como a colocação em questão (desconstrução) do próprio lugar de enunciação “para imaginar um outro, para pensar no outro da literatura, numa outra forma de partilhar e fazer circular a linguagem, as marcas, a memória e a existência” (p. 28). A viagem, o sexo e a literatura não levam a nenhum fora do deserto de tédio e seus oásis de horror, posto que não há foras. Mas são caminhos que seria necessário refazer (fazer de novo, de um modo que não é exatamente o de antes), indo neles até o limite, até o ponto de desafiar as formas subjetivas que conformam o deserto de tédio e seus oásis de horror para que algo novo apareça aí mesmo. O novo, possibilidades outras que sempre estiveram ali. Por isso, se Bolaño assume sua localização nos espaços da literatura e da América Latina, não é para reafirmá-los, mas na tentativa de fazer aparecer seus limites, de pensá-los desde o limite. Isto é algo que é preciso lembrar hoje quando o autor tem ganho o duvidoso título do último grande escritor de literatura latino-americana.

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4. O COMPLÔ LITERÁRIO-ESTATAL DE MACEDONIO FERNÁNDEZ 4.1. Macedonio depois de tudo Depois de um capítulo dedicado a Guimarães Rosa e outro dedicado a Roberto Bolaño pode causar estranheza que este último capítulo não proponha a análise de textos de um escritor posterior a eles. Para os objetivos deste trabalho essa era uma via possível, mas não fundamental, posto que seu propósito não é oferecer um panorama histórico da literatura latino-americana recente, ainda que tente, sim, historicizar, considerar tantos os contextos de produção dos textos analisados quanto o da análise. O tema central deste trabalho é os desajustes que, hoje, impossibilitam dizer que a literatura é, ou foi alguma vez, uma ideia no lugar na América Latina. Vistas desde certo ângulo, até as obras que foram consideradas mais acabadas ou as melhores expressões literárias (as mais autônomas) do continente, se revelariam desajustadas. Sem dúvida, a experiência desse desajuste – de uma espécie de inadequação ou insuficiência insuperável – está relacionada com o fato de que nos últimos anos tenha sido cada vez mais frequente encontrar autores que resistem ou se mostram indiferentes, mesmo desdenhosos, de fazer obras – especificamente – literárias. É um fenômeno que tem dado lugar a interpretações diversas, como a da Josefina Ludmer que fala de literaturas pósautônomas (2010, p. 149-156) ou a de Florencia Garramuño que se refere a uma arte inespecífica (2013). A análise dessas produções recentes sem dúvida é necessária, e se ocupar de uma delas poderia ter sido uma forma pertinente de finalização desta tese. Contudo, não menos pertinente é a revisão de produções anteriores em que podemos observar expressões de desconforto ou tensão com a forma literária, pois este caminho também oferece chaves para pensar o presente. Tais expressões podem ser encontradas inclusive em obras de autores em que a literatura se manifesta como um desejo; autores do período em que, para os letrados das nações da América Latina, era um objetivo 188

atingir uma literatura autônoma. De um desses autores nos ocuparemos aqui, Macedonio Fernández. Em Macedonio a literatura aparece como um projeto, um objetivo, uma aspiração. Mas ao mesmo tempo aparece como uma atividade postergável e abandonável. Macedonio procura a literatura e simultaneamente a evita. O segundo movimento, o movimento de esquivança ou abandono, funciona, por sua vez, como uma forma de manutenção da promessa da literatura, de uma literatura outra e só realizável por outros. A literatura é para Macedonio como uma casa em que nunca se instala completamente, e a qual, com a promessa de reformar, se deixa em ruínas, para que dela se ocupem outros. O objetivo deste capítulo não é a analisar detalhadamente alguma das obras de Macedonio, mas ensaiar uma interpretação geral do que poderíamos chamar seus “planes literario-políticos”, para usar suas próprias palavras. Planos que passavam pela literatura, mas não se detinham nela. Algo sobre o que pode ser pertinente repensar hoje quando a literatura não parece tão desejável quanto foi em outros momentos, mas, ao mesmo tempo, não tem desaparecido (em certo sentido, se diria que está mais presente do que nunca, se consideramos o número de concursos, congressos, feiras literárias e publicações sobre o tema, por exemplo). A literatura como os Estados nacionais podem não ser desejáveis como antes, podem não mobilizar as esperanças como em outras épocas, nem parecer ter o mesmo poder, mas nem por isso é possível deixá-los simplesmente de lado. O paralelo entre Estados nacionais e literatura é algo desigual, mas não completamente descabido, se consideramos a história que vincula uma coisa com a outra. Como se viu, a ideia de uma literatura autônoma esteve vinculada, na América Latina, à de formação de Estados nacionais soberanos e ambas ideias entraram

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simultaneamente em crise. E, como se verá, ambas ideias se entrecruzam singularmente em Macedonio. 4.2. O projeto literário-político da campanha presidencial. Antes de ser uma figura conhecida nos círculos literários de Buenos Aires, Macedonio Fernandez (1874 - 1952) planejou uma campanha presidencial. As referências mais antigas que se conhecem do empreendimento até hoje – posto que ainda há muitos documentos inéditos do escritor – são de 1920. Em uma carta de 3 de abril desse ano, dirigida a seu primo Marcelo del Mazo, Macedonio diz querer conversar com ele de “planes de acción política marginal” (2007, p. 162). Mazo se somaria assim às “múltiples personas” com quem o escritor estaria tendo conversação e correspondência sobre o assunto, “entre ellas Borges que me escribe de continuo desde Madrid y adhiere a mi proyecto”127 (p. 162). Macedonio não diz nada de específico sobre o que planeja levar a cabo, apenas que é uma resposta ao “sueño universal maximalista [que] disuena reciamente con mi fe individualista, antiestatal” (p. 163). Por “universal maximalista”, o escritor entendia a excessiva ingerência do Estado na vida das pessoas; o contrário de seu ideal, repetido em diversas ocasiões, de “Indivíduo Máximo en el Estado Mínimo” (1989, p. 62). Na Carta a Marcelo del Mazo, Macedonio adota a posição de um “leal democrata” para quem é desejável que os maximalistas votem e em caso de que triunfem (o que lhe parece é o mais provável no momento) sejam acatados, “pero antes de que voten, como después de que triunfen, debemos esforzarnos porque abandonen el dogma maximalista (que es llanamente la tirania ilimitada de las mayorías) que asfixiará al Indivíduo y empobrecerá a todos” (2007, p.

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O mais provável é que se refira a Jorge Borges, o pai de Jorge Luis Borges, ainda que, como aponta Alvaro Abós, não sabemos com certeza a quais dos dois se referia Macedonio (ABÓS, 2002, p. 85).

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163). Ou seja, é preciso se opor ao Estado maximalista, mas fazendo uso das vias democráticas, dos meios legais dispostos pelo próprio Estado argentino128. Em 4 de abril de 1920, Macedonio  escreve outra carta a Marcelo del Mazo, explicitando o que tem em mente: “un plan ejecutivo de apoderamiento del poder público en nuestro país para la próxima Presidencia de 1922 inclusive (es decir con sólo dos años de campaña), por el voto, y a fin de que oficialmente se imponga aquella Solución” (p. 163). Para a candidatura presidencial, Macedonio propõe vários nomes, excluindo o dele posto que sua vocação – diz – é “el estudio y consejo”, não o “mando y ejecución” (p. 164). O escritor afirma contar no momento com o respaldo de 100 amigos, considerando que se no final do mês fossem 300 e “cada uno de ellos se esforzara en obtener 10 adherentes en 2 meses, el 9 de Julio nos reuniríamos 3.000 y formaríamos nuestra plataforma y plan de trabajos con gran esperanza” (p. 165). Macedonio termina a carta afirmando: “He aquí pues mi extraña idea, Marcelo, que seguramente te sorprenderá” (p. 165). O escritor reconhece que a ideia é estranha e surpreendente, mas nos parágrafos anteriores tem se esforçado por deixar claro que não é uma simples fantasia: “¿Esta campaña presidencial relámpago es un sueño? No, Marcelo; debe ser un acto de ‘Inventiva’ tan fino como el de un descubrimiento químico o Idea musical” (p. 164). Da seriedade com que Macedonio pensava no seu plano nos falam outros textos de 1920. Não só “El disconformismo individualista” (artigo publicado no jornal jurídico “Gaceta del Foro” a qual alude na citada carta de 4 de abril), mas principalmente “Política”, um texto inédito no seu momento e hoje recolhido sob esse título no volume Teorias das Obras Completas editadas por Corregidor. Quando digo que estes textos 128

Em outro texto da época Macedonio censura a oposição violenta: “el no conformismo anarquista, nacido en buen momento, cuando la marcha del Estado hacia la inflación urgía una oposición extremada, ha usado la violencia como medio para la no violencia como fin, error psicológico absoluto” (1990b, p. 125).

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são reveladores da seriedade com que Macedonio pensava no seu plano, não quero dizer que eles demonstrem que o escritor tinha efetivamente a intenção de executar seu projeto da campanha presidencial (a “execução”, como ele reconhece na citação acima, não era sua vocação, algo a que se sentisse chamado). Os textos mostram a seriedade129 com que Macedonio cogitava no “apoderamiento del poder público” ou então, na política tal e como esta é definida nas primeiras linhas do texto assim intitulado: “Política es dos cosas: actividades para el apoderamiento personal del poder social llamado público (es decir coercitivo), y modo y fines en el uso del poder público una vez conquistado” (p. 155). Neste último texto, Macedonio especula sobre o melhor uso do poder público, do melhor governo – que seria “el mayor bien, moral y material, del mayor número”, o que, paradoxalmente, “puede ser realizado mejor en ciertos asuntos por la libertad o individualismo que por la coerción o gobierno” – e se refere a duas formas de acesso a ele: “el procedimiento de la deliberación y el ‘programa’” e “el personal y de logia o camaradería”. Para Macedonio ambas são “quizá de moralidad indiferente”, porque “la técnica de ‘programas’ y la de ‘personas’ son, igualmente, anchas al principio y angostas al final: ya se prometan realizaciones de ideas, ya cargos y colaboración en el gobierno, siempre el ofrecimiento es exagerado y el cumplimiento menor” (p. 155). A pior parte nessa comparação a leva a “técnica programática”, a do acesso ao poder por um programa de governo e não por atributos pessoais ou camaradagem. Depois de observar que ele não oferece mais garantias que o outro método – o que é obviamente certo –, acrescenta – contra o que se estabelecerá como ideal moderno – que é preferível a “apreciación de lo personal pues es por el instrumento de personas que los programas se cumplen o no se cumplen” (p. 155). 129

Lembrando que anos depois Macedonio desenvolverá uma “teoria de la humorística” que mostra a seriedade que para ele tinha o humor (FERNÁNDEZ, 1990b, pp. 259-308).

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Macedonio sustentava essa posição no momento em que a Argentina passava por uma experiência democrática, a partir da instauração do sufrágio universal masculino (1919), que abriu as portas à presidência de Hipólito Yrigoyen do Partido Radical (1916-1922). Ana María Camblong sugere que a discussão entre técnica programática e personalista remete a uma disputa que se intensificará com os anos no Partido Radical, “la formula antipersonalista Alvear-Gonzalez, que asumió el 12/10/1922” e “la Acción personalista, representada por H. Yrigoyen, [que] vuelve al poder en 1928” (2003, p. 359n). Isto mereceria um exame cuidadoso que não podemos desenvolver aqui130, onde nos limitamos a assinalar que no texto “Política”, o próprio Macedonio faz questão de mostrar que seguia com atenção os acontecimentos nacionais e internacionais, como querendo demonstrar que suas ideias não eram pura especulação teórica. Comenta, por exemplo, que na recentemente finalizada Primeira Guerra todos os governos que entraram “se hicieron inmediatamente tiranías espontánea y consensualmente”, considerando a tirania de maior extensão a do presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson, que governaria “todos los destinos humanos” (p. 156). Segundo Macedonio, a guerra deixava como prioridade a organização da produção, prevendo que ela podia ser desatendida por disputas em torno da propriedade. A esse panorama internacional corresponderia um quadro nacional não menos desalentador. Macedonio observa que o povo na Argentina estava decepcionado com “socialismo y radicalismo, debido a la conducta personal de sus jefes en el éxito” (p. 157) e considera que essa decepção abriu as portas para o maximalismo. Nesse quadro, a “Liga Patriótica”, uma tenebrosa organização de ultradireita da época, não apresentaria nenhuma alternativa, posto que ela era anti-democrática, mas não anti-maximalista,

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Para uma contextualização das ideias políticas de Macedonio ver o capítulo “The political is the personal” do livro The self of the city de Todd Garth.

