A luta como factor potenciador de esgotamento de um movimento social

May 26, 2017 | Autor: Rodrigo Almeida | Categoria: Social Movements, Feminist Theory, Social Activism, Intersectionality, Feminist Political Theory
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Rodrigo Nicolau de Almeida
A luta como factor potenciador de esgotamento de um movimento social: em defesa do essencialismo estratégico

Abstract
Neste texto procurámos unir sucintamente algumas peças do debate acerca dos movimentos sociais e o papel da orientação política dentro destes movimentos. Procuramos primeiro proceder a uma definição clara do que entendemos por 'movimento social', 'luta', 'objectivo', 'regra' e 'membro', de modo a enquadrar posteriormente a discussão e providenciar bases sólidas para esta. Em seguida visamos mostrar de que forma diferentes movimentos sociais se hierarquizam em função de pontos de contacto acerca de formas transformativas, e de que forma isso levanta uma forma de valorização alternativa que julga o valor do movimento não pela estrutura da sua acção mas pelo alcance ou adequação desta. Por fim, expomos uma forma de usar o essencialismo estratégico como ferramenta de definição de pautas de acção – um termo admitidamente marcado e complicado numa era de fluidez e liberdade – com vista a tornar movimentos como o feminista mais resilientes a discordância interna e externa, sem sacrificar benefícios pragmáticos.
Keywords: luta, essencialismo estratégico, teoria feminista, movimentos sociais

Primeiro, defina-se um dado movimento social como uma entidade inserida numa estrutura social/ontologia que é composta por a) membros; b) regras e pressupostos que procuram aplicar um dado mundo social possível sobre o mundo social possível actual. Valerá ainda explicitar o que é cada um: as regras incluem a(s) telologia(s) do movimento (o seu propósito transformativo), bem como as entidades onde devem ser injectadas as novas formas sociais, quais as formas de atingir essas formas, etc. Em regra geral, quanto mais regras um movimento social contém mais complexo ele é, e maior a diferença entre o domínio do mundo possível e o contradomínio. Isto faz com que um movimento possa ser muito específico – estar colocado a um nível de generalidade muito restrito. As regras de um movimento social definem quais as acções que devem portanto ser tomadas pelos membros face ao mundo externo.
Deparamo-nos aqui então sob um compasso: será necessário perceber qual a natureza das regras que compõem cada movimento social. Se todas as regras que compõem o movimento social forem igualmente importantes, então os membros tomarão o conjunto das regras como dogma, e considerar-se-á uma relação categórica face à pertença ao movimento: adesão às regras contempla a pertença, não adesão a exclusão. Necessariamente pode ver-se pela natureza dos movimentos sociais que estes contém funções de pertença que não são binárias – um indivíduo pode pertencer mais ou menos a um movimento, tendo maior ou menor adesão às regras desse movimento. Mais ainda, esta função de pertença determina uma determinada ordem face às regras que compõem um movimento – as regras 'mais importantes' são aquelas na qual se atribui um grau mínimo de pertença ao movimento (como no movimento feminista o imperativo 'lutar pela não-discriminação sexual' invalida que pessoas que lutam pela discriminação participem. A definição desses termos por agora não nos interessa; voltaremos a esse tema). Por isso mesmo, do conjunto das regras de um movimento social é possível destacar um sub-conjunto que é fulcral para a pertença. Ao mesmo tempo, e a nível ontológico, estas regras serão aquelas que determinam a identidade do movimento: se o movimento perder estas regras será um movimento diferente (crono ou topologicamente).
Mais ainda, valerá a pena notar que devido a esse factor é possível estruturar diferentes movimentos dentro de um movimento grande: neste caso, a teleologia do movimento torna-se o objectivo principal elencado (ou estes termos no plural), e existe maior especificação. Isto implica também que podem existir contradições dentro dos movimentos sociais: um movimento interno pode discordar de outo em algum ponto não essencial, desde que concordem nas traves centrais (ainda que em grande medida exista também uma tendência expansionista de inflação dos movimentos internos de tentarem outorgar a axioma autoridade – aqui tida como o poder social e influência, que definiremos em baixo – do movimento principal).
