A Maldição da Lua - Alexander Zimmer.pdf

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1a Edição

A Maldição da Lua Alexander Zimmer

Copyright © Alexander Zimmer, 2011 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1998

À silenciosa e encantada presença que traduz eterna promessa: Luciana Fiori

INTRODUÇÃO A vida seguia tranquila naquele mar de sertão, onde não se podia ter ideia do mundo além. Conhecia-se a capital, falava-se muito nela, mas no fundo não passava de um mundo distante, outra realidade, longe das coisas difíceis que a vida no sertão imprimia à gente daquele lugar. A vida era aquela só e mais não tinha. Para que falar de uma terra outra que mais parecia um sonho, algo inexistente e tão longe das possibilidades. Além do mais, tinha essa terrinha, onde morava e mais nada. Para onde iria? Como? E aquela lua avermelhada servia para ajudar a diminuir um pouco a dor de nada ter, nem ninguém que o quisesse. É... A lua ajudava, mas, afinal, quem era Cirino neste vasto mundo sem fim e diante do esquecimento dos grandes? Um simples, um ninguém. Não! Ninguém, não! Cirino era alguém, mesmo sendo considerado um qualquer no meio do sertão. Podia ser humilde e de poucas posses — quase nenhuma — mas era uma pessoa, alguém que, se não tivesse sua importância, não estaria aqui nesta terra de Deus. Não era um parvo, um estúpido, pois tinha estudo. Pouco, mas tinha. Sua mãe era professora primária e Cirino aprendeu tudo que sua mãe sabia o que fazia muita diferença naquela terra distante de tudo. Cirino sabia diferenciar as coisas certas, cheias de fundamento, das crendices bobas daquele povo, muito embora tivesse também suas superstições. Mas quem era ele, afinal? Por que estava ali naquele mundo, se pare- cia que não tinha serventia para nada? Não tinha ninguém. Não tinha para onde ir e nem por quê. Apesar disso, algo em seu íntimo espremia-se e parecia dizer que esse homem era alguém. Alguém que tinha algo a viver, algo que faria diferença, algo que mudaria muita coisa. Mas o que? Talvez fosse só abestamento de um coração sozinho no meio daquele lugar nenhum de Deus, pensava ele. Mas Cirino sentia

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um ímpeto a que não sabia dar nome, uma força que o fazia ciente de si mesmo, mesmo que não soubesse direito para quê. Assim era Cirino. Um homem simples, sem eira nem beira, que mesmo assim fazia diferença em meio a tanta peia do imenso sertão porque era um cabra que pensava e tinha sua própria opinião sobre as coisas; era alguém que sabia refletir, astuto, inventivo, forte e cheio de compaixão pelas pessoas que sabia valorizar, quando reconhecia um coração humano por trás de tantas máscaras, que muitas vezes as pessoas se viam obrigadas a usar. Muitas usavam com prazer e para estas, Cirino apertava os olhos, pois sabia que precisava ficar atento, para não ser enganado ou passado para trás; mas outras havia, que usavam máscaras porque precisavam se defender, se proteger. Estas, Cirino via com o coração a verdadeira face, muitas vezes acuada. Outras tantas sensíveis almas que enchiam de lágrimas os olhos de Cirino e apertavam seu coração. Ele muitas vezes nada fazia de cara, mas depois, quando ninguém via, ajudava, preservando assim a pessoa de sentir-se diminuída na frente dos outros. Cirino tinha esse ‘coraçãozão’; era de fato uma pessoa de bem, muito embora isso não importasse muito neste mundo cheio de mandos e desmandos. Cirino olhava aquela noite de estrelas sem fim e sentia a velha e conhecida angústia, que não sabia de onde vinha. Os dias corriam quase iguais e a noite trazia aquela inadequação, aquela falta de um não sabe o quê. A fome ajudava a piorar a situação. Até que se virava bem, aqui e ali, mas precisava arrumar algum trabalho; aquela vida não podia continuar assim. Não tinha jeito! Ou melhorava, ou melhorava! Não aguentava mais ficar sentindo-se um nada, um alguém que quer fazer, mas não tem onde, nem o quê. Foi confessando essas e outras com o padre Eustáquio, que este lhe sugeriu falar com seu compadre Zé. Compadre Zé trabalhava na fazenda de coronel Terêncio e podia lhe arrumar algum serviço. Dito e feito! E não é que existia serviço

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precisando mesmo de gente na fazenda do coronel? Não sabia muito bem que tipo de serviço era esse, pois o com- padre desconversou e ficou até mesmo sem jeito. Cirino percebeu a dificuldade e achou que o compadre estava receoso de dizer que o trabalho era pesado, por considerar e valorizar demais Cirino. Ele achou engraçado este pensamento e seu apreço por compadre Zé ganhou mais um adendo. Estava disposto a pegar o serviço que fosse, pois não podia e nem era cabra de recusar serviço algum por ser pesado demais. Aceitou. Logo, logo, compadre Zé falara com o coronel e este mandara Cirino se apresentar no dia seguinte, pela manhã. Era pensando nisso, que Cirino se deu conta do avançado da noite. Era preciso descansar, para apresentar-se bem-disposto às vistas do fazendeiro. Levantou-se do toco de árvore, pegou na lamparina e entrou em casa. Apanhou a faquinha da cintura, cortou um pedaço de carne seca e deu-se a mastigar. Precisava alimentarse. Era certo que não tinha muito que comer e já vinha medindo a pedaço de pau o resto de carne seca que lhe sobrava, pendurada no canto da cozinha da casinha velha e humilde que fora construída por seu avô e onde sempre vivera. Entornou um gole de água da cabaça num copo de barro e foi deitar-se na rede, aspirando boa sorte para o dia seguinte. E foi assim que Cirino adormeceu naquela noite enluarada e cheia de estrelas, em meio aos ruídos dos bichos da noite e embalado em sonhos fantásticos e inexplicáveis, que só Deus tinha por conta entender.

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A Lua Cirino acordou com o sol surgindo. Saltou da rede, deu uma coçadinha aqui e ali, calçou as sandálias velhas e saiu porta afora, como quem vai saudar o dia que chega, feito passarinho alegre que de vez em quando – quase nunca – saltitava entre os galhos secos do araçazeiro. Aliás, era por causa deste araçazeiro, que Cirino era conhecido como Cirino do Araçá. Seu nome verdadeiro era Cirino dos Santos; dos Santos só, porque só tinha o nome da mãe. Seu pai nunca soube quem era. Ouvira muita história por aí, sobre seu pai, mas sua mãe dizia que seu pai fora um homem forte, que surgiu numa noite de tempestade, de cujos olhos verdes e belos, faiscavam uma energia, que deixara sua mãe entregue. Seu nome era Guilherme. Na época, mesmo seu avô, homem pobre, mas honrado e austero sem perder o carinho que tinha por sua filha, se impressionara com a presença dele, quase que como por encanto, como se um feitiço tivesse deixado o velho embevecido com a imponência daquele homem, que ao mesmo tempo possuía certa doçura no trato; era um ser quase sobrenatural, segundo sua mãe dizia. Foi assim, que seu velho avô lhe deu a mão de sua filha, quando ele a pediu na manhã seguinte. O que numa situação ordinária teria sido uma surpresa, naquele momento sem espaço neste mundo, onde tudo parecia revestido por uma aura de magia e misteriosa fascinação, acabou passando até mesmo por uma satisfação e um sentimento de valor para o avô. A menina então ficara feliz como nunca, mas, após a noite de núpcias, ele saiu para resolver alguma coisa com alguém importante e desapareceu no mundo. E era apenas isso que ela contava. Cirino sempre achou, a cada vez que sua mãe contava esta história, que algo faltava, pois ela ficava muito pensativa

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e parecia triste. Tanto que, logo em seguida, saía para um canto, sozinha, sem falar com ninguém por um bom tempo. Afinal, quem era aquele homem? Cirino cresceu com essa vontade de saber mais sobre seu pai, mas nunca o conseguiu. Algo acontecera de diferente. Cirino até sentia um arrepio quando pensava nisso. Mas como pensar diferente, se sua mãe sempre falara de seu pai com muito respeito e até veneração, mesmo sem conhecê-lo direito? Era certo que Cirino não conseguia entender bem como alguém podia inspirar tanto respeito e até certa veneração em tão pouco tempo. Cirino cresceu, então, com esta imagem poderosa em suas lembranças, sempre que evocava a imagem de um pai que ele nunca vira, mas mesmo assim parecia estar presente em sua vida de forma muito forte e inexplicável. — Eita, dia bonito!... Dia de arrumá serviço. Fechou a porta de casa, pensando nas prosas do compadre Zé, que disse a ele do acerto com o coronel no dia anterior e aproveitou para advertir que o tal serviço, já fazia tempo que ninguém preenchia, pois o povo falava que nas terras do coronel Terêncio, tinha uma encarnação do capeta, que circulava pelas sombras, nas noites de lua inteira. Cirino finalmente entendeu o comportamento do compadre ao falar do serviço no dia anterior. Agora sabia que compadre Zé, entendendo que Cirino não era muito dado a estas coisas e, até por causa de certa vergonha em tocar no assunto, dissimulara a informação que acabou decidindo por passar a Cirino no dia seguinte. Cirino não gostava de debochar das histórias do povo, nem de duvidar das coisas do além, mas achava graça de como o compadre falava, arregalando os olhos e fazendo pose de cerimônia, igual ao Padre Eustáquio quando reza missa na igrejinha. Cirino chegou a rir do aviso do compadre, mas se conteve para não dar a impressão de desrespeito com alguém que o prezava demais da conta. No mais, se o tal do Lobisomem existia mesmo ou não, não

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importava muito agora, pois ele precisava do serviço e não iria arredar o pé. E assim, ele foi pelos caminhos secos, matutando as conversas com o compadre Zé, olhando aqui e acolá uma plantinha diferente, mexendo com os calangos de fugiam pelo caminho e buscando nuvens no céu, que bem que podiam aparecer e afogar aquela seca de tantos meses. Logo começou a ver ao longe, a casa grande da fazenda do coronel. A casa grande de fazenda ainda impunha respeito, mesmo com a passagem dos anos, que deixava a casa com aspecto de velha, perdida na antiguidade dos antepassados, gente que chegara aqui na época das colônias. Gente alta, de cabelos loiros e que vinha da Europa. Mas Cirino não fazia a menor ideia de onde era essa tal de Europa; sabia apenas que era lá para depois do mar, uma terra de gente rica e poderosa, assim como o coronel Terêncio e sua família. Mesmo o mar era um grande mistério para ele, que nunca chegara nem perto de conhecê-lo. Que dirá conhecer a gente que vinha lá do outro lado! Quando já ia aproximando-se, veio ao seu encontro um dos empregados da casa, saber qual a sua intenção; um jagunço mal-encarado de nome Juvenal e muito conhecido na região, pois era braço direito do Coronel e, como tantos outros que trabalhavam para ele, seguia à risca as determinações do patrão e, com isso, sempre tinha certas regalias na fazenda. — ‘Dia! — ‘Dia. Seu coroné tá? — Tá sim. O que o sinhô qué com o coroné? — Tô aqui por causa do serviço. Meu compadre Zé me disse que o coroné tinha um serviço aí, que ninguém tava querendo não. Pois eu quero sim sinhô, se ele quisé meus préstimos. — O sinhô espera aqui, que vô chamá o coroné.

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Cirino ali ficou, enquanto o empregado entrou rápido na casa, sem deixar de antes dar uma olhadinha de rabo de olho, como quem faz pouco do outro. A cara dura do jagunço fazia intimidar as pessoas que se achegavam, cara de gente que está acostumada a fazer os serviços “difíceis”, que o coronel tinha no mando. Falava-se muito disso na cidade, entre um copo ou outro de pinga, mas apenas quase cochichando. Falavase que era respeito, mas Cirino achava que era medo mesmo, afinal o coronel era personagem de muitas estórias que o povo contava. Dizia uma delas, que quando era moço, o coronel encontrara com o próprio tinhoso num dos caminhos da fazenda e que, ao enfrentar o ‘cramulhão’ sem medo, quase perdendo a vida, por causa de um rosário de sua avó e de sua coragem, acabou deixando o bicho em maus lençóis. O capeta tinha saído enfurecido pelo meio dos espinheiros, berrando mil desgraças para a família do coronel, até que caiu numa armadilha no meio do espinhal. Diziam que o coronel tinha se antecipado ao ‘coisa ruim’ e espalhado várias armadilhas para pegar o sujeitinho tinhoso. Mas o bicho, não se dando por vencido, de dentro da garrafa em que ficara preso, virou-se para o coronel e rogou uma praga, que até hoje ninguém sabe direito qual foi, pois o coronel nunca revelou a ninguém, nem mesmo a Juvenal, que foi quem espalhara esta história entre uma cachaça e outra. Essa era a história preferida daquele povo

sem dono, de cujas bocas saía uma nova situação, um novo causo para enfeitar ainda mais a aventura do coronel. O ‘cramulhão’ na garrafa era uma lenda, que impressionava a todos, pois o coronel era o único que conseguira prender um capetinha dentro de uma garrafa. Era por essas e outras que uns tinham respeito e outros tinham até medo do coronel Terêncio. O homem era uma espécie de herói amaldiçoado pelo capeta. Cirino ria disso a cada vez que escutava a história novamente. Ria não só da situação aventurosa, mas principal- mente dos adendos que o povo ia colocando, tornando o coronel um mito cada vez maior, por mais inverossímeis e até mesmo absurdas que fossem as invencionices decorativas que o povo colocava na tal história.

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Enquanto esperava, ele ficou olhando aquela casa grande e velha, tentando imaginar como seria a gente que a construiu. Ficava pensando se alguém viria de tão longe para viver naquele lugar esquecido de Deus. Mas esse povo da Europa era um povo diferente, diziam. Vai ver, gostavam de se aventurar e desafiar as coisas a que nem mesmo Deus dava muita atenção. Deus estava em todo lugar, dizia padre Eustáquio. Cirino não duvidava, mas sempre achou que praquelas bandas ele olhava bem pouco. Logo veio o coronel, um velho que parecia ter seus mais de setenta anos, alto e com uma cintura larga de quem anda satisfeito de tanto comer; com um olhar vivo e intimidador que passa a segurança que só o poder nato dá a uma pessoa e que deixa encafifado qualquer um encarado por ele. Assim como as histórias sobre os mandos e desmandos do coronel, também havia histórias sobre sua família e a dureza de seu pai ao criar o filho. Diz-se que seu pai o criara com mão de ferro, dando a educação forte e severa para que o filho crescesse com autoridade e capacidade de tirar dos empregados o máximo que estes podiam dar de si, sempre o respeitando acima de tudo. Seu pai aprendera muito com seu avô, que Terêncio não conhecera. Quer dizer, conhecera, mas era muito pequeno para lembrar. Seu avô fora grande dono de escravos e morrera antes que Terêncio desse por si como pessoa humana. Na época do engenho velho, sob o mando de seu pai, a vida era muito difícil para os então empregados, que na verdade, ainda eram escravos, porque recebiam uma diferenciação mínima pelos trabalhos, o que os forçava a continuarem por ali mesmo, já que era impossível deixar aquelas bandas. Mas com o tempo, e depois da morte do pai de Terêncio, as plantações foram ficando raras, a cana perdeu o valor de antes e foi assim, até que o engenho parou de vez e o coronel resolveu criar gado.

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— ‘Dia! — ‘Dia, seu coroné — O senhor, então, está interessado no emprego aqui na minha fazenda. Qual é a sua graça mesmo? — Cirino, seu coroné. — Pois bem... O Seu Cirino já sabe das lendas que esse povo anda contando por aí? De que um lobisomem anda rondando as minhas terras já faz tempo? — Sei, sim sinhô! — E não se treme de dar com as fuças do capeta? — Sabe, seu coroné, eu num gosto de me metê com essas coisas não, mas tô precisando do serviço e num tem ‘cramulhão’ que me faça deixá minha obrigação! Além do mais, se o sinhô botô o chifrudo pra corrê, por que eu haveria de ficá com medo? O coronel gostou de ouvir aquilo e deu um meio sorriso de satisfação. Nada o satisfazia mais, do que uma alisada em sua vaidade, mas, apercebendo-se de seu deslize na frente de um qualquer, logo endureceu a cara novamente. — Você, Cirino, parece ser um homem de muita coragem! Só quero ver, se por um acaso, bater de frente com o cão, não vai fugir por esse mundo afora. Muito bem, o emprego é seu, Cirino. E o serviço é que tem umas cercas pra consertar lá pelos lados da barragem seca, que de- vem levar uns bons dias para serem consertadas. E faz tempo que não consigo ninguém para o serviço, por causa dessas histórias de lobisomem. O senhor vai com o Juvenal, que ele vai lhe mostrar onde estão os materiais pro conserto. Bom dia. Cirino saiu contente com o serviço arrumado, muito embora sentisse uma estranheza ao ouvir o coronel falar sobre o tal lobisomem. Não passava por sua cabeça todas as aventuras

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em que haveria de se meter a partir deste dia. Só queria fazer seu serviço, um trabalho que ninguém tinha conseguido fazer até então, por causa do tal lobisomem. Mas para ele isso não era problema, não. Era só tomar cuidado e fazer seu serviço antes da noite chegar. Isso quando fosse noite de lua cheia, se é que o talzinho existia mesmo. Fazer o que ninguém havia feito ainda, seria muito bom para Cirino, ele sabia. Aquele povo era muito medroso e o tal do maldito tinha afastado todos os empregados que se encarregavam destes trabalhos, para dentro da fazenda, pois todos tinham medo de bater com as fuças do tinhoso. Mas Cirino tinha no sangue a aventura e, no fundo, aquele assanhamento lhe agradava e muito, mesmo não querendo se meter com estas coisas. Se acontecesse, teria que dar o seu jeito, fosse qual fosse. Não tinha medo. Se o bicho viesse, encararia e tentaria se safar da melhor forma possível. Juvenal lhe mostrou as ferramentas e os pedaços de pau, que Cirino colocou no carrinho de mão enferrujado, cuja roda mal lubrificada fazia um barulhão e prendia tanto que talvez fosse melhor levar tudo na moleira mesmo. O coronel tinha um galpão ainda mais maltratado pelo tempo do que a casa, embora parecesse mais recente, onde ficavam vários materiais e ferramentas para os trabalhos da fazenda. Logo acima da entrada, tinha uma imagem de santa, que talvez fosse para proteger o local, onde antes deveria ter sido um lugar de guardar os animais da fazenda. Era muito comum este tipo de coisa naquele lugar, já que muitas das vezes só se podia contar mesmo era com a ajuda de Deus e com uma espingarda. Cirino pegou o que precisava, diante das indicações de Juvenal, colocou tudo no carrinho e foi imerso nestes pequenos questionamentos e outros tantos, que não saíam de sua cabeça, que Cirino seguiu caminhando com o carrinho de