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porque defiende incondicionalmente, sin examen, sin análisis, al actual tipo de gobierno o de Estado, universal y en la Argentina, y ese tipo actual de gobierno es desde hace un siglo un maximalismo, porque usurpando funciones e iniciativas que competen al Individuo, que sólo el Individuo puede desempeñar con ventaja para todos, constituye un máximum usurpante de Gobierno. (p. 159).131

Finalmente, é de destacar uma afirmação que reaparece com pequenas mudanças na carta de 4 de abril a Marcelo del Mazo: “en 1920, el 95 % de los votantes del país no tienen convicción ni compromiso” (p. 158). Esta situação é a que abriria a possibilidade para a candidatura presidencial em que pensava Macedonio. Para efetivá-la bastaria encontrar uma ideia que envolvesse esses votantes sem convicção, daí que na carta se refira à inventiva: “La Presidência 1922 está abierta a un concurso de inventiva: hay 300.000 sufragantes sin compromiso ni orientación que esperan: una idea” (2007, p.164). Não resta dúvida de que Macedonio considerava com seriedade a questão do acesso ao poder, bem como a melhor forma de governar, independentemente de quão longe fossem seus planos de chegar à presidência. Não há como saber se realizou alguma ação nesse sentido, posto que as cartas citadas são as únicas fontes. Por outra parte, é conhecido que em maio de 1920, ou seja, o mês seguinte ao da redação das cartas a Marcelo del Mazo, Elena de Obieta, a esposa do escritor, morre e a vida de Macedonio dá uma reviravolta. Pouco tempo depois da morte de sua esposa e de deixar seus filhos ao cuidado de familiares – com o que conclui um período que seu biografo 131

No antes mencionado livro de Todd Garth, The self of the city, se afirma que nas primeiras décadas do século XX “maximalismo” significava (na Argentina?) “marxismo” (p. 91). Citações como a de cima nos indicam, contudo, que essa identificação não funciona no caso do escritor, posto que para ele a palavra designa ideias e Estados de diversa índole. Dito isto, é verdade que Macedonio não simpatizava com o marxismo. Não dava muita credibilidade à teoria de luta de classes nem a que o capital se pudesse concentrar amplamente em poucas mãos (!), considerando que a humanidade não tinha produzido nem produziria muita riqueza (a respeito ver os textos “No existe problema social-económico” e “El buen disconformismo”). Aliás, como o indica seu já mencionado artigo “El disconformismo individualista”, suas posições anti-maximalistas se inspiram nos pensadores clássicos liberais: “Spencer, St. Mill, J. Mill, Ricardo, A. Smith, Turgot” (1990b, p. 145). Este mesmo ensaio, por outra parte, nos oferece um bom exemplo da forma nada ortodoxa de pensar de Macedonio, que impede que se lhe defina sem mais como liberal ou qualquer outra coisa. Diante da impossibilidade imediata de acabar completamente com o maximalismo, o autor defende que este se limite à esfera econômica, o que implicaria admitir uma “producción y uso individualista bajo propiedad comunista” (p.146).

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Alvaro Abós chama de “vida familiar intensa” (p. 66) –, começa a deambular por pensões e a participar com efervescência em tertúlias e empreendimentos literários com os jovens vanguardistas de Buenos Aires, entre os quais se encontra Jorge Luis Borges, de regresso à Argentina em 1921. Macedonio, que até seus 46 nos – comemorados em 4 de junho de 1920 – só tinha publicado alguns artigos e poemas sem maior repercussão, passará a ser uma figura de referência da jovem vanguarda132. A partir de então, abandonará a advocacia, dedicando-se exclusivamente à escrita.  No meio disso tudo, o projeto de candidatura presidencial não desaparecerá, mas sofrerá uma reformulação significativa,  convertendo-se em um projeto de romance coletivo. Quem dá testemunho dessa transformação é Jorge Luis Borges, que em uma carta de 1921 a Jacobo Sureda (poeta e pintor que assinou com o autor de Ficciones um dos manifestos do ultraísmo) afirma o seguinte: No sé si te hablé en mi última carta de un tal Macedonio Fernández y de un muchacho Dabove con los cuales proyecto urdir una novela fantástica en colaboración. El argumento, ideado por mí y todavía muy esquemático y fragmentario, trata de los medios empleados por los maximalistas para provocar una neurastenia general en todos los habitantes de Buenos Aires y abrir así camino al bolchevikismo [sic]. El título –elegido no por su problemática belleza, sino en vista del público– es: "El Hombre que será Presidente". El medio empleado por los maximalistas es la multiplicación de muchas pequeñas molestias que, insignificantes cada una en sí, carcomerían combinadas los ánimos de todos. Por ejemplo: que los pianos de manubrio no tocasen nunca entera una pieza sino la cortasen por la mitad; que se llenase la ciudad de objetos inútiles, como barómetros, que se aflojasen las varillas de los tranvías donde se agarra la gente, etc... No hay gran peligro de que escribamos jamás esa novela, pero es un útil campo de batalla para las luchas verbales. A veces me parece irrealizable, otras creo que con tal argumento podríamos arquitectar un lindo desatino, estilo Ramón Gómez de la Serna. ¿Y tú qué opinas? Contesta con ‘libertad marginal’ como me dices en tu última carta. ¿Te parece un disparate máximo, absoluto, sin redención posible? (Apud. GARCÍA, 2000, pp. 35-36).

Julgar a exatidão do que conta Borges sobre o projeto de “El Hombre que será Presidente” é impossível porque o romance – como ele previa – não chegou a ser escrito. Aliás, mesmo que tenha existido (o que não é certo), sua descrição só poderia ser provisória, por se tratar de uma obra conjunta, objeto de discussões intensas – “útil

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A respeito do lugar ocupado por Macedonio entre os jovens vanguardistas de Buenos Aires ver o primeiro capítulo de Desencuadernados: vanguardias ex-céntricas en el Río de la Plata de Julio Prieto.

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campo de batalla para las luchas verbales” –, portanto aberta a constantes reformulações. Estes são fatores a considerar (além dos possíveis esquecimentos voluntários e involuntários) ao avaliar as diferenças entre as asseverações deste texto e as do famoso prólogo de apresentação da obra de Macedonio, escrita por Borges no final de 1960. É no prólogo que se explicita que Macedonio seria o presidente ao qual faz referência o título do romance “El hombre que será presidente” (informação referendada por Enrique Fernández Latour); e também que o romance seria resultado da transformação do projeto da campanha presidencial. Ainda que a passagem seja bem conhecida, a citação em extenso resulta inevitável: El mecanismo de la fama le interesaba, no su obtención. Durante un año o dos jugó con el vasto y vago propósito de ser presidente de la República. [...] Lo más necesario -nos repetía- era la difusión del nombre. Colaborar en el suplemento de alguno de los grandes periódicos era fácil, pero la difusión lograda por ese medio corre el albur de ser tan trivial como Julio Dantas o los cigarrillos “43”. Convenía insinuarse en la imaginación de la gente de un modo más sutil y enigmático. Macedonio optó por aprovechar su curioso nombre de pila; mi hermana y algunas amigas suyas escribían el nombre de Macedonio en tiras de papel o en tarjetas, que cuidadosamente olvidaban en las confiterías, o en los tranvías, en las veredas, en los zaguanes de las casas y en los cinematógrafos. Otra habilidad era congraciarse con las comunidades extranjeras; Macedonio, con una soñadora gravedad, nos refería que había dejado en el Club Alemán un volumen descabalado de Schopenhauer, con su firma y con anotaciones a lápiz. De estas maniobras más o menos imaginarias y cuya ejecución no había que apresurar, porque debíamos proceder con suma cautela, surgió el proyecto de una gran novela fantástica, situada en Buenos Aires, y que empezamos a escribir entre todos. (Si no me engaño, Julio César Dabove conserva aún el manuscrito de los dos primeros capítulos; creo que hubiéramos podido concluirlo, pero Macedonio fue demorándola, porque le agradaba hablar de las cosas, no ejecutarlas). La obra se intitulaba El hombre que será presidente; los personajes de la fábula eran los amigos de Macedonio y en la última página el lector recibiría la revelación que el libro había sido escrito por Macedonio Fernández, el protagonista, y por los hermanos Dabove y por Jorge Luis Borges, que se mató a fines del capítulo noveno, y por Carlos Pérez Ruiz, que tuvo aquella singular aventura con el arco iris, y así de lo demás. En la obra se entretejían dos argumentos: uno, visible, las curiosas gestiones de Macedonio para ser presidente de la República; otro, secreto, la conspiración urdida por una secta de millonarios neurasténicos y tal vez locos, para lograr el mismo fin. Éstos resuelven socavar y minar la resistencia de la gente mediante una serie gradual de invenciones incómodas. La primera (la que nos sugirió la novela) es la de los azucareros automáticos, que, de hecho, impiden endulzar el café. A ésta la siguen otras: la doble lapicera, con una pluma en cada punta, que amenaza pinchar los ojos; las empinadas escaleras en las que no hay dos escalones de la misma altura; el tan recomendado peine-navaja, que nos corta los dedos; los enseres elaborados con dos nuevas materias antagónicas, de suerte que las cosas grandes sean muy livianas y las muy chicas pesadísimas, para burlar nuestra expectativa; la multiplicación de párrafos empastelados en las novelas policiales; la poesía enigmática y la pintura dadaísta o cubista. En el primer capítulo, dedicado casi por entero a la perplejidad y al temor de un joven provinciano ante la doctrina de que no hay yo, y él, por consiguiente, no existe, figura un solo artefacto, el azucarero automático. En el segundo figuran dos, pero de un modo lateral y fugaz; nuestro propósito era presentarlos en proporción creciente. Queríamos también que a medida que se enloquecieran los hechos, el estilo se enloqueciera; para el primer capítulo elegimos el tono conversado de Pío Baroja; el último hubiera correspondido a las páginas más barrocas de Quevedo. Al final el gobierno se

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viene abajo; Macedonio y Fernández Latour entran en la Casa Rosada, pero ya nada significa nada en ese mundo anárquico. En esta novela inconclusa bien puede haber algún involuntario reflejo del Hombre que fue jueves. (BORGES, 1961, p. 17-19).

Ao oferecer este resumo da história de El hombre que será presidente, Borges já não se preocupa por fazer nenhuma reivindicação autoral. Diz que da ideia da campanha presidencial de Macedonio “surgiu” a do romance, sem explicar como ou por iniciativa de quem (pode ter partido de Borges ou de Macedonio, ou ainda de alguém mais, dado seu caráter coletivo). Aliás, os conspiradores já não são bolcheviques, mas milionários neurastênicos. A forma de proceder do grupo conspirador é a mesma, a criação do caos social por meio de objetos inventados que entorpecem a vida cotidiana, mas esses objetos não são exatamente iguais. Entre eles, Borges inclui agora não só novas invenções fantásticas (como as escadas irregulares), mas também “la multiplicación de párrafos empastelados en las novelas policiales; la poesía enigmática y la pintura dadaísta o cubista”. É difícil não sentir nesta afirmação certa ironia contra os movimentos de vanguarda dos quais Borges tomou distância com o passo dos anos. A esse respeito, é revelador seu comentário de que Macedonio teria condescendido a ser vinculado com a chamada geração de “Martin Fierro” (da qual Borges foi peça chave), cujos feitos o autor de Ficciones resume em propor para uma Buenos Aires “un tanto distraída o escéptica [...] versiones tardías y caseras del futurismo y del cubismo” (p. 21). É verdade que Macedonio excede o marco do martinfierrismo, e que não parecia muito interessado no debate sobre a identidade nacional que de entrada colocava o título da revista Martin Fierro133; mas o comentário acerca da condescendência de Macedonio e o resumo do feito pelo martinfierrismo é, sem dúvida, exagerado. Por outro lado, a inclusão que faz Borges da “poesía enigmática y la pintura dadaísta o cubista” entre os elementos perturbadores do funcionamento social, no romance El hombre que será

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A respeito deste tema, remito ao ensaio “Vanguardia y criollismo: la aventura de Martín Fierro” de Beatriz Sarlo.