Apesar de detalharem em grande medida quais os objectivos que devem ser atingidos, a maior parte dos movimentos sociais assume um de criatividade – cabe aos membros encontrar, numa dada situação social, a melhor forma de prosseguir um dado objectivo. Por isso, com vista a atingir a não-discriminação sexual, é necessário nos anos 20 lutar pelo sufrágio; nos anos 60 pela liberdade sexual; nos anos 2000 pela autodeterminação na gravidez; etc. Uma dada teleologia – acabar com a discriminação sexual – terá vários objectivos subjacentes (acabar com a discriminação salarial, com a objectificação feminina, com a sobredeterminação sexual, etc), que por sua vez se podem fragmentar mais ainda, e por aí fora. A unidade mínima de significação de entre as regras de um movimento social (que será indivisível), poderá chamar-se 'luta', e significará a aplicação directa de uma dada entidade modal sobre a entidade existente. Um exemplo disto tornará claro que queremos dizer: se considerarmos que a falta de bolsos numa *dada* peça de roupa de mulheres é evidência de sexismo, a substituição da peça de roupa por outra com bolsos é considerada uma luta, mais especificamente feminista e contra a objectificação das mulheres (com um argumento que teríamos de tecer nesse sentido). A agregação de múltiplas lutas estrutura os objectivos, e é na sua base que se compõe um movimento social.
O problema que aqui procuramos expor, no entanto, decorre precisamente de chegarmos à noção de luta. Como se trata de uma unidade mínima que visa substituir uma entidade por outra, há a muito real possibilidade que dois movimentos sociais constituam a mesma luta, mas enquadrada em regras diferentes. Neste caso temos uma harmonia de movimentos. Em princípio isto será bom; por exemplo, pegando no anterior exemplo, a sociedade civil de matriz utilitarista em que vivemos pode identificar a falta de bolsos numa dada peça de roupa como prova de falta de praticalidade, e considerar a alteração. No entanto, também pode acontecer que dois movimentos queiram substituir uma entidade por entidades diferentes; ou que os membros de movimentos diferentes discordem quanto ao procedimento a tomar nas lutas. Necessariamente algum dos movimentos triunfará, e dificilmente se pode admitir que essa estruturação é aleatória: existe efectivamente uma arbitragem destes casos, em grande medida pela constituição da opinião pública, a relação desta com a moral, a lei e os princípios culturais que englobam mas não se limitam a estes.
É esta arbitragem que institui uma função de ordenação entre os vários movimentos, que faz com que as suas teleologias tenham uma escala. Esse princípio de ordenação depende inteiramente da cultura em que os movimentos se orientam, e pode variar com o tempo e com as formas específicas, mas tende a ser ou de um tipo consequencialista (os movimentos com mais poder social serão aqueles que trouxerem mais felicidade/minimizarem o sofrimento do maior número de pessoas) ou categórico (os movimentos com mais poder social serão aqueles que melhor aderirem à moral cultural – sendo aí necessário definir moral, provavelmente através de um apelo à lei natural ou algo assim). A valorização dos movimentos será na ordem de critérios consequencialistas ou categóricos; e igualmente os próprios movimentos estruturam a sua acção (a organização das suas lutas) com estes princípios, enfatizando ora mais a relação com as suas regras ora mais o bem generalizado (podendo por vezes expandir a definição de movimento, sacrificar algumas regras, em prol do último, ou em contrapartida, manter a coesão sacrificando utilidade). A estruturação dos movimentos está de certo modo em linha com a valorização que deles é feita.
