\"A luta política e seu avesso, ou a volta do cativeiro (a terra, o território e o trecho)\". Texto apresentado no Núcleo de Antropologia Simétrica (Nansi) PPGAS-Museu Nacional, setembro de 2012

May 27, 2017 | Autor: André Dumans Guedes | Categoria: Social Movements, Peasant Studies, Movimientos sociales, Territorio
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A LUTA POLÍTICA E SEU AVESSO, OU A VOLTA DO CATIVEIRO (A TERRA, O TERRITÓRIO E O TRECHO)

André Dumans Guedes Bolsista Pós-Doc Faperj IPPUR/UFRJ Texto apresentado no Núcleo de Antropologia Simétrica (Nansi) PPGAS-Museu Nacional, setembro de 2012

1. Mobilidades no Brasil central

Procuro aqui extrair algumas consequências do argumento esboçado num outro texto: “Na estrada e na lama com Jorge, Um Brasileiro. Trabalho e moradia nas fronteiras do desenvolvimento”, publicado na última edição da Vibrant. Este texto funciona então, ou também, como uma espécie de suporte etnográfico para o que eu vou falar. Como o seu título sugere, no texto em questão eu dialogo com um romance, Jorge, Um Brasileiro, escrito pelo mineiro Oswaldo França Jr. Esse livro tem como cenário aquele interior do país que, no início da década de 60, vivencia as transformações desencadeadas por uma série de grandes obras. Tal realidade nos é apresentada de um ponto de vista privilegiado: Jorge é um caminhoneiro experimentado que, refletindo sobre sua vida e trabalho neste tipo de empreendimento, descreve suas experiências nos mais distantes rincões do país. Nestas fronteiras e limites, a “ocupação” e “modernização” dessas áreas têm como condição e ponto de partida essa atividade que passou a me interessar em função do meu campo, e na qual Jorge é um especialista: a construção de estradas. Pra simplificar, eu diria então que é “através” desse romance que apresento os dados de minha pesquisa, ao mesmo tempo em que os tensiono pela discussão de um universo diverso mas facilmente relacionável àquele com que trabalhei. Centrada na questão da mobilidade tal como ela é vivida e pensada por certos grupos “sertanejos” do centro-norte do país, minha tese de doutorado foi escrita a partir de um trabalho de campo realizado no norte de Goiás, sobretudo num local chamado Minaçu: cidade confusa criada por uma mineradora, invadida posteriormente por garimpeiros que depois foram expulsos pela construção de três grandes barragens.

Destaco desde já que meu foco – na tese e aqui – são vetores que nem definem nem são exclusivos de um “grupo” qualquer: se privilegio o estudo de garimpeiros, vaqueiros, prostitutas, peões do trecho ou caminhoneiros é também por eles colocarem em funcionamento de modo particularmente intenso velocidades que se fazem presentes alhures, principalmente nas camadas populares ou nos confins. Se os mesmos valores e oposições acionados na vida estradeira destas pessoas se manifestam contidos nos limites rituais de uma folia de reis (lembro aqui do trabalho do Luzimar Pereira, o Mazinho), poderíamos dizer que não tratamos exatamente das “mesmas” coisas. Mas são justamente as passagens de um contexto a outro, a comunicação destas ‘diferenças’ via transformações operadas por acelerações ou desacelerações, um dos meus objetos privilegiados. De modo mais que sumário, a que se vinculam esses valores e oposições mencionados acima? Em contraponto a toda uma imensa literatura que privilegia noções como “migração”, “deslocamento compulsório” ou “desterritorialização” como chaves analíticas para descrever e denunciar as violências impingidas aos povos e pobres do interior, busco seguir a pista fornecida pelo fato de que, para meus nativos, categorias como mundo, vida ou realidade se inserem numa cosmologia marcada desde sempre pela centralidade dos movimentos, da agitação, da instabilidade e da precariedade. Daí também o potencial heurístico do termo peão, que orienta a minha leitura daquele romance e que, num de seus usos no norte de Goiás, sinaliza uma traço potencial de qualquer pobre. Traço que remete a essa disposição ou capacidade para se mover e se desprender, em virtude de necessidades, do prazer ou de velhacaria (naquele sentido aplicado ao gado que não se deixa conduzir com facilidade); e que se expressa numa complexa articulação de mobilidades espaciais e ocupacionais que ajuda a explicar as variações do termo em universos aparentemente díspares. Em todos eles, porém, esse peão, que como aquele brinquedo está sempre a rodar, contrapõe-se às “pessoas de mor qualidade”. Nos dias de hoje, na imprensa e na academia, um “tipo” particular de peão, o “peão do trecho”, ganhou notoriedade por ter se tornado a vítima preferencial do chamado trabalho em condições análogas à escravidão – destino semelhante ao dessas suas “primas” que buscam ganhar a vida ou mundo como dançarinas na Europa. Volto a isso adiante. Por ora, me interessa destacar a aparente redundância presente na expressão “peão do trecho”, a afinidade entre um e o outro sendo sugerida, por exemplo, pela provável origem do segundo termo.