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mão enferrujado e de roda presa, atravessando a fazenda do coronel Terêncio. O dia estava quente como sempre e mesmo com o peso do carrinho e aquele lascar de sol na moleira, ele estava satisfeito por ter arrumado o tal do serviço, afinal fazia tempo que andava atrás de algum e assim poder comprar comida na venda do nhô Caleb. Ele não gostava de fazer dívidas e só comprava quando tinha algum para pagar. Isso era visto por alguns como uma teimosia que o fazia passar necessidades sem precisão; e para outros como uma honestidade que o tornava alguém em quem todos confiavam. Talvez ele até pudesse pegar mais mantimentos do que qualquer outro na cidade e deixar numa conta, que ninguém duvidaria que Cirino pagaria, mas ele era cabeça dura com isso e, como dizia seu avô, “o que é certo é certo! Homem de bem, temente a Deus, não faz as coisas se não tiver certeza de que pode arcar com as consequências”. E Cirino aprendeu com aquele homem como ser forte, decidido e honesto. Cirino era homem de bem, nunca havia se envolvido em brigas e confusões, a não ser da vez que um jagunço se metera para os lados de sua afilhada Mariana, filha de seu compadre Zé. Desta vez, Cirino, que todos conheciam como homem bom e pacífico, que não se metia em confusões, transformara-se num bicho de amedrontar até o capeta, atracando-se com o jagunço, que assustado pedia pelo amor de Deus, para que tirassem aquele homem de cima dele, como se o povo já não estivesse tentando tirar Cirino de cima do pobre infeliz. Depois deste episódio, Cirino passou a ser muito considerado pelo povo da região, embora alguns coronéis e religiosos o tivessem por conta de um pobre diabo qualquer. O povo sabia que Cirino era inteligente, mas nunca pensara que ele tinha aquela valentia toda. Alguns tentaram fazer dele o novo valentão da cidade, mas Cirino sempre fazia uma graça

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inteligente, que alguns ficavam desconcertados e outros simplesmente não entendiam por serem ignorantes. Então taxavam Cirino de doido de língua enrolada. Mariana era moça nova, nos seus 15 anos. Menina prendada, ajudava a mãe com as poucas encomendas de costura que garantiam uma vida simples, junto ao pequeno ordenado que o pai recebia como empregado do coronel que agora também era patrão de Cirino. Cirino, ainda jovem, nos seus 26 anos, tinha orgulho de ser seu padrinho. Pensava que Marianinha merecia se casar com um bom homem, e não era qualquer jagunço que poderia se meter a besta com a menina. E foi assim desde então. Toda vez que algum sujeito cheio de intenções se aproximava de Marianinha, era logo avisado da enervação de seu padrinho, que apesar de não parecer, era homem valente que só vendo. E de tanto ser avisado com histórias e conselhos, o sujeito acabava desistindo da empreitada. Depois, quando Marianinha foi morar com a madrinha na capital, tudo pareceu ficar legado ao passado distante. Essa madrinha tinha partido para a capital já há alguns anos e conseguira fazer dinheiro por lá, mandando buscar a afilhada para que esta fosse estudar num bom colégio, daqueles que só existem nas grandes cidades. Zé, embora com o coração apertado e Joana, sua esposa, um tanto chorosa, sabiam que era uma oportunidade de a filha se formar e ter um futuro melhor, longe daquele miserê. Mesmo morrendo de saudades, sabiam que era importante para a filha ter uma formação numa boa escola da capital. Quem sabe ela não se tornava uma médica, ou uma advogada, ou qualquer outra profissão de importância? Cirino andou por quase uma hora, até que começou a ver um pedaço grande de cerca que parecia ter caído depois de muito ser castigada pelo tempo, e então um bezerro qualquer deve ter feito uma forcinha maior e logo a bichinha caiu; aquele era o lugar onde a cerca precisava de conserto.

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O sol lascava o couro e, com um chapéu de palha meio furado aqui e acolá, Cirino começou o serviço, acabando de arrebentar o arame antigo, para pode colocar o novo. Ficava cantarolando uma modinha, que era pra ver se o tempo passava rápido. De vez em quando, soltava uns “Oxé!”, uns “Eita!”, quando, num momento de distração, espetava o dedo no arame. Mas, além disso, nada acontecia e seus pensamentos voavam à medida que ia fazendo o serviço. Cirino passou o dia todo consertando a cerca. Na hora em que bateu a fome almoçara um pouco da farinha de mandioca com carne seca que tinha recebido na fazenda, junto com as ferramentas para que não precisasse voltar e atrasar o serviço, muito embora tivesse ficado claro que precisaria voltar nos dias seguintes. Mas a comida era pouca e ele já estava com fome novamente, como se não estivesse sempre com a mal- dita que nunca o deixava. Já era quase noitinha, quando ele terminou o trabalho do dia. Nem pensava mais na história do ‘coisa ruim’, quando viu que a lua começava a despontar no horizonte. Mas ainda era lua crescente e isso o despreocupou. Não que ele ligasse para as histórias, mas era melhor mesmo não bulir com elas. Sua vida, apesar dos percalços, sempre foi muito bem sem que ele se metesse com essas coisas, então melhor seria que continuasse assim. Cirino chegou à fazenda, deu conta ao coronel dos progressos na arrumação da cerca e, depois de ter acertado voltar nos dias seguintes, o coronel mandou que ele fosse comer alguma coisa na cozinha atrás da casa. Cirino agradeceu visivelmente feliz pelo mando que ele seguiria de bom grado; e foi até a cozinha, onde conheceu Donana, com quem muito simpatizou e teve uma prosa de muito tempo, enquanto comia sua primeira refeição de verdade em muitos meses. Há muito não comia tão bem.

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No dia seguinte, Cirino acordou cedo e foi para a fazenda do coronel para dar seguimento ao serviço e isso se repetiu por cinco dias. Cirino não se lembrava de ter sido tão feliz. Afinal, a melhor hora do dia era à noitinha, quando terminava o serviço, chegava à casa grande e, depois de dar contas ao coronel do progresso no serviço, ia para a cozinha jantar antes de voltar para casa. Ele já podia sentir-se engordar. Podia jurar que algumas carnes já começavam a aparecer nos seus braços. Isso, sem falar na disposição renovada de quem está bem de saúde e bem alimentado; coisa rara na vida dura de Cirino, sobretudo depois que Deus levou sua mãe, que sempre fazia das tripas coração, mas cuidava de Cirino como se ele ainda fosse uma criança. Ele resmungava, mas tinha um carinho enorme por ela e, no fundo, até gostava daquele mimo. No sexto dia ele quase terminou o serviço, e acostumado com a volta para a fazenda no meio da noite, deixara de se dar conta de que lua crescente também passa. Quando de repente percebeu o clarão avermelhado que subia por trás dos espinhais. — Lua inteira. – Ecoou em sua cabeça a sentença maldita, que até então estava esquecida pela distração do trabalho dos últimos dias. Então, de sobressalto, Cirino lembrou o significado daquela lua, naquele lugar e naquela circunstância. Não era homem de se acovardar por causa de uma história, das crendices do povo, das invencionices, mas por via das dúvidas, era melhor não arriscar. Com as coisas do além não se deve lançar desafio — Pensava. Pôs-se então a caminho da fazenda a passos largos, quase correndo. A lua ia subindo e um nervosinho que parecia cachaça ruim no estômago de Cirino ia junto com ele. Aquilo incomodava pra daná! Resmungava e ficava falando consigo mesmo, perguntando se depois de velho, deu pra ter medo de causos. A distância era muita e levava tempo para chegar e ele travava uma discussão em sua mente, ora recriminando-se por ser descuidado e agora estar numa situação que poderia ser

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perigosa, ora zombando de si mesmo por estar com medo de histórias do povo, feito criança. Cirino seguia pelo caminho assim, entre nervoso e irritado. Quando estava se aproximando da casa, de uma distância onde já se podia ver quem chegava, diminuiu o passo para não passar por medroso diante dos homens do coronel. Podia ser tudo, menos medroso. Não precisava de uma fama ruim deste tipo. Aliás, não precisava de fama nenhuma; estava bem assim como estava. Passou a mão pela testa e enxugou o suor quase frio que teimava em escorrer. Respirou fundo várias vezes e entrou pela porteira. Foi se achegando e dando “bar noite” para os jagunços. Pegou o rumo do galpão da fazenda onde deixou o material. Encontrou com Zé, que também já tinha acabado seu serviço e se preparava para ir comer alguma coisa. Zé o convidou para ir com ele até a cozinha, dizendo que o coronel fazia questão que os empregados comessem antes de voltar para casa, como se Cirino já não soubesse disso há seis dias. Então, os dois foram conversando sobre os trabalhos do dia. Da cozinha vinha um cheirinho gostoso e a fome se agitou feito um bicho danado na barriga de Cirino que chegou a roncar e fez até compadre Zé rir-se dele, pois o barulho foi tão alto, que deu para ouvir. *** No dia seguinte Cirino chegou cedinho na fazenda. Pegou o material para terminar o serviço e foi falar com o coronel, mas o coronel ainda estava dormindo e o jagunço Juvenal não o chamou. Cirino reclamou que o aramado que tinha era pouco para terminar o serviço, pois um grande trecho de arame estava enferrujado e velho, arrebentando fácil e deixando sempre aberto um pedaço para as divisas com as terras do coronel Sereno, ali pela barragem seca, mas o jagunço não

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arredou pé e disse para Cirino que ele fosse assim mesmo e que, se acabasse, ele voltasse, porque não iria incomodar o coronel por causa disso. Além do mais – disse ele, o coronel não gosta que o acordem por ‘besteirice’. Juvenal já havia sido instruído pelo coronel para ficar de olho na quantidade de material que estava sendo usado. Coronel Terêncio, homem experiente, como não tinha visto a quantas andava o progresso do trabalho e se baseava nas as contas que Cirino lhe prestava todas as noites, tomou esta iniciativa para garantir que não estaria sendo roubado no material que deveria ser usado para o trabalho. Meio contrariado Cirino foi-se para o meio do nada, terminar o diacho do serviço. Antes ele contrariado do que o patrão. Então foi para o meio do mato assim mesmo. Estava meio ressabiado, pois sabia que, se tivesse que voltar depois do diacho do almoço, só sairia de lá quando já fosse noite. E sabe como é: ainda era início de lua inteira e o ‘coisa ruim’, se existisse, ainda estaria por aquelas bandas, sedento de sangue em sua sanha maldita. Mas também não podia se passar por medroso, embora estivesse tremendo de medo dentro das calças de encontrar com o cachorrão. Mas tinha que manter a pose. Já que assumira o compro- misso, tinha que ser o homem de coragem, aquele que consertaria a tal cerca e sairia vitorioso desta estória de lobisomem, ainda se rindo todo dos que se acovardaram. Havia o orgulho e a visão lá na frente de que poderia ganhar a confiança do coronel e se tornar alguém com um pouquinho mais de respeito entre os grandes da cidade. Mas mesmo assim se perguntava: e se existisse o tarzinho? E se batesse com as fuça do desgramado? É, apesar de tudo, Cirino era homem igual a todo mundo, ele sabia. Tinha lá suas cismas também. Não se surpreendeu tanto assim ao perceber que, afinal de contas, leva muito mais a sério do que imaginava esta história de lobisomem.

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Era meio-dia quando Cirino terminou com o aramado que o coronel havia lhe dado para aquele dia, exatamente como previra. Diacho! – pensava. Tinha que voltar até a fazenda para almoçar e pegar mais para findar o trabalho. Amuado foi Cirino em direção da casa grande, sabendo que ficaria até tarde remendando aquela porcaria. Só restava rezar para a Virgem e pedir que o protegesse. Não gostava de mexer com essas coisas. Nunca gostou. Desde criança escutava as histórias dos mais velhos sobre essas coisas do além: capeta, lobisomem, saci pererê, alma penada, boi- tatá, curupira, caipora, mula sem cabeça... Nada disso! Não gostava mesmo destas coisas e pronto! Se pudesse, virava as costas e desistia de tudo, mas dentro dele sentia que, mais do que a necessidade de ter o que comer, alguma coisa o impulsionava a continuar. Era uma força estranha, uma coragem que não era coragem, uma cisma de que valeria o sacrifício. Nunca sentira nada parecido antes. Era um Cirino que Cirino não conhecia. Foi chegar à fazenda, encher o bucho e partir de volta para o mato a terminar o serviço. E assim foi até lá pelas oito da noite. A lua já ia nascendo por trás dos morros e Cirino, tendo terminado finalmente o trabalho, já se punha em marcha de volta à fazenda. A noite estava quente e o céu estrelado. Ele ia caminhando e pensando nas estórias do povo. Dizia para si mesmo que era tudo um conversê sem tamanho, mas no fundo sentia um friozinho na barriga e seria melhor chegar logo. Foi quando uns barulhos começaram a vir por trás dos espinheiros em meio ao negrume da noite e às sombras estranhas dos galhos retorcidos que acompanhavam a estradinha. No início, Cirino não viu nada de estranho nisso; eram os bichos da noite que ele acostumara a ouvir nas noites solitárias que passava em sua casinha, mas os barulhos tornaram-se cada vez mais próximos e acompanhavam os

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passos de Cirino noite adentro. O homem já estava começando a ficar aperreado com isso. A espinha gelou, quando um estalar de galhos cantou ao seu lado, próximo justamente a um espinheiro mais cheio de galhos, onde a lua por trás fez crescer um vulto enorme e assustador. Cirino ficou petrificado, com os olhos maiores que dois ovos de galinha. Tudo parecia remexer em sua barriga e ele não queria acreditar que aquilo era de fato o que ele pensava que era, mas logo que deu por si, já estava correndo desembestado, escutando uma respiração afobada que vinha logo atrás. Quanto mais corria, mais parecia que o bicho estava perto. A mente de Cirino trabalhava já em desespero danado e começava a rezar a ave-maria, enquanto corria feito doido. Rezar, não! Já estava berrando em voz alta os versos da oração; lembrava das coisas que vivera e do que ainda faltava por viver e já começava a se lamentar; morreria nas garras do bicho do capeta e o que seria então? Logo Cirino reconheceu estar chegando perto do riacho seco. Num ímpeto de inteligência quase mecânica – para não dizer involuntária porque isso não era – Cirino escorregou pela ribanceira, saltando as pedras do riacho seco logo que chegou lá embaixo. Dali passou novamente para o lado da ribanceira, segurando um galho que se dobrou de um lado a outro, soltando-o logo em seguida. O galho voltou com toda a força, indo atingir o perseguidor em cheio, bem no meio da fuça. Cirino subiu mais e sem que nem ele soubesse o porquê, parou para ver o que tinha acertado, enquanto o bicho rolava o resto da ribanceira, indo cair sobre umas pedras feito um saco de estrume. Um silêncio tomou o ar, como se até as criaturas da noite engolissem em seco naquele momento. Cirino respirava afoito, a cabeça girava a mil, mas aos poucos e tremendo loucamente, foi aquietando a mente, quando começara a maquinar coisas que antes ele consideraria abestadas, mas que

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agora parecia ter outro sabor. Cirino começou a pensar na glória de ter enfrentado o bicho e ter se saído vencedor. Dentro do peito falou mais alto a vontade de ser herói. — O home que pegô o lobisomem! Ficou um tempo pensando e olhando estático o bicho caído. Então correu estrada acima em busca da sobra de arame que ele havia larga- do para trás na hora do desespero. Encontrou o pequeno rolo de quatro voltas preso ao galho de um espinheiro. Pegou-o com dificuldade, retirando-o do espinheiro e saiu em debandada de volta ao lugar onde o bicho caíra feito um saco de bosta. Então pensou: e se o bicho já estives- se acordado? Na certa estaria um bocado danado da vida; e ele acabaria dando com os cornos do ‘safadão’, bem na hora em que o bicho mais estaria na vontade da desforra. Diminuiu o passo para poder estar mais atento e fugir caso encontrasse a danação com o ódio nos olhos. Chegou ao local e olhou de cima da ribanceira, mas o corpo do bicho não estava lá embaixo. Cirino se tremeu todo e mergulhou fundo numa emoção que nunca sentira. Pensou na mesma hora o perigo que estava correndo. — Ai, meu Deus! O bicho não tá lá... Pode de tá na espreita, pronto pra sartá arriba d’eu. Pra quê que eu fui vortá aqui? Diacho! Pra quê que eu fui inventá de sê herói? A lua acesa no céu parecia um farol a mostrar ao lobisomem onde estaria Cirino, para que sua vingança se concretizasse, para que aquele cabra aprendesse a não se meter com as coisas do capeta. Ele seria mais uma vítima e morreria por ter se metido a besta, por ter feito aquilo que ele sabia desde o começo que nunca deveria fazer: se meter com as coisas do

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além. Esse era o pensamento de Cirino, enquanto andava rápido por entre os espinheiros, tentando chegar o mais rápido possível na casa grande da fazenda. O problema é que para chegar à fazenda levaria um bom tempo de caminhada e durante este tempo o bicho poderia saltar sobre ele, cheio de sua sanha assassina e então Cirino seria apenas mais um a fortalecer a lenda do ‘coisa ruim’ que afinal de contas, não era lenda coisa nenhuma. Enquanto corria, Cirino tentava rezar, mas o desespero o fazia em- bolar os versos e misturar as orações, que ora eram partes da ave-maria, ora eram partes de um pai-nosso sem pé nem cabeça em que ele metia palavras que nunca existiram em nenhuma oração que ele conhecia. O negócio era ir o mais rápido possível e torcer para que o bicho tivesse desistido do seu intento. — Ah, mas esses bicho do além são tudo danado pra insistí na perseguição e só ficam satisfeito quando provam o sangue do perseguido. Valha-me Deus, Nossa Senhora! – Pensava ele, já tendo desistido de tentar rezar as orações conhecidas e que ele não conseguia concatenar. Passada após passada, Cirino seguia pelas trilhas com a lua acompanhando entre os galhos meio secos dos espinheiros e dos mandacarus. Uma vez ou outra, sentia um espinho afundar na carne, como se estivesse tentando agarrar sua alma e segurálo no meio do caminho, servindo-o de banquete para o cachorro dos infernos. A cada fisgada de espinho Cirino pensava que eram as garras do capeta que já devia estar lambendo os beiços, se é que esses bichos têm beiços – pensava. De repente outro barulho no meio da escuridão à sua frente fez Cirino estacar. Precisava estar atento e talvez o mínimo ruído pudesse chamar a atenção do bicho que fizera o tal barulho. Silêncio. O grito de um carcará ao longe, varou