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presidente, não deixa de apontar para o que fora um objetivo das vanguardas compartilhado por Macedonio, “lo que Peter Bürger llama, en términos hegelianos, una Aufhebung del arte en vida, una negación de la autonomia de la esfera estética que la ‘eleve’ o transforme en praxis sociopolítica” (PRIETO, 2002, p. 13). A arte tinha que sair dos espaços artísticos para transformar (perturbar) a vida social. Como assinala Julio Prieto, o movimento de saída dos espaços artísticos tradicionais é explícito em vários empreendimentos de Macedonio que “están más cerca de la noción de performance que de la forma más tradicional y estable de la ‘escritura’” (p. 58). Por exemplo, suas participações na Revista Oral, fundada pelo poeta peruano Alberto Hidalgo (cada número da revista consistia em uma leitura pública no porão de um bar) ou seus discursos de brinde nos encontros de artistas (que às vezes eram lidos por outros, devido a sua “personal inasistencia”). Nesta linha estariam também os cartões a que alude Borges no seu prólogo, os quais tinham por objetivo ajudar na difusão do nome de Macedonio, chamando a atenção para ele de forma indireta. Quem encontrasse o cartão leria frases como “Macedonio busca a Casilda la Cubana. Teléfono: 3729 – Ribadavia” (Apud PRIETO, 2002, p. 64). Macedonio faria uso desse tipo de cartões não só para publicizar sua campanha presidencial (se é que efetivamente os usou com esse fim134), mas também suas tão prometidas obras literárias. Em uma carta a Enrique Fernández Latour, presumivelmente de 1927, Macedonio sugere usar o método dos cartões para gerar expectativa sobre uma ação que

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Carlos García discute isto no seu ensaio “Macedonio ¿presidente?”, disponível em: http://revistadigitalmacedonio3.blogspot.com.br/2007/10/revista-digital-macedonio-belarte-ao.html. Última consulta 4 de fevereiro de 2016.

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iria encabeçar: um romance encenado pelas ruas e prédios de Buenos Aires. A ideia teria sido proposta por Fernández Latour a Macedonio, que a adotaria com entusiasmo: Mi pensamiento para este año es uno solo en asuntos literario-políticos: la realización de su lindísima idea del acto teatral, teoría de la novela que se vive, presentación de los personajes, etc... La he adelantado mucho y además esta propaganda que en diversas formas hago es concurrente. […] mi plan partiendo de su iniciativa es hacer ejecutar en las calles de Buenos Aires, casas y bares, etc., la novela (o sus escenas eminentes, aunque haciendo creer al público que toda la novela se está ejecutando) y anunciándolo así en la Conferencia teatral, y publicar la novela simultáneamente en folletín diario, en Crítica preferentemente o La Nación. (2007, p.38).

O romance teatralizado, como tantos outros projetos de Macedonio, entre eles a candidatura presidencial e El hombre que será presidente, não será concretizado. Fica como ideia possível de ser desenvolvida e, depois, o que é quase o mesmo, como parte de uma trama de romance. De fato, os três projetos mencionados passarão a formar parte desse novo projeto de romance no qual Macedonio trabalhará por mais de 20 anos sem chegar a publicar; aquele que deveria ser o primeiro romance bom da história: o Museo de la novela de la Eterna135. A transformação dos anteriores projetos em parte deste romance, já é expressa em um dos prólogos da obra que o escritor publicou em vida, o “Prólogo a lo nunca visto”, que apareceu na revista Libra em 1929136. Nele se menciona que o novo romance tinha inicialmente por nome “El hombre que será Presidente y no lo fue’”137 (p. 47), mas que este foi substituído por “Novela de la Eterna, y de la Niña de dolor, la Dulce-Persona, de-un-amor que no fue sabido” (p. 47) – nome que ainda sofrerá modificações posteriores. O presidente, alter ego de Macedonio, deixa seu lugar no título (que passam a ser ocupado pelas personagens

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Daqui em diante nos referiremos ao romance simplesmente como Museo. As citações são tomadas, salvo que se indique o contrário, da edição crítica que dirigiu Ana Maria Camblong para a Colección Archivos. 136 Do Museo, Macedonio só publicou em vida alguns dos mais de 50 prólogos que escreveu para o livro. 137 Em nota de rodapé da edição de 1975 do Museo, Adolfo de Obieta propõe a seguinte interpretação desse título: “‘Hombre que será Presidente’ (en la novela) y que no lo fue (en la historia ¿donde acaso quiso serlo?)” (p. 48).

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femininas Eterna e Dulce Persona138), sem entretanto abdicar de seu protagonismo na trama, tendo entre seus planos a conquista de Buenos Aires: el Presidente de la Novela, reporteado en vista de los rumores circulantes entre sus numerosos lectores, se sirvió manifestarnos que positivamente lanzará hoy su plan de histerización de Buenos Aires y conquista humorística de nuestra población para su salvación estética. (p. 43).

A realização da conquista da cidade será, efetivamente, narrada em capítulos posteriores do texto, onde ela se confunde com a realização do projeto de romance nas ruas, pois as personagens que a levam a cabo saem da “Estancia «La Novela»”, o espaço de romance onde foram reunidas pelo presidente. Essa saída também já é anunciada no “Prólogo a lo nunca visto”, ainda que não exatamente como acontece nos capítulos que posteriormente escreverá Macedonio: “terminados los prólogos la novela súbitamente principia, comenzando sorpresivamente por 'Una novela ejecutiva, salida a la calle'” (49)139. Exposto o anterior, fica a perguntar: por que o projeto da campanha presidencial e do romance levado às ruas foram transformados em trama de romance (ainda que de um romance completamente sui generis)? Macedonio renunciava a política por interesse puramente literário? Em primeiro lugar, seria preciso reconhecer que, como diz Julio Prieto, uma coisa que torna Macedonio interessante é a maneira como confunde “lo político y lo ficcional, lo serio y lo humorístico” (2002, 147n10). Seus planos são sempre “literario-políticos”, para recuperar a expressão empregada pelo escritor na carta a Fernández Latour (“Mi pensamiento para este año es uno solo en asuntos literario-políticos”). Sobre a campanha presidencial, por exemplo, não há como assegurar que não tivesse desde o começo uma intenção humorística, ainda que séria. A

138

Como se verá, o afastamento do presidente do titulo é muito significativo, espelha a auto deposição do autor no "Prólogo final". 139 Nas últimas versões que Macedonio escreveu do Museu, o romance começa com uma saída dos personagens da “realidade” e sua entrada na “Estancia «La Novela»”; o movimento contrário, de saída do romance, só se produz vários capítulos depois.

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propósito, Macedonio se refere a ela como um “un acto de ‘Inventiva’”, explicitando a dimensão artística inerente a tal projeto político. No caso do romance coletivo El hombre que será presidente, tal como resumido por Borges, é de destacar que o caos político e o caos da forma literária deveriam se encontrar no final. Dito isto, também é o caso de assinalar (por óbvio que seja) que o candidato Macedonio não propõe nada que tenha possibilidades de ser aplicado como política de Estado “real”. Como tantos outros antes dele, Macedonio pensa e fala do Estado desde a literatura. Seu antecessor argentino mais ilustre nisto, como tem assinalado Ricardo Piglia é Sarmiento, de quem pode ser considerado antítese (PIGLIA, 2001, p. 86)140. Diferente de Sarmiento, Macedonio não ocupou nenhum cargo político e não desenvolveu um programa de ordenamento do Estado na literatura. Pelo contrário, para ele não se tratava de organizar, mas de caotizar ou, dito com um verbo que ele empregava, de histerizar o Estado. Histerizar a literatura para histerizar o Estado seria seu plano. 4.3. Histerizar a literatura e o Estado Aqui, cabe uma pequena digressão sobre a histeria. Jacques Rancière lembra que a histeria é o nome de uma doença mental muito particular: Eu digo “doença mental”. Mas há toda uma tradição de pensamento para a qual a histeria não é uma doença qualquer. Ela é, especificamente, a doença que se opõe ao trabalho da obra, que a impede de existir como coisa autônoma, retendo prisioneiras no corpo do artista as potências que deveriam objetivar e autonomizar a obra. Penso aqui no que Flaubert diz de seu Saint Antoine: a potência que devia criar a consistência do bloco de mármore da obra inverteu sua direção. Ela foi para o interior, ao invés de ir para o exterior. E, indo para o interior, ela se liquefez. Ela escorreu em Flaubert como doença nervosa. Assim a histeria é propriamente a antiobra. Ela é a paixão ou a efusão nervosa que se opõe à potência atlética e escultural dos músculos. (2000, p.507)

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O paralelo entre as dos figuras proposto por Piglia será depois explorado por Ana Maria Camblong no ensaio “Sarmiento y Macedonio, atravesados en la historia nacional” do livro Ensayos macedonianos.

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Se a histeria é antiobra não surpreende que a escrita do Museu tenha enfrentado tantas pausas e dilações e, afinal, não tenha chegado a um término. Mesmo quando Macedonio considerou pronta uma versão para publicação, ela não se produz e o Museu se transformou em um livro sem conclusão definitiva141. Aliás toda a escrita macedoniana é uma escrita de digressão, de não desenvolvimento. Macedonio sempre está escrevendo “con el retardo de estilo” como diz no “Brindis a Ricardo Guiraldes” (1989, p. 54). Sempre está fazendo digressões, e até digressões sobre a digressão, sendo esta uma de suas formas de impedir que as obras se desenvolvam. Nisso não difere Adriana Buenos Aires (o último romance ruim) do Museo da novela da Eterna (o primeiro romance bom). No primeiro, por exemplo, encontramos passagens como: el asunto de mi relato es Adriana, es decir el amor, y no soy inoportuno, por esta vez, con la precedente digresión pues quisiera llevar al lector al pensamiento del amor con la grandeza y exclusividad de valía que yo le atribuyo como finalidad y explicación única de la Vida, como estética de la Vida, porque ya que he acometido la temeridad de intentar una pintura del destino y persona de esta criatura tan genialmente inspirada en su corazón y tan sufriente, me es insoportable imaginar que no he preparado el alma del lector para que guarde de ella una imagen amable. (1988, 202, grifos meus).

No segundo, o não avançar chega a ser justificado como funcionamento próprio do bom romance: — Lector ¡Basta de argumentos de personajes y más argumento para la novela! Desde hace varios capítulos está inmóvil. Oh, cómodo es hacer una novela en que el lector tenga que pensarlo todo. Aquí no hay nada sobrentendido, todo debe ser contado. — Autor: Por favor, no me pidas que te oculte desenlaces, que te adule tus gustos […] te pido, lector, que no me vulgarices, pues los autores están muy expuestos a ello y hay que sostenerlos hacia el verdadero arte. ¿No leíste mis prólogos? (p. 240)

Seguindo as observações de Rancière, podemos afirmar que Macedonio se propôs escrever com Museo um romance histérico, um romance antiobra e, portanto, um romance não representacional, no duplo sentido que da palavra “representação” assinala o pensador francês:

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Sobre a história da escrita do livro e de suas publicações ver a introdução de Ana Camblog para a edição crítica.

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O universo da representação era governado pelo duplo mecanismo do princípio mimético que mencionamos: a obra produz uma semelhança. Mas também a própria obra é uma semelhança, na medida em que constitui um organismo, um logos, um ‘belo vivo’. A techne da obra prolonga a natureza, a physis, o movimento que realiza a vida em organismo. (p. 511).

No “prólogo que cree saber algo, no de la novela, pues ello es incompetente a prólogos, sino de Doctrina de Arte”, Macedonio explicita essa dupla rejeição: nem arte representativo realista nem ordenação lógica, mas uma arte que desafia toda lógica e sentido de realidade: La tentativa estética presente es una provocación a la escuela realista, un programa total de desacreditamiento de la verdad o realidad de lo que cuenta la novela, y sólo la sujeción a la verdad del Arte, intrínseca, incondicionada, auto-autenticada. El desafío que persigo a la Verosimilitud, al deforme intruso del Arte, la Autenticidad —está en el Arte, hace el absurdo de quien se acoge al Ensueño y lo quiere Real— culmina en el uso de las incongruencias, hasta olvidar la identidad de los personajes, su continuidad, la ordenación temporal, efectos antes de las causas, etcétera, por lo que invito al lector a no detenerse a desenredar absurdos, cohonestar contradicciones, sino que siga el cauce de arrastre emocional que la lectura vaya promoviendo minúsculamente en él. (p. 36).