Deriva disto que diferentes movimentos conterão diferentes níveis de um capital que podemos chamar de poder social – a capacidade de executar uma transformação. O processo de atribuição de poder social faz-se de uma forma peculiar e algo complexa. Sendo que é atribuído externamente, o poder social de uma luta é contingente do acordo entre essa luta e os princípios que orientam a sociedade em que a luta decorre: tendencialmente será mais fácil aceitar a luta X que define que se deve permitir determinado comportamento, que a luta Y que define que se deve condenar determinado comportamento (ainda que esta última possa ser aceite em função de outros critérios). Por isso podemos definir a liberdade como um dos critérios de julgamento das lutas sociais, e possivelmente, o que é tido como mais relevante. De igual modo, a consequência é tida como sendo a orientação moral primária: um acto que não tenha consequências negativas não será visto como tão legítimo como outro que tem essas consequências. Como tal, apesar de partirem do mesmo problema estrutural, perseguir uma mulher, lançar um piropo a uma mulher ou violar uma mulher são perceptivelmente tidos como diferentes e meritórios de atenção diferente – a cada um é concedido um poder social distinto. Outros critérios menores, mas que estão hoje na ordem do dia em termos de poder social incluem: o apelo a valores simbolicamente enraizados na sociedade (como o amor e a comunhão em sociedades de matriz cristã); a moderação e a capacidade de relação em discussão estruturada, muitas vezes utilizando os termos definidos pela sociedade.
Ao mesmo tempo, as várias lutas de um movimento têm diferentes poderes sociais, e certas partes do movimento terão mais poder que outras. O poder social geral do movimento é constituído por estas pequenas lutas, sendo que a imagem do movimento será marcada por um equilíbrio desses vários poderes sociais. Presumamos o neo-nazismo como movimento social. É fácil de ver que o poder social desse movimento será muito baixo porque quase todas as suas lutas vão contra os critérios da sociedade em que estamos. Mas voltando ao caso do feminismo, existem franjas do movimento que têm pouco poder social e que faz apenas sentido que tenham pouco poder social – seria estranho que assim não fosse. O caso do feminismo radical espelha bem isto: sendo que a premissa do feminismo radical é alterar a estrutura em que estamos inseridos, não faria sentido que este fosse consensual socialmente – vai postular aspectos e casos em que a liberdade é menos relevante que o bem estar social comum, e outros em que as consequências só de si não ditam o estado das coisas (ou em boa verdade vai desafiar o postulado de igualdade que a sociedade apresenta, que outras franjas do feminismo questionam mas consideram ser endémico de certos problemas de género específicos).
O poder social de um movimento não se define somente das lutas, no entanto, mas relaciona-se em grande medida com a estrutura geral transformativa de uma sociedade: portanto, será visto positivamente ou negativamente por vários indivíduos nessa sociedade, dependendo das suas posições sociais, como são afectados por essa transformação, de que forma se relacionam com os critérios sociais que antes elencámos, etc. A existência de movimentos sociais directamente conflituais – como os MRA – implica necessariamente uma descida do poder social, dado que se cria mais do que um conjunto de vozes a contestar as mesmas coisas. Tendo em conta o processo histórico, se um movimento for conotado com um conjunto de crenças ou princípios que são num dado momento considerados desadequados pode dar-se precisamente esse mal-entendido, ou noutras instâncias, como no do feminismo, a existência de mal-entendidos sobre o seu significado (derivado em parte da persistência e conflito entre várias vagas de feminismo) também diminui esse poder social – estes são os factores históricos de influência. Por isso pode formular-se uma ideia de simplicidade: quanto mais simples for uma teleologia de um movimento, e mais coesa dentro do movimento, mais poder social ele terá enquanto for tido como válido e não infringir outros princípios.
Portanto, o sistema social transfere poder social para as lutas, e as lutas transferem poder social para o movimento, mas é igualmente verdade que o movimento confere determinado poder social às suas lutas – isto é, as palavras identificativas dos movimentos ganham poder político e conferem maior ou menor poder social às lutas de novo. Por isso, há a real possibilidade de uma luta ter menos poder social do que devia em função de estar associada a um dado movimento: por exemplo, uma luta pela centralização do poder numa dada freguesia pode ser conotada como 'de direita' ou fascista (quer isso seja real ou não, e independentemente dos seus méritos), o que lhe retirará poder social. Ou por exemplo uma luta que se associe ao feminismo junto de sectores particularmente privilegiados vai incorrer em sequenciais e cansativas desconstruções de preconceitos face ao movimento – que são importantes, mas também admitidamente implicam que o desconstruído seja complacente. Em suma: do sistema social para as lutas, das lutas para o movimento social, do sistema social para o movimento, e do movimento para as lutas.