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friamente sua alma, gelando sua espinha de cima abaixo. Estava acostumado com os bichos da região e seus sons, mas naquele momento, naquela situação, qualquer barulho era alimento para o medo e ele já estava se rezando todo novamente, com um baita cagaço. Sua alma estava a ponto de fugir pela boca e pelos ouvidos. Estava para- do, mas o medo afluía dos poros num suor gelado e talvez o lobisomem sentisse este medo, que funcionava como um alarme, gritando: Aqui! Aqui! Venha me pegar! Estou aqui! Em meio a estes pensamentos desesperados o barulho aumenta e Cirino beira o pânico. É quando sai na mesma hora, do meio dos es- pinhais, um calango, que nem dá bola para Cirino e acaba sumindo do outro lado. Cirino, por sua vez, quase cospe o próprio coração que já estava sufocando-o, preso na garganta. O suor desce frio por seu corpo todo e um suspiro de alívio veio muito a calhar; era um reforço para si mesmo e um atentar para continuar correndo, pois ainda faltava um bom espaço a percorrer até chegar à casa grande e o bicho ainda podia estar por ali. Ou será que aquela galhada nas fuças e a queda tinham feito arrefecer o ânimo do ‘cramulhão’? O bicho bem poderia ter saído para outras bandas, insatisfeito, mas também amuado e deixando a peleja para outro encontro que Cirino esperava nunca mais acontecesse. Só de pensar que poderia encontrar com o tal bicho de novo, já ficava com o coração desesperado e querendo sair pela sua boca e correr na sua frente. Não, era melhor aquietar-se. O coração ia ficar é dentro do peito mesmo. Precisava se tranquilizar e estar atento. Pensava consigo mesmo se tudo aquilo era mesmo real, se não teria sonhado, ou talvez fosse tudo obra de sua imaginação. Naquelas terras as pessoas costumam ter uma imaginação muito fértil e vivem imaginando coisas que de realidade têm muito pouco. Mas Cirino era homem firme e não se deixava levar por estas coisas de imaginar besteiras e ficar de invencionices para divertir o povo sem nada pra fazer. Não. Aquilo não era coisa

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de sua imaginação. Viu mesmo o bichão e agora estava numa situação muito delicada em que estar atento era tudo de que precisava para evitar a investida furtiva que poderia pegá-lo de surpresa a qualquer momento. Corria e corria, mas mesmo a corrida tinha sua limitação, já que a noite não permitia ver tudo com muita clareza, apesar de a lua cheia iluminar um pouco o caminho. No entanto, para piorar a situação de Cirino, um aglomerado de nu- vens que se avolumava acabou por fechar o céu e tudo ficou mais es- curo. Ele diminuiu o ritmo e seguia a passos largos novamente. Uma alegria esfuziante tomou todo o seu corpo quando pôde ver as luzes da fazenda se aproximarem. Começou a correr e já não sentia nem mais o cansaço. Chegou à casa da fazenda quase colocando os bofes pra fora. Os jagunços se aproximaram dele e, sérios, ajudaram-no a caminhar até o galpão de ferramentas. Chegando lá, Cirino já conseguia falar e disse que tinha dado de cara com o Bichão. Os jagunços olhavam para ele sem esboçar a menor emoção. Cirino insistia em dizer que era verdade, mesmo que ninguém tivesse duvidado, apenas mantinham-se em silêncio, diante das suas palavras e apenas trocavam olhares que ele não conseguia compreender e nem mesmo tentava; estava exausto e não atinava nada direito. — É mió ocê tumá um banho, cuidá desses corte e cumê alguma coisa. Se quisé, pode drumi aqui no galpão. Amanhã o sinhô fala com o coroné. Cirino não entendia aquela reação dos jagunços. Mas já estava mais calmo e resolveu acatar a sugestão. Os furos e cortes de espinho ardiam um pouco e arderiam muito mais na hora do banho, mas resolveu enfrentar esta dor, pois nada seria mais terrível do que o que havia vivido naquela noite. Isso era o que ele pensava.

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Mais tarde, o coronel foi até o galpão e viu a situação de Cirino. Ele dormia profundamente e nem se deu conta da visita. Terêncio alisou a barba, pensativo. Olhou para o teto do galpão, tornou a olhar para Cirino deitado e saiu para a noite, de volta a casa grande da fazenda.

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O Homem que Enfrentou o Lobisomem Cirino teve uma noite de pesadelos e acordou algumas vezes, sentindo-se nas garras do lobisomem. Logo então percebia que sonhara um sonho ruim enquanto dormia. Voltava a dormir e os pesadelos voltavam. Acordou sentindo-se meio moído e cansado, pois os nervos tinham ido ao limite e não era em uma noite mal dormida que ele iria descansar do episódio vivido na noite anterior. Ficou um tempo olhando para o teto do galpão onde alguns mor- cegos se balançavam talvez um pouco incomodados com o calor que ia aumentando à medida que a manhã avançava e o sol ia esquentando o telhado. Cirino questionava-se sobre a noite anterior e sua mente bailava sobre o real e o sonho; perguntava-se se tudo aquilo realmente tinha acontecido. Mas, além das lembranças fortes que nenhum sonho tem igual, sentiu algumas fisgadas pelo corpo ao se mexer na cama; eram os ferimentos da debandada da noite anterior, além da exaustão muscular cuja estrutura fora posta à prova quase ao limite de suas capacidades. O resultado eram as dores da manhã seguinte. Mas Cirino estava acostumado às coisas difíceis da vida e essas pequenas dores nada mais eram do que outra característica da vida dura que levava. A única diferença era aquela impressão forte e quase traumática que permanecia em seu íntimo; uma mescla de medo, aflição, ansiedade e audácia. Era sentindo-se assim que achou por bem levantar-se e ir falar com o coronel. Além do ocorrido, receberia a paga pelo serviço realizado. Mas era fato o que vivera e precisava afirmar ao coronel, precisava dizer do perigo que rondava a casa grande. Afinal de contas, coronel Terêncio tinha uma filha à qual dedicava um amor, que todas as pessoas da região conheciam

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bem; cheio de cuidados e mimos. Mas como abordar isso com o coronel? Homem duro e que deixava as pessoas inseguras e sem saber bem como se comportar diante dele. Cirino não era homem de temer fosse lá quem fosse, mas sabia respeitar as pessoas, sobretudo os coronéis que mandavam e desmandavam na cidade. Tinha suas cismas, mas não deixava que suas opiniões influenciassem em sua atitude de respeito. Nisso, sua mãe o educara com muito zelo e Cirino aprendera muito bem. Cirino levantou-se com certa dificuldade, pois, a cada movimento mais puxado do corpo, ainda dormente do sono pesado, sentia muitas dores aqui e acolá. Mas aos poucos foi acostumando e despertando os músculos. Saiu do galpão e deu de cara com o jagunço Juvenal, que o olhou com cara de deboche. Cirino não gostou muito, mas foi um sentimento que passou rápido, porque não estava disposto a prender-se a essas pequenas coisas. O objetivo era falar com o coronel. — Seu Juvenar. O sinhô sabe donde tá o coroné? Tô carecendo de ter uma prosa com ele. — O coroné tá esperando o sinhô na varanda. Disse para lhe avisá, assim que o sinhô acordasse. Cirino meneou a cabeça num cumprimento e seguiu em direção à varanda, ainda sem saber bem como iniciar a prosa. Talvez fosse melhor deixar o coronel começar, pois era certo que ele o fizesse mesmo – pensava ele. O fato de o coronel já estar a par de tudo não era surpresa, já que era isso que deveria esperar de seus jagunços que informariam ao coronel o que se passara com Cirino e que ele afirmara ter encontra- do o lobisomem. Agora, como o coronel encararia isso e de que forma trataria do caso com Cirino era uma questão em aberto e ele não fazia ideia dos pensamentos e das intenções do coronel. Ao chegar diante da varanda encontrou o coronel sentado e fumando um cachimbo. A imagem do coronel

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realmente impressionava bastante. Mais ainda naquele momento de incerteza. Assim que o coronel enxergou Cirino, apertou os olhos e fez um sinal com a mão para que ele se aproximasse. Cirino ainda andava com certa dificuldade e isso não passou despercebido do coronel, muito embora não deixasse transparecer. — Cirino, o serviço tá pronto? — Sim, sinhô, seu coroné. — Fiquei sabendo que o senhor chegou por aqui ontem de um jeito desesperado e meio em frangalhos, Seu Cirino. — É verdade, seu coroné. — E que história é essa de encontrar com o cão? Não era o senhor que não acreditava nessas coisas? — Eh... Seu coroné, eu, eu encontrei com o tal do lobisomem. Se bem que eu acho que foi ele que me encontrô. E foi por pouco que eu num escapei, seu coroné. O bicho existe memo. O coronel alisou a barba, olhou para longe como quem pensa em algo, ou como quem tenta esconder alguma inquietação. A bem da verdade, o homem era quase uma pedra e não se conseguia saber o que passava pela sua cabeça. — Sabe Seu Cirino... Eu não gosto muito dessas histórias do povo. Eles são cheios de invencionices que exageram as coisas por demais, mas é verdade que as histórias ajudam a impor o devido respeito. Sei também que o senhor é um homem que conhece bem a região, tem o respeito das pessoas e não é dado a essas sandices sem tamanho deste povo ignorante. Cirino olhava apreensivo, sem nem imaginar o que pudesse sair da boca do coronel. — Não quero entrar neste assunto de lobisomem porque não vejo precisão. O senhor está vivo e o serviço está feito, então vou lhe pagar o combinado e o senhor pode ir para

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sua casa. Vou mandar Juvenal ir até o cercado novo pra conferir o serviço. Se estiver tudo bem feito, mando avisar o senhor, pois tenho outros serviços aqui na fazenda que precisam ser feitos e não tenho quem faça por conta dessa falação do povo. O coronel se empertigou na cadeira, para poder enfiar a mão no bolso da calça de onde tirou um maço de dinheiro, contou algumas notas, separou uma parte e entregou a Cirino. Cirino fez uma mesura com a cabeça. — Muito obrigado, seu coroné. O sinhô vai vê que eu fiz um bom serviço. Pode me chamá de novo que venho com muita presteza. Muito obrigado. E com sua licença. O coronel meneou levemente a cabeça numa concordância e Cirino se retirou. Mas estava desconfortável e insatisfeito, afinal quase perdera a vida, tinha dado com as fuças do cachorrão e o coronel não o deixara falar sobre o ocorrido. Tinha mesmo dado pouca importância. Será que não se importava com a vida de Cirino? Ah, mas isso era óbvio que não! Vê se coronel Terêncio ia se importar com a vida de um Zé ninguém como ele! Mas mesmo assim, era uma situação diferente, sobrenatural. Algo que qualquer pessoa investigaria e até sairia à caça do tal bicho. Como era possível o coronel ter encarado o assunto sem perder a calma, ou mesmo mostrar um mínimo de interesse? – Pensava Cirino. Alguma coisa muito estranha havia ali. Será que o lobisomem era o coronel? Será que o tal bicho era uma prova de que o coronel Terêncio tinha algum pacto com o ‘coisa ruim’ e por isso o capeta tinha cedido o cão dos infernos para guardar as terras dele? Muita coisa podia ser e a mente de Cirino só podia bailar entre as possibilidades que o incômodo provocado pelo pouco caso do coronel dera ao ocorrido, causava. Foi com esses e outros pensa- mentos do mesmo teor que ele foi andando em direção à cidade para comprar alguns mantimentos. O dinheiro que ganhara não era muito, mas para Cirino qualquer dinheiro era muito; quando não se tem nada, não se reclama de pouco.

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O sol já estava lascando a pele e Cirino ia andando debaixo dele. Mas o sol era algo que não o preocupava, não só por já estar acostumado, mas também porque seus músculos, embora doessem menos depois de começar a se movimentar, ainda assim doíam. Andar era doloroso e não se sentia completamente bem. Sua vontade era chegar à sua casa, deitar na rede e assim ficar o resto do dia. Mas precisava comprar algo para comer. Afinal, sua casa estava sem nada fazia tempo. Assim, foi chegando à cidade e na venda de Seu Caleb. Seu Caleb era um árabe que tinha vindo parar naquele fim de mundo ainda pequeno. Dizia que seus pais fugiam da guerra em seu país e que, depois de desembarcarem na capital, resolveram viajar para o interior e acabaram parando naquele lugar, depois de adoecerem. Foram ficando na cidade e por ali resolveram se estabelecer, comprando a vendinha que agora lhe pertencia. Naquela época as coisas eram mais difíceis e os produtos demoravam a chegar, obrigando sua família a negociar direto com os coronéis. Hoje as coisas eram diferentes, embora nem tanto assim, porém se podiam comprar coisas na capital e trazer para vender ali. Caleb era um homem tranquilo, que vivia no ritmo do lugar, sem grandes preocupações. Aprendera a lidar com as pessoas dali desde pequeno e era de certa forma quem trazia novidades de fora e abastecia a cidade com mantimentos que encomendava. Não gostava de vender fiado, mas naquele lugar não tinha outro jeito e desde pequeno, aprendera a aceitar a negociação à base de trocas, já que nem sempre o dinheiro era o veículo principal a mover a vida daquelas pessoas. Foi assim que passou a ter o melhor galinheiro da cidade que lhe fornecia os ovos vendidos em sua venda. Assim que Cirino entrou em sua venda, estranhou o estado do homem. Cirino estava com cara da cansado. Não que ar de cansado fosse algo que se notasse, uma vez que as pessoas do lugar tinham vida dura, mas Cirino estava realmente

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depauperado e cheio de pequenas feridas, inclusive no rosto. Caleb nunca o vira daquele jeito e isso o assustou. — Bom dia, Seu Caleb. — Bom dia, Seu Cirino. Mais o que aconteceu com o sinhô? Parece que tomou uma peia de uns jagunços. — Humpf ! Seu Caleb, num foi jagunço nenhum, não sinhô. Foi o coisa ruim memo. Tava fazendo um serviço pro coroné Terênço na sua fazenda e dei de cara com o capetão. — Mas, home... Vai me dizer que você encontrou com o tal do lobisomem, que o povo anda falando por aí? — E num tô dizendo? Caleb desatou a rir, como quem estivesse prendendo as gargalha- das por muito tempo e não conseguindo mais segurar, explodisse sem cerimônias. Cirino, pego de surpresa, a princípio não entendeu bem a reação, afinal de contas quase perdera a vida, mas logo compreendeu que Seu Caleb não estava acreditando no que ele estava dizendo e isso o fez fechar a cara. Ficou com raiva, mas logo em seguida deu por si que estava fazendo exatamente como a maioria dos contadores de causos da cidade de quem ele mesmo tanto rira antes e sua raiva transformou-se numa ‘abestação’, deixando-o sem jeito diante da necessidade de esclarecer o fato e ao mesmo tempo não saber como se tornar crível. — O senhor me perdoe Seu Cirino, mas essa história de lobisomem pegou até o senhor! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! E eu que pensei que o senhor era homem sério e não se metia nesses causos do povo... Afinal, o senhor sempre riu dessa história. — Olhe aqui, Seu Caleb... Olhe bem! Eu num vim aqui pra sê escarnecido pelo sinhô, não. Pois lhe estou dizendo que a coisa foi séria e o lobisome que fez esse estrago nimim. O cão do capeta quase que me levô a vida e foi por muito pouco que eu me fugi. Seu Caleb percebeu que Cirino falava sério e isso diminuiu sua vontade de continuar rindo. Mas seria possível

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que o homem tivesse mesmo encontrado com o lobisomem e essa estória toda afinal era verdade? Será que ele não deu de cara com algum outro bicho e no meio da noite acabou se deixando levar por sua mente impressionada e temerosa? E foi exatamente isso que Caleb inquiriu a Cirino.