 

Como arte “intrínseca, incondicionada, auto-autenticada”, não sujeita à

realidade, mas só à “verdad del Arte”, esta arte macedoniana bem pode ser qualificada como autônoma, como a chama Ricardo Piglia, para quem “Macedonio Fernández encarna antes que nadie (y en secreto) la autonomía plena de la ficción en la literatura argentina” (2001, p. 122). O autor do Museo pensa em uma arte autônoma, mas sem entender por esta uma totalidade com lógica interna; por isso o leitor não deve em seus escritos “detenerse a desenredar absurdos, cohonestar contradicciones”, mas só seguir “el cauce de arrastre emocional que la lectura vaya promoviendo”. Nesse sentido parece plausível aplicar a escrita de Macedonio, a essa escrita radicalmente desorganizada (em que arbitrariamente se passa da reflexão filosófica à piada e da piada ao esboço de um conto que não se desenvolve)142, a denominação “corpo sem órgãos”143, a

142 Essa falta de organicidade faz com que muitos leitores se desesperem lendo Macedonio, e com certeza é o motivo das críticas severas que recebeu de reconhecidos críticos como Pedro Henríquez Ureña (“anciano hoy, hombre inteligente pero loco e incapaz de producir otra cosa que chispazos, en medio de muchas tonterías”) ou Enrique Anderson Imbert: “el mejor Macedonio es el de la carta a Borges, magia verbal que se publicó en Proa. El resto es ilegible digresión, a menos que se busque, entre las ruinas de esa prosa (de esa razón) toda rota por dentro, larvas de un solipsismo sorprendente, ingenioso y aun poético” (Apud ABÓS, 2002, pp. 218, 233).

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qual Deleuze usa justamente ao falar da histeria, de “uma histeria da pintura”, no seu livro Francis Bacon. A lógica da sensação. Quando Rancière fala da histerização da obra, da antiobra, o faz em referência ao pensamento estético de Deleuze, que, inesperadamente, revela significativas convergências com o de Macedonio. De fato, essas convergências vão até a loucura; esse é o ponto que para ambos deveria atingir afinal a obra – o ponto de “a ausência de obra, a loucura” (RANCIÈRE, 2000, p. 510). Um ponto ao qual a obra não pode chegar sem se anular, mas que deve procurar: ‘Será necessário ir até esse ponto’, diz Deleuze, mas a obra só irá a esse ponto com a condição de anular-se. O teatro da obra é então o de um movimento no mesmo lugar, de uma tensão e de uma estação — no sentido também em que se fala das estações de um caminho da cruz. A obra é o caminho da cruz da figuração que a cara esbofeteada, como um Cristo ultrajado, manifesta. Mas, precisamente, ela retém no mesmo lugar a cara esbofeteada que quer fugir. A obra é uma estação no caminho de uma conversão. Sua histeria é esquizofrenia mantida nos limites em que ela faz ainda obra e alegoria do trabalho da obra. (p. 510).

Na escrita de Macedonio podemos observar as marcas desse constante combate com o realismo, na tentativa de levar a obra até a loucura (“Yo no doy personajes locos, doy lectura loca” [p. 276]) e, com ela, o leitor. Levar o leitor à loucura é levá-lo até esse ponto em que para ele não há mais diferença entre fantasia e realidade, eu e não eu, existência e não existência; algo que certamente o leitor resiste (“Tú, lector, que podrías ahora entrarte en mis páginas, perderte del ser y librarte de la realidad” [p. 176]) e ao que Macedonio diz só ter se aproximado em alguns momentos:

Es muy sutil, muy paciente, el trabajo de quitar el yo, de desacomodar interiores, identidades. Sólo he lograrlo en toda mi obra escrita ocho o diez momentos en que, creo, dos o tres renglones conmueven la estabilidad, unidad de alguien, a veces, creo, la mismidad del lector. Y sin embargo pienso que la Literatura no existe porque no se ha dedicado únicamente a este Efecto de desidentificación, el único que justificaría su existencia y que sólo esta belarte puede elaborar. (p. 33).

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Lembrando que “ao corpo sem órgãos não faltam órgãos, falta somente o organismo, esta organização dos órgãos” (DELEUZE, 2002, p. 53).

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Paradoxalmente, o defensor do Estado mínimo e o indivíduo máximo pensa que a tarefa da belarte é desestabilizar as identidades e suprimir o eu, isto é, o indivíduo. E não é justamente isso o que celebra Macedonio da sesta e do amor (acontecimentos aos quais a arte deve se igualar para ser belarte)? Eduardo, o alter ego de Macedonio em Adriana Buenos Aires (como o presidente o é no Museo), diz a respeito da sesta: “Cuando la siesta estival esplende, somos ciegos de la luz y hasta las formas-límites de cada cosa se borran. Las formas humanas en un aire punzante de sol se licúan, todo se desindividualiza” (p. 116)144; e do amor: “la única virtud, la única belleza, el único asunto ético-estético de las cosas es el altruismo, el amor, la ruptura del yo. […] Sólo logramos que la realidad nos vea y presencie cuando nuestro yo se alegra en el yo-otro. El altruismo es el asunto de alegría de las cosas.” (p 149). A arte como o amor deve ser altruística, quebrar o eu e acolher o outro. Na verdade, Macedonio defende o Estado mínimo e o indivíduo máximo como algo factível e conveniente nas condições sociais que observa, mas sem deixar de indicar, em passagens como as citadas, que seria necessário ir além deles. Que a aceitação da existência do Estado era só circunstancial para Macedonio é algo que se desprende de observações políticas como a seguinte: “Soy antiestatal: toda civilización verdaderamente avanzada en lo sincero es verdaderamente antiestatal. Pero el Estado tiene que existir con plenitud en cierto momento” (1990b, p. 172)145. A afirmação é da década de 1940, a mesma quando o escritor projeta seu modelo de “suprema belleza civil”, “la Ciudad-Campo” (p. 184), uma forma de organização social ideal que se caracterizaria, entre outras coisas, por dispensar a necessidade de governo. Voltaremos a 144

Sobre a importância da sesta para Macedonio, ver o fragmento intitulado “Paisaje del pensar” do livro Macedonio: retórica y política de los discursos paradójicos de Ana María Camblong (pp. 156-176). 145 Considerado esta afirmação, parece menos estranho que Macedonio tenha apoiado Hipólito Yrigoyen e de que exista a possibilidade de que tenha visto com simpatia o governo de Perón. Daniel Attala assinala alguns indícios do último no seu artigo “Macedonio Fernández y el peronismo: uma carta inédita”. Circunstancialmente, até governos “maximalistas” mereceriam apoio.

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discutir esse projeto posteriormente, por enquanto, insistimos que a defesa do Estado mínimo de Macedonio era só circunstancial e que este pensava que era necessário ir para além dele assim como além do indivíduo. E não é justamente o Estado quem nos ata a uma identidade individual? Uma individualidade fixada a um nome, um gênero, uma cor ou raça?146. No projeto ético-estético, literário-político de Macedonio a procura da libertação da obra representativa seria também a procura dessa outra libertação; por isso, seu plano de quebrar a realidade – de enlouquecimento – não é colocado só como um projeto individual, mas coletivo: a “histerización de Buenos Aires”. Agora, para se libertar da realidade, para se libertar da obra, do Estado e do indivíduo, não se poderia simplesmente pular fora. Seria preciso um paciente e discreto trabalho desde dentro. Daí que os planos literário-políticos de Macedonio tenham esse ar de conspiração. E não em vão a “Estancia «La Novela»”, no Museo, pode ser descrita como um lugar da confabulação nos dois sentidos do termo: um lugar da fabulação, mas também da maquinação, do complô. 4.4. O complô do último romance ruim e do primeiro bom. No Museo se representa um complô que sai do espaço de um romance – a “Estancia «La Novela»” –, ao mesmo tempo em que se leva a cabo um outro na escrita. Como registra o Diccionario de la novela de Macedonio Fernández, editado por Ricardo Piglia, “el complot en la novela ficcionaliza la maniobra anarquista de Macedonio con la literatura: entrar y, desde adentro, socavar” (pp. 23-24). Em Macedonio o complô parte da literatura e se produz na e contra a literatura. Macedonio 146

Segundo o pensador boliviano Raúl Prada Alcoreza, “cuando se habla de identidad se habla institucionalmente. Se habla desde el Estado. La identidad existe formalmente por el Estado”. A respeito ver seu ensaio “Seis anotaciones sobre Identidad boliviana. Sólo hay devenir, no hay identidad”. Disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=181824. Última consulta 4 de fevereiro de 2016.

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entra na literatura para procurar uma saída; faz literatura para desfazer a literatura, para se desfazer da literatura. Postas assim as coisas, se entende que em 1924, no “Brindis a Scalabrini Ortiz”, esse “recién llegado al mundo literário”, mundo ao qual chegava tarde e sem terminar de chegar (em 1924, Macedonio não tinha publicado nenhum livro e nos anos vindouros só publicará 3, não exatamente literários147); se entende, dizemos, que o autor afirme que “para que aparezca la primera novela buena es preciso que se escriba la última novela mala” (1989, p. 68). O complô literário de Macedonio, seu complô contra a literatura, se apresenta como uma promessa literária: a de que ele faria a primeira obra belarte, ou seja, a primeira obra de “Literatura” com maiúscula (1990, p.33). Macedonio sugere que para chegar nesse lugar inexistente, a “lo nunca visto” (que seria o verdadeiro lugar de chegada do intrometido recienvenido), seria preciso passar pelo existente, a literatura com “l” minúscula. Para abrir espaço para o romance bom, era necessário primeiro pôr fim ao ruim. Como sabemos, o último romance ruim será encarnado por Adriana Buenos Aires, o qual teria sido escrito em sua maior parte em 1922 – sob o nome Isolina Buenos Aires – e logo retomado e terminado em 1938, momento em que se acrescentariam os capítulos finais, XI-XV, além do capítulo IV, “y las páginas previas al relato propiamente dicho, además de algunas acotaciones de pie de página”, segundo o informa Adolfo de Obieta quem publicou a obra, postumamente, em 1974 (FERNÁNDEZ, 1988, p. 7).

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Os livros publicados por Macedonio não são obras literárias em sentido estrito. O primeiro, No todo es vigilia la de los ojos abiertos (1928), foi pensado pelo seu autor como um livro de reflexões metafísicas. O segundo, Papeles de Recienvenido (1929), posteriormente ampliado e republicado como Papeles de Recienvenido y Continuación de la Nada (1944), consiste em uma recopilação de textos que Jo Anne Engelbert denomina, por falta de melhor nome, “ensaios humorísticos” (p. 388). O terceiro, Una novela que comienza (1941), não chega a ser um romance, quando muito o anuncio de um. Não em vão ele inclui os prólogos já antes publicados do Museo.

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O subtítulo “última novela mala” poderia sugerir, equivocadamente, que Adriana Buenos Aires se conformaria apenas em seguir as convenções do romance em voga na sua época, ainda que parodicamente. Em parte Adriana Buenos Aires faz isto, mas é bem mais do que isso. Do contrário não seria o último romance ruim, mas só um romance ruim a mais ou, o que é o mesmo, um romance de literatura como tantos outros148. O que faria a Adriana Buenos Aires ser o último romance ruim, aquele que coloca fim a todo um gênero, e não só um romance ruim a mais? Adriana Buenos Aires não só imita as formas populares dos romances da época – o folhetim romântico (PRIETO, 2002, 83) –, mas chama a atenção para o modo como essas formas conquistam o leitor. Ou seja, não só reproduz uma forma, mas mostra como essa forma funciona, e ao fazer isso faz com que deixe de funcionar, ou pelo menos que deixe de funcionar como funcionava. Já na nota introdutória o autor avisa que o relato terá: “ridículas interjecciones y [...] frases sentimentales, [...] casualidades y prodigios del azar” (p. 13). E esses chamados de atenção se repetirão ao longo do romance. No capítulo X, por exemplo, em nota de rodapé, o escritor diz: Apréciese la esforzada perfección de modelos de frase de novela mala, sin los cuales quedaría incumplido el compromiso de presentar la mejor y última novela del género de mala. Agradézcanse las profundidades y sutilezas psicológicas que en ellas se envuelven; la frase grandilocuente y lacrimosa y el desenfado de hondura psicológica dan completo cumplimiento al desiderátum del género. (p. 213).