Deriva daquilo que nós aqui estivemos a dizer que com vista a tornar aqueles aspectos de um movimento que chocam ou com a cultura ou com os princípios fundamentais da sociedade, os movimentos se armem com lutas específicas cuja função é principalmente aumentar o poder social das suas outras lutas. Esta separação em certos casos será virtual – ao lado de uma campanha contra a violência doméstica, que visa diminuir os casos através de um aumento da perseguição dos criminosos, virá também essa busca – mas constitui duas funções separadas de uma qualquer luta. Esta função afirmativa complementa a transformativa.
Marca-se então que ao lado de qualquer teleologia de um movimento está a busca por poder social que lhe permita aplicar a sua teleologia. Mas tendo em conta a estrutura atomista dos movimentos – a sua definição em lutas – e a sua estrutura orgânica, e a sua não centralidade, isto rapidamente se torna difícil de executar, sendo que a transformação do mundo social vs a acumulação do poder social se tornam indistinguíveis, e acontecem de forma quase anárquica. Isto levou a que certas pessoas afirmassem com razão que todas as lutas são legítimas e que é nosso dever travarmos a nossa luta (enquanto membros de um movimento social) com vista ao objectivo central. Apesar de isto ser indubitavelmente verdade, há uma possibilidade que ainda não pusemos: o que acontece se se multiplicarem as lutas, e houver uma tendência para a diminuição geral do poder social de um movimento?
Isto pode não parecer muito intuitivo, mas rapidamente se tornará: peguemos de novo no feminismo, e voltemos a considerar a questão dos bolsos na peça de roupa feminina. Podemos por a questão: qual o contributo para poder social do movimento generalizado que esta luta tem? E depois, consoante optemos por um critério deontológico ou consequencialista (ou adoptando os dois, e retirando conclusões de ambos): qual o efeito que essa luta está a ter em geral e por comparação com outras lutas; qual a compaginação dessa luta com os princípios que a governam abstractamente. Estas questões permitem perceber o papel da luta dentro do movimento feminista.
Valerá neste ponto introduzirmos o primeiro tipo de luta a que queremos chamar a atenção. Este tipo chamaremos de transformativa-simbólica: constrói-se uma luta com uma função transformativa na qual a transformação efectiva não constitui uma alteração substancial, mas na qual existe representação simbólica de um problema que é objectivo principal da luta, e portanto procura-se transformar para afirmar a presença do problema subjacente. Os casos desta conflação abundam: desde lutas por introduzir bolsos nas saias femininas, até a campanhas contra a utilização de certas T-shirts em televisão, como num caso que se tornou famoso. O ponto fundamental aqui é que a luta é orientada por um objectivo que é partilhado consensualmente pelo movimento: no primeiro caso, uma luta contra a objectificação do corpo feminino, no segundo, algo semelhante. Mas o que a luta está a adereçar é o símbolo da questão, e não a questão em si, o poder transformativo da acção é reduzido em termos utilitários ou em termos de liberdade, e existem perigos efectivos de lançar olhares negativos sobre o movimento feminista. Não deve este reparo ser mal entendido: a presença negativa dos problemas, mesmo que simbólicos/sintomáticos, deve ser alterada. Mas o risco de incorrer apenas em acções simbólicas é um que os movimentos sociais devem ter presentes.
O segundo tipo, que é o prefigurado no feminismo radical chamaremos de transformativa-subversiva. Este tipo de luta, como já notámos, visa alterar totalmente ou em grande medida os factores sociais que considera responsável pelos problemas que o feminismo enquanto movimento geral identifica. Este movimento considera que a socialização dos homens os predispõem a praticar opressão implícita ou explicitamente – na sua frase central 'todos os homens são potenciais opressores'. Mais ainda, o movimento estrito procura desmantelar as estruturas que considera reproduzirem as lógicas de opressão específica, e postula uma forma de o fazer muito específica: as mulheres devem tomar as rédeas do movimento, e conduzi-lo, e como tal devem reconhecer o que têm em comum (sororidade) e construir lógicas alternativas e mais livres a sistemas como o casamento, a família nuclear, a prostituição, ou a cultura de violação – que reproduzem todos o mesmo conjunto de valores, apesar de uma vez mais ser visível que há alguns que por razões óbvias tomam maior relevância imediata (os últimos dois em particular). É fácil de deduzir, pelo seu carácter abertamente combativo, a razão para lhe ser conferido menos poder social – e a sua restrição das lógicas de combate às relações de género entre homens e mulheres é alvo frequente de discussões com infra.
O terceiro tipo de luta será uma que hoje é considerada bastante normativa, e que deriva do feminismo interseccional: a ideia de luta de identidades. Segundo esta lógica, os eixos de opressão são muitos e muito complexos, e não é linear que a opressão seja unidirecional ou em boa verdade direcional de qualquer um grupo para outro, mas é tomado como claro que existe opressão segundo esses eixos. Por isso, em vez de haver uma congregação, como no feminismo radical, o feminismo interseccional prevê a desagregação em lutas específicas que abordam esses vários eixos de opressão. Mas pela sua natureza, a luta em que se envolve torna-se bastante amorfa: apesar de reconhecer que os problemas estão embutidos numa estrutura social, a falta de um elemento de combate (um "inimigo") faz com que a luta se torne menos direcional, menos programática e organizada que no feminismo radical. Mais ainda, há o risco de que cada luta separada fragmente mais as posições, obrigando a eternos questionamentos internos, e isso enfraqueça em geral o movimento devido a essas dúvidas. Em suma, o feminismo interseccional peca pela falta de uma identidade de combate político.
Não é então por acaso que invocamos estas três formas de luta como as que mais importará discutir no seu papel para a continuidade e saúde do movimento feminista. Constituem-se em si como matrizes problemáticas de acção, e arriscam exactamente aquilo que antes dizíamos: a ideia de exaustão de um movimento, que passa pela sua perda muito substancial de poder social. O segundo e terceiro tipo de lutas são de longe um dos pontos centrais que o feminismo tem tido dificuldade em articular coerentemente: muito como na descoberta da física quântica, tem-se vindo a adiar a capacidade de articular o combate político às estruturas de opressão de género no interseccionalismo devido à sua dificuldade. Como é que se mantém a ideia de que os homens oprimem as mulheres quando de súbito aparecem indivíduos que se identificam como mulheres mas aos quais foi atribuído sexo masculino à nascença, e que foram socializados até idade X como homens? Ou como é que se aceita a tese de sororidade quando essa sororidade é feita apenas na base de experiências de mulheres brancas? Em extremo, como é que se pode falar de opressão quando o opressor é socializado para ser opressor (e por vezes é por si vítima de opressão de outras franjas de outros opressores), e tem tão pouca escolha nesse papel como as vítimas?
Este é o que identificamos como o dilema fundamental do feminismo moderno: conseguir reconhecer a diferença e a semelhança ao mesmo tempo, e orientar a sua acção política por ambas ao mesmo tempo. O feminismo radical tem uma base política, e o feminismo interseccional uma base analítica, que são ambas invejáveis – resta saber como as cruzar, se isso for possível, ou como transcender a barreira que aparenta exigir que se fraccione para continuar. Sendo que todas as franjas concordam que o género feminino – independentemente da sua concepção como classe, categoria construtiva-identitária, ou outra definição – postula-se que a ideia de um movimento feminismo unitário deve ser possível. Mas há inerente a possibilidade de que um movimento feminista uno seja apenas um resquício histórico.
Este dilema fundamental compõe-se basicamente de três aspectos:
O dilema de género: a presença de uma teoria queer que critica a noção de normalidade (mais do que de género), bem como a noção de construção social de género, fez com que o feminismo de terceira vaga considerasse que o género deve ser simultaneamente celebrado como algo que faz parte da identidade dos indivíduos E que essa construção social deve ser desmantelada. Estes dois aspectos parecem necessariamente contraditórios. Se se presume que a violência é na base de género – os papéis sociais construídos – a ideia da teoria queer e da crítica de género pós-estruturalista é a de que o género pode ser fluído, híbrido, e deve ser desconstruído enquanto potencial de vivência de género como parte significativa da vida dos indivíduos. A questão torna-se: o género com todas as suas opressões pode ser re-interpretado, re-apropriado, e adaptado para formas alternativas de vivência social, sem que isso potencie uma reprodução das formas consideradas opressivas?
O dilema da estrutura: devido à sua desconstrução da posição de opressor e oprimido, o feminismo mais recente levou exactamente à percepção que a opressão é uma matriz, é relativa e disseminada. A matriz de 'luta' implica sempre intencionalidade e direcção – há algo contra o qual se luta – mas esta visão faz com que em última análise ou a luta seja incrivelmente fragmentária (grupos pequenos fraccionados a lutar contra outros grupos fraccionados, como seria por exemplo a luta de afirmação dos grupos trans contra o privilégio cis da comunidade LGBTQ+) ou mesmo uma dissipação da noção de luta contra grupo, e a necessidade de lutar contra a estrutura abstracta. Isto levanta muitos problemas sobre como se altera esta estrutura – quais os mecanismos utilizados para o fazer, sendo que o caso último será mesmo a transformação lenta e paulatina pela educação (a solução fabianista, que raramente tem sido muito feliz – a possibilidade negativa da alteração lenta é a de que não haja tanta urgência no questionamento, e haja menos esforço nesse sentido)
Inerente a isto estará também o problema de que estes problemas estruturais reflectem-se em última análise em problemas muito reais e cujos indivíduos não problematizam necessariamente a sua identidade ou opressão (caricaturalmente: um martelo no pé dói o mesmo em qualquer pé, independentemente de como concebemos socialmente martelos). É um facto óbvio e bem sabido que a problematização e interseccção deve ser uma ferramenta para resolver problemas, e não um fim em si mesmo.
É neste aspecto que o feminismo interseccional pode triunfar: os problemas que afectam franjas específicas que são vítimas de múltiplas opressões são particularmente propensos a uma abordagem deste tipo (tome-se o caso típico das condições laborais de mulheres negras). Mas a articulação política do feminismo interseccional implica que necessariamente algumas categorias de intersecção tenham mais peso na definição política que outas. A definição desas categorias pode ser feita pelas condições materiais ou emocionais dos indivíduos (sendo que tendencialmente as primeiras ofuscam as segundas em primeiro momento), mas em última análise são precisos critérios que operem estes aspectos a nível pragmático que não aplique lógicas de caso-a-caso: é preciso decidir e consensualizar hierarquias que decidam a intersecção, algo que funcionará tão estrategicamente e progressivamente como em baixo defenderemos.
O dilema da identidade: uma forma mais ampla do dilema de género é precisamente até que ponto a presunção de uma identidade como estrutura de combate não reforça o choque com essa identidade. Nomeadamente: assumir uma identidade faz com que haja maior visibilidade dos problemas e opressões que essa identidade sofre, e ao mesmo tempo, serve como forma de reinvindicar o direito de incluir essas categorias como parte da sua identidade. Nomeadamente, no exemplo dos direitos negros, há simultaneamente a adopção e valorização da identidade negra como sendo parte da condição de vida dos indivíduos. Essa valorização exige legitimamente o reconhecimento da diferença, e que essa diferença não implique distinção ou discriminação. Com todas as problemáticas levantadas nos estudos subalternos (que espelham as questões de se é possível re-interpretar e re-apropriar as formas alternativas de vivência social/reprodução de formas opressivas), continua a questão de como é que é que é possível criticar a origem dos conceitos que determinam a opressão (como a cor da pele) e ao mesmo tempo reutilizá-los para construir identidade sem perpetuar a opressão.
O dilema moral: a última, e quiçá mais profunda questão do feminismo actual será precisamente qual a guia moral que deve orientar o feminismo. Se o objectivo for maior liberdade dos indivíduos, maior equidade, ou maior sustentabilidade do sistema social, fala-se de três coisas diferentes que irão dar soluções morais e éticas diferentes em circunstâncias diferentes. Este ângulo é aquele em que o feminismo interseccional é mais confuso (a solução tende a ser tributária do feminismo liberal – liberdade – e marxista – igualdade revolucionária – e inclui opções de sustentabilidade que invocam a necessidade de expressão identitária entre choques interculturais – sendo que a forma de articular estes processos são deixados um pouco ambíguos).
Sendo uma luta uma unidade mínima de significação – e devendo ser entendida da forma que a definimos – podemos então entender que a adição de mais lutas devia ser matéria de preocupação para a estabilidade do movimento social, mas que ao mesmo tempo, a própria estrutura orgânica do movimento não permite isto. A forma de contrariar a multiplicação de lutas está em grande medida no essencialismo estratégico: a ideia de concentrar vários indivíduos à volta de lutas que pertencem às regras principais, e que portanto têm efeito garantido. Este pode conseguir-se pela definição de pautas – a marcação de certas lutas como prioritárias em face de eventos que decorrem no mundo social. Esta definição de pautas é feita estruturalmente com vista a proteger o movimento de perdas de poder social. Isto é tornado particularmente importante quando nos deparamos com movimentos como os MRA, que visam aplicar transformações conflituais com as do feminismo, ou em muitos casos prevenir a aplicação do feminismo. Se há a crença de que a teleologia desse movimento oposto é errada – a destruição deste movimento – então convirá aumentar o poder social do feminismo através da fixação de pautas. Quem fala de MRA fala igualmente de inúmeros conjuntos de indivíduos e outros movimentos cujos âmbitos colidem ou confrontam-se com o feminismo, e cujos resultados passam em grande medida pelo descrédito do feminismo.
Ao mesmo tempo, a minimização do risco é igualmente uma forma plausível de executar transformação sem por em causa o poder social do movimento. Regresse-se à luta dos bolsos: se a luta for considerada válida pelos padrões feministas, e esta cair fora de uma dada pauta ou cair dentro de uma pauta de um movimento contrário (situação na qual a tornaria um alvo prioritário para esse movimento), mas existir uma forma de aplicar transformação que não envolva feminismo – ou seja, que não politize a questão dos bolsos e o objectivo que está por detrás dessa luta, mas na qual há a adopção de uma visão pragmática cujo resultado final é o mesmo independentemente de qual a forma tomada para a atingir – essa pode ser tomada. Facilmente podemos ouvir as objecções: não conceder ao feminismo o papel de transformação pode resolver o problema pragmático mas não educar acerca do problema maior que circunscreve o objectivo geral da luta – neste caso a objectificação do corpo feminino e a criação de roupa para mulheres com uma função decorativa. A problemática está precisamente em que é desse esforço de educação que podem advir maiores consequências negativas para o poder social do movimento, sendo que a valorização social da luta pode ser negativa à luz de uma série de padrões – pode ser vista como comparativamente trivial, o que inculca essa característica no movimento; pode ser entendida como privilegiada, e como tal dificilmente articulando intersecionalismo, segregando algumas franjas internas; pode ser percebida por grupos combativos como um qualquer e metafísico ataque à sua liberdade ou à moral e bons costumes. Através da adopção deste critério é possível continuar a percepcionar lutas que podem proporcionar algum grau de mudança acerca de um objectivo qualquer, mas não incorrer em risco para a estrutura do movimento.
Naturalmente este critério pode apenas ser utilizado a respeito do primeiro tipo de lutas que identificámos – os outros dois tipos abordam questões fundamentais e é necessário que se opere discussão das formas de opressão de género. Mas a questão levanta-se então: como definir essas pautas? A mais clara objecção será dizer que ninguém tem direito de o fazer – mas isso ignora que continua ainda assim a ser importante que alguém o faça, mesmo sem legitimidade. A outra questão será precisamente que pautas se poderão lançar sobre o feminismo, e o perigo que lançar essas pautas traz para um ideal interssecional – que o autor admitidamente assume como ser o movimento interno ao feminismo com que mais se identifica.
A ideia de essencialismo estratégico, apesar do seu cunho actualmente positivo, foi denotada por Gayatri Spivak como um problema dos movimentos: ao conflacionarem várias posições, estes projectavam identidades partilhadas aos seus membros que estes em muitas instâncias nunca tinham tido. Isto pode levantar mais problemas do que resolve: se decidirmos generalizar a experiência da mulher na cidade (a sua vivência corporal no dia a dia, o modo como interage com homens e mulheres, etc) como sendo a pauta central do feminismo, e fizermos isso generalizando a experiência de mulheres brancas, heterocissexuais, de classe média, temos uma solução que em grande medida vai excluir grandes franjas do movimento. Por outro lado, se presumirmos que a experiência das mulheres na cidade é um conjunto determinado pelas propriedades que definem a mulher, e fizermos a intersecção dos vários conjuntos, ficamos com as experiências que unem todas as mulheres. Infelizmente, parece intuitivo que pouco ou nada restasse nesse conjunto depois da intersecção.
A ideia de pauta corre então o risco de ser excessivamente geral ou demasiado restrita – precisamente os problemas que víamos nos dois tipos latentes de luta feminista. No entanto, não será talvez preciso tão estritamente abandonar o conceito em si. Uma abordagem mais piecemeal, quase axiomática, poderá facilmente definir alguns aspectos como a objectificação do corpo feminino como sendo prioritária, e dentro da objectificação do corpo os aspectos que se prendem com a violência sexual, o male gaze, e dentro da violência sexual a cultura de violação, etc. Os critérios que definem isto não são ainda assim inexistentes, e partem um pouco do senso comum, assistindo à impossibilidade de um mais fino conjunto de critérios: desde que não choque contra os princípios feministas ou cause aberrações morais, devemos presumir que a) o físico prima sobre o simbólico; b) o social prima sobre o individual; c) o económico-material prima sobre o sentimental; d) a participação e inclusão de diferentes experiências é enriquecedor e não limitador. Estes critérios são no entanto resultado da nossa visão limitada, e o diálogo com a comunidade potenciará certamente analiticamente a sua aplicabilidade.
A natureza dos conceitos não permite que eles sejam estritamente transitivos – pode conter-se violência sexual dentro de male gaze ou vice-versa, enquanto associação conceptual, e estes tendem a poder transcender-se facilmente. No entanto, cremos possível entender como uma abordagem rizomática desta forma, que delineia quais os tópicos mais importantes a abordar e depois estrutura qual a plausibilidade de se estruturar outros tópicos, pode ajudar a construir um movimento que, em momentos de grande transformação social, continua a ter os pés bem fixos, e é capaz de reagir activamente contra as ameaças.


Este texto foi redigido com vista a expor sucintamente uma tese pragmática e política, e não visa ser académico no sentido estrito do termo, apesar da utilização de linguagem e jargão da academia. A falta de bibliografia deriva disto e é justificada por estas teses partirem de uma leitura empírica e racional pessoal dos movimentos sociais, em particular do movimento feminista.
A definição de mundo social possível será portanto o conjunto de estruturas que são compostas pela relação entre as entidades humanas, consoante a ontologia. A aplicação de um mundo possível consiste no mapeamento das entidades de um mundo para outro, seguindo a lógica da teoria dos conjuntos.
Estes são meramente exemplos, e não reflectem realmente problemáticas.
Descontamos desde logo aqui o facto destes movimentos irem à partida contra alguma ideia estabelecida na sociedade, e nunca terem tanto poder social como o status quo. O que notamos aqui é que há formas diferentes de desafiar esse status quo: ao nível das suas crenças fundamentais, e ao nível das suas crenças culturais mais ou menos transientes e inquestionadas.
É fácil generalizar a lógica que aqui apresentámos a vários outros movimentos sociais, e deixamos ao leitor o desafio de adequar ao movimento social com que mais aptamente se identificar a estratégia que aqui apontámos.



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