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— Olhe aqui, Seu Caleb. Eu nunca que acreditei nessa história de lobisome e sempre achei essas histórias do povo uma farta do que fazê. Num sô homi de me aparvalhá com essas bobage e o sinhô sabe muito bem que eu moro no meio do sertão e tô mais que acostumado com o breu da noite. Se eu tô falando que dei com as fuça do cramulhão é porque é verdade! — Está certo, Seu Cirino. O senhor me desculpe. Eu conheço bem o senhor e sei que o senhor não se mete com essa falação do povo, mas o senhor tem de convir, que essa história de lobisomem é difícil de acreditar, num é? — É! Mas é verdade. Eu encontrei o capetão e quase que ele me mata. — E como se deu a peleja, Seu Cirino? — Olhe, eu estava arrumando a cerca do coroné Terênço, lá pelos lado da barrage e acabô que num deu pra terminá cedo, então saí de lá de noite, com a lua já nascendo. Fiquei meio desconfiado com a tal história do lobisome, mas sabia que era uma falácia desse povo... Qué dizê... Eu inté achava que era falácia, mas, adispois dessa noite, apercebi que a coisa é mais que séria. O bicho pulô das sombra na minha frente e eu só fiz foi corrê. Num foi fácil escapá da sanha do bicho! E se num fosse um galho de espinheiro, que eu puxei e sortei nas fuça do bicho, num tinha escapado memo. — Mas então a coisa foi mesmo séria, Seu Cirino. O senhor deu de cara com o bicho? — E num tô dizendo, home? Seu Caleb foi do descrédito ao assombro. E, de fato, a aparência de Cirino atestava a possível veracidade da história. Ele olhava para Cirino e via as marcas, a cara de cansado, como quem sai de uma briga feia. E agora? Como reagiria o povo, ao saber dessa história? Cirino era homem sério e ter passado por essa aventura, dava um atestado de valor às história sobre o tal lobisomem. E assim como Seu Caleb pensava, foi exatamente como a história correu o vilarejo. Logo o assunto em todas as

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rodas de gente era a aventura de Cirino, homem sério que não acreditava em lobisomem e nada que o valha, e agora tinha dado de cara com sua descrença e quase perdido a vida. A cada vez que o assunto passava de boca em boca, ganhava um acréscimo e logo tinha gente dizendo que Cirino encontrou com o lobisomem e que enfrentara o bicho com as próprias unhas. Outros diziam que além do lobisomem também o capeta da história do coronel Terêncio teria aparecido para Cirino e aberto a porta do inferno no meio da caatinga, por onde o lobisomem arrastaria Cirino para o fogo eterno se não fosse pela reza do terço em voz alta e a aparição da Virgem Maria que o teria salvo na última hora. A história se espalhava e crescia e todos já olhavam Cirino com outros olhos. É certo que ainda não tinham visto Cirino, mas já o viam de forma diferente, afinal de contas, ele era sério e tinha enfrentado e escapado do lobisomem, que todos sabiam existir nas terras de coronel Terêncio. Assim, Cirino foi se tornando um mito vivo e nem se dava conta disso. *** Cirino chegou a casa com os mantimentos que comprara na venda de Seu Caleb, mas embora estivesse satisfeito de poder ter o que comer por um bom tempo, estava amuado com a situação que passara na venda. Sabia que logo o povo estaria sabendo do que acontecera e que isso se espalharia pela cidade. Daqui a pouco, estariam falando besteiras e ele não gostava de ver seu nome na boca do povo. Não gostava de ver seu nome envolvido com essas histórias, mas neste caso tudo tinha sido verdade e isso provocava um conflito em seu íntimo. Já não sabia se o incômodo era por conta de não gostar de ver seu nome na boca do povo, ou se era o fato de se ver

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contrariado diante de uma coisa que sempre considerou mero causo do povo e que se tornara mais do que real de uma hora para outra. O encontro com o lobisomem mexera com Cirino e o fazia sentir como se desconhecesse o mundo, ou como se nunca o tivesse conhecido de fato. Ou ainda, o mundo tinha muitas surpresas que talvez ele não quisesse conhecer e o fato de uma dessas surpresas ter vindo ao seu encontro o deixava amuado e cheio de cisma; fora tirado de seu mundinho que, mesmo cheio de peias, era uma zona de conforto porque o conhecia bem. Agora, o mundo que ele conhecia se mostrava como um mundo além de sua capacidade de compreensão. Pelo menos era assim que se sentia naquele momento. Sentia-se oprimido, acuado e não sabia como lidar com isso. De repente, uma coisa que ainda não tinha parado para pensar assomou em sua mente, fazendo-o esquecer a cisma de então e deixando-o com certo frio na espinha. – E se o bicho viesse atrás dele? E se depois do acontecido, o bicho passasse a persegui-lo? Será? Sua mente fervilhava e ele não sabia o que fazer. Se isso acontecesse e o bicho começasse a persegui-lo, não tinha a menor ideia de como se proteger. Sua casa não tinha capacidade de deter a sanha do bicho; era uma casinha simples e que, ao menor arroubo da besta, cederia e a porta viria abaixo. Cirino sacudiu a cabeça, como quem quer expulsar pensamentos e disse para si mesmo: Ara! Larga mão! Para de pensá abestamento! Por que o bicho viria atrás de mim? Ara! O bicho só ronda as terra do coroné. Cirino se riu, balançou a cabeça e foi tirando as coisas do saco e colocando em cima do fogão a lenha. Estava com fome e precisava fazer alguma coisa para comer. Nunca comera tão bem como nos últimos dias, mas a coisa toda da noite anterior resultara num desgaste enorme e precisava se recuperar. No mais tudo era uma boa desculpa para encher o bucho.

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Dias Tranquilos Cirino ficou uns dias em casa e sumido da cidade. Compadre Zé passou por sua casa num domingo pela manhã, logo depois da missa, justa- mente para saber como ele estava, pois Cirino andava desaparecido e o povo já falava a largas línguas sobre o acontecido, sem que Zé soubesse de fato o que ocorrera com Cirino. A história mesmo o pegara de surpresa e ele não dera muito crédito ao que ouviu, mas começou a ficar ressabiado, quando passou a escutar a mesma história, com algumas variações, em todo lugar a que ia na cidade e, até mesmo, da boca de algumas pessoas durante e depois da missa. Precisava saber da pessoa certa, da boca de seu compadre Cirino. Ficou besta com o que Cirino lhe contou, muito embora a história não estivesse enfeitada com a decoração que o povo andava colocando a cada vez que contava para alguém. A verdade mesmo assim era de dar medo e ouvir isso de uma pessoa que além de conhecer bem sabia que não acreditava nessas coisas e até evitava conversas e causos deste tipo, davam ainda mais crédito à história e o deixava estático com tudo aquilo, sem saber ao certo o que dizer. Cirino contou detalhadamente para compadre Zé tudo o que vivera naqueles momentos angustiosos noite adentro. Não soube explicar como pôde escapar e porque o bicho não tinha vindo atrás dele depois de ter sumido do local onde caíra. Não falara das cogitações de sua mente, mas resolveu inquirir Zé sobre sua opinião a respeito, caso o bicho viesse atrás dele na próxima lua cheia, só para saber qual seria seu conselho. Zé dissera-lhe que não saberia o que fazer e que só de pensar nessa possibilidade, já sentia um frio na espinha. Não queria nem imaginar ver sua família toda na mira do ‘coisa ruim’, até porque, se o bicho viesse atrás dele, acabaria bulindo

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com ela. Cirino concordou e disse que não se preocupava com isso, muito embora essa não fosse exatamente a verdade. Sua mente estava em atenção desde o momento em que compadre Zé sugeriu a possibilidade de o lobisomem começar a perseguilo. Compadre Zé falou sobre a preta velha rezadeira D. Cambinda, que morava sozinha numa casinha, lá para os lados da colina, no meio do nada e que as pessoas sempre procuravam em casos de quebranto, espinhela caída e coisas difíceis, que os médicos não conseguiam curar, além de falar com espíritos e entidades protetoras. Talvez ela pudesse dizer a Cirino o que fazer, caso o cão do capeta começasse a persegui-lo. Cirino agradeceu a ideia, mas achou que seria demais qualquer coisa do tipo. Afinal, o bicho não o estava perseguindo, apesar de ainda não ser lua cheia novamente para poder dizer isso ao certo. Pensar nisso fez Cirino sentir um friozinho na barriga, mas talvez o fato de ser dia o tenha deixado seguro de si e não deu muita atenção, fazendo com que a impressão passasse rápido. Depois que Zé foi embora, Cirino ainda pensou sobre o assunto e a imagem de D. Cambinda veio à sua mente algumas vezes, mas, então, esqueceu e não pensou mais nela. Pensou em voltar à fazenda do coronel Terêncio no dia seguinte, pois Zé trouxera um aviso do coronel, dizendo que tinha outro serviço para ele. Era bom poder fazer alguma coisa, ter um serviço e poder ganhar algum dinheiro. Há muito tempo que as coisas não melhoravam, e apesar do encontro com o lobisomem Cirino não queria perder esta oportunidade de trabalho. Assim, no dia seguinte, Cirino acordou cedo e pôs-se a caminho da fazenda do coronel. Os serviços eram coisas simples, mas o povo fugia das terras do coronel Terêncio, como o capeta foge da cruz. Ninguém se sentia bem em trabalhar por lá, salvo algumas pessoas que já trabalhavam para a família do coronel há muitos

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anos. Todos tinham medo de que algo acontecesse e fossem forçados a voltar para casa no meio da noite. Agora então, que Cirino tinha dado com as fuças do ‘cramulhão’, logo ele que sempre fora visto como uma pessoa que não acreditava nessas histórias e não se metia a conversê desta monta, é que ninguém mais queria saber de trabalhar naquelas terras. Cirino, por sua vez, apesar de ter passado pela situação toda, achava graça deste medo irracional do povo, que fazia o sinal da cruz diante da possibilidade de precisar passar pelas terras do coronel Terêncio, mesmo que de dia. O mês passou e Cirino continuou fazendo os serviços da fazenda, ganhando um dinheirinho que deixou sua casa como há muito tempo ele não via; despensa cheia e ele podendo se alimentar direito. Plantou até umas sementes de jerimum no terreno ao redor da casa e regava todos os dias. Comprou uma galinha e um galo. Consertou o galinheiro do tempo de sua mãe e logo, a galinha colocava um ovo por dia. Era uma satisfação ver um pouco de vida por ali. E Cirino sentia-se mais gente outra vez. Cirino continuava a rir das histórias do povo. Embora ele fosse o personagem principal, estava longe de tudo e achava que isso passaria logo. Era só não dar muita atenção às especulações. Mas achava engraçado o desenrolar dos causos, cada um contando coisas mais cabeludas que o outro e que em nada tinham a ver com a verdade. Inventavam bravatas e enfrentamentos com seres do além, como se Cirino tivesse passado por tudo aquilo. Está certo que enfrentar um lobisomem não era uma coisa que se pudesse considerar como natural, mas também não precisavam inventar tanta parvoíce, como se Cirino fosse um herói de histórias de cordel. Cirino ria com a ignorância do povo e, ao mesmo tempo, sentia que se divertia um pouco com tudo aquilo; já nem dizia que sim, nem que não, só para ver até onde ia a criatividade daquela gente.

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A verdade era que estava feliz com o rumo que sua vida tomava. Era a primeira vez que estava ganhando algum dinheiro e podendo comprar suas coisinhas. Nunca vira a despensa tão cheia e podia comer sem medo de que as coisas acabassem. O apreço de coronel Terêncio por Cirino crescia lentamente. Ele não sabia, mas desde seu encontro com o lobisomem que o coronel vinha observando-o de longe. Mandara seus jagunços ficarem de olho nele e as notícias lhe agradavam, pois Cirino era homem de bem e trabalhador caprichoso, que fazia as coisas sempre muito bem feitas; e isso chamava a atenção do coronel, muito embora, como sempre, em sua postura quase de pedra, o coronel não demonstrasse; permanecia com semblante duro e exigente no mando. Sinhazinha Lu, filha do coronel, andava doente, devido a um tombo que tomara da escada, ferindo-se e, por isso, quase não era vista fora de casa. Mas, uma vez Cirino a viu pela janela, com o rosto um tanto vermelho e ficara embevecido com a beleza da menina; Lu olhara para ele e quando seus olhos se cruzaram, Cirino sentiu o coração bater mais forte e, desde então, não sabia bem o porquê, surpreendiase olhando para a janela toda vez que passava pela casa grande, na esperança de poder vê-la novamente. Algumas vezes sinhazinha Lu estava na janela e os dois trocavam olhares e, certa vez, Lu até sorriu para ele, entrando rapidamente em seguida. Com o tempo, os dois passaram a se ver sempre e existia um pacto silencioso ali, Cirino sentia e sinhazinha Lu também, embora ele nunca soubesse da reciprocidade da menina. Para ele era algo muito distante. Tanto que, quando caía em si, perguntava-se que ‘abestação’ era aquela. Afinal, era a filha do coronel e mesmo sendo linda, Cirino era um qualquer para aquela gente e não podia achar-se mais do que isso mesmo. Sinhazinha Lu um dia se casaria com um homem de poder, importante, provavelmente da capital e

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Cirino ficaria por ali mesmo, com sua vidinha até quando Deus achasse por bem o levar embora. Ficava triste com essa humildade toda, mas sabia que era verdade e sabia se colocar em seu lugar. Mas com as coisas do coração não se pode ter mando, querela ou mandinga. Sentia. E ficava nessa cisma consigo mesmo, entre autocrítica e censura, sem saber direito o que fazer e de vez em quando, soltava um “Diacho!”, sem que ninguém à sua volta entendesse o porquê daquela exclamação que parecia fora de hora e sem propósito. Quando questionado sempre meneava a cabeça e desconversava, quando não ficava calado mesmo, deixando as pessoas ressabiadas. Pensavam alguns que Cirino não batia mesmo bem da bola, desde seu encontro com o ‘coisa ruim’. Talvez, se ver frente a frente com a criação do capeta tenha sido forte demais para aquele homem e isso tenha afrouxado alguns parafusos em sua cachola. Alguns tinham pena, lamentavam que um homem bom como ele acabasse dessa forma. Outros simplesmente não ligavam; deixavam pra lá. Mas Cirino sabia bem o que se passava em seu íntimo, aquela confusão de ideias e incertezas. De certa forma começava a ensaiar algum sofrimento por conta da distância que separava sinhazinha Lu de si. Mas a verdade era dura assim mesmo e tinha que se conformar com qualquer coisa. Sinhazinha Lu estudara na capital quando era criança. Vinha sempre passar as férias e feriados com o pai, voltando de vez, quando completou 18 anos. Dizia o povo que era por conta da maldição que o capeta jogara no pai e em sua família, quando esta tinha seus treze anos. Não se sabia bem a razão dessa volta, mas alguns diziam que ela voltara para cuidar do pai que sofria com uma doença secreta e que ninguém sabia qual era; outros diziam que era, talvez, porque ela mesma estava doente e voltara para junto do pai, pois qualquer sofrimento é diminuído quando se tem o conforto da família; outros ainda, maledicentes, cogitavam ser o

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lobisomem o próprio coronel Terêncio e que a presença da filha amainava a fera, pois despertava o amor e o carinho paterno de Terêncio, senti- mento que todos conheciam muito bem, fosse por ver como o coronel se desmanchava com a filha, fosse por comentários de quem tinha presenciado essas demonstrações de afeto. A verdade era que a fazenda de coronel Terêncio vivia envolta em mistério e lendas que estavam longe de serem desvendados. A tal maldição era uma incógnita e ninguém sabia qual tinha sido o berro do capeta, que vaticinou o tal infortúnio que ninguém sabia também qual era. Mesmo quem trabalhava lá evitava comentar qualquer coisa a respeito, fosse por respeito ou medo, fosse porque realmente não sabia de nada. Pouca coisa saía da casa grande e poucos tinham acesso a qualquer intimidade com a família, excetuando Donana, que acompanhava aquela família havia anos. E Donana evitava conversê sobre as intimidades do coronel e sua família, que ela mesma considerava como sua. O apreço que o coronel tinha por Donana era visível, como alguém da família mesmo, e as pessoas a respeitavam como tal. Sinhazinha Lu também não ficou imune às histórias do povo em relação a Cirino e suas aventuras ao enfrentar o lobisomem. Aquilo chamou sua atenção e ela passara a reparar em Cirino, muito embora, a princípio, não desse sinais de suas observações, até porque respeitava e muito seu pai que certamente a recriminaria, dizendo que moça de respeito não se dava a estas coisas. Não queria bulir com seu pai — longe disso! Mas achava curioso e sentia-se triste quando pensava em Cirino, pois era uma pessoa simples, como tantas pessoas daquela região e que se viu frente a frente com a maldição de sua família. O coitado devia ter sofrido um bocado com a situação e ela sentia-se de certa forma culpada por tudo o que vinha sucedendo. Tinha vontade de estar mais perto dele e poder ajudá-lo de alguma forma.

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Embora fosse a filha do coronel, sinhazinha Lu era simples e gostava daquela gente que sempre vira trabalhando, vivendo cheia de dificuldades. Lu tinha um enorme coração e sentia-se triste a ponto de chorar sozinha em seu quarto ao pensar nisso tudo que sua família tinha que passar e fazer os outros passarem. Perguntava-se até quando essa maldição persistiria. Será que não havia um jeito de acabar com ela? Várias pessoas tinham sido vítimas do tal bicho. Cirino salvara-se. Talvez por sorte, talvez por encanto e, afinal de contas, todas aquelas histórias do povo tinham algum fundo de verdade. Vai ver Cirino era um alguém especial. Talvez tivesse ajuda da virgem e dos anjos. Não sabia dizer, mas seu pensamento girava por estes escaninhos de sua mente e sentia-se triste e ansiosa, com uma pontinha de esperança. Triste porque muitas pessoas tinham sofrido mortes terríveis nas garras do lobisomem, por mais que sempre colocassem a culpa em outros bichos da região, e pela maldição que permanecia sobre sua família; feliz por- que alguém conseguira escapar e podia ser quem traria alguma solução para aquilo. Mas, estes pensamentos passavam e sinhazinha Lu sentia-se como que voltando ao mundo real. Como uma pessoa simples poderia livrar sua família da tal maldição? – Pensava. E será que existe alguma solução? Somente uma intervenção divina poderia sanar o problema de uma vez por todas e, por isso, em seguida punha-se a rezar, quase sempre acabando por pegar no sono. A verdade era que sinhazinha Lu, sem se aperceber, interessava-se por Cirino e já o buscava com os olhos pela janela sempre que podia. Para quem sempre ficava trancada dentro do quarto, passar a aparecer com frequência na janela tornou-se motivo de alegria para o coronel que achou que sua filha já não andasse tão triste. Sem perceber, as trocas de olhares e sorrisos entre ela e Cirino transformaram o que antes era apenas interesse, em poderosa paixão. Lu estava apaixonada por Cirino e dar-se

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conta disso foi, ao mesmo tempo, uma alegria esfuziante e uma facada em seu peito. Afinal, como aquilo poderia dar certo algum dia? Parecia-lhe impossível. Mas apesar disso, quem consegue ditar ordens ao coração, esse órgão independente e revolucionário? Sinhazinha Lu era uma menina sensível, mas não era santa. Vivera muitos anos na capital e lá aprendeu muito sobre independência feminina e todas as coisas modernosas que as meninas daquela terra nunca imaginaram. Existiam outras meninas por ali que também não eram santas, mas acabavam mal faladas, porque eram impulsivas e exageravam nas atitudes. Sinhazinha Lu era uma menina delicada, mas tinha um espírito apaixonado e poderoso, que sabia se insinuar quando era preciso. A vida na cidade grande lhe ensinara a ter respeito por si mesma mais do que como uma simples mulher do interior, subserviente; Luciana era mulher de pensamento livre e cheia de opiniões; crescera muito com os conhecimentos e estudos na capital e com as pessoas que lá moravam, entre as quais fizera muitas amigas. Era uma pessoa capaz de fazer a diferença quando percebia que algo precisava ser mudado, ou quando via alguma injustiça sendo cometida. Seu pai ria dessa força e costumava dizer que ela puxara a seu gênio, muito embora às vezes ela o deixasse em situações difíceis até mesmo para um coronel, como quando contrariou determinações de seu pai, inconformada com o que chamou de injustiça contra umas pessoas que trabalhavam e moravam nas terras da fazenda. Seu pai insistira em querer expulsar umas pessoas de suas terras, embora não estivesse precisando das terras onde a família vivia e estes não lhe dessem trabalho algum; pura cisma de alguém de coração duro e cheio de sombras, que ninguém conseguia decifrar. E o pobre jagunço não sabia o que fazer. Hesitava entre descumprir as ordens do coronel ou acatar a orientação de sinhazinha Lu que insistia em se colocar entre o jagunço e a própria família.