Ao longo de Adriana Buenos Aires, o autor não deixa de nos assinalar, direta ou indiretamente, os elementos que compõem um romance ruim e como este funciona. É por isso que antes do que um verdadeiro romance ruim, Adriana Buenos Aires é uma

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Como observou Julio Prieto, é possível que em 1922, Macedonio não pensasse em fazer mais do que isso, um romance. Seria só depois, quando concebeu a ideia de publicar o par último romance ruim/primeiro romance bom, que Macedonio passaria a pensar em Adriana Buenos Aires como realização do primeiro. E certamente, são os acréscimos de 1938 os que lhe dão a cara definitiva de último romance ruim. Ver PRIETO, 2002, pp. 77 – 90.

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espécie de manual do romance ruim. Tanto é assim que como romance ruim termina deixando muito a desejar. A obra começa “bem” para seu gênero, colocando um triângulo amoroso: um homem maduro (Eduardo) se apaixona por uma jovem “huérfana y pobre” (Adriana), por sua vez, apaixonada por um rapaz de outro estrato social (Adolfo). Mas além dos apontamentos metaliterários (que não só se dão no paratexto, mas no próprio corpo, como é o caso do capítulo IV, em que se fala do “valor estético de contraste” que o autor deveria ter usado, mas que não usou porque teve “um día descolorido” [p. 97]), o andamento do romance vai sendo atrapalhado pelas digressões do macedoniano protagonista Eduardo. Fora isso, o triângulo amoroso é a certa altura abandonado e a atenção se concentra nas desventuras de uma outra personagem feminina, Estela, que enfrentaria um destino tão incerto e difícil que o autor desiste de escrevê-lo, oferecendo só um esboço para que o leitor o desenvolva: “mi pericia en Arte vacila ante estos dos capítulos faltantes, de tan arduo y riesgoso tópico. Dejo aquí estampados los esquemas que tenía hechos. Que el lector se afane en dar plenitud a ambos capítulos yo lo incito a autor” (p. 231). O último romance ruim termina, como talvez não poderia deixar de ser, com uma interrupção do romance. Se Adriana Buenos Aires é mais um manual de funcionamento do romance ruim antes do que um romance ruim propriamente dito, o mesmo acontece com o Museo de la novela de la Eterna, ele é mais um manual de como é um romance bom (ou em termos mais macedonianos, uma “teoria da arte” do romance bom) do que a efetivação do romance bom; algo que já nos é sugerido pelo título, Museo de la novela. Como tem assinalado vários críticos, o título do romance estabelece um jogo com a etimologia da palavra Museo, que vem no latim museum, “lugar dedicado a las musas” (PIGLIA [ed], 2000, p. 64). A musa inspiradora do Museo é a Eterna, uma personagem por sua vez inspirada em duas musas do escritor: a defunta esposa Elena de 209

Obieta e Consuelo Bosch, sua a grande paixão a partir de 1929149. A Eterna é eterna porque é inesquecível (p. 84), sendo que a única morte ou tragédia – segundo insistia Macedonio – é o esquecimento (1990, p. 230; 1988, p. 14). Para comprovar que a morte não existe, o escritor se propõe mostrar no Museo que o ser não existe; se o ser não existe, o seu contrário, o não ser, também não pode existir. Por esse motivo, para Macedonio a arte deve fazer o contrário de alimentar a alucinação de ser, de alentar o desvario de realidade: La tentativa estética presente es una provocación a la escuela realista, un programa total de desacreditamiento de la verdad o realidad de lo que cuenta la novela, y sólo la sujeción a la verdad de Arte, intrínseca, incondicionada, auto-autenticada. […]. Yo quiero que el lector sepa siempre que está leyendo una novela y no viendo un vivir, no presenciando «vida». En el momento en que el lector caiga en la Alucinación, ignominia del Arte, yo he perdido, no ganado lector. (pp.36-37)

Esse objetivo explica por que a palavra “museu” funciona também no seu sentido mais convencional no título da obra: lugar de exibição de uma coleção de objetos, no caso, objetos relativos ao romance. É preciso exibir o romance, mostrar seus mecanismos e partes, para que o leitor não perca de vista que está lendo um romance e não alucine acreditando ver realidade. Como vimos, essa tarefa já era assumida em Adriana Buenos Aires, só que então, em se tratando de um romance ruim, o desenrolar do enredo romanesco ainda ocupava um espaço significativo, que o romance bom já não permite. No museu a parte da exibição do funcionar romanesco se amplia consideravelmente e o enredo se reduz ao mínimo. É isto o que faz com que o romance seja um museu, um museu do romance ou “una novela museo” (p. 3), como também é nomeado pelo autor no prólogo de que faz parte a citação acima. Assim sendo, se entende que mais da metade do romance esteja composto por prólogos em que, entre outras coisas, se assinalam os critérios que segue o romance bom, se resume e explica o enredo, se listam as personagens (indicando tanto as que entraram como as que não 149

No capítulo X o “autor” diz em tom confissional: “He escrito la novela para alegrar a la Eterna que la quiere concluída y cree que la hallará apasionante” (p. 210).

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entraram150) e se fala da maneira como o romance afetará os leitores (o autor diz, por exemplo, ao leitor que gosta de fazer uma leitura sem saltos, que o romance – ao ser escrito por pulos – o transformará num sujeito que lê saltando trechos; e o leitor que lê pulando será convertido num sujeito que lê de cabo a rabo). Igualmente, se entende que, uma vez terminados os prólogos, nos capítulos do romance, o leitor não encontre nada muito diferente do que havia naqueles: nos deparamos de novo com reflexões metaliterárias, novas listas de personagens (ver cap. XIII, “Novela en «La Novela»”), esboços de argumentos de conto ou romance (como o de “Suicidia” [p. 186]); só que agora tudo isto se produz na boca dos personagens principais do romance, entre os quais há um personagem autor e outro leitor. É verdade que o enredo do romance anunciado nos prólogos se efetiva ao longo dos capítulos, mas de maneira tão pouco desenvolvida, que as ações nunca deixam de parecer esboços. Nesse sentido, não surpreende que o romance feche em aberto, com um “prólogo final” que deixa na mão dos autores futuros realizar aquilo que o Museo não teria feito mais do que sugerir: La dejo libro abierto [a la novela] : será el primer “libro abierto” en la historia literaria, es decir, que el autor, deseando que fuera mejor o siquiera bueno y convencido de que por su destrozada estructura es una temeraria torpeza con el lector, pero también de que es rico en sugestiones, deja autorizado a todo escritor futuro de buen gusto e impulso y circunstancias que favorezcan un intenso trabajo, para corregirlo lo más acertadamente que pueda y editarlo libremente, con o sin mención de mi obra y nombre. No será poco el trabajo. Suprima, corrija, pero en lo posible que quede algo. [...] Dejo así dados la teoría perfecta de la novela, una imperfecta pieza de ejecución de ella y un perfecto plan de su ejecución. (p. 253).

Segundo o autor, a “destrozada estructura”, a execução imperfeita da teoria perfeita, fez com que aquele que deveria ser o primeiro romance bom não seja bom, ficando este adiado para o futuro, ao igual do que ficou o primeiro romance ruim. É verdade que ao longo do romance, Macedonio não executa com rigor sua teoria, cedendo por momentos à representatividade e mesmo ao sentimentalismo, em páginas 150

Ver o prólogo “Dos personajes desechados”.

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que parecem mais apropriadas para o romance ruim, como o próprio “autor” assinala (por exemplo em p. 174)151. Mas poderia a execução do primeiro romance bom ter sido perfeita? Aliás, por que não o foi se o plano era perfeito? No “Prólogo final”, Macedonio culpa sua “destrozada estructura”, mas poderia ter uma estrutura diferente um romance que quer ser radicalmente antirealista? Parece mais plausível pensar que o primeiro romance bom tem algo de não concretizável. Segundo Julio Prieto, ele pode ser comparado ao Livro por vir de Blanchot, que desencadeia a escrita, mas permanece sempre além desta (2002, p. 96). O romance bom seria um romance por vir, ou melhor, na própria terminologia macedoniana, um romance futurista:

Esta novela que fue y será futurista hasta que se escriba, como lo es su autor, que hasta hoy no ha escrito página alguna futura y aun ha dejado para lo futuro el ser futurista en prueba de su entusiasmo por serlo efectivamente cuanto antes – sin caer en la trampa de ser un futurista de en seguida como los que adoptaron el futurismo, sin comprenderlo, en tiempo presente – y por eso se le ha declarado el novelista que tiene más porvenir, todo por hacer (p. 43).

O primeiro romance bom é futurista porque (sempre) está por fazer. Trocando o sentido que Marinetti dava ao termo “futurismo”, Macedonio faz deste um sinônimo não da velocidade, mas da postergação, do adiamento. Segundo o escritor, essa seria a verdadeira prática futurista: “Un prólogo que empieza en seguida es gran descuido: el preceder que es su perfume se le pierde, como el futurismo que se practica genuinamente solo dejándolo para más tarde” (p. 47). O que interessa, então, na promessa de escrita do romance bom, não é que compromete a realizar uma obra, mas que possibilita não ter que realizá-la. Prometer é uma forma de não realizar, de adiar, e nisso se assemelha a digressão. Macedonio promete não para efetivamente levar a escrita a um determinado ponto (seja o último romance ruim ou seja o primeiro bom), mas para se perder (e perder o leitor) na escrita, para histerizar. Como diz o autor no 151

No texto intitulado “Lo que nace y lo que muere”, de 1947, Macedonio oferece a seguinte explicação para o fato de que o leitor possa encontrar trechos “bons” no romance ruim e “ruins” no bom: “A veces me encontré perplejo cuando el viento hizo volar los manuscritos, porque sabeís que escribía por día una página de cada una y no sabía tal página a cuál correspondía [...]. Lo que sufrí cuando no sabía si una página brillante pertenecía a la última novela mala o la primera buena” (p. 267-268).

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prólogo que trata sobre o futurismo, o que interessa é “incesantemente jugar, derogar” (p. 47). O advogado de formação Macedonio Fernández, que deixou o direito em favor da literatura, mas de uma literatura “futurista”, por vir, escreve que é preciso “derogar” incessantemente, ou seja, “dejar sin efecto una norma vigente”, segundo a definição do Diccionario de la Real Academia Española. Postas assim as coisas, o dito por Macedonio soa vagamente afim a algumas reflexões de Giorgio Agamben sobre o que seria uma “potência destituinte”, aquela que conseguiria – nas palavras de Benjamin citadas por Agamben – “romper com a dialética falsa da violência que faz as leis, e da violência que as mantém”152. Segundo Agamben, se trataria de uma potência que não destrói as leis para constituir novas, mas que “suspenderia” a lei, como, segundo Paulo na “Epístola aos romanos”, faria o Messias (Agamben assinala que Paulo usa o verbo grego “katargein”, que seria traduzido ao alemão por Lutero como “aufheben”). De maneira afim, quando Macedonio fala de derrogar insinua um corte no tempo histórico, a inauguração de outra época caracterizada não pela instituição de nada novo, mas pelo jogo e a derrogação: “Tragedia o Humorismo o Fantasía nada deben sufrir de un Pasado director ni copiar de una Realidad Presente y todo debe incesantemente jugar, derogar” (p. 47). É verdade que Macedonio formula toda uma série de novos princípios estéticos, mas como se viu, antes do que se servir deles para fazer uma obra, o escritor parece jogar com eles para não fazer obra, para fazer aquilo que Agamben chama em outro texto “simplesmente escrever”:

152

Cito do texto de uma palestra traduzida para o português como “Por uma Teoria do Poder Destituinte”. Disponível em: https://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poderdestituinte-de-giorgio-agamben/. Mas as linhas que seguem se referem, antes do que a esse texto, a colocações que Agamben faz em um artigo que foi traduzido para o espanhol como “Elementos para una teoría de la potencia destituyente”. Disponível em http://artilleriainmanente.blogspot.com.br/2015/03/giorgio-agamben-elementos-para-una.html. Última consulta 4 de fevereiro de 2016.

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Suponhamos que Eu queira escrever. Escrever não esta ou aquela obra, mas simplesmente escrever. Tal desejo significa: Eu sinto que Genius existe em algum lugar, que há em mim uma potência impessoal que impele a escrever. Mas a última coisa de que Genius necessita é de uma obra, ele que nunca pegou em alguma caneta (e menos ainda em computador). Escrevemos para nos tornarmos impessoais, para nos tornarmos geniais, e, contudo, escrevendo, identificamo-nos como autores desta ou daquela obra, distanciamo-nos de Genius, que nunca pode ter a forma de um Eu, e menos ainda a de um autor. Toda tentativa de Eu, do elemento pessoal, de se apropriar de Genius, de obrigá-lo a assinar seu nome, está necessariamente destinada a fracassar. Nascem daí a pertinência e o sucesso de operações irônicas como aquelas das vanguardas, nas quais a presença de Genius é testemunhada dês-criando, destruindo a obra (2007, p. 18).

Como se viu, Macedonio escreve justamente não para afirmar o eu, mas para desfazê-lo. Não para fazer obra, mas para brincar e derrogar. Macedonio brincava na literatura para diluir a literatura, para dissolver esse espaço excepcional de suspensão da lei previsto pela lei (segundo a definição de Derrida mencionada no capítulo passado). Era preciso derrogar, suspender toda lei sobre a vida, incluindo a que instaurava essa excepcionalidade. Os planos da candidatura presidencial e o romance levado à rua podem ser interpretados como fabulações de como estender o espaço do jogo e da derrogação para além do espaço chamado, convencionalmente, literário. Os dois planos não são, evidentemente, mais do que jogos; mas jogos sérios, aos que se poderia aplicar a defesa que usou a Internacional Situacionista para defender os seus: O jogo é percebido como fictício por sua existência marginal se comparado à estafante realidade do trabalho, mas para os situacionistas o trabalho consiste precisamente em preparar futuras possibilidades lúdicas. Talvez surja a tentação de menosprezar a Internacional Situacionista porque ela apresenta aspectos de um grande jogo. “No entanto, diz Huizinga, já lembramos que a noção de “apenas jogar” não exclui de modo algum a possibilidade de realizar esse “apenas jogar” com muita seriedade. 153

Para Macedonio como para os Situacionistas era preciso ampliar o campo de ação do jogo até conseguir que a vida fosse um grande jogo. O plano da “conquista de Buenos Aires para la Belleza”, vinculado com a campanha presidencial e a saída do romance à rua, pode ser entendido também como um plano de conquista da cidade para o jogo. Uma conquista que, como tem mostrado Julio Prieto, incluía ações disparatadas-

153

Cito do texto "Contribuição para uma definição situacionista de jogo", aparecido originalmente na revista "Internationale Situationniste" em 1958. Esta versão em português está disponível em http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/mais_documento.php?idVerbete=83&idDocumento=33. Última consulta 4 de fevereiro de 2016.

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humorísticas não muito distantes daquelas expostas pelos Situacionistas no seu “Projeto de embelezamentos racionais da cidade de Paris”, de 1955 (PRIETO, 2010, p. 82). É claro que cabe questionar os alcances de tais brincadeiras. Delas parece possível fazer a mesma crítica que se faz do famoso lema de maio de 68 “a imaginação ao poder”; um lema que facilmente vem à mente quando se pensa no projeto da candidatura presidencial de Macedonio e seu plano de conquista de Buenos Aires para a Beleza. Ernesto Laclau dizia que a consigna “a imaginação ao poder” é “simplemente el postulado de un poder imaginário”, isto é, sem eficácia prática, posto que não leva a uma organização que dispute o poder político154. Das brincadeiras de Macedonio se pode dizer o mesmo, que não têm nenhuma incidência na política real. Mas se o valor dos planos-brincadeiras de Macedonio, como de algumas consignas de maio de 68 (“sejamos realistas exijamos o impossível” é outra delas), não está na sua incidência na política real, pode está-lo como recusa a se conformar com o que parece politicamente viável em um determinado momento. Em palavras de Ricardo Piglia: Si la política es el arte de lo posible, el arte del punto final, entonces la literatura es su antítesis. Nada de pactos, ni transacciones, la única verdad no es la realidad. Frente a la lengua vigilante de la real-politik, la voz argentina de Macedonio Fernández. «Emancipémonos de los imposibles», decía, «de todo lo que buscamos y creemos a veces qué no hay, y peor aún que no puede haber. Nada entonces debe detenernos en la busca de la solución plena, sin restricciones, ni resabios irreductible. (2000, p. 123)

Esta apreciação está certamente em consonância com as palavras do presidente no Museo: “todo asunto para serlo de Arte ha de ser imposible”, porque “para lo posible hay la vida y para ésta e igual a ella (¿para qué, pues?) el realismo” (1943, p. 204)155. A arte só se justifica porque obriga a pensar no impossível, colocando em questão o realismo, ou melhor, nossa crença nele. O combate à realidade seria, na 154

Tomou a declaração de Laclau de uma entrevista que lhe fez a jornalista Carolina Keve em 2010. Disponível em http://www.iade.org.ar/modules/noticias/article.php?storyid=3111. Última consulta 4 de fevereiro de 2016. 155 Cito aqui segundo a versão do prólogo aparecida na revista Revista de las Indias em 1943, pois na edição crítica a passagem é confusa.

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verdade, um combate à crença. É ela que deve ser derrubada, como o indica “El evangelio del no creer”: “Creer menos. Hay que crear un fanatismo del no creer” (FERNÁNDEZ, 1999, p. 285); Como vimos, em Adriana Buenos Aires, Macedonio reproduz e expõe os mecanismos pelos quais o romance realista captura a emoção do leitor e obtém seu convencimento. Essa é sua estratégia para interromper a crença do leitor e possibilitar outros usos do romance. Uma estratégia semelhante é empregada pelo escritor no tocante à política em sentido mais restrito. Por exemplo, no seu plano para chegar ao poder, referido por Borges no prólogo de 1960, que consistia em provocar o caos social através de inventos disparatados (como o açúcar que impede de adoçar o café ou as escadas com degraus irregulares) para que logo o escritor fosse apresentado como o presidente capaz de resolver esses problemas156. Desse plano não se pode dizer que seja pura fabulação. Ele apropria e expõe estratégias efetivas de tomada e controle do poder público: semear o caos e o medo e depois se apresentar como a única opção de manter a ordem e a segurança. Como sugere Ana Camblog, essa mesma exposição de uma estratégia de tomada do poder público, e de jogo com ela, está implicada na recorrência de Macedonio de prometer e não cumprir (p. 158). Contudo, é evidente que, neste último caso, o mais interessante não é a exposição dessa estratégia – na verdade um lugar comum sobre os políticos –, mas o uso desviado que dela faz Macedonio. Se a promessa política tradicionalmente serve para que um grupo de indivíduos se apodere do Estado e, através dele, da riqueza produzida por uma comunidade, a promessa em Macedonio trabalha em sentido contrário, em favor da desapropriação: na transformação do que seria uma obra

156

O plano reaparece com ligeiras modificações no Museu, onde são pensados inventos disparatados para afetar a população de Buenos Aires e assim “tornarla dócil a la hueste presidencial” (p. 200).

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reivindicada por um Eu em escrita impessoal, em uma escrita de quem nenhum Eu se pode dizer proprietário. Se Macedonio defende, por vezes, em diferentes momentos de sua vida, o indivíduo máximo e o Estado mínimo, com clara inspiração liberal; não é menos verdade que sugere a necessidade de se ir para além do indivíduo, atacando o Eu que quer escrever seu nome – em um ato apropriador – tanto nos acontecimentos políticos quanto literários. Podemos acrescentar aos exemplos já dados, as críticas que, em Adriana Buenos Aires, Eduardo faz ao Fausto de Goethe e ao Rei Lear de Shakespeare por estarem os dois movimentados pelo “mismo afán de ruido, de hinchazón y acumulación”. No caso específico do Fausto, Eduardo afirma que Allí Goethe pinta a un hombre cualquiera con la pluma de un hombre cualquiera. Los hombres cualesquiera quieren riqueza, poder políticos, que los contemporáneos se ocupen de ellos y los venideros se acuerden de su nombre y apellido. Hacen lo mismo el teléfono y un plan de reformas del derecho de propiedad que una sonata, verso o cuadro de amor. (p 199).

Contra esse impulso monopolizador que se exprime tanto na literatura quanto na política, Macedonio escreve; não faz obra, simplesmente escreve. Em Adriana Buenos Aires, além de a Fausto e ao Rei Lear, Eduardo se refere ao Luzbel de Milton, sobre o que indaga: “para qué quiere Luzbel ser Dios. ¿Será para pavonearse, como un monarca o un erudito, por los dominios de su poder o de su saber? ¿O para realizar un gran amor libre de restricciones?” (p. 202). A questão aparece com outra formulação em um texto da década de 1920, intitulado “Dijo el Presidente”, possivelmente vinculado com o plano da campanha presidencial. Nele se diz que se fosse perguntado para o presidente o que faria como presidente, ele diría que aunque Milton nunca dijo para qué quería Luzbel el Cielo es seguro que era para hacer felices a sus amigos, trabajar reunido con ellos y procurar dar a la vida de todos mayor gracia; mayor inspiración, soltura; disminuir — por la sola acción del ejemplo y de la libertad — la sofocante manía pecuniarista, la manía reglamentista de los Gobiernos y Congresos. (1989, p. 167)

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O texto funciona como a explicação que falta no Museo, onde não se sabe por que há um Presidente. Um Presidente do qual podemos dizer, pelos planos que impulsiona (as reuniões na “Estancia” e a conquista de Buenos Aires para a Beleza), que atua movimentado pela amizade e pelo desejo de “dar a la vida de todos mayor gracia”. Que um presidente atue por amizade – por compadrio – não causa estranheza. Nisso o presidente do romance se assemelha a maior parte de presidentes. Aliás, como aponta Ana María Camblong, o fato de que o Presidente esteja assentado em uma estância, faz com que seja possível deduzir que ele faz parte de “una trama sociocultural que anuda con una tradición prestigiosa de la alta burguesía argentina, cuyo poder económico, político y social sella su clave más representativa en la Estancia” (2003, p. 361).

Como mostra Camblong no seu estudo, no Museo,

Macedonio “revela secretos de Estado” (ainda que vários deles não sejam tão secretos), expondo aspetos fundamentais do funcionamento tradicional do poder na Argentina. Contudo, o interessante aqui, uma vez mais, não é só o que Macedonio expõe, mas os usos desviados que faz. O Presidente do Museo é um presidente sem Estado-nacional. No máximo, é um presidente contra o Estado-nacional ou, pelo menos, do Estado-nacional tal e como ele se configurou. Isto é possível de afirmar a partir de seu plano de conquista de Buenos Aires para a Beleza. Essa conquista consiste fundamentalmente numa operação na história nacional. A beleza que se conquista é “la beleza de la no-Historia”. A história nacional não tem como ser bela, por um lado, por estar edificada sobre fatos violentos (“entre esos hechos están: el fusilamiento de Dorrego; el martirio de Camila O'Gorman, el destino de Irma Avegno” [p. 202]); por outro lado, sua “fealdade” é consequência de ter se transformado na história de apenas alguns indivíduos. Quando no romance se fala da “beleza de la no-Historia” se faz referência a liberação da história 218

dessa apropriação e sua devolução à vida comum (a vida das pessoas do comum e a vida em comum). Por isso, com a conquista se suprimieron los homenajes a capitanes, generales, abogados, gobernadores […]; se dejó su muerte a los muertos y se habló sólo de lo viviente: la sopita, el mantel, el sofá, la lumbre, el remedio feo, los zapatitos, la escalerita, el nido, la higuera, el pino, el oro, la nube, el perro, ¡Pronto!, las rosas, el sombrero, la risa, las violetas, el tero (qué más hermoso que aprovechar la hablilla de los niños para hablar de Alegría); plazas y parques con los nombres de las máximas vivencias humanas, sin apellidos; calles de la Novia, el Recuerdo, el Infante, el Retiro, la Esperanza, el Silencio; la Paz, la Vida y la Muerte, los Milagros, las Horas, la Noche, el Pensamiento, Juventud, Rumor, Pechos, Alegría, Sombra, Ojos, Paciencia, Amor, Misterio, Maternidad, Alma. (p. 203).

A retirada dos sobrenomes equivale a tirar títulos de propriedade da história nacional, com o qual se coloca em questão a propriedade (no duplo sentido) do Estado que se legitima nela. Que Macedonio via a historia nacional como forma de apropriação indevida fica patente em uma passagem inédita de seus cadernos: “Terminada la novela he pensado proponerla para Historia Nacional a los parlamentos [...] no sólo obtendré así su venta sino que pronto tendrán pension todos los personajes o sus deudos pues para eso se hacen las Historias” (Apud CAMBLONG, 2003, p. 366). O Estado que se legitima em essas “Histórias” só pode ser um Estado usurpador, tal como o descreve Eduardo, em Adriana Buenos Aires: “el negocio más usurario que se practica en el país lo hace el Gobierno, que legisla la usura, y con fines de supuesto altruísmo” (p. 175). Para Macedonio o verdadeiro altruísmo é a despersonalização, a retirada dos nomes próprios – que, na verdade, sempre são impróprios como disse Derrida –. Essa retirada é efetuada na conquista de Buenos Aires, no Museu, e é o último gesto inscrito no romance, posto que Macedonio termina retirando seu nome como autor dele, deixando a escrita do livro aos outros: “el autor […] deja autorizado a todo escritor futuro de buen gusto e impulso y circunstancias que favorezcan un intenso trabajo, para corregirlo lo más acertadamente que pueda y editarlo libremente, con o sin mención de mi obra y nombre” (p. 253).

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Dado que o plano do presidente é uma conspiração contra a história nacional, não é de estranhar que seu complô parta de uma “estancia”, esse lugar que entre o final do século XIX e começos de XX adquire o status de origem da identidade e da riqueza argentina. As ações do romance de Macedonio partem de uma “estancia”, mas de uma que leva por nome “La Novela”. Macedonio convida a pensar na estância, nesse lugar rural que a literatura argentina assinala como fonte da identidade, como um romance. Um romance do qual seria dispensável a personagem do gaúcho, que não é incluido no Museo. Macedonio e mais de uma ocasião teria manifestado seu ceticismo de personagem tão venerada. Segundo Borges, o escritor dizia que os gaúchos eram “un entretenimiento para los caballos de las estancias” (1961, p. 21). Ricardo Piglia, por sua vez, recolhe a seguinte declaração de Macedonio no seu Diccionario de la novela de Macedonio Fernández: “triste es la vida del gaucho, siempre hablando en verso” (2000, p. 49). A exclusão do gaúcho do Museo é expressiva da virada que propõe o escritor com relação ao tratamento literário da estância. Se dela partiram as obras literárias a partir das quais se modelou o ser argentino, Macedonio fará que dela parta um romance que tem por objetivo fazer que o leitor perca a ilusão de ser (“tú, lector, que podrías ahora entrarte en mis páginas, perderte del ser y librarte de la realidade” [1990, p. 176]). O que interessava a Macedonio não era a construção de uma identidade, mas “quitar el yo, desacomodar interiores, identidades”, considerando que esta tarefa era a única que justificava a existência da literatura. Nada mais natural, por isso, que às demandas nacionalistas da época, Macedonio respondesse com comentários como o que faz sobre o Recienvenido, um de seus alter egos literários: “tuvo por únicos amigos a Mark Twain, Sterne y Gómez de la Serna «buenos criollos» todos” (1989, p.24). A sentença indica, provocadoramente, que o “criollo”, o mais argentino, pode ser algo 220

estrangeiro. Algo estrangeiro que, por outro lado, não é mantido em tal posição, mas que é colocado em outro lugar, que o converte em outra coisa, em criollo. Em outras palavras a identidade argentina, como toda identidade pós-colonial, surge de desvios. 4.5. Um comunismo literário anacrônico? Ao longo deste capítulo utilizamos repetidamente a palavra “desvio”, que é a tradução comumente empregada no português para detournement. Com isso, seguimos a sugestão de Julio Prieto para quem as operações literario-políticas de Macedonio podem ser interpretadas como detournements em sentido amplo. É preciso lembrar que os próprios Situacionistas chamavam a atenção para o fato de que os procedimentos que denominavam detournements não eram uma invenção deles, mas “uma prática generalizada” (DEBORD, 2006, p. 222). Em certo sentido, “desvios” acontecem o tempo todo; a todo momento elementos existentes são recontextualizados e adquirem novos sentidos. No campo artístico, o desvio como uma prática calculada – a intencional e explicita recontextualização de elementos preexistentes – teria sido popularizado pelas vanguardas. Duchamp é o nome de referência obrigatório a respeito e os Situacionistas não deixam de citá-lo, ainda que para manifestar a necessidade de ir além do bigode na Mona Lisa (p. 221). Para eles, era preciso ir até o que, em um determinado momento, denominam um “comunismo literário”. Os Situacionistas estudam e sistematizam as práticas de detournements para fazer delas um instrumento de luta para este fim, um instrumento que seria já uma forma de realização, pois ele seria um primeiro “esboço” – uma primeira versão, “première ébauche” – desse comunismo: O desvio [...] contrariando todas as convenções sociais e legais, não pode deixar de parecer um poderoso instrumento cultural a serviço da verdadeira luta de classes. [...] É um verdadeiro meio de educação artística do proletariado, o primeiro esboço de um comunismo literário. (p. 225)

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Com esse curioso detournement, que junta duas palavras que normalmente se pronunciam por separado – comunismo e literatura –, os situacionistas parecem apontar para o objetivo de “eliminar toda noção de propriedade pessoal” (p. 222), o que necessariamente implica eliminar a ideia de eu autoral, de gênio individual artístico. É em pontos como este que Macedonio, que se dizia cético da luta de classes tanto quanto do comunismo, parece em sintonia com os Situacionistas. Ele realiza uma serie de desvios – da promessa política, da forma romance, da palavra “estância” – com o objetivo de produzir uma escrita que desfaça a ilusão de Eu e, portanto, de indivíduo. Descrente da existência de um Eu individual, Macedonio desacredita também da ideia de “propriedade pessoal” como bem o mostram seus elogios do plágio, Podría no sólo legitimarse esta conducta [el plagio] sino realizar una gran escuela, o mejor, una revolución en el arte (pues el procedimiento puede extenderse de la literatura a las demás disciplinas artísticas). Proclamar la libre apropiación de los bienes del genio y del ingenio, o socialización de la inteligencia, si gustáis. (Apud PRIETO, 2002, 134).

Cabe lembrar ainda que nem Adriana Buenos Aires nem o Museo de la novela de la Eterna se apresentam como obras acabadas de um autor, mas como escrituras abertas que demandam a intervenção de outros. Isto faz que Macedonio pareça próximo do “comunismo literário” já não só como enunciado pelos Situacionistas, mas também por Jean Luc Nancy, que no final da década de 80 usa esta expressão, ainda que sem ter em mente aos Situacionistas ou sequer a Guy Debord. O “comunismo literário” nomeia em Nancy uma forma de articulação (NANCY, 2000, p. 95) que não é a das partes em um todo ou em uma unidade de sentido, mas de singularidades em comum, uma “comunidad sin comunidad”. O comunismo que lhe interessa pensar a Nancy é esse comunismo sem comunidade e ao vinculá-lo com a literatura entende por esta “escrita” no sentido que lhe dá Derrida: “la interrupción, la suspensión y la «diferencia» del sentido en el origen mismo del sentido” (p. 86n). Nancy fala de uma literatura que

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interrompe a obra, inoperativa, não orgânica; termos que descrevem bem aquilo que Macedonio – esse crítico do Estado e do Eu – exibe, põe a vista, na sua escrita. É possível ver em Macedonio um precursor de Nancy ou de outros pensadores mencionados ao longo deste capítulo como Debord, Deleuze ou Agamben? Ou ainda de maio de 68? Se fosse possível falar em precursor seria, claro, em um sentido borgeano: o precursor entendido como efeito posterior, como resultado de que nossa leitura de um autor “afina y desvía sensiblemente nuestra lectura” de autores anteriores (BORGES, 1984, 711). Dizemos sentido borgeano, mas poderíamos dizer sentido macedoniano, posto que já Macedonio escrevia que “no es el segundo inventor sino el primero quien comete el plagio” (FERNÁNDEZ, 1987, p. 142)157. O “inventor” posterior nos faz sentir que “inventores” anteriores já diziam o que ele afirma. Macedonio faz esta afirmação no título de um texto em que se refere ao plágio que dele fez um autor que publicou 200 anos antes que ele, Brillat-Savarin, que sin ninguna incomodidad especial se obtuvo una ubicación anterior a mí en esa sucesión de nadas que se llama el Tiempo, que escribía cuando los franceses libertaban cabezas a guillotina y los ingleses gibraltaban, ni siquiera me presiente, cuando hasta debió citarme puesto que en alta metafísica el tiempo ni tiene pasado ni porvenir (p. 143).

Dizer que a Brillat-Savarin caberia ter citado Macedonio, ou que a Macedonio caberia ter citado Nancy ou Debord é uma maneira de desacreditar na cronologia, de quebrar a linearidade de uma história que faz dos acontecimentos passados coisa do passado. O tipo de leitura deliberadamente anacrônica proposta por Macedonio leva a encontrar a intempestiva atualidade do que parecia ter ficado lá atrás. Mas se isto justifica esse tipo de leitura, não dispensa do esforço contrário, o de contextualização, sob o risco de só dizer generalidades esvaziadas.

157

A antecedencia de Macedonio neste tema é defendida por Daniel Attala (2009, p. 88).

223

No caso de Macedonio, fazê-lo dialogar com pensamentos formulados posteriormente e em outros contextos é uma maneira de mostrar que seus planos “literário-políticos”, seus projetos conspirativos contra o Estado e a literatura, tem algo a dizer para além de seu contexto temporal e espacial. Aliás, essa extrapolação contextual não resulta muito surpreendente visto que nem o Estado nacional nem a literatura são uma exclusividade de sua época e de seu lugar. Contudo, é necessário também insistir na especificidade do contexto em que Macedonio faz suas formulações, inclusive para tentar entender os limites que encontraram seus planos conspirativos, e pensar num além destes. 4.6. O desvio latino-americano e os limites do complô macedoniano. Haveria que insistir, por exemplo, nas particulares ressonâncias que o desvio – essa estratégia empregada por Macedonio – tem na história da América Latina. Devido à  história colonial do continente ele tem chegado a ser considerado uma marca de nascença. Por exemplo, Silviano Santiago escreveu: “A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor” (1978, p.22). América Latina instauraria seu lugar particular, diferenciado, entre a aparente aceitação de uma norma vinda de centros internacionais de poder e seu uso desviado, transgressor. Norma e desvio também são uma chave para pensar a América Latina, e particularmente o Brasil, no caso de Roberto Schwarz; ainda que para ele, diferente de Santiago, é preciso enfatizar a recorrência com que as normas não são usadas de forma transgressora, mas acomodatícia para a manutenção de certa ordem colonial, o que faz ver o lugar do Brasil – e da América Latina – menos promissor “no mapa da civilização ocidental”.

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Apesar das diferenças, Schwarz, como Santiago, acredita em certos usos “desviados” dos modelos por parte de escritores latino-americanos, nos quais estariam cifradas a possibilidade de uma superação do colonialismo. O exemplo que oferece Santiago é, não por acaso, Borges, o primeiro latino-americano reconhecido como um grande escritor na Europa. Schwarz, por sua vez, como sabemos, se debruça sobre a obra de Machado de Assis, mostrando que o escritor teria adotado “a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre” para fazer algo muito diferente do que eles: revelar os desajustes que fazem com que o Brasil não seja o Estado nacional moderno que pretenderia ser desde a independência. Cabe precisar que, segundo Schwarz, Machado pode fazer isto devido não só a sua apropriação de modelos clássicos europeus, mas de uma experiência literária acumulada local. Seriam essas duas coisas que permitiriam a Machado encontrar uma forma ajustada aos desajustes nacionais e dar um pulo que o país não daria, ainda que a obra literária sugira que também poderia dar. Por outra parte, esse pulo não seria suficientemente justo, na medida em que – como vimos no primeiro capítulo – a forma encontrada por Machado repete uma exclusão fundadora do Estado nacional brasileiro, a exclusão dos indígenas. Considerados esses excluídos, a forma machachiana não parece ajustada, nem cifrar nenhuma forma de ajustamento. Ela se revela limitada ou insuficiente, não suficientemente justa, como resposta às desigualdades e desequilíbrios resultantes da herança colonial de nossos países. Vistas assim as coisas, outros ajustamentos e desvios parecem necessários. Ou, retomando os termos de Santigo, “o ritual antropófago da literatura latino-americana” (p. 28) mostra a necessidade de outro tipo de antropófago e, talvez, de antropofagia. Quanto a Macedónio Fernández, quais seriam os desajustes de sua obra, ou melhor, se sua antiobra? Quais os limites de sua proposta literário-política? O primeiro que se deve observar é que a questão do limite, de uma espécie de insuficiência, está 225

muito presente no Museo de la novela de la Eterna. Nele, o presidente enfrenta uma persistente sensação de insatisfação, apesar do sucesso de seus empreendimentos: La Acción se ha cumplido y las almas no se han colmado; la Acción sin la Pasión sigue para el Presidente sin sentido. Por eso puso punto a aquélla con conciencia de haberse cumplido en todas sus partes, con el resultado que de ella se esperó, pero al mismo tiempo sintió que su alma nada había logrado. (p. 244).

Essa sensação de insatisfação do Presidente se espelha no autor, que, como vimos, termina o seu romance apontando as insuficiências deste e demandando, por isso, a intervenção de outros: “mi presente libro está muy lejos de cumplir la fórmula de la belarte de personajes por la palabra. Queda también esto, pues, como  «empresa abierta»” (p. 254). Segundo a passagem acima citada, o Presidente se sente insatisfeito de suas ações pela falta de paixão, mas essa não é a única explicação oferecida pelo romance. Em outro momento, se indica que a realização deixa ao descoberto uma falta ou insuficiência. Assim, se afirma que o Presidente

después de la Conquista de Buenos Aires para la belleza, vuelto a «La Novela», despertó un día con la tristeza de haber descubierto que la ciudad es una fealdad irremediable, por lo mismo que renuncia a la más accesible ilimitada y constante recreación e incitación: la Naturaleza. Fue necesario que concluyera la Conquista para sentir el vacío creado por esta enigmación de su obra: ¿Debe la ciudad existir? ¿No es pobrísisma comprensión, yermo pensamiento, creer posible una ciudad con belleza, sostener en Belleza lo que vive en omisión de Naturaleza? (p. 229). [grifos nossos].

Se, como vimos, com a Conquista de Buenos Aires foram retiradas as homenagens “a capitanes, generales, abogados, gobernadores” das ruas, para que nelas fosse possível a vida comum, o Presidente termina descobrindo que aquela vida não é viável com a exclusão da natureza. Segundo o Presidente, com essa exclusão não há como entender “cosa alguna, ni tener cordialidad con cosa alguna” (p. 229). A impossibilidade da cordialidade indica a impossibilidade do convívio e, portanto, da vida, já que viver é sempre viver-com-outros como cada vez tem sido dito com mais insistência por diferentes acadêmicos e comunidades.

O Presidente exprime uma

preocupação ecológica que surge com o desenvolvimento das grandes cidades e que 226

hoje parece ter chegado a seu ápice. Como solução, não oferece nenhum plano concreto, apenas se refere a necessidade da

contemplación de la naturaleza, la de la vida animal salvaje en su espontaneidad, y la de las moradas y obras de la humanidad más antigua con su sugestión del tiempo; las moradas del vivir humano, no tanto las pirámides y dólmenes; las pirámides quieren vivir para el futuro mientras las casas quieren vivir para el presente, vivir para morirse, para la actualidad de cada instante. (p. 239).

A menção da “vida animal salvaje en su espontaneidad” é convencional, mas não a das “moradas del vivir humano” em que parece haver uma chave para pensar numa forma alternativa de habitar. Mas o Presidente não diz mais nada a respeito e logo depois desse comentário só insinua o que ele considera como a melhor alternativa para as cidades modernas: “una nación dispersa en granjas que forma una ciudad compacta de quince millones de habitantes en ciento cincuenta millones de hectáreas” (p. 239). A enigmática passagem se esclarece quando se atende ao plano de Macedonio da “Ciudadcampo” que, como tantos outros de seus projetos, terminou formando parte do Museo, ainda que só nesse comentário esporádico. O projeto parece ter sido concebido no começo da década de 40. A ele encontramos referências em algumas cartas e num texto intitulado “Mi folleto”, recopilado no volume Teorias de suas Obras Completas. Neste último, é apresentado como a realização da “suprema belleza civil” e descrito como “el entrañable inmenso conjunto de una ciudad de 2.000.000 de chacras, en propiedad, trabajadas familiarmente, y varios miles de fábricas en torno a las cuales se agruparían los que las trabajaran” (1990b, p. 185). Nessa comunidade ninguém viveria “para el jornal, es decir para vender trabajo por dinero y comprar mercaderías con el dinero”, posto que “el 50% de todo el consumo de un obrero y su familia debe ser de producción directa y para esto cada hogar debe tener un área de terreno cultivable” (pp. 183-184). Isso garantiria um amplo nível de autonomia a cada família, que não se veria limitada por 227

nenhuma forma de governo: “Dirán ustedes: ¿Y una casita para el Superior Gobierno no habrá? Si es por casitas, van a sobrar, pero, ¿qué hará un Gobierno en una ciudadcampo?” (p. 184). A cidade-campo pode ser descrita como uma comunidade anarquista, onde predominaria a vida familiar (“mínimo de Calle, máximo de Casa”) e a relação harmônica com o entorno natural158. O projeto mostra um Macedonio que não só se interessava por impossíveis artísticos ou por produzir com a literatura uma “conmoción total de la conciencia”, mas que também tentava imaginar alternativas concretas de vida em comum. Contudo, é justamente nesse momento em que aparecem mais claramente certos limites do pensamento de Macedonio e de sua escrita. Se há algo de que se sente falta na proposta de comunidade anarquista que faz o ex-candidato a presidente Macedonio Fernández é de comunidade, posto que ela é formulada de cima para baixo. Algo semelhante pode ser dito dos planos da campanha presidencial de Macedonio, assim como das ações do Presidente do Museo. Se estes não visam a toma do poder do Estado, mas fazem parte de um complô literário-político que procura formas de não governo, ao mesmo tempo esse complô não deixa de ser coisa de um grupo de vanguarda; de uma “diminuta pero eficiente hueste” (1990, p. 200), como se diz do grupo que sai a Conquista de Buenos Aires no Museo. Um grupo que não fala com os marginalizados159. Apesar da radicalidade de seu pensamento, que questiona a ordem social estabelecida, apesar do desapego aos privilégios e aos reconhecimentos, ainda é 158

Ainda cabe destacar uma característica da Ciudad-campo imaginada por Macedonio, que o aproxima novamente dos Situacionistas: Ela “concluye con [...] el Cinematógrafo y los Espectáculos ‘hechos’, sin la colaboración de todos” (p. 189). Para mais detalhes do projeto de Macedonio ver o apartado “Countryside” do livro de Todd Garth (2005, pp. 179-183) 159 Para uma crítica da vanguarda política nesse sentido ver o artigo “Las revoluciones contra las vanguardias” de Raúl Zibechi. Disponível em http://www.jornada.unam.mx/2011/06/17/opinion/023a2pol. Última consulta 4 de fevereiro de 2016.

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perceptível certo elitismo em Macedonio. Este se pode sentir, por exemplo, na passagem do Museo em que a personagem ideal da Eterna se presenta ao leitor, com frases em que o “quizá” não questiona, mas enfatiza o afirmado: De pronto, más suave la actitud y la rica voz cortés, Eterna se vuelve a tí, lector, y te dice: — Te hablo, lector; la Eterna soy; una mujer quizá noble, quizá hermosa y fuerte en el pensar, de sentimiento generoso y de grave destino, quizá altiva y de majestuosas maneras, quizá de suntuosa casa y de generaciones principales. (p. 233-234).

Adriana, a protagonista do último romance ruim, não é de descendência nobre como a Eterna, mas tem um “torneado y blanco cuello” (p. 16) e um “bello rostro” que é contrastado por Eduardo, o protagonista alter ego de Macedonio, com “la cara negruzca, la nariz anchísima de la muchacha Petrona, la cocinera” (p. 19). O comentário racista seria tão só uma reprodução dos chavões dos romances da época ou exprimiria uma valoração do autor? Seja como for, não são poucas as vezes em que se sente que Macedonio fala desde um lugar privilegiado (que não só é de classe) não suficientemente questionado. Se a forma disforme das obras de Macedonio, suas antiobras, demandam a participação de outros autores – ou atores – estes certamente teriam de vir de lugares não previstos pelo escritor. Nesse sentido, poderíamos dizer que para levar adiante o projeto literário-político de Macedonio, seria necessário um complô do complô. A multidão dos marginalizados, dos não contemplados, corresponderia a apropriação e realização do projeto macedoniano, ou seja, ocupar a literatura e o Estado para suspender seu funcionamento. Até lá – até que aconteça essa suspensão –, parece improvável que se possa deixar de falar de literatura, de Estados nacionais e de fora do lugar.

 

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CONCLUSÕES Neste trabalho, tenho defendido que a literatura nunca foi uma ideia no lugar na América Latina. Tal defesa parte da constatação de que não houve formação de Estados nacionais soberanos e inclusivos, e não é mais possível acreditar que haverá; motivo pelo qual falar de uma literatura brasileira ou latino-americana formada perdeu o sentido. Daí que uma pergunta que reaparece com insistência nos últimos anos é o que se quer dizer quando se fala de literatura brasileira ou latino-americana. Uma das tarefas que se desprende do anterior é reler com outra perspectiva os autores que foram considerados o ponto de chegada de um processo formativo: tanto os do período do chamado boom (e aqui nos ocupamos de um deles, Guimarães Rosa) quanto de um Borges ou um Machado de Assis. Em todos eles algo toma forma, mas também algo não se resolve em uma forma e, ainda, desafia a forma. Uma leitura que se queira justa desses autores não pode prestar atenção só ao primeiro, mas também ao segundo. Uma leitura justa, ou seja, uma leitura que tenha como horizonte a justiça. Se ainda hoje faz sentido falar em desajustes da forma e, de maneira geral, de “ideias fora do lugar” é justamente em consideração desse horizonte; como recusa a aceitar o capitalismo global como forma última do mundo. Por outra parte, se a perspectiva da formação nacional desapareceu, isso não quer dizer que os Estados nacionais sejam coisas do passado nem que nada tenha tomado forma sob o título literatura latino-americana. Ambas as coisas continuam muito presentes e, como indica Roberto Bolaño, não há mais remédio que seguir lidando com elas; mas não da mesma maneira. Longe de continuar vinculando a literatura e os Estados nacionais com algum tipo de promessa redentora, seria preciso adiantar uma crítica implacável delas, reconhecendo suas implicações na história da colonização, que

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é indiscernível da história da globalização do capitalismo. Isto seria necessário para dar lugar a histórias e formas radicalmente diferentes. Da urgência de adiantar esse labor falam autores do presente, mas também, intempestivamente, autores do passado como Macedonio Fernández. Como vimos, o projeto literário-político do Macedonio era ocupar a literatura e o Estado para miná-los. Isto pode parecer uma reformulação do liberalismo, mas, na verdade, trata-se de outra coisa. Antes do que um Estado mínimo para um indivíduo máximo, que autor dizia ter como ideal político, sua escrita visava uma suspensão do Estado e do indivíduo. Claro que se a escrita de Macedonio esboça um gesto nesse sentido, em certo ponto se detém, e refletir sobre as limitações do projeto macedoniano é também pertinente na atualidade. A nosso ver, sua maior limitação teria sido formular seu projeto como o de um grupo de vanguarda, o que o levaria a desconsiderar a necessidade de escutar e atuar em conjunto com os marginalizados. Certamente essa escuta e essa atuação estão ausentes também nesta tese, cuja forma está, obviamente, longe de ser ajustada. Talvez não esteja mal terminar este trabalho assinalando uma grande insuficiência, a maneira como faz Macedonio em seus romances. Fica assim em aberto a tese, demandando uma escrita futura mais justa.

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