A logomaquia do mercado secular/gospel na música brasileira

May 31, 2017 | Autor: Victor Barcellos | Categoria: Musica Brasileira, Indústria Cultural
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

Victor Gomes Barcellos Número USP: 8545253

A logomaquia do mercado secular/gospel na Música Brasileira

Teoria da comunicação Professor Dr. Vinicius Romanini

São Paulo Dezembro de 2013

1. RESUMO Este artigo proposto na disciplina Teoria da Comunicação se dedica a explanar o mercado musical brasileiro, considerando seu repertório como meio de comunicação que promove integração e desenvolvimento, mas destaca a logomaquia no dualismo gospel/secular que revela as contradições produzidas pela indústria cultural e propõe uma solução na adequação morfológica de gospel para música brasileira de raiz cristã. Para tanto, apresenta breve histórico a respeito da arte e religião, fazendo referência às correntes filosóficas de cada época, expõe a atual situação do mercado musical brasileiro apontando sobre que estruturas e interesses este é condicionado e aponta um pós-movimento-gospel. Palavras chave: logomaquia; gospel; música brasileira; raiz cristã.

2. INTRODUÇÃO

Destarte se faz necessário reconhecer nosso país como a junção num mesmo território de diversidades culturais, sendo muito melhor expresso por “brasis” do que por um Brasil homogêneo. A riqueza no hibridismo da cultura constitui patrimônio histórico característico da nação. Esse olhar multilateral é o principal pressuposto dos Estudos Culturais, seja qual for o lugar onde estes forem desenvolvidos, e por isso encontram grande potencial na conjuntura brasileira. “Compreende-se a cultura não como uma expressão orgânica de uma comunidade, nem como uma esfera autônoma de formas estéticas, mas como um contestado e conflituoso conjunto de práticas de representação ligadas ao processo de composição e recomposição de grupos sociais” (Frow e Morris, 1997: 345)

Contudo é prudente se precaver da metafísica da cultura, e também colocar em questão as suas relações com a sociedade, as suas formas, instituições, práticas; bem como se é o enfoque desse artigo: como ela é influenciada e influencia as mudanças sociais. Dessa terra tão fértil que a cultura nacional proporciona, surgem as obras artísticas, que acabam por ser influenciadas pelo contexto e concretizam toda essa diversidade em suas produções. Atribuindo significado, gerando ordem ou desordem, seja

de forma barroca, dadaísta, modernista; são essenciais pois transparecem relações de poder, revelam as contradições, ao invés de serem apenas condicionadas, podem alterar o status quo. E nessa ampla cultura, encontramos “um núcleo que é a fé cristã,a ética decorrente de uma comunidade de fé e consequentemente os artefatos culturais que nascem desse lugar tão vivo.” (Almeida, 2013)

Entretanto, no centro dessa amálgama, encontra-se a indústria cultural, procurando colocar ordem e gerar capital do consumo dessa cultura, posição mais próxima do patrocínio do que do mecenato, que leva a um distanciamento ideológico conflitante entre os empresários e os artistas. Somente no Brasil se designa um único pseudo-gênero pelo teor da sua confissão religiosa ou pelo circuito cultural em que ele atua, ao tentar distinguir os diferentes gêneros acabam por dividir o repertório musical produzido no país. Tal conflito se torna visível no conflito de palavras no dualismo gospel/secular, constituindo uma logomaquia1 agonística. Como diz Riobaldo em Grande Sertão Veredas: “muita coisa importante falta nome”. (ROSA, 1984: 102) Consideramos necessária tal discussão ao perceber que antes de existir qualquer movimento organizado da música evangélica, produções que trabalham com temáticas ligadas à religião cristã já estavam presentes nos mais diversos estilos musicais brasileiros. E assim, possivelmente, poderemos dirimir o fosso que há entre o sagrado e o profano e encontrar a melhor forma de comunicar essa nova realidade que tem se instaurado na arte brasileira, em especial sua produção fonográfica. 3. DESENVOLVIMENTO A discussão intelectual a respeito da importância da música na práxis humana é bastante antiga, e o pensamento filosófico grego é o mais positivo quanto ao lugar desta na vida. Platão, apesar de desconfiar dos sentidos, encontra nela a harmonia da alma humana e o mundo e acredita que esta pode enriquecer a educação, chegando a interferir até mesmo na esfera política; segundo ele a música é mais clara que a opinião e mais escura que a ciência, sendo a filosofia seu auge. Contudo, ela precisa ter uma mensagem, um efeito moralizante, e não apenas excitante. 1 Do grego logos e mach, significa o combate ou luta de palavras, que revela a natureza dialógica do discurso .