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Por fim, acabou vencendo a força de sinhazinha Lu e o jagunço voltou à casa grande, para falar com o coronel que, enfurecido, foi pessoalmente enfrentar a questão. Não deu outra! O coronel acabou por conhecer o gênio difícil e determinado de sua filha, como jamais imaginou pudesse ser. E não é que o homem acabou cedendo! Desde aquele dia, sinhazinha Lu protegia aquela família e costumava ir visitá-la, levando mantimentos que pudessem suprir suas necessidades e remédios. Perguntava se as crianças estavam indo bem na escola, levava cadernos, lápis, borracha, enfim tudo de que uma criança precisa para se desenvolver nos estudos e que geralmente estas famílias mais humildes não tinham como pagar, visto que o que ganhavam era para o sustento e pronto. A família tinha Deus no céu e sinhazinha Lu na terra. Amavam-na sinceramente, pois ninguém jamais fora tão bom com eles como ela estava sendo. Para sinhazinha Lu aquilo não era mais do que o certo. Sentia em seu coração que os mais fortes deveriam ajudar os mais fracos e não tripudiar sobre eles, exagerando na autoridade até os limites da maldade e, muitas vezes, além. E foi com este temperamento e todas estas opiniões, que Luciana viu-se surpreendentemente enamorada de Cirino e sem aguentar mais deixar-se levar pelo tempo. Certa manhã, assim que levantou, tomou café correndo, espantando até Donana, que há muito não via a menina tão animada. No fundo Donana pressentia que havia algo de coração naquela história, mas resolveu manter silêncio. Apesar de ser o braço direito do coronel nas coisas da casa grande, Donana amava sinhazinha Lu como se fosse sua filha e, de certa forma, agradava-lhe a ideia de a menina estar novamente vivendo como uma pessoa normal e – quem sabe? – até enamorada de alguém. Quando Luciana foi para a capital, Donana fora a que mais sofrera com essa partida, tamanho

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carinho e apego tinha pela menina. Vê-la de volta foi uma enorme felicidade. Talvez, por isso, considerasse bom futuro que sinhazinha Lu estivesse enamorada, pois isso significava que ela, com seu gênio inquieto, não resolveria ir-se embora novamente para a capital. Sinhazinha Lu ficou para lá e pra cá na fazenda, até que descobriu que Cirino tinha ido até a beira do açude. Não pensou duas vezes e foi atrás dele. Não sabia bem o que faria ou o que diria, mas foi assim mesmo, pois precisava ir, sentia que tinha mesmo que ir. Apesar do impulso, sinhazinha Lu foi tomando cuidado para não ser pega de surpresa. Assim, foi se achegando do açude e percebeu Cirino sentado junto à margem, com uma vara de pescar nas mãos. Ficou olhando por entre as folhas, com um sorriso maroto nos lábios, como menina sapeca que está prestes a aprontar alguma. Pegou algumas pedrinhas e, vez ou outra, jogava entre os arbustos do lado direito de Cirino que a princípio não ligou muito, mas com a insistência, começou a ficar ressabiado. Será que era algum bichinho? Talvez um calango assanhado. Levantou umas três vezes para averiguar e nada encontrou. Quando voltava da terceira investigada, percebeu algo por trás das árvores e imaginou que pudessem ser os moleques da fazenda, tentando lhe pregar uma peça. Como quem não queria nada, fingiu que estava mexendo nas plantas e, de repente, saiu correndo para o outro lado. Sinhazinha Lu não entendeu bem a atitude de Cirino e ficou observando para ver o que ele estava fazendo. Cirino sumiu atrás dos arbustos do lado oposto e sinhazinha Lu ficou rindo, achando que Cirino estivesse ainda procurando o que estava fazendo barulho e que na verdade eram suas pedrinhas. Mal sabia ela que Cirino usara de um artifício para dar a volta por dentro do mato e pegar a menina por trás, ainda sem saber que era sinhazinha Lu quem buscava lhe pregar uma peça.

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Cirino saiu do mato de supetão, agarrando sinhazinha Lu por trás e gritando “Arram!”. Mas logo engoliu em seco, pois sinhazinha Lu virou-se de repente com o susto, ficando os dois face a face, sentindo a respiração ofegante um do outro. Cirino não sabia se ficava envergonhado ou se permanecia imóvel, cativo daquele momento que seu coração, em batidas velozes, esforçava-se para manter. Sinhazinha Lu, despertando antes do encantamento da situação, beijou os lábios de Cirino, deu um sorriso e saiu correndo no meio do mato. Cirino ficou ali, com cara de bocó, tocando os lábios com os dedos da mão, como se não acreditasse no que estava acontecendo. Demorou muito tempo para que a realidade voltasse, pois Cirino estava completamente embasbacado e sem conseguir acreditar que sinhazinha Lu o beijara, que sinhazinha Lu gostasse dele, que sinhazinha Lu existisse. Cirino foi trazido de volta pelo barulho da linha e do arco de bambu sendo puxado insistentemente. Correu até lá e puxou a linha com força, trazendo à terra um enorme dourado. Tudo naquela manhã estava diferente. Tudo naquela manhã acabara de levar Cirino para outro patamar e ele sentiase como jamais se sentira antes. O que era aquilo tudo? O que sinhazinha Lu acabara de fazer? Na verdade, pouco importavam as respostas. No fundo de seu peito um sentimento poderoso crescia há tempos e agora estava fincado firmemente em sua alma. E Cirino sabia que não estava sozinho neste amor sem tamanho; sinhazinha Lu correspondia.

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Cheiro de Cirino Quase dois meses passaram, sem que se ouvisse falar de qualquer nova investida do lobisomem. Já se dizia por lá, segundo os populares que não perdem tempo, que o lobisomem tinha fugido de Cirino, pois Cirino era protegido pela Virgem e lhe dera uma sova que o tinhoso jamais esqueceria, fugindo no susto. Alguns até diziam que o Cirino livrara o coronel da maldição do capeta. Esta história ainda não tinha chegado aos ouvidos do coronel, senão, com certeza ele se sentiria um bocado incomodado. Cirino levava a vida de certa forma tranquila, entre os trabalhos na fazenda, os olhares e pequenos bilhetinhos jogados da janela por sinhazinha Lu, em que afirmava seu amor, além de cuidar do pequeno terreno onde vivia. A única coisa que já começava a lhe aporrinhar eram histórias do povo, que só aumentavam e começavam a pintá-lo como alguém sobrenatural, cuja proteção divina era uma recompensa por ele ser humilde e sempre correto em tudo que fazia. Mas, também, não faltavam as más línguas, como existe em todo lugar, pois se existem pessoas boas, sempre existem aquelas pessoas que nem sempre convidaríamos para jantar em nossa casa. Essas más línguas não perdoavam e criavam umas histórias paralelas. Algumas diziam que Cirino só escapara porque tinha coisa com o diabo e que se isolava porque não gostava das pessoas. Outras diziam que Cirino inventara a história para poder sobressair no meio daquele povo ignorante, mas que na verdade nada se dera com ele que estava bem e rindo daquele povo besta, quando sozinho em sua casa. O caso é que estas histórias todas já começavam a incomodá-lo e ele sentia falta de ser a pessoa simples que andava pela cidade, sem que ninguém lhe apontasse, ou cochichasse qualquer coisa. No início achava graça, mas depois

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começou a ficar zangado e, então, já se sentia triste. Não gostava de ser especial. Era Cirino e pronto. Gostava de ser apenas ele mesmo, com sua vidinha tranquila e sem que ficassem reparando nele. Mas fazer o quê? A vida o levara naquela direção e talvez com o passar do tempo, as pessoas acabassem deixando essas histórias pra lá e ele voltasse a ter sua paz. Precisava ter paciência e abstrair aqueles abestamentos. Às vezes ele se lembrava do lobisomem, mas contara os dias de lua e passara outra lua cheia, sem que o bicho aparecesse. Pois então, talvez o bicho tenha seguido seu rumo e deixado aquelas terras em paz. Cirino acabava de voltar da fazenda e passava um café. Aproveitara para tomar um banho antes de ir embora e sentia-se muito bem. A tardinha ia findando-se esplendorosa, com aquele céu avermelhado de fazer doer a poética de um cabra. Cirino ficou na porta olhando o sol se pôr. A vontade era de ficar ali fora e aproveitar a noite escura, fumando um pito. Então pegou a lamparina, um embrulho de jornal que estava perto do fogão a lenha e foi sentar-se no velho troco de árvore. A noite caiu rápido. Cirino, depois de acender a lamparina, abriu o embrulho de jornal, onde estavam o pito e algum fumo. Atochou o fumo no pito como o dedo indicador, colocou o pito na boca, pegou um pedaço de galho, acendeu na lamparina e deu-se a acender o pito, tragando algumas vezes para que o fumo pegasse. Acomodou-se no tronco e ficou olhando a noite, embevecido. O tronco estava muito duro e logo resolveu sentar no chão e encostar-se no tronco, pois assim podia ficar olhando as estrelas sem doer as costas e esperar o espetáculo do nascer da lua que já começava a iluminar o céu de um vermelho sangue, quase preto. Era uma tonalidade que Cirino não sabia dar nome, mas que agradava aos olhos e à alma. Ficou assim, num devaneio sem fim, olhando o céu e a lua que surgia. Foi amansando o coração e se deixando envolver pelos sons da noite, pelas ideias distantes e frouxas, que

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pareciam levantar seu corpo do chão e fazê-lo flutuar pela noite adentro. Acabara por pegar no sono. Cirino dormiu profundamente e não percebia mais nada, além dos sonhos em que se embalava, naquela noite agradável. Por isso, nem se deu conta do silenciar dos bichos e da movimentação sutil, que acontecia no meio do mato. O sabor da noite não era doce apenas para Cirino, aguçava o faro indomável de certo ente inquieto que viera de longe, se- guindo o rastro do cheiro de alguém bem seu conhecido. Agora estava ali, estava próximo e sentia já o sabor a se espalhar, fazendo-o salivar freneticamente. A ansiedade animal era tão poderosa, que não pôde conter o impulso que lhe veio do âmago, veloz como o fogo mortal de sua fome por carne humana e saindo furioso na forma de um uivo, que poderia bem ser descrito como infernal. Cirino acordou de um salto, com um choque frio a percorrer-lhe a espinha e seu coração quase saiu pela boca. Com os olhos arregalados como dois araçás deteve-se indeciso sem saber o que fazer por um instante, e de- pois, de um só pulo, entrou pela casa, fechando a porta com o próprio corpo. Não sabia o que fazer. Ficou estático por um tempo e começou a olhar ao redor, buscando algo para fortalecer a porta. Achou uma ripa de madeira larga próxima ao fogão. Trouxera a ripa da fazenda, para fazer uma prateleira e era a única coisa que poderia servir de ajuda naquele momento. Correu até ela, pegou e voltou, usando os velhos ganchos do batente que há muito não tinham serventia, para apoiar a ripa, exatamente no momento em que sentiu o primeiro choque de algo que se atirava contra a porta. — Cruz em credo, meu pai! Cirino apoiou-se de costas na porta e começou a rezar. Porém, estranhamente, não sentia o mesmo medo do primeiro encontro com o lobisomem; conseguia pensar com certa clareza. Estava morrendo de medo, mas não estava desesperado

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de fato. Olhou ao redor, buscando uma forma de afugentar o bicho, embora não conseguisse pensar em nada que servisse para fazer o bicho desistir daquela sanha dos infernos. A porta começou a ceder do lado direito de seu ombro. Escutou os primeiros estalidos da velha madeira rachando diante do ataque furioso das garras do tinhoso. Não demorou muito e se abriu um buraco na porta por onde entrou o braço do lobisomem, buscando desesperadamente agarrar qualquer coisa e encontrando, enfim, o ombro de Cirino que, ao sentir as garras penetrarem em sua carne, soltou um urro de dor. Mas novamente de forma estranha, em vez de se desesperar, Cirino enfureceu-se e lascou uma dentada com toda sua raiva no braço do bicho, que soltou um uivo de dor, soltando o ombro de Cirino. Neste momento, Cirino, de um salto, foi até o fogão a lenha, pegando e usando uma velha frigideira como pá, encheua de brasas acesas e jogou pelo buraco, bem na hora em que o ‘cramulhão’ metia as fuças. Levando com as brasas em cheio no meio da cara, o bicho saiu em desespero pelo meio dos espinhais, grunhindo. Podiam-se ouvir os grunhidos se afastando até que o silêncio da noite voltou. Cirino estava de pé, estático, olhos esbugalhados, respirando ofegante e ainda com a frigideira na mão. Seu semblante era de raiva e não sabia direito se pensava em alguma coisa. Sentia apenas ódio e quase babava, ao passo que um prazer começava a substituir o ódio pelo bicho. Logo começou a considerar a afronta do lobisomem, derivando num pensar de satisfação. Largou a frigideira, e ao dar um passo sentiu a fisgada no ombro direito. Deu-se conta da ferida em seu ombro que já banhava de sangue todo seu lado direito quase até o chão. Ainda meio confuso, de impulso pegou a garrafa de aguardente, tirou a rolha e derramou no próprio ombro ferido, soltando um grito descomunal de dor. A aguardente queimava até a alma, fazendo-o cair em si sobre o que acabara

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de fazer. Cirino perdeu a razão e saiu pulando por dentro da pequena casa, desesperado de dor, derrubando as coisas penduradas aqui e ali, até que deu com a cabeça na viga do teto baixo da cozinha, fazendo as telhas sambarem do lado de fora e caindo desmaiado no meio da casa.

***

O sol ia alto e uma ararinha azul pousada no araçazeiro dava uns berros de vez em quando. Dentro da casa Cirino começou a despertar, levando as mãos até a cabeça que doía tremendamente. No mesmo instante sentiu a fisgada no ombro e soltou um gemido, seguido de uma praga. — Ah! Diacho! Cão dos inferno! Abriu os olhos, vendo tudo meio embaçado. A visão foi clareando aos poucos e Cirino levantou com certa dificuldade. Sentia-se meio al- quebrado, mas não tanto como da primeira vez que encontrou o dito cujo. Olhou para si mesmo e viu-se sujo de sangue, mas a ferida fechara. No final das contas, o impulso de jogar a aguardente fizera algum bem. Isso não significava que o teria feito, se estivesse no melhor de sua razão. O sol entrava pelo buraco feito na porta pelo lobisomem, desenhando um facho de luz onde a poeira parecia bailar no ar. L á fora, o som de um grilo ou outro, denunciava um dia tranquilo Foi cambaleando e com a cabeça doendo que Cirino saiu porta afora, não sem antes ter alguma dificuldade em abri-la, pois que estava emperrada, devido ao estrago perpetrado pelo lobisomem. O sol feriu sua vista e quase o fez tomar a decisão de voltar para dentro de casa, pois acentuara a dor de cabeça.

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Sentiu um galo na testa, ao passar a mão no rosto para defenderse do sol. Resmungou qualquer coisa sem sentido que nem mesmo ele sabia o que era. Soou como mais uma praga sem identificação, mas com a devida intenção. Com dificuldade manteve os olhos abertos e andou por ali. Nada de anormal, fora o estrago na porta mesmo. Do lado de fora a porta estava em bem pior estado. O bicho a havia sulcado em várias direções, deixando farpas soltas em muitos pontos. Cirino teria que trocar a porta e isso levaria a maior parte do dinheirinho que vinha guardando. Mas precisava fazer isso e tinha que ser naquele mesmo dia, pois ainda era início de Lua cheia e o bicho poderia voltar mais tarde. De repente, se deu conta de que o bicho viera de longe, encontrá-lo ali. Pensou no que seu compadre Zé lhe dissera, da possibilidade de o bicho persegui-lo. Por que não levara em consideração a ideia? Naquele dia parecia-lhe demais da conta, tal investida do bicho, já que ele só ata- cava nas terras do coronel. Pois bem, agora ele passara a sair das terras de coronel Terêncio e vinha perseguir Cirino. Mas como o encontrara? De que forma viera atrás dele? Cirino morava longe, fora das terras do coronel. Queria entender, mas não conseguia. Lembrou da preta velha, mas não poderia ir lá naquele momento; precisava trocar a porta. Depois de trocar de roupa e fazer um curativo na ferida, foi até a cidade, com a dor de cabeça atazanando-o. Entrou no pequeno posto médico e foi ter com o médico. Antes, precisou preencher uma ficha e aguardar para ser atendido. As pessoas continuavam olhando para ele e cochichando. Cirino suspirou, aborrecido com aquilo. Não falaria sobre o encontro da noite anterior, senão a coisa pioraria para seu lado, pois aí que o povo não pararia mais de falar no acontecido. Mas chegara a vez se ser atendido e o médico insistiu que ele dissesse como arrumou uma ferida tão feia. Cirino teve que dizer. Pronto! Agora que a coisa não tinha mais

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jeito. Logo o povo ficaria sabendo do acontecido e as histórias ganhariam mais força. Diacho! – Pensou. Mais uma história para alimentar os causos do povo a seu respeito. O médico, como era de se esperar de um doutor formado em faculdade da capital, fez muita força para não rir de Cirino e colocou em sua ficha: ataque de cachorro. O médico fez o curativo, lhe deu um comprimido para dor e uma caixinha de comprimidos anti-inflamatórios, para que Cirino tomasse duas vezes ao dia e o dispensou. Assim que Cirino saiu já se podia ouvir dentro do hospital as enfermeiras e os outros médicos rindo da história que o tal médico não demorou a espalhar entre seus colegas. Cirino saiu do hospital e foi até a marcenaria, onde comprou a porta, contrariado de ter que fazer um gasto, que considerava desnecessário, não fosse o maldito ‘coisa ruim’. — Diacho! Pensou. Cirino foi até a casa de compadre Zé para pedir que ele lhe ajudasse a levar a porta nova, só para descobrir que ele não estava. Mas é claro! Zé estava certa- mente na fazenda do coronel Terêncio, trabalhando. E agora? Precisava de ajuda para levar a porta e não tinha ninguém que pudesse ajudá-lo. Lembrou do filho de Josefinha, que poderia ajudá-lo. Foi até sua casa e Josefinha o recebeu com certa expressão desconfiada no olhar, mas com respeito. Ofereceu-lhe um café que Cirino aceitou e entrou direto no assunto, dizendo a que veio. Josefinha assentiu com presteza e até certo prazer; afinal Cirino não sabia, mas Josefinha sentia até orgulho de poder dizer para as comadres, que seu filho Manoelzinho ajudara Cirino, nem que fosse para levar uma porta, para o que ela – é claro! – inventaria alguns adendos, a fim de que a empreitada ficasse parecendo muito mais importante do que realmente era. Cirino estava mais falado na cidade do que poderia imaginar e realmente existia uma aura de mistério e aventura ao redor de si, sem que ele o percebesse.