Verdadeira ou não, a explicação fornecida nestas memórias de um engenheiro de obras que atuou no boom desenvolvimentista dos anos 70 interessa. Segundo ele, o termo trecho viria “das grandes e lineares obras de estrada onde é prática comum dividir-se o volume global de serviço em lotes, entregando-os a várias empreiteiras [que ficam responsáveis por diferentes] frentes, ou trechos, da obra. É comum, num casual encontro entre operários que constroem uma mesma rodovia, a pergunta: “Em que trecho você está?”, seguindo-se a resposta que identifica a empreiteira responsável pelo mesmo e os quilômetros que limitam sua faixa de atuação. O termo Trecho extrapolou suas iniciais fronteiras e como se todo o Brasil fosse um imenso canteiro de serviços, passou a designar todas as grandes obras e os homens que as executam, os peões do Trecho, nômades por excelência e necessidade”. Como se todo o Brasil fosse um imenso canteiro de serviços... Ainda mais do que supunha este engenheiro, esta categoria parece ter se expandido também em outras direções: em torno dela se atualizou, nas últimas décadas e por áreas diversas do centronorte do país, o que outros autores chamaram de “cultura da andança”: todo um conjunto de valores, práticas e sentidos referentes às diversas modalidades “populares” da experiência da mobilidade. O trecho passou a ser utilizado não apenas pelos que trabalham em grandes obras e projetos mas também para designar aquelas experiências evocadas – no passado, pelas gerações anteriores ou em outras circunstâncias – pela categoria mundo. O pobre no mundo, o peão no trecho: o trecho é o espaço onde o pobre desliza e se torna liso – ou seja, um peão; é saindo no liso que o peão percorre e constrói o trecho, atualização e variação do mundo. Daí também meu interesse por Jorge, Um Brasileiro, único material que conheço a tratar em detalhes deste universo dos construtores de estrada, justamente naquele contexto evocado pelo engenheiro acima citado. Marcha para o Oeste, criação de Brasília, mais adiante o II PND: tudo isso induzido por e induzindo a construção de grandes rodovias: como a Belém-Brasília, que fez surgir o meu norte de Goiás. Ou então essa Rio-Bahia que Jorge ajudou a erguer, quando trabalhava nestes serviços de terra e de companhias grandes que mexem com estradas e construções (70). Como o artigo está disponível para a leitura e tenho pouco tempo, destaco apenas que, aí, eu esboço uma espécie de teoria etnográfica unificada do trabalho e da moradia nos confins e periferias, argumentando que do ponto de vista nativo é possível

pensar integrada e relacionalmente o que aparece geralmente para os cientistas sociais como duas “temáticas” distintas. A estrada, a lama e a construção, além de remeterem às adversidades “objetivamente” vividas por tantas pessoas, parecem ser boas para pensar: evocando-as, estas pessoas podem falar e refletir sobre coisas importantes tais como os já evocados mundo, vida e realidade. Talvez por isso, e por remeter à tarefa dos que, na lama, constroem estradas, a categoria trecho tenha ela mesma se movimentado em tantas direções, dando conta das experiências de mobilidade, instabilidade, precariedade e aventura que são enfrentadas não apenas por certos trabalhadores mas pelos “pobres” de uma maneira geral.