No Iluminismo do século XXIIV, sabemos que tudo aquilo que não se podia compreender de forma racional, clara e distinta era considerado irrelevante. Nesse contexto, a arte (incluindo a música) de certa forma toma o lugar da religião, como uma qualidade abstrata, sem conexão com a realidade. Já a partir de Kant, ela é vista como uma solução para as contradições internas dos sistemas filosóficos, mas distanciada da religião, que passa a ser mais particular, sem grandes interferências nas outras esferas da vida. Com estudos relacionados a esta temática, não poderíamos deixar de citar Adorno, que de forma extremamente racionalista, bastante semelhante ao estoicismo, em seus estudos sociológicos da música afirma que esta não tem função sólida. Segundo o autor, influenciado pelos ideiais marxistas, ela apenas contribui para a alienação e a reprodução das ideologias dominantes. E mais contemporaneamente temos o teórico da comunicação Francisco Rudiger, que apesar de concordar com muitas das colocações de Adorno quanto à indústria cultural, é mais moderado do que ele, reconhecendo ser cada vez mais necessária pelo desencantamento com a existência. Por grande influência de tais tendências, notamos que nas últimas décadas “ela tornou-se arte pela arte, um tipo de religião irreligiosa em que a religião não possui um papel claramente definido.” (Rookmaaker, 2010: 10)

Como consequência destas rupturas, aqueles artistas que optam por seguir sua vocação acabam desorientados em como exercer sua função na sociedade. Como reclama Hans Rookmaaker, historiador e crítico cultural protestante do século XX: Espera-se que os artistas trabalhem a partir de suas convicções, mas isso pode ser visto por seus contemporâneos ateus como ultraconservador ou totalmente ultrapassado. (Rookmaaker, 2010: 10)

E se a filosofia e os meios de comunicação têm contribuído para isso, a esfera econômica tem se aproveitado da situação:

''... o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção no centro de seus interesses não teria apenas a ver com aquilo que se materializa e se consome, mas também com aquilo que não se materializou e foi denegado. A pressão social não deixou e, talvez, tampouco hoje deixa que os talentos significantes se desenvolvam. '' (Adorno, 1973: 401)

Isso porque os artistas acabam por depender da infraestrutura, e poucas vezes a mesma é influenciada pela tendência contrária, apesar de possuir grande potencial para isso, problema apontado por Karl Marx. Mas, como aponta o próprio Rookmaaker, Marx receita um remédio pior que a doença. Se conseguirmos uma produção ativa ao invés do consumo passivo, poderemos dar o salto qualitativo tão desacreditado pelos críticos, mas possibilidade reconhecida por Adorno: ''Às vezes, as forças musicais produtivas explodem as relações de produção sedimentadas no gosto: tal como no jazz, que afugentou da moda toda a música de dança não sincopada e a rebaixou à condição de artigo de recordação. De modo inverso, as relações de produção podem acorrentar as forças produtivas; ao menos, esta tem sido a regra nos tempos atuais.'' (Adorno, 1973: 401)

E por causa da demanda, um bem de consumo posto em oferta acaba por ser a razão da produção, e os grandes empresários percebem o potencial que há no nicho evangélico e o exploram, mas gerando problemas com isso, por não usarem de uma constituição concreta. Regidos pelo princípio da menor resistência, não criam e nem organizam de forma embasada, apenas exploram necessidades e predisposições do processo histórico global capitalista. Como afirma Pierre Bordieu do pensamento comunicacional francês:

''Posto isto, o campo da indústria cultural está diretamente submetido a uma demanda externa, vulnerabilizando-se aos imperativos da concorrência pela conquista de mercado. A estrutura de seus produtos é resultado das condições econômicas e sociais de sua produção.'' (Miranda, 2005: 88)

Um dos maiores sintomas dessa estrutura é a perda da liberdade essencial do artista, que passa a produzir também visando interesses econômicos. Como Jurgen Habermas, teórico da comunicação alinhado à Teoria Crítica confirma: '' Não mais apenas a difusão e a escolha, a apresentação e a embalagem das obras, mas a própria criação delas enquanto tais se orienta, nos setores amplos da cultura de consumo, conforme os pontos de vista da estratégia de vendas no mercado.“ (Habermas, 1962:195)

Todo artefato cultural tem na sua própria “genética” uma matriz principal que sustenta seu ser artístico, o que nos leva a crer que toda arte é um tipo de confissão. O sub-gênero musical denominado gospel (do inglês God spell) surgiu no Estados Unidos, que por sua vez foi bastante influenciado do formato africano, com o ritmo Jazz e tem sua origem

atribuída a Thomas A. Dorsey. De uma forma bastante interessante, a música foi um dos maiores responsáveis pela comunicação da igreja evangélica com um Brasil ainda predominantemente católico. Contudo, percebemos que atualmente seu desenvolvimento é interrompido justamente pela separação dos outros gêneros. Podemos exemplificar o que se defende aqui na forma como se encontra segmentada a produção fonográfica brasileira. De um lado, temos Gilberto Gil, Lenine, Arlindo Cruz, entre muitos outros artistas que confessam a Umbanda e o Candomblé em suas produções são chamados por música popular brasileira. De outro, paradoxalmente, temos todas aquelas de confissão evangélica denominadas por gospel, independentemente de seu estilo musical, trajetória ou nicho. ''Ao orbitar em torno dos seres humanos, ela os abraça- tal como se dá no fenômeno acústico- e, de ouvintes, converte-os em partícipes, contribuindo ideologicamente com aquilo que a moderna sociedade não se cansa realmente de lograr, a saber, a integração.“ (Adorno, 1973: 124)

Adorno, apesar de não reconhecer a integração como uma função que justifique a produção musical, afirma que a música contribui para isso. Mas, se aquela que deveria trazer integração se encontra dividida, percebemos a contradição na atual condição. Apesar de tudo isso, tomamos uma posição mais positiva, acreditando que ''o escuro se faz claro aos poucos“ (ROSA, 1984: 147). Encontrar nomes como Palavrantiga, Tanlan, Lorena Chaves nas prateleiras do rock nacional parece ser fruto de uma alteração de consciência. Mas não dos produtores musicais e nem do público em geral, e sim de um posicionamento diferente desses artistas. Inspirados pelas obras de grandes pensadores e críticos como os de Francis Schaefer, Hans Rookmaaker e Gordon Clark; como também de outros artistas cristãos como Bach e Rembrandt; descobriram outro fundamento para determinar identidade, indo de encontro ao pietismo e ao ascetismo 2. Consequentemente, alterações na relação que a sociedade têm tanto com a música quanto com a religião acabam por transparecer no léxico, culminando em novas formas simbólicas que melhor representem. ''A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social“ (Bakhtin, 1979: 22). Pela emergente necessidade de um novo léxico, propomos música brasileira de raiz cristã, que além de ser mais contundente com o status quo, contribui para a extinção do estereótipo e preconceito que recai sobre a target gospel. E ainda assim consegue 2 Movimentos que valorizam as experiências individuais do crente, com uma moralidade ascética e desapegada do mundo material, reduzindo a importância da jurisdição eclesiástica.

agregar a considerável quantidade de obras sacras já produzidas no país, legitimando-as e enriquecendo ainda mais a multiforme música brasileira.

4. CONCLUSÃO Reconhecemos que tratar de entretenimento e religião é um tanto arriscado, enxergar o santo e o profano caminhando “Sobre o Mesmo Chão” 3 para os mais tradicionais pode parecer uma heresia. Mas ignorar as contradições do sistema, as relações de poder e seus sintomas seria pecar por ignorância do potencial que há quando se reconhece a sua natureza espiritual e a sua importância para o desenvolvimento humano. Apoiados por aqueles que pretendem não fazer do palco um púlpito nem do púlpito um palco, vemos um novo caminho, uma nova consciência, que começa pela adequação da palavra a um novo contexto. Liberdade esta que temos em um país que desde a Semana de Arte Moderna de 1922 demonstra independência e desapego para inovar e construir uma identidade que melhor o represente. O que nos faz brasileiros não é só uma língua, uma história e uma geografia em

comum, é a liberdade de falar português com outra

hermenêutica, com outra origem, com uma esperança absurda. De certa forma é uma brasilidade de gente que se sabe temporária, peregrina, uma brasilidade hebraica, de quem é por enquanto e logo não será mais – daí o desapego, o descompromisso que nos torna mais leves para a invenção. (Almeida, 2012)

3

Nome do último CD lançado pela banda Palavrantiga que trata destas temáticas em suas músicas.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CUNHA, Magali. A explosão gospel: um novo olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. http://books.google.com.br/books?id=lDVBCBZVgQMC&printsec=frontcover&vq=cruzadas &source=gbs_v2_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=true. Acessado em 23/09/13 ROSA, João Guimaraes. Grande Sertão:Veredas. 18° edição, Rio de Janeiro: Nova Fronteira ALMEIDA, Marcos. A indústria cultural é um Artefato. http://nossabrasilidade.com.br/aoyago-sobre-as-bases-antes-dos-muros/. Acessado em 18/09/13 ALMEIDA, Marcos.Trilhando um novo caminho.http://nossabrasilidade.com.br/trilhavirandocaminho/. Acessado em 18/09/13 FROW, John, MORRIS, Meaghan. Australian cultural studies. In: STOREY, John, (ed.). What is cultural studies? A reader. 2ª ed. London, 1997. ROOKMAAKER, Hans. A arte não precisa de justificativa. Viçosa: Ultimato, 2010. ALMEIDA, Marcos. Consteção, malabarista e globo http://nossabrasilidade.com.br/constelacao-malabarista-e-globo-de-neve/

de

neve.

MIRANDA, Luciano. Pierre Bordieu e o Campo da Comunicação: Por uma teoria da comunicação praxiológica. EDIPUCRS, 2005. ADORNO, Theodor W. Introdução à Sociologia da Música. Editora Unesp, 2007. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Editora HUCITEC, 2002. RUDIGER, Francisco. Teorias da Comunicação. Editora Vozes, 2005.

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