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Manoelzinho era um menino muito reservado e quase não falava. Em contrapartida, era sempre muito prestativo. Alguns diziam que nas- cera aluado e que vivia com a mente em outro mundo. Não se sabia se Manoelzinho se importava com o que diziam, pois nunca abriu a boca para se defender de nada. Era simples e gostava de ajudar as pessoas. Era o tipo de garoto que andava pelas estradas, parando aqui e acolá para ver uma fileira de formigas, ou então para olhar esta ou aquela plantinha e brincar com algum calango que cruzasse seu caminho. A verdade é que Manoelzinho gostava mesmo era de observar as pessoas e tinha bem suas opiniões sobre elas, mas as guardava para si; afinal, não via sentido em de dizer o que pensava. Era melhor ficar na sua que ninguém o aperrearia e ele poderia continuar em paz, fazendo o que lhe interessasse. Só agia diferente com Cirino. Manoelzinho gostava de Cirino e Cirino gostava de Manoelzinho. Cirino gostava do fato de o garoto nunca se meter em confusões e vez ou outra ficava papeando com ele, perguntando da escola, contando causos que seu pai lhe contara quando era pequeno. Manoelzinho também lhe contava seus causos, suas histórias e teorias das coisas que observava, muitas vezes surpreendendo Cirino, não só com sua imaginação criativa, mas também com a lógica de suas conclusões. Cirino via em Manoelzinho um pouquinho do pequeno Cirino, que também não era de se meter em confusões e tinha poucos coleguinhas. Como não precisou frequentar a escola, seu círculo de amigos sempre foi muito restrito e seu compadre Zé, fora seu amigo de todas as horas, o pequeno Zezinho. A verdade era que Cirino gostava de Manoelzinho e sempre dava um jeito de conversar com ele. Manoelzinho também gostava de Cirino, pois era o único que o tratava como igual, como se ele tivesse tanta importância quanto qualquer adulto. Mas depois do caso do lobisomem, Manoelzinho tinha um pé atrás com Cirino, ainda mais depois das histórias que andava escutando do

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povo da vila. Perguntava-se se tudo aquilo era verdade. Sabia por observação sua que o povo era dado a inventar muita coisa, mas também não entendia muita coisa que via e ouvia. Então, ficava aquele montaréu de dúvidas sobre diversas coisas que, por mais que buscasse entendimento, na maioria das vezes ficava era sem resposta mesmo. Questionava muito tudo aquilo, pois tinha Cirino como um grande amigo e sentia que muito daquilo que falavam poderia ser injusto. E não queria ser injusto com quem era seu amigo de verdade; aquele que ele considerava seu único grande amigo. Cirino era uma incógnita para ele em muitos aspectos, pois apesar de conversarem muito e Cirino demonstrar ser um bom amigo, muitas coisas ele parecia guardar dentro do coração, o que deixava encafifado o sempre curioso Manoelzinho. Poderia ser um herói do sertão, ou pode- ria ser um amaldiçoado. Se fosse um herói, menos mal; mas se fosse um amaldiçoado, isso poderia deixá-lo em maus lençóis, caso fosse pego pela lambada do rabicho da danada da maldição, que talvez estivesse na perseguição de Cirino. Mas era amigo de Cirino e jamais o deixaria passar por momentos difíceis sozinho. E se isso significava tomar uma lambada de alguma maldição qualquer, estaria pronto para isso em nome da amizade. De qualquer forma, Manoelzinho sentia-se instigado a meter-se nesse “não sei o quê” que rondava a pessoa de Cirino e era com muito gosto que o estava ajudando a levar a porta nova. Quem sabe não encontrava algumas respostas? Ou pelo menos não ganhava dianteira e descobria alguns dos segredos escondidos no coração de seu amigo, Cirino do Araçá? Para ele valia muito a pena estar nessa empreitada que parecia simples, mas que também poderia desenrolar-se por caminhos que só Deus haveria de saber. Os dois iam seguindo pelo caminho que levava até a casa de Cirino. Cirino esticou uma prosa com o menino e logo os dois conversavam animados sobre as diversas coisas da

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cidade. Até então Manoelzinho, por mais que estivesse louco de vontade de perguntar sobre o caso do lobisomem, achou melhor segurar a língua e perguntar na hora certa, pois o conhecia bastante para saber que com jeitinho e, no momento oportuno, o que ele não falava para os outros acabava por contar ao garoto. Chegaram à casa e tiveram um pouco de dificuldade para tirar a porta velha, pois além de as dobradiças serem velhas e os parafusos estarem enferrujados, a investida do lobisomem tinha torcido o metal. Mas nada que um pouco de força não pudesse resolver e logo a bichinha estava solta. Colocaram a porta nova e Cirino foi fazer um café para os dois. Sentaram no tronco velho, com suas canecas nas mãos e ficaram ali, olhando para o nada. Manoelzinho começou a matutar sobre a história do lobisomem e achou que era hora de ouvir a versão de Cirino, mas não sabia como perguntar. Talvez ele achasse ruim e ficasse contrariado. Mas tomou coragem e resolveu arriscar. Afinal de contas, eram amigos. — Cirino... — Fale. — Sabe... Eu... — Eia! Tá engasgado com o café? He, he, he! — Erh... Essa tal história do lobisome... Como foi de verdade que ela aconteceu? O povo da cidade fica falando um monte de besteira e a gente nunca sabe o que se assucedeu de verdade. Foi ele que arrebentô com a porta? Eu vi que os pedaço que sobraro estavam cheios de arranhão, que parecia inté coisa de bicho brabo. Foi ele? Cirino olhou sério para o menino, pois já esperava alguma pergunta do tipo; o menino andou com ele aquele tempo todo até sua casa e não tinha tocado no assunto,

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muito embora fosse muito natural que os moleques da cidade estivessem todos muito curiosos sobre tudo que acontecera com ele, tamanha era a falação ao redor do caso. Com Manoelzinho não poderia ser diferente. Cirino deu um meio sorriso e divertindo-se com a ideia, começou contando toda a história para Manoelzinho, que ficou o tempo todo atento, de olhos esbugalhados, à medida que Cirino ia discorrendo, algumas vezes exagerando nos gestos, para melhor descrever o que realmente tinha acontecido e acentuar a gravidade da situação, de forma que ficasse o mais próximo possível da gravidade real, mas buscando, além disso, impressionar mesmo o menino que gostava de uma boa história. Ao chegar ao final, ficou um silêncio, como se Manoelzinho estivesse matutando a história que acabara de ouvir e Cirino, ainda afogueado pela narração, respirando forte e parado, pois acabara de ter uma ideia Só tinha uma forma de o bicho tê-lo encontrado tão longe da fazenda de coronel Terêncio, o cheiro. Lobo não é cachorro, mas é primo – pensou, então tinha faro também. O bicho viera atrás dele pelo cheiro de Cirino. E agora o bicho dos infernos não o deixaria em paz, podia apostar. Era só ele relaxar e o bicho o pegaria de surpresa. Na certa estava muito contrariado por Cirino ter escapado dele novamente e não se daria por satisfeito, até provar o gostinho do sangue de Cirino, pegar sua alma nas garras e arrastá-la para o inferno. Não! Não iria ficar de bobeira, para que o bicho tirasse vantagem. Iria procurar a preta velha. A decisão fervia em sua mente; ideia fresca e decisão tomada de supetão. Estava decidido e não seria mais uma frágil vítima, esperando a hora derradeira. Ir ter com a preta velha era o que devia ser mais acertado; só ela poderia esclarecer alguma coisa, trazer nova luz à situação, dar uma solução para o caso. Se ela não pudesse, talvez não existisse outro jeito que não

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fosse Cirino se virar para tentar acabar com o bicho. Teria que buscar outras soluções, mas do jeito que estava não poderia continuar. Precisava saber como enfrentar o lobisomem e resolver este assunto de uma vez por todas. Estava na hora de ter a forra.

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Dona Cambinda O sol começava a espreguiçar-se, pintando o céu de um alvorecer quase onírico, como um resto de sono que não quer ir embora. A vida pululava sem a preocupação de ser discreta, recebendo o dia e ajudando a mandar embora o sono teimoso. Cirino levantou sem sono; espantara-o sua convicção de ir em busca de seu próprio destino, fosse bom ou ruim. Estava cansado de toda esta história. Sua vida, suas convicções, suas crenças balançavam desde o encontro com o ‘coisa ruim’. Tanta mudança o deixava perdido e isso Cirino não gostava. Sentia-se diferente e ao mesmo tempo não se reconhecia direito. Passara a ver o mundo de forma mais ampla e já questionava um monte de coisas que antes eram tomadas como certas; agora já não tinha tanta certeza. Acordara. Preparou um café meio aguado, que mais parecia um chá e tomou de um gole só. Mastigou um pedaço de pão que requentara no fogo e, parou, dando uma olhada ao redor, para suas coisas, sua casinha do tempo de seu avô, onde tantas lembranças brotaram e ali criaram raiz. Muita coisa realmente mudara em tão pouco tempo. Era um novo homem; sentia-se assim. E, talvez, este novo homem acabasse por não durar muito tempo. O próximo encontro com o lobisomem – porque tinha convicção de que aconteceria – poderia ser o último para este novo Cirino. Mas não queria acreditar nisso. Lutaria com todas as forças. É certo que ainda tinha um medo que ficava arrastando-se por sua alma, sorrateira- mente; mas o ódio do bicho era muito pior, muito mais forte e o tomava por inteiro. Não. Essa casa ainda seria testemunha de muita história. Cirino bateu a porta suavemente e saiu, com a mente engolfada por essa sensação de decisão. Pegou a estrada de terra e foi ter com a rezadeira.

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O caminho era longo, mas o tempo passou sem que Cirino realmente percebesse a distância. Estava tão embolado em pensamentos, que cruzou a distância sem se dar conta. D. Cambinda morava num casebre humilde, uma tapera desgasta- da, com um pequeno curral de paus velhos, onde ficava uma cabra. Cambinda era filha de uma escrava alforriada. Sua avó lhe ensinara muitas coisas quando ainda era uma menina. Quando Cambinda fez quatorze anos, sua avó faleceu. Uma noite, quando todos dormiam, sua avó levantou, abriu a porta e saiu. Cambinda acordou com o som da porta e ainda viu o vulto de sua avó saindo. Levantou, coçando os olhos remelentos e foi ver o que sua avó estava fazendo. Chegou à porta e viu a avó perto das árvores, iluminada pela lua, que desenhava seus contornos, dando a impressão de algo sobrenatural, mágico. Cambinda ficou a porta, olhando. Sua avó falou algumas coisas, como se conversasse com alguém invisível. Fazia pequenos gestos e falava. Num determinado momento, viu como se sua avó desse a mão a alguém, que parecia não estar ali, ou que apenas sua avó conseguia ver. Ela foi caminhando, até umas árvores antigas, pelas quais sua avó tinha um apreço especial. Então se sentou, baixou a cabeça e ali ficou. O tempo passou e nenhum movimento. O sono tomava de assalto Cambinda que, não aguentando mais, arrastou-se até sua rede e voltou a dormir. No dia seguinte, acordou com sua mãe chorando. Levantou-se assustada e quis saber o que estava acontecendo. Já nem lembrava mais o que vira na noite anterior; sua mente fora tomada de supetão pelo choro da mãe, sentada num pequeno banquinho à porta do casebre. Sua mãe a abraçou e nada dizia. Cambinda estava tensa e confusa e não sabia o que estava acontecendo. Então, sua mãe segurou seus braços, olhou em

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seus olhos, com os olhos vermelhos e melados de lágrimas e disse: — Minha fia... Agora é só nós duas. Aquelas palavras entraram pelos ouvidos de Cambinda e ficaram ricocheteando em sua alma por uns instantes, até que acertaram sua mente. Cambinda então se lembrou do que vira na noite anterior e na mesma hora, virou-se em direção das árvores antigas. Sua avó ainda estava lá, exatamente como a deixara na noite anterior. Cambinda se desvencilhou dos braços da mãe, que voltara a abraçar-lhe e foi em direção das árvores, debaixo das quais sua avó permanecia sentada. Foi aproximando-se e sua avó permanecia imóvel; parecia dormir sentada. Chegou perto e, abaixando-se, tocou o ombro da avó, que estava frio; mas isso não chamou sua atenção, pois era muito comum que a pele ficasse fria àquela hora da manhã. Ela mesma ficava com os ombros frios quando acordava cedo para buscar ervas com a avó. Então, chamou. Chamou. Chamou mais uma vez e nada. A avó permanecia na mesma posição. Cambinda deu uma leve sacudidela e percebeu que sua avó parecia estar com os ossos petrificados. Então, a verdade caiu como um balde de água gelada em sua cabeça. Aquela era uma despedida. Sem cerimônias sua avó foi enterrada ali perto mesmo. Somente alguns poucos vieram e participaram de uma pequena roda de orações; pessoas que sua avó, conhecida como rezadeira, tinha ajudado a curar de mazelas muito comuns naqueles tempos. Cambinda não chorou, como sua mãe. Ficou ali, participando, ajudando a organizar tudo, sem dizer uma palavra; estava interrompida por dentro e agia como se não fosse capaz de pensar, ou como se sua mente estivesse em

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suspenso por tempo indeterminado. Fazia tudo, mas não pensava em nada além dos afazeres do momento. Depois que todos foram embora sua mãe, exausta, foi deitar-se e logo pegou no sono. Cambinda ficou na porta da casa, olhando na direção das árvores antigas. Sua mente passeava. Não sabia o que pensar, pois não compreendia direito o que acontecera. Foi aí que se lembrou de que certa vez sua avó a levara até aquele lugar, quando Cambinda tinha apenas sete anos — “Sete ano é a idade de te apresentar para os deuses de nosso povo, os orixá” – disse sua avó. Ela mostrara a Cambinda algumas plantas, mexeu com algumas coisas que tinha levado, preparou uma oferenda e chamou os nomes dos orixás. Um vento suave surgiu de repente, quando tudo estava parado e nada se movia. O ventinho apenas mexia as plantas ao redor delas, tudo mais permanecia estático, como se somente ventasse ali. Sua avó, percebendo a atenção e o semblante de curiosidade da neta, sorriu. Os orixás estavam ali, sabia. — Quando um dia eles me levá, vossemecê há de ficá no meu lugá, porque sua mãe não tem jeito pra isso, não. Vossemecê há de sê rezadeira como a vovó e vai ajudá as pessoa, que nem que a vovó faz. Cambinda olhava e o amor por sua avó era tão grande, que era como se tudo aquilo fizesse todo o sentido do mundo, mesmo que ela quase nada entendesse. Mas acreditava na avó e sabia que aquilo que ela não entendia era importante e, quando fosse mais velha, conseguiria entender. — Vossemecê não há de ficá suzinha. A vovó vai tá junto dos orixá, dando força pra vossemecê. Quando chegá a hora, vossemecê vai entendê tudo. Os orixá vão vir até aqui falá com vossemecê. Vossemecê vai ouvir o chamado e tudo vai sê entendido. Num impulso suave, Cambinda que estava na porta, com a mente ocupada por todas as lembranças que estavam

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guardadas bem no fundo de sua história, foi andando lentamente em direção às árvores antigas. Sentia-se leve, como a deslizar pelo ar, ainda com o eco das últimas palavras de sua avó repercutindo por sua alma, como a ligar o tempo passado ao presente, sem que se pudesse distinguir o que era um e o que era outro. Cambinda estava cada vez mais perto das árvores e ouvia um pequeno zumbido nos ouvidos, mas que não chegavam a ser desagradável. Aliás, nada naquele momento era desagradável; uma mescla de realidade e sonho; um momento sem fronteiras. Um suave vento circulava ao redor de Cambinda, que sentia uma agradável refrescância em sua pele. O vento girava e aumentava de intensidade. Cambinda chegou às árvores e sentiu seu corpo balançar suavemente de um lado para o outro. Sentiu uma vontade de sentar naquele lugar e começou a abaixar lentamente, sentando-se no chão de terra. Seu corpo, suavemente, foi deitando-se, enquanto o vento parecia limpar tudo ao redor. Deitada na terra, Cambinda ouvia mil vozes ao mesmo tempo, como num sonho confuso, porém suave e delicioso. Sentia pequeno comichão em seus pés, que ia subindo lentamente por suas canelas, coxas, virilha, até atingir o corpo todo, com um calor suave e aconchegante. Via guerreiros, pajés, índios, feiticeiros, que translúcidos surgiam à sua frente e logo desapareciam, dando lugar um ao outro, tudo como num sonho, em que não saberia dizer se os estava realmente vendo, ou se sonhava numa tênue fronteira entre o real e o onírico. O calor começou a aumentar e entre suas pernas sentia um frisson desconhecido, um pulsar agradável e prazeroso que aumentava o ritmo de sua respiração e embalava-a ainda mais em mescla de sentimentos que estava conhecendo naquele exato momento. Sentia suas entranhas pegarem fogo e um prazer incontrolável espalhar-se além de seu corpo, como se seu

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corpo tivesse expandido e ela fosse um gigante entre aquelas árvores, no meio daquele vento, mergulhada naquelas imagens de seres poderosos, que ela não conhecia, mas tinha a impressão de serem conhecidos. Nessa dicotomia, sua razão dançava a música de sonhos, seu corpo contorcia-se nos prazeres indescritíveis daquela transição e suas verdades perdiam-se nos eflúvios de seus gemidos quentes e soltos no ar, no ritmo do pulsar de seu próprio coração descompassado e de seus pensamentos em ebulição. O ritmo aumentava alucinadamente e ela ouvia as vozes dizendo coisas sobre plantas, sobre energias, sobre coisas que ninguém sabia, mas que ela tinha que saber. O prazer aumentava cada vez mais e seu corpo parecia que iria explodir; um instante sem limites, sem tempo e nem espaço; uma eternidade sem lastro. Então, num espasmo derradeiro, um grito – quase um grunhido – atravessou o ar e sua realidade explodiu fora de todos os limites de prazer e razão. Cambinda desfaleceu, numa entrega total; numa entrega orgásmica e espiritual; numa entrega de si mesma. Minutos mais tarde, Cambinda acordou sentindo-se forte e bem disposta. Ao levantar-se, sentiu algo molhado e pegajoso a escorrer-lhe pelas pernas, manchando-lhe o vestido; sangue. Estava ensopada de sangue. No lugar de assustar-se, procurou onde estaria ferida, mas não sentia dor, nada; apenas aquela sensação incômoda de molhado. Então, caiu em si. As regras. Estava menstruando. Foi andando de volta para casa, andando sem jeito e sentindo-se feliz. Além da sensação estranha da menstruação que lhe escorria pelas pernas, sentia-se estranhamente consciente de tudo, como se sua mente calasse os pensamentos inúteis e descontrolados; um silêncio permitia que sua concentração fluísse suavemente através de seu raciocínio; pensava claramente.