2. Camponeses; povos e comunidades tradicionais; peões

Tudo isso que falei está ainda nos marcos do foi apresentado na minha tese de doutorado. O que eu venho tentando fazer agora é relacionar essa discussão onde privilegio o ponto de vista nativo a questões políticas mais amplas, extra-etnográficas. Para simplificar, digamos que estas questões se vinculam aos “movimentos sociais”: movimentos sociais que foram, de certa forma, responsáveis pela minha chegada no campo e na própria antropologia; e movimentos sociais aos quais agora eu retorno, na pesquisa que venho realizando no pós-doutorado. Essa minha reaproximação dos movimentos não implica, porém, no abandono dessas “questões menores” que nos alimentam enquanto antropólogos: o que quero fazer é me servir desse ponto de vista – nativo, local, minaçuano, menor – para me ajudar a pensar e tensionar questões “sérias” ou “graúdas”. Eu já havia tentado isso na minha tese, utilizando a cosmologia que eu mesmo descrevera para discutir o funcionamento do Movimento dos Atingidos por Barragens – organização com a qual eu vinha trabalhando como assessor desde 2000, e que me levou até Minaçu. No pós-doutorado, não são mais as barragens o meu foco. Trabalho agora numa pesquisa coletiva que busca examinar algumas transformações recentes no “mundo rural” brasileiro: as lutas centradas na reivindicação de territórios tradicionais por parte de indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais parecem estar cada vez mais assumindo o protagonismo dos conflitos no campo, ao mesmo tempo em que se

enfraquecem as reivindicações de trabalhadores rurais por “terra”, associadas ao projeto da reforma agrária clássica. Comecei então um pequeno trabalho de campo no Norte de Minas Gerais, onde pude vislumbrar o quão complexas são as relações aliando e separando os movimentos que lutam “pela terra” e aqueles que lutam “pelo território”. Se os quilombolas, geraizeiros, vazanteiros e caatingueiros aí vêm sendo relativamente bem sucedidos nos seus confrontos com as mineradoras e o agronegócio, isso se deve também ao que eles aprenderam com os militantes do MST: como se organizar, como promover uma ocupação, como não se dobrar perante as firmas. Num momento posterior, e na medida em que a demarcação de territórios tradicionais se desviava do modelo das reivindicações por desapropriação habituais dos sem-terra, estes e aqueles romperam sua aliança. Não chega ser surpreendente, assim, que um ou outro militante do MST manifeste abertamente sua insatisfação com a “etnicização”, “identitarização” ou “tradicionalização” dos seus bons e velhos camponeses, ao mesmo tempo em que este mesmo movimento venha se preocupando em aproximar-se de indígenas e quilombolas (naturalmente, para tentar abrigá-los sob o guarda-chuva do “campo” ou do “trabalhador rural”). Essa tensão entre “terra” e “território” é ao mesmo tempo contextualizada por um conjunto de “grandes” questões e um ponto de partida privilegiado para pensá-las: daí podemos chegar à importância crescente das lutas e políticas multiculturais, às transformações no ambientalismo, às relações entre classe e cultura, à expansão predatória do nosso neodesenvolvimentismo, ao crescimento chinês aquecendo o mercado de terras, às estratégias do Banco Mundial para domesticar e direcionar as demandas dos povos tradicionais, à suposta perda da centralidade do trabalho e à mercantilização dos “conhecimentos” e “culturas”, etc. e etc. Aqui, o que me interessa é ressaltar algo que certa literatura sobre as chamadas etnogêneses já mencionou. Ontem sem-terra, hoje quilombola: a face “culturalizada” ou “tradicional” de pessoas ou grupos como estes do norte de Minas não é incongruente com o que há (ou houve) nelas de “trabalhadores” ou “camponeses”; a maturação ou construção de uma ou outra destas faces estando sempre vinculada a processos políticos e/ou análises acadêmicas que enfatizam, solidificam e transformam certos traços ou potencialidades em “identidades”. Mas a despeito de suas diferenças, tanto a luta por terra dos camponeses quanto a luta por território das comunidades tradicionais parecem frequentemente assentar-se

em pressupostos – generalizados nas e pelas ciências sociais – de que as pessoas e povos em questão têm sim “seu lugar”, bem como uma forma preferencial de estar aí. A terra ou o território não aparecem apenas como os nortes de um projeto político, aquilo por que se luta e que orienta a “viagem da volta”, para usar a bela e complexa imagem do João Pacheco de Oliveira; mas também como aspectos definidores, delimitadores e descritivos de determinados modos de vida onde o arraigamento e a sedentariedade são quase naturais, uma vocação ou identidade. Subjacente a estas formulações, poderíamos facilmente identificar uma espécie de metanarrativa assentada na contraposição de uma turbulenta modernidade que “chega”, desestruturando e violentando universos que são então pensados pelos atributos diametralmente opostos àqueles que usamos para definila: enraizamos assim um “campesinato”, encontramos já prontas comunidades tradicionais e territorializadas (ameaçadas, portanto, de “desterritorialização”), subsumimos todos os deslocamentos e andanças do homem “rural” a uma epifenomenal “migração”. Frequentemente vinculado ao propósito de ressaltar situações efetivamente dramáticas e revoltantes, o apelo a tais pressupostos implica numa oposição simplista entre o positivo da estabilidade (terra, território, comunidade) e o negativo dos deslocamentos (migração, desterritorialização, expulsão, modernização). Mesmo considerando a perspectiva apresentada na minha tese ou no artigo sobre Jorge como um caso limite, dela emerge a sugestão de que, de maneira mais geral, os movimentos são vivenciados de maneira menos maniqueísta (e mais interessante) por diversos segmentos das “camadas populares”. Apenas como exemplo, podemos citar a oposição entre o sossego e o mundo: oposição que ancora e faz girar certo catolicismo popular, ao mesmo tempo em que o desvirtua tornando-o mundano; e da qual, analiticamente, podemos extrair mundos e mais mundos. A ênfase unilateral dos analistas na ruptura desencadeada pelos empreendimentos modernos faz de sua “chegada” uma espécie de ponto zero da história, naturalizando a própria estabilidade – que costuma ser pensada, por gente como Jorge ou meus amigos de Goiás, mais como o construído (uma categoria nativa!) do que como o dado; os próprios saberes, práticas e esforços destinados à sua consecução e manutenção são deixados de lado. Peão é um destas categorias que nos ajudam a contrabalançar o que há de “totalizante” ou “estático” nestas circunstâncias e exigências da luta, nestes recortes e delimitações das ciências sociais; e não apenas pelo fato do termo se fazer presentes em múltiplos universos, e evocar as ideias de mobilidade e precariedade; mas também por

serem estes próprios peões quem parece manifestar, via seu “desassossego”, resistências à sua “estabilização” nesta identidade ou naquela circunstância. Evoquei acima essa dupla face que, em Minas e em tantos outros cantos do centro-norte do país, tornou possível que Seu José ou Dona Maria fossem ontem semterra, e hoje quilombolas ou geraizeiros. Poderia agora insinuar que esta dupla face é só uma face de uma duplicidade mais ampla e significativa, que contrapõe o camponês e a comunidade tradicional, de um lado, ao peão, do outro. Neste caso, e parafraseando o que Bruno Latour diz a respeito do deus Jano no Ciência em Construção, poderíamos afirmar que privilegiar esta ou aquela face é uma “decisão que temos de tomar”, explicitando se “nossa entrada” neste universo privilegia a “porta de trás” do que está sempre “em construção” – em movimento, se alternando, variando continuamente – ou aquela “entrada mais grandiosa” do que foi estabilizado e sedimentado, por exemplo através de identidades, movimentos sociais e territórios. Note-se que a tensão em questão diz respeito à minha própria carreira profissional, oscilando entre a finura da etnografia e a dureza inerente aos enfrentamentos e lutas contra o Estado e as empresas; diz respeito também a problemas concretos dos militantes dos movimentos sociais (por que as pessoas não são mais engajadas, por que são tão descomprometidas e individualistas?); diz respeito ainda, todos sabemos, a cisões no interior da antropologia. Tudo isso é relevante, mas o mais importante aqui é que esse me parece ser, há décadas ou mesmo séculos, um ponto privilegiado central do pensamento popular ou “sertanejo”. Só que isso é apenas o esboço de um problema ainda a ser enfrentado, um ponto de partida onde mal chegamos a vislumbrar a complexidade envolvida nestes deslocamentos, paradas e viradas de rosto. Para tentar fazer isso com um mínimo de rigor, escolhi como porta de entrada um objeto relativa e aparentemente simples: pretendo “apenas” fazer a descrição etnográfica de uma desconfiança, de um temor, de um receio. Daqui por diante e a partir do caminho que acabei de descrever, vou apenas apresentar o projeto desta pesquisa e alguns ideias preliminares.

3. Etnografia de um temor: a volta do cativeiro

Começo então com um comentário esquemático e leviano: no Norte de Minas, presenciei entre os geraizeiros afirmações semelhantes àquelas que me acostumara a

ouvir junto aos garimpeiros de Goiás: envolver-se com a luta de um movimento social, com grande frequência, implica em perder o sossego. Ameaças e tensões, desavenças e desconfianças surgindo junto a familiares e amigos, a exigência de aprender a “falar a língua do movimento social”, a consciência de que, mesmo quando isso ocorre, o uso dessa língua se dá em condições desvantajosas, junto ou contra aqueles que a dominam há mais tempo, num contexto onde abundam folhas brancas e opacas e o medo de ser enganado é uma constante. Não por acaso, os “direitos” pelos quais se luta não raro incluem, na perspectiva destas pessoas, uma compensação pelos próprios sacrifícios de quem tanto corre atrás lutando (há um artigo do John Comerford antigo que mostra muito bem a importância de considerar estes dois sentidos distintos da “luta”). Por outro lado, os trabalhos do Moacir Palmeira e de pesquisadores ligados a ele, trabalhando com a antropologia da política, mostraram como em tantas cidades do interior o tempo das eleições municipais evoca uma política que é vivida como “paixão”. Curiosa inversão a que parece ocorrer aí: aquelas lutas e enfrentamentos que eu e tantos de meus colegas engajados identificamos à “boa” política, envolvendo diretamente as ameaças sofridas pelo povo diante dos grandes e verdadeiros inimigos, aquela que nos dignifica e ajuda a atribuir sentido a nossas vidas pequeno-burguesas, é encarada frequentemente pelos nossos aliados como um estorvo. Ao mesmo tempo, a pequena e mesquinha política partidária, invariavelmente envolvendo o que – fora das discussões da antropologia da política – nos parece haver de pior (compra e venda de votos, partidos sem ideologia, personalismo e patronagem em excesso) suscita a “paixão” de tantos de nossos interlocutores. Daí, o que me interessa é apontar o fato de que as alianças que respondem pelo surgimento de um movimento social contra um inimigo comum implicam, para os pobres e povos nelas engajados, certo estranhamento ou exterioridade com relação às práticas, objetos e relações que definem o funcionamento propriamente político dos movimentos sociais. Isso não nega a importância atribuída por estas pessoas a este formato organizacional, o que fica claro se lembrarmos dos esforços envolvidos naquele “aprender a língua dos movimentos sociais” – por que incorrer nesses sacrifícios se algo relevante não estivesse em jogo, e se essa apropriação do que à primeira vista é alheio não fosse possível? Nos termos dos garimpeiros e peões com que trabalhei, nada melhor para pensar tais sacrifícios, riscos e esperanças que a oposição entre “corridos” e “lidos”. Se num passado não tão distante eles podiam dizer, com orgulho e malandragem, que preferiam

ser “antes corridos que lidos”, hoje certamente as coisas são diferentes. Ainda assim, através desta oposição é possível pensar as relações entre certos valores e práticas “populares” e um mundo “letrado” sem que esse último hierarquize ou sobrecodifique esta oposição: o que levaria os primeiros a serem encarados, por exemplo, como mera expressão de deficiências ou faltas (falta de educação, de recursos, de cidadania, de espírito coletivo, de consciência política ou de direitos básicos). Sim, os garimpeiros e peões me diziam, a vida do corrido tem sim sua positividade; mas ao mesmo tempo tal positividade não é absoluta, e tem que ser considerada na sua relação com as injunções, desafios e tensões decorrentes da convivência e proximidade com os lidos. Foi no que refere a estes dois diferentes “funcionamentos”, com suas combinações e antinomias, que pude apreender algo sobre aquela desconfiança que gostaria de etnografar. A chegada das barragens e a luta contra elas mostraram a meus amigos como a educação formal e o convívio com os papéis passaram a se tornar, cada vez mais, um imperativo: delineou-se, assim, um contexto particularmente privilegiado para a manifestação de perigos que, radicalizados nele, certamente não estão a ele restritos: estou falando da “volta do cativeiro”. As menções a esse “cativeiro” são abundantes na literatura brasileira sobre as “sociedades camponesas”, onde um rico debate teceu-se em torno dessa categoria nos anos 80 – e é também o prosseguimento dessa discussão, mais de 20 anos depois, um dos meus objetivos aqui. Deste debate, parto de algumas das conclusões do Otávio Velho: ao contrário dos autores que tomavam o cativeiro como uma referência metafórica à escravidão histórica, ele o identificava a eventos narrados na Bíblia. Mas ao invés de recuar a esse passado ainda mais longínquo em busca do verdadeiro ou literal “cativeiro”, ele sugeriu que a análise desta categoria deveria ser orientada pela busca de uma “solução universal abstrata”, sua utilização indo além do “mero recurso instrumental a termos e expressões”. Nessa mesma direção, e alinhando-se com Velho, Carlos Fausto argumentava que o cativeiro era uma “imagem reguladora”, sem “conteúdo substancializável”: era “um horizonte, uma virtualidade”. Meus nativos, como tantos outros hoje em dia, são deleuzianos; e acreditam em regimes de signo, ou seja: na importância da consideração de agenciamentos extralinguísticos pondo os signos em funcionamento. É assim que, para eles, os corridos tem a sua forma de ler o mundo, da mesma maneira que os lidos tem suas modalidades de corrê-lo. Essa leitura do mundo feita pelos corridos envolve, assim, ideias a respeito de

como as palavras, as marcas, os sinais e as provas – como tudo o mais que existe – se movem e circulam, ancorando-se circunstancialmente aqui e acolá. É também em função desse regime de signos dos corridos que o cativeiro tem me parecido colocar-se no mesmo plano de análise que outras categorias com que venho trabalhando, todas elas associando-se a movimentos e passagens entre diferentes espaços, atividades e contextos: por exemplo, peão ou febre – febre da malária, febre do ouro, febre das barragens. Nos seus usos concretos, todas estas categorias parecem manifestar certa resistência a se vincularem convencionalmente a um referente “literal”: como se sua própria circulação em diferentes contextos, tal qual ocorre com aqueles que delas se servem, fosse tão ou mais importante que um suposto lar ou origem. Nessa sua dimensão virtual ou abstrata, não chega ser de todo surpreende que o cativeiro se manifeste desracializado – afirmação que não deixa de ser politicamente complicada, ainda mais porque, hoje, as lutas pelo território vêm recorrendo aos usos populares deste termo e da “escravidão” para fortalecer a explicitação de dois de seus grandes inimigos contemporâneos: o chamado “racismo ambiental” e aquele “trabalho em condições análogas à escravidão” que tem popularizado os peões do trecho. Cativeiro abstrato, desracializado e também descampenizado: é a face do peão quem predomina aqui, o trecho se desviando do “território” ou da “terra”. O historiador Guilhermo Palacios mostrou que a “revolta do cativeiro”, conjunto de sublevações ocorrido no sertão nordestino na metade do século XIX, arrastou “categorias e subcategorias dos porões da sociedade brasileira livre”: camponeses, e também pequenos arrendatários e foreiros, moradores de engenhos e fazendas, jornaleiros rurais e vendedores ambulantes, artesões, pequenos empregados e subempregados das vilas do interior, requerentes da caridade pública, vadios, mendigos. O fundamento de tal revolta, segundo Palacios, assentava-se nos boatos de que “o Estado nacional brasileiro, na impossibilidade de sustentar por mais tempo a reprodução da força de trabalho escrava, voltava-se para os despossuídos e começava a contá-los e a registrá-los com o intuito de submetê-los à infamante disciplina do trabalho nas plantations e nas fazendas escravistas”. O ponto aqui não é a relativização da violência escravagista: mas sugerir uma perspectiva onde as particularidades desta experiência histórica expressa apenas uma manifestação especialmente brutal de agenciamentos trans-históricos e trans-contextuais que, nas suas variações de intensidade, far-se-iam presentes, desaparecendo e

aparecendo “de volta”, também no interior de uma família, ou na empreitada aceita junto a um vizinho. Nada de cortes bruscos ou grandes rupturas históricas, se experimentarmos deixar as metáforas de lado. A abolição da escravatura? Todos sabem o quão importante foi aquele ato, pondo fim ou mitigando os exageros de uma forma de dominação particularmente opressora. Mas meus interlocutores insistem que neste momento preciso houve também um tanto de farsa e encenação. Antes de corresponder a status distintos, o homem livre e o escravo poderiam ser vistos como extremos de um continuum de possibilidades que se coloca ao longo do tempo e do espaço. Segundo esta lógica, o ser livre não é uma condição natural ou assegurada de uma vez por todas, mas algo que deve ser continua e penosamente buscado ou mantido: o objeto de esforços e sacrifícios; algo que demanda malandragem, coragem e valentia – e também, com frequência, mais e mais deslocamentos e movimentos. Dito isso, o que o cativeiro pode fazer interessa mais do que sua definição: pela criação de constrangimentos à capacidade de correr atrás, e pela inibição das condições favoráveis propiciadas pela ajuda, o cativeiro torna impossível movimentar-se, ir pra frente, avançar, evoluir; laçando, ele transforma em definitivos vínculos idealmente temporários, restringindo a circulação entre patrões e a escolha do senhor ao qual se submeter; o cativeiro pode retirar do pobre seu derradeiro recurso: vazar que nem gás, rasgar no mundo, partir; cerceando alguns movimentos e induzindo outros, ele perturba também a sua desaceleração: impedindo o sossego no fim da vida ou o dormir tranquilo no fim do dia. Ser mandado, agüentar um trabalho bruto e duro, ter o tempo controlado, passar por toda espécie de humilhação – o cativeiro se manifesta aí se frustrado o projeto que, temporariamente, torna estas agruras suportáveis porque entendidas como um meio para um fim: aquele sonho de andar com as próprias pernas e de ser o dono do próprio nariz, prerrogativas do possuidor de uma propriedade: ou seja, algo próprio (um negócio, uma profissão ou uma terra, por exemplo). A contradição é apenas aparente: com frequência, é para fugir do cativeiro que, conscientemente, as pessoas vão no risco e se deixam enredar pelo tráfico de pessoas ou pelo trabalho em condições análogas à escravidão. O cativeiro não só captura de fora mas cativa de dentro (ecos da queda do paraíso devem mesmo se fazer ouvir aí, como o Otávio Velho mostrou). O que se almeja ou o que se ganha pode voltar-se contra si próprio: se o mundo (ou o trecho) se explicita no paroxismo de seus encantos e perigos, esses últimos não são necessariamente discerníveis.

Esforçando-me para situá-la ao lado (não acima) destas expressões etnográficas, eu poderia acrescentar minha síntese “panorâmica” do funcionamento do cativeiro: tratamos de uma multiplicidade de mecanismos, artimanhas e impasses que não necessariamente têm sujeito, mas volta e meia o pobre como objeto de um mesmo efeito: cessar ou impedir seu movimento – afirmação banal apenas se não destacamos quão variado e polissêmico pode ser esse movimentar-se; social, espacial e ocupacionalmente, digamos assim. Para encerrar, voltemos a destacar esse “pesado pressentimento do que virá” com a proliferação dos papéis, o pendor destes últimos para cativar e capturar tão propício para essa discussão. Palacios destaca que a revolta do cativeiro explodiu em sequência à regulamentação de duas leis pelo Império: a que estabelecia a obrigatoriedade dos levantamentos censitários, e a que instituía o registro compulsório de nascimentos e óbitos. Os dois principais protagonistas do debate dos anos 80 sobre o cativeiro já haviam destacado, cada a um a sua maneira, as desconfianças “sertanejas” diante daquelas marcas e sinais que “identificam as pessoas, inscrevendo-as num registro desconhecido”: aplica-se a isso aquela “hermenêutica da suspeita” de que fala o Otávio Velho, ou o muito antigo “fetiche do papel escrito” mencionado por José de Souza Martins. É disso que tratam os “papéis” presentes no título da minha tese, é esse também o combustível que turbina a velhacaria e leveza do regime de signos dos corridos. E meu texto acaba aqui, sem conclusão, no meio do caminho. Limito-me apenas a recapitular o que eu já disse, listando os elementos que eu estou tentando relacionar numa mesma discussão: 1) os peões na estrada e na lama, no trecho, e o que há de bom pra pensar nesta situação; 2) a centralidade dos movimentos na concepção do mundo; 3) as lutas por terra e por território, e as passagens envolvidas aí; 4) as passagens e fronteiras entre a macro e a micropolítica; 5) a luta política necessária, e também perigosa e custosa; 6) a tensão entre corridos e lidos silenciosamente perpassando esta última; 7) o cativeiro na sua dimensão abstrata; 8) [por fim] essa tão temida atualização do cativeiro que se opera através dos papéis.

É só isso, obrigado.

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