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Entrou em casa na hora em que sua mãe estava despertando. De um salto, Azenira levantou-se da rede e veio ter com ela. Mas o sorriso da filha a fez estancar e deu-se conta do que ocorria e isso a fez sorrir também. — Agora você é uma mulhé. Vem! Vamo limpá isso e lavá esse vestido. Azenira abraçou sua filha e as duas foram juntas para a beira do riacho. O tempo passou e Cambinda logo começou a mostrar o mesmo talento da avó. Sua mãe tinha profundo respeito e compreendia, que o que ela não tinha, sua filha herdara da avó. Era uma coisa importante e cheia de responsabilidade. Cambinda sentia-se bem, como nunca antes. Era como se tivesse tornado adulta de uma hora para outra. Falava com autoridade e confiança sobre as coisas da natureza, sobre as plantas e sobre a influência dos orixás. Rezava as pessoas com muito carinho e fé e, logo, começaram a se espalhar o resultado de seu trabalho caridoso, com pessoas curadas e renovadas em esperança. Cambinda falava com igual confiança dos santos da igreja católica, como se pudesse dar aulas a um padre. Não que isso acontecesse realmente, mas sua autoridade e facilidade na compreensão das coisas espirituais eram tão profundas, que as pessoas soltavam afirmações como essa. Sua mãe morreu quando Cambinda tinha trinta anos. Era uma noite de tempestade e sua mãe estava agonizando na rede. Cambinda ajudara a minorar seus sofrimentos, mas sabia que tudo aquilo tinha uma razão. Cabia a Cambinda, então, apenas tentar diminuir o sofrimento da mãe. Ela sabia que sua mãe partiria logo. E foi colocando compressas de água quente com ervas sobre a barriga de sua mãe que Cambinda aliviava seu sofrimento. Lá pelas duas horas da madrugada, Cambinda sentiu uma presença e reconheceu que era chegada a hora de sua mãe. Uma mescla de tristeza, alívio e alegria preenchiam o íntimo de Cambinda. Tristeza, porque sentiria falta de sua mãe; alívio,

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porque ela não mais sofreria ao ver o sofrimento da mãe; e alegria, porque finalmente sua mãe estava liberta de tanta dor. Ouviu o último suspiro de sua mãe. Cambinda ajoelhouse ali mesmo e fez uma oração. Agradeceu por tudo e, humildemente, ficou ali, em silêncio. Cirino foi caminhando metido em seus pensamentos, até que uma sensação começou a chamar sua atenção. Era uma sensação estranha de que algo estava acontecendo e que ele não estava se dando conta. Cirino parou, olhou ao redor e nada. Continuou mais um trecho de estrada, parou de novo, olhou e nada. A sensação era de que alguém o estivesse observando. O lobisomem não era, porque era dia e o lobisomem só aparecia à noite e de lua cheia! Mas quem então? Cirino continuou andando e teve uma ideia, para descobrir o que estava acontecendo. Num estalo, Cirino começou a correr até uma viradinha mais à frente, que um emaranhado de espinheiros escondia o restante da estrada depois da curva. Ao fazer a curva, Cirino meteu-se atrás de um dos espinheiros e esperou. Não demorou muito para ouvir passos apressados que vinham logo atrás. Os passos diminuíram ao chegar à curva, obviamente porque quem o estivesse seguindo não queria ser pego de surpresa, dando de cara com Cirino logo depois da curva, então procurava se precaver e espreitar se ele não o estava esperando atocaiado. Cirino viu as pernas e os pés da pessoa, mas não conseguia ver o rosto ainda, então resolveu se revelar e pegar o perseguidor de surpresa. Qual não foi sua surpresa ao saltar na frente do perseguidor e dar de cara com Manoelzinho. O menino também surpreendido, não sabia onde enfiar a cara; fora pego em cheio, seguindo Cirino. — Mas... O que ocê tá fazendo atrás d’eu, Manel?

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— Erh... Eu queria ajudá ocê, Cirino. Eu também quero enfrentá o lobisomem — Mas ocê tá maluco, menino? Isso né brincadeira, não! — Eu sei, mas nós semo amigo e eu quero te ajudá... — Sarta fora! Vorta pra casa. Num quero nenhum menino atrás de mim, não. Ainda mais com esse tal de lobisome me rondando. Nós somos amigos e por isso memo que eu num quero te metê nessas enrasca- da. Vai andando, vai! — Mas... — Vai andando, já disse! Me respeite, senão conto pra sua mãe. Muito contrariado, Manoelzinho deu meio volta e seguiu para casa, como Cirino mandara. Voltou resmungando pelo caminho, enquanto Cirino esperava até ver que o menino sumia na distância para ter certeza de que ele não voltaria a segui-lo. — Agora, veja só! Se eu tô precisado de um menino grudado nimim, quando o coisa ruim aparecê. Ainda mais Manoelzinho! Vou tê que cuidá de mim e dele também. Oxe! Cirino seguiu caminho, também resmungando a doidice do menino, muito embora gostasse de ver a coragem que ele tinha e que a muitos adultos faltava. De quando em vez, olhava para trás, para ver se o mole- que não voltara a segui-lo. Foi se chegando ao casebre onde morava D. Cambinda. A senhora estava sentada num pedaço de pau, na entrada do casebre, pitando um cachimbo. — Bom dia. — Bão dia, Seu Cirino. — Uai! Então a sinhora me conhece.

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A velhinha não disse nada, apenas deu uma risadinha sapeca. — Pode se achegar, S eu Cirino. S ei bem o que o sinhô veio fazê aqui. — Mas, a sinhora sabe? Como? Cambinda deu mais uma vez uma risadinha sapeca, levantando-se do pedaço de pau e convidando Cirino para entrar na casa, com um gesto de mão. Cirino não sabia o que pensar e, inseguro diante da surpresa, entrou na casa pisando torto. O casebre de Cambinda era bastante humilde, bem mais humilde do que a casa de Cirino, mas era tudo bem arrumadinho e organizado. Além de uma caminha no canto, havia uma mesa feita de forma bem rústica, sendo dois cavaletes e um pedaço de tábua sobre eles. Acima do fogão a lenha, vários ramos de ervas penduradas para secar. Alguns jarros de barro e cabaças estavam no canto oposto à cama. Havia uma profusão de outras coisas estranhas, que Cirino não cogitava saber para que ser viam. Cambinda convidou Cirino para sentar num pequeno banquinho e sentou-se à sua frente, em outro banquinho. Olhou para Cirino por uns instantes. Seu olhar parecia penetrar nas pupilas de Cirino, atingindo os recônditos de sua alma. Cirino sentiu-se ainda mais incomodado. Mas logo Cambinda meneou a cabeça positivamente, virou-se e pegou um pequeno ramo de arruda, açoitando suavemente Cirino, como quem espana poeira. Depois, colou o ramo dentro do fogo do fogão a lenha, para que este queimasse. Virou-se para outro lado, pegou uma cuia e encheu de água, enquanto rezava uma salve-rainha. Benzeu a água, colocou entre as duas mãos de Cirino e pediu que ele segurasse, enquanto ela olhava no reflexo. Isso durou

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alguns minutos, o silêncio só quebrado pelos sons naturais do sertão, vez ou outra, do lado de fora da casa. Cambinda estava completamente concentrada no reflexo. Vez ou outra passava a ponta do dedo na água, como quem apagasse alguma imagem e voltava a fixar o olhar em silêncio. Sem que Cirino esperasse, ela levantou a cabeça, olhando fundo nos olhos de Cirino. — O sinhô tem uma missão muito importante. Cirino escutava, sem saber o que pensar, mas escutava com atenção. — O tar do cachorrão aluado, que anda atrás do sinhô, só vai sossegá, quando o sinhô vencê a sanha de morte do bicho... Muito difícil, mas... O que não é difícil, né fio? He! He! He! Cambinda deixava Cirino desconfortável, apesar de ser uma pessoa que emanava um sentimento bom e dava a impressão a Cirino, de que era uma boa pessoa. — Vou lhe aprontá um patuá de proteção, pra que o sinhô seja acompanhado dos orixá e eles possa ajudá o sinhô na sua missão. Se livrá do bicho é a única forma de tê paz, mas o sinhô vai tê uma surpresa, que vai colocá o sinhô de frente com seu destino. Cirino não entendia bem o que ela queria dizer e quando fez menção de abrir a boca, a velhinha levantou a mão, pedindo que ele calasse e ouvisse. Cirino então se conteve e esperou. Cambinda levantou-se, foi até a lateral oposta da cama, mexeu em alguns embrulhos, colocou algumas coisas em cima da cama, mexeu mais um pouquinho e pegou um cordão de

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prata, com um pingente que Cirino não conseguia ver de onde estava. Cambinda aproximou-se de Cirino, bateu de leve com a mão duas vezes em seu ombro, como a confortá-lo e inspirar coragem; foi até o fogão, onde colocou uma panela no fogo, enquanto murmurava alguma coisa, que Cirino não pôde escutar. Passou a escolher meticulosamente algumas ervas e outras tantas coisas que estavam em potes de barro, colocando-os dentro da panela. Não acendeu o fogo, apenas colocou tudo dentro da panela e começou a mexer, enquanto permanecia murmurando algo. Cirino observava atento cada movimento da velhinha. Ela virou o conteúdo dentro de um copo e voltou-se para Cirino. — Tome isso, Seu Cirino. Vai deixá o sinhô mais forte e ajudá no preparo da proteção. Cirino pegou o copo, olhou seu conteúdo e era um líquido forte, cor de barro, com um odor ácido. Olhou por um tempo e resolveu virar tudo de uma vez, engasgando com a acidez da bebida, o que o fez tossir muito. Cambinda deu uma risadinha, como as anteriores. — Isso memo, Seu Cirino. É amargante, mas o sinhô precisa de bebê. O gosto azedo e um tanto cáustico ficou na boca de Cirino por um tempo, antes de começar a diluir. Cirino percebeu que algo de estranho estava acontecendo ali naquele casebre. O casebre não parecia mais o mesmo de quando entrara. Enquanto Cambinda preparava algo e acendia um pequeno incensório de barro, Cirino começou a ter a impressão de que algumas coisas, que a princípio ele não percebera, movimentavam-se pelas sombras do casebre, como estivessem perfeitamente camuflados e, de repente, resolvessem movimentar-se.

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Cirino forçou a vista, tentando prestar mais atenção. Ora olhava para um lado, olha virava a cabeça e olhava para o outro, buscando outro movimento, num outro canto. Cambinda percebeu essa movimentação de Cirino e virando-se para ele novamente, veio sorrindo suavemente em sua direção. — Venha, Seu Cirino. Alevante. O sinhô agora carece descansá e prestá atenção. Cirino levantou-se inseguro e parecia que estava movendo-se dentro d’água. Tudo parecia ter uma textura diferente. O próprio ar ao seu redor e que ele respirava parecia estar diferente. Talvez fosse por causa do incensário, que Cambinda acabara de acender e que tornara o ar mais carregado – pensava. Mas Cirino percebia algo diferente e que não parecia ser o que ele pensava. Cambinda o levou até a cama no canto do casebre, dizendo para Cirino deitar-se confortavelmente. Cirino deitou na cama e seus olhos pousaram no teto. As diminutas frestas no telhado de palha, por onde entrava a luz, pareciam dançar à medida que pequenas sombras passavam diante delas. De repente, o brilho das pequenas frestas começou a aumentar lenta- mente, como se pequenas estrelas cintilantes fossem crescendo de tamanho. Cirino estava inteiramente maravilhado com aquilo. Balbuciou qualquer coisa sem sentido e Cambida deu outra risadinha. Cirino riu também, pois ele mesmo não entendeu o que saíra de sua boca. Logo as luzes no teto aumentaram consideravelmente, engolindo completamente Cirino, que se viu cercado de um mundo completamente branco e iluminado. Ele estava ali, de pé, no meio daquela brancura sem fim, sem entender nada, muito embora sentisse uma agradável sensação de conforto e acolhimento. Olhou para um lado, olhou para o outro e nada. Quando voltou a olhar

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para frente, tomou um susto, dando um salto para trás. Em sua frente estava um velho índio sentado num tapete de palha. Cirino percebeu que ele mesmo, já estava também sentado. Assim que olhou novamente para o velho índio, tudo ao redor havia virado uma imensa floresta, de um verde fluorescente. Ao lado, corria um rio, cujas águas, cheias de peixes, pareciam luminosas. Cirino estava encantado com tudo aquilo. Nunca vivera algo assim. Será que havia morrido? – Pensou. — Não. Você está bem vivinho, Cirino. Disse o velho índio, olhando nos olhos dele, com um sorriso amigável no rosto. Seus olhos eram de um verde profundo e brilhante. — Onde eu tô? Que lugá é esse? – Perguntou Cirino. — Tudo a seu tempo, Cirino. Tudo a seu tempo. Replicou o índio. Cirino ficou calado então, observando a imensa floresta ao seu redor. Lentamente o índio pegou de uma sacola um colar e entregou à Cirino. — Use este colar, Cirino. Ele vai protegê-lo e ajudálo. Concentre-se no amor, Cirino. — Como assim? Que amô? Então, Cirino lembrou-se de sinhazinha Lu e no mesmo instante, do meio das águas do rio foi surgindo um turbilhão de água, que foi se erguendo diante de Cirino, que olhava aquilo impressionado. O turbilhão começou a tomar forma de um ser humano, uma mulher. Cirino respirou fundo, quando viu surgir diante de si o semblante de sinhazinha Lu. Seu coração acelerou. A figura de Lu olhou para ele, estendendo-lhe a destra. Cirino a segurou e a pele era suave e delicada. Ela segurou sua cabeça com carinho e suavemente beijou seus lábios. Cirino viu-se num turbilhão de imagens, ao som da risada do índio, uma risada divertida, de quem faz uma

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traquinagem. Milhares de imagens sucediam-se ao redor de Cirino e logo ele viu-se novamente deitado na cama. Cirino ainda estava com a imagem viva de sinhazinha Lu em sua mente. Levou a mão aos lábios e os tocou levemente com os dedos, lembrando-se do beijo, que parecia tão real. Cambinda veio aproximando-se de Cirino que olhou para ela, questionador. Cambinda fez um meneio afirmativo de cabeça e deu um sorriso, a dizer que sabia de tudo. Cirino achou melhor permanecer calado, até porque não sabia mesmo o que dizer, não sabia o que perguntar; estava cheio de interrogações em sua cabeça, mas não sabia como formular as perguntas. Cirino passou a mão pelo peito e tocou a medalha, pendurada em seu pescoço num cordão de prata. Imediatamente olhou para ela e lembrou o momento em que o velho índio lhe deu o cordão. Tudo aquilo fora real? – Perguntava-se Cirino. Será? Mas é o mesmo cordão, pensava. Cambinda acompanhava os pensamentos de Cirino, sentada à sua frente. Até que se levantou e disse: — Venha, Seu Cirino. Cirino levantou-se, sentindo-se muito bem-disposto e seguiu a velha senhora até o lado de fora do casebre. O dia estava quente e cheio de sol. Cirino respirou fundo e sentia-se como se estivesse mais leve. Não entendia o que tinha acontecido, mas aquilo fizera muito bem a ele, não tinha dúvida. — O sinhô pode ir, Seu Cirino. Disse Cambinda. — Mas... E o lobisome? O que eu posso fazê pra vencê o disgramado? — O sinhô tá protegido e vai tê as atenção dos esprito. Tenha fé, Seu Cirino. Sua fé e seu amô vão sarvá o sinhô nas hora ruim.

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— E o que eu posso fazê pra sinhora, como agradecimento. — O sinhô não carece de fazê nada, não. Vá com Deus, Seu Cirino. Quando carecê de ajuda, o sinhô me procure. — Muito agradecido, D. Cambinda. Cirino voltou para casa, olhando vez ou outra a medalha pendurada no cordão. Algumas coisas escritas, uns sinais que Cirino nunca vira. Foi andando e perguntando-se se aquele cordãozinho poderia protegê-lo de fato. Lembrou-se então do que lhe dissera o índio e D. Cambinda: — Tenha fé, Seu Cirino. Fé. Era disso que Cirino precisava. Apenas isso. E apesar de saber disso agora, onde arrumar essa fé toda? Além do mais, como vencer o bicho do capeta, apenas com fé e sem nada nas mãos? Por mais que tentasse, não conseguia entender.

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Manoelzinho Manoelzinho voltou para casa amuado. Pensou em dar meia volta e continuar seguindo Cirino de longe, mas desistiu da ideia, pois ele sabia que Cirino esperava por essa atitude de sua parte; Cirino o conhecia como ninguém. Mas então, como fazer? Queria porque queria fazer par- te daquelas aventuras, mesmo sabendo que eram extremamente perigosas e poderiam custar-lhe a vida. No mais, somente em sua cabeça aquelas aventuras poderiam ser instigantes, pois para Cirino era uma maldita de uma aporrinhação; queria se livrar logo do bicho. O fato é que Manoelzinho não era como as crianças da vila, era mais fechado e não gostava daquelas brincadeiras bobas. Quando Cirino lhe contou sua história, o enfrentamento com o filho do capeta, fora como se algo novo surgisse dentro do peito de Manoelzinho. Aquilo sim valeria a pena. Aquilo sim era uma verdadeira aventura e não os faz de conta da molecada sem graça da vila. Poderia sair nesta aventurança com seu amigo Cirino, ajudá-lo! Sua cabeça funcionava diferente, não adiantava. Por mais que as pessoas insistissem, para Manoelzinho tinha que fazer algum sentido, ter alguma razão, senão não valia à pena. Bendita hora em que ele foi ajudar Cirino a levar a porta. Se não fosse por isso, nunca teria a chance de ouvir a história exatamente como sucedeu e jamais teria a oportunidade de entrar na aventura junto com seu amigo Cirino. O difícil agora era conseguir convencer o homem a deixá-lo ajudar na empreitada. Cirino era seu amigo, mas Manoelzinho sabia que Cirino jamais deixaria, não só um amigo no meio dessa história, como muito menos uma criança. Foi andando e matutando. Talvez a única saída mesmo fosse insistir, não saindo do pé de Cirino. Conseguira convencer Cirino de algumas coisas outras vezes dessa mesma forma.

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Pronto! Resolvera-se. Continuaria insistindo, até que alguma ideia melhor lhe saísse da cachola. Não seria fácil, mas não tinha outro jeito mesmo. Como ninguém ligava se ele saia de casa e se voltava; ninguém sentiria sua falta. Desde que saísse com permissão de sua mãe, não haveria problema. Foi arquitetando um plano, para poder ganhar tempo e assim ficar atrás de Cirino onde quer que ele fosse. Teve a ideia de falar com Zeca, pois era o único amigo que tinha além de Cirino, pois não ligava para o fato de ele ser um garoto que não brincava com os outros, afinal eram amigos desde pequeninos. Era isso! Armaria um plano com Zeca, para que sua mãe pensasse que estava na casa deste, enquanto ele seguia Cirino, ajudando a enfrentar o bicho. Assim que entrou no vilarejo, foi direto à casa de Zeca, pois era preciso agilizar o plano o quanto antes. Zeca, ao saber das ideias do amigo, tentou demovê-lo, mas Manoelzinho estava irredutível. No fundo, Zeca também achava instigante essa aventura mais do que perigosa, mas não tinha a coragem que Manoelzinho tinha de sobra. Acabou por concordar com o plano. Então ficaria acertado desta forma: toda vez que Manoelzinho fosse seguir Cirino, diria para sua mãe que iria para a casa de Zeca. Como Manoelzinho dormira na casa de Zeca várias vezes desde que era pequeno, não despertaria suspeitas e seria até bem normal. Para qualquer dúvida Manoelzinho dormira na casa de Zeca. Enquanto isso, Manoelzinho partia para aquela que ele considerava a maior de todas as aventuras — caçar o lobisomem. No dia seguinte, levantou-se pronto para pôr o plano em andamento. Sabia que Cirino iria trabalhar nas terras de coronel Terêncio, então juntou num saco dois pães e saiu logo depois do almoço, dizendo que iria para a casa de Zeca. Passou na casa de Zeca só para confirmar o plano, no caso de sua mãe o mandar chamar, mas nem precisou entrar, pois este estava sentado na porta, vendo o povo passar, vindo da igreja. Zeca viu

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o amigo chegando com um sorrisão no rosto e balançou a cabeça, já sabendo o que estava por acontecer e pensando que Manoelzinho não tinha mesmo jeito. Acertado o plano, Manoelzinho partiu em direção às terras de coronel Terêncio. Chegou lá e ficou sabendo que o jagunço ainda não tinha visto Cirino naquele dia, mas que ele deveria estar lá para o lado da barragem, pois de alguma forma, o arame novo tinha soltado e ele precisaria recolocar. Então, Manoelzinho respirou fundo e disse para si mesmo: — Vamo lá!

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O Rifle Cirino saiu da casa de D. Cambinda e foi pela estrada, atento ao que sentia. Realmente sentia-se muito bem. O que será que fora aquilo que vivera? Nunca tinha passado nem perto de qualquer experiência daquele tipo. Tudo era tão real e, ao mesmo tempo, tão fantástico. E agora, sentia-se como um menino, cheio de energia. Mas era preciso pensar numa forma de enfrentar o lobisomem, pois até então, não tinha ideia de como se preparar para enfrentá-lo. Talvez um rifle, ou uma arma qualquer. Onde poderia arrumar uma arma? Lembrou-se da arma de seu avô, que ficava guardada no fundo daquele baú antigo, cheio de tralhas e coisas de sua mãe, que nunca quis jogar fora; gostava de sentir o perfume da mãe naquelas coisas. Enfim, essa podia ser uma ótima solução. Chegou a casa e foi direto ao baú, procurar o rifle de seu avô. Bem lá no fundo, embrulhado num pano amarelado e, depois, num papel velho, estava a arma. Um tanto enferrujada, mas parecia que ainda dava para o gasto. Fuçou mais um pouco o baú e encontrou uma pequena caixa, já corroída pelo tempo e pelos insetos, cheia de munição. Algumas cápsulas de balas estavam abertas e a pólvora vazara, outras ainda estavam intactas. Será que ainda estavam boas? Cirino deixou tudo num canto, perto da porta e foi fazer um café. Resolvera que não iria trabalhar na fazenda de coronel Terêncio naquele dia. No dia seguinte daria uma des culp a qualquer e voltaria a fazer seu serviço. Além do mais, estava com a cabeça em outro lugar. Tudo que vivera naquela ocasião em casa de D. Cambinda era por demais intrigante e o deixara encafifado. Estava com uma disposição danada para a cisma. Então, ficaria ali, cismando com tudo aquilo e tentando achar um sentido qualquer, que o satisfizesse.

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A bem da verdade, essa era uma boa desculpa para não ir trabalhar; simplesmente não estava para trabalho aquele dia e então, pronto! Ficaria em casa. No mais, o tal do lobisomem poderia vir atrás dele naquela noite, primeira noite de lua cheia do mês e queria estar preparado para soltar bala nas fuças do ‘cramulhão’. Depois do encontro anterior, o bicho devia estar numa sanha de vingança danada. Com certeza ganhara umas boas cicatrizes de queimadura, depois que tentou entrar em sua casa. Não seria fácil encarar o bicho, se não acertasse o tiro logo de primeira. Era preciso ser ‘mirolha’! Ficou então por ali mesmo, sentado no tronco de árvore, do lado de fora, vendo a tarde chegar lentamente. Acendeu um cigarrinho de palha e pôs-se a fumar. Tomava um gole de café e dava uma tragada. Ficou assim, até que chegou a noite. Estava atento para o nascimento da lua, que até então não despontara. Assim que a danada aparecesse no céu, correria para dentro e se prepararia com o rifle de seu avô. Não demorou muito e, ao som de grilos e demais bichos da noite, a lua foi surgindo no horizonte, despontando lentamente, como se trouxesse um mórbido prazer de avisar a Cirino, que a hora do capeta estava batendo em sua porta e logo teria surpresas. Cirino passara a ver a lua naqueles dias com outros olhos. Era um sinal ruim, aviso mortal de perigo iminente. Antes, até gostava de ficar ali fora, à luz da lua, com seu cigarrinho, aproveitando o que a natureza lhe oferecia de melhor. Mas com o surgimento do cão do capeta, a lua passara a ser um sinal, um aviso, um despertador. Não queria ser surpreendido novamente, como da vez anterior. Então jogou o que sobrara do cigarrinho no chão, pisoteou e correu para dentro para preparar o rifle.

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Pegou a arma, abriu e carregou. Engatilhou, sentou na cadeira de frente para a porta e esperou. Na primeira oportunidade sabia que o bicho viria correndo. O tempo foi passando e nada. Cirino estava atento, mas nada acontecia. O rifle já estava ficando muito pesado. Chegou a pensar ouvir um uivo num momento de quase cochilo, mas achou que era coisa de sua cabeça, mas ficou atento, caso o uivo tivesse sido real; poderia ser o sinal de que o bicho estava solto e vindo atrás dele. Cirino olhava vez ou outra para a medalha do índio como a querer tirar sua fé dali. Mas logo a lua começou a sumir no horizonte. Já eram três horas da madrugada e nada acontecera. Com a lua tendo se posto atrás da serra distante, o perigo consequentemente acabara. Cirino então se levantou da cadeira, colocou o rifle de volta no canto e preparou-se para ir dormir. Não sem antes fechar muito bem a porta. Sabia que o bicho só aparecia na Lua cheia, mas sabe-se lá do que são capazes estas coisas dos infernos?

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Enigmas do Coração Cirino levantou escutando barulho de cavalo do lado de fora de casa. A princípio pensou consigo mesmo, ainda cheio de sono, que talvez fosse algum cabra só passando por aquelas bandas. Mas a insistência do animal, que ciscava aqui e acolá, sem se afastar da casa, deixou Cirino ressabiado. Afinal de contas, quem poderia estar ali fora? Talvez estivessem pensando que ele não estava em casa, ou estivessem tentando roubar suas galinhas. Foi pensando assim, que Cirino deu um pulo da rede, passou a mão na peixeira, colocou na cintura e abriu a porta violentamente, no intuito de assustar logo de cara, o sujeitinho que pudesse estar tentando roubar suas galinhas. Cirino viu-se surpreso, assim que saiu porta afora. Olhou como quem faz força para acreditar e mesmo assim duvidava. Ruborizou, quando percebeu que não estava vendo coisas e que quem estava ali, sobre o cavalo, na sua frente, era mesmo a filha do coronel. Ficou sem reação, paralisado, sem saber onde se enfiar. Se tivesse um buraco ali, pulava dentro dele sem hesitar. Uma coisa era receber os bilhetinhos carinhosos de sinhazinha Lu, outra era ela ir procurá-lo em sua casa. E se sentissem falta dela? Será que alguém sabia que ela estava ali? E se Donana desconfiasse? Eram muitas interrogações, que o deixavam muito nervoso. Sinhazinha Lu desceu do cavalo se esforçando para que o nervoso que sentia não tomasse o controle de seu corpo. Estava ali, diante de Cirino, e mais perto estaria como que jamais estivera antes. Olhava para ele e não sabia o que dizer, embora um mundo de coisas gostasse de dizer naquele momento. Mas não conseguia; as palavras não vinham e as frases não se formavam em sua mente. Os lábios tentavam, mas não conseguiam dizer nada e só entreabriam, para logo depois

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voltarem a fechar. Mas sabia a que vinha. Luciana queria estar ali e sabia por quê. Cirino sorria de nervoso e esfregava uma mão na outra, sem saber o que fazer com elas. Olhou para Lu e num esforço enorme, conseguiu articular alguma coisa, em meio a um gaguejar engraçado. — Sinhazinha... Sinhazinha Lu sorriu e se aproximou de Cirino, pegando-lhe a mão. Cirino sentia-se a ponto de explodir e não conseguia reconhecer-se naquele homem que ali estava, naquela situação inimaginável. Talvez estivesse sonhando, pensava. Sem dizer uma palavra, Lu chegou bem perto de Cirino, acariciando-lhe o rosto. Cirino olhou em seus olhos e sentia-se como encantado. Aquela menina-mulher o enfeitiçava apenas com sua presença. Seu toque suave em seu rosto o transtornava de tão delicado calor. Sua mente perdia-se em si mesma e Cirino não sabia absolutamente o que fazer. Era como se fosse novamente uma criança diante de uma situação completamente nova. Sinhazinha Lu sentia aquele rosto ainda jovem, mas com alguma marca de sofrimento, de vida vivida no sacrifício e olhava naqueles olhos castanho-claros, quase verdes, e sem pensar sentiu um impulso que quase a arremessava em direção a Cirino. Tentava conter-se, mas não conseguia. Era como se fossem dois ímãs se atraindo de forma irresistível. Assim, foi aproximando-se cada vez mais de Cirino. Tão próxima estava, que seus lábios quase se tocavam. A respiração dos dois parecia não existir. Lu podia sentir o calor da pele de Cirino e Cirino já estava completamente perdido no perfume daquela pele jovem e linda, que mais parecia uma deusa em forma de menina.

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Num impulso mais forte, a razão acabou por perder-se de vez e os dois abraçaram-se, mergulhando num profundo e interminável beijo que os unia de forma apaixonada, sôfrega, louca. Todas as sensações pareciam ricochetear por todos os lados, vindas dos dois corpos querendo estar juntos, cada vez mais juntos, ocuparem o mesmo espaço. Os dois foram descendo lentamente, como se a perda de si mesmos os fundisse em um só ser, até chegarem ao chão, onde, ali, aos pés do belo cavalo de Sinhazinha Lu, entregaramse sem planos, sem reservas, sem pensar. Apenas os corações batendo em uníssono. O mundo não existia. O dia não existia. Nada mais existia, a não ser os dois amantes que fizeram daquela manhã uma inesquecível aurora no meio daquele imenso sertão. Os dois olhavam-se nos olhos e nada diziam, quando o sol do meio-dia começou a castigar-lhes a pele. Levantaram-se e vestiram-se, os dois um tanto envergonhados e com o pensamento a mil por hora, enquanto um aperto tomava lenta e inexoravelmente o coração de ambos. E agora? – Perguntavam-se, sem saberem a resposta. Queriamse, se amavam, mas a realidade era dura e teriam que curvar-se diante dela. Já vestidos, olharam-se mais uma vez, numa aflição que lhes transbordava dos olhos. Os dois não precisavam falar nada, pois sabiam exatamente o que o outro pensava. E foram angustiados que se abraçaram mais uma vez e mergulharam em mais um beijo prolongado com gosto de despedida; um beijo bandoleiro. — Ah, Cirino!... — Eu sei, sinhá Lu... — O que faremos? — Sei não... — Eu preciso voltar.

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Cirino fez que sim com a cabeça e baixou os olhos. Sinhazinha Lu subiu no cavalo e duas pequenas lágrimas escorreram de seus olhos. Então esporou o cavalo, que partiu levando-a para longe de um Cirino atordoado, mescla de felicidade e angústia. Cirino abaixou para pegar o chapéu, suspirando fundo e entrou em casa, como quem se mete num buraco para morrer, confuso e feliz.

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Quem mandou? A tarde estava findando e Manoelzinho andava de lá pra cá e de cá pra lá, sempre com muito cuidado para não ser descoberto, mas mesmo assim não conseguia encontrar Cirino. Mas onde diacho ele se meteu? — Pensava. Já começava a escurecer e ele ainda não desistira de buscar por Cirino, ali pelos lados da barragem, onde ele deveria estar, segundo o jagunço. Encontrara até a tal cerca solta, mas o homem não estava lá. O fato é que a noite se aproximava e ele começava a ficar preocupado. Tá certo que a lua ainda nem dera sinal em qualquer canto do céu, mas começava a pensar que deveria ter agido com mais cautela e não de forma tão impulsiva. Agora estava ali, sem conseguir encontrar aquele a quem se candidatava a ser parceiro de aventura e nem conseguiria voltar a tempo para casa. De qualquer forma, resolveu fuçar um pouco mais entre os espinheiros e no mato ao redor. Poderia ser que Cirino tivesse deitado, tirando um cochilo. Depois, pensou melhor e já estava escuro mesmo; melhor não ficar dando sopa por ali. O negócio era voltar o quanto antes. A ideia de dar de cara com o lobisomem o fez arrepiar-se todo e realmente começou a se achar um trouxa, um idiota, por ter ido atrás de Cirino. Começou a andar entre os espinheiros, tentando encontrar a estradinha. Vez ou outra, um espinho arranhavalhe a pele. Manoelzinho soltava uns gemidos e já começava a xingar os espinhos; iria chegar todo furado em casa; se é que chegaria em casa, pensava. De volta à estradinha, começou a andar a passos largos, pois a noite já caíra e logo a lua surgiria em algum ponto do horizonte. Estava difícil de ver o caminho porque não havia nem a luz da lua para ajudar, mas, de certa forma, ele preferia que não tivesse a lua, pois, mesmo com dificuldade para andar,

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pelo menos sabia que não teria nenhum encontro surpresa com o cachorro do capeta. Enquanto andava pela estradinha, ia pensando em sua mãe, suas coisas; eram poucas, mas tinha um apreço por tudo aquilo. Pensava no amigo Zeca, aconselhando-o a não levar aquele plano adiante, pois seria muito perigoso. Talvez devesse ter escutado Zeca, mas não. Tinha que provar que era valente tinha que se aventurar, pois era algo que ninguém faria. Será que era mesmo um arroubo de vaidade de sua parte? De orgulho, talvez? Estava com o pensar frenético e não conseguia definir nada, apenas lamentava-se por ser tão estúpido. Devia pelo menos fazer as coisas com mais cuidado. Como ir pro meio do sertão, sem levar pelo menos uma vela e fósforo? Que burro! Que burro! – Resmungava. Sentiu um arrepio ainda maior, quando, ao perceber que conseguia ver melhor a estrada, olhou para cima e viu a lua que acabara de surgir por cima das árvores. Agora, sim, estava mesmo lascado! Tinha que apressar-se o quanto pudesse, para evitar qualquer artimanha do capeta. Pisou num espinho e soltou um berro, caindo imediatamente no chão. Apalpou com cuidado o pé esquerdo e sentiu uma fisgada, quando esbarrou no pedaço de espinho que estava para fora da pele. O espinho tinha penetrado fundo e resolveu arrancá-lo de uma só vez. Deu um puxão e viu mais estrelas do que as que estavam sobre sua cabeça, luzindo o céu. Abafou o grito e seus olhos encheram-se de lágrimas que desceram enlameando sua face empoeirada de barro. Não podia berrar; tinha que levantar e andar como podia. Então se levantou e tentou dar um passo, mas a dor era muito grande; foi mancando pelo caminho. O desespero aumentava em seu íntimo e tentava ganhar velocidade, mas a dor o fazia desistir constantemente. Não conseguiria andar rápido mesmo. Fosse lá o que Deus quisesse, pois só mesmo se agarrando ao divino para conseguir sair dessa enrascada.

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A lua ia alta e Manoelzinho continuava caminhando com dificuldade. Sua coxa direita começava a ferver com o esforço e peso extras; e o desespero aumentava, enquanto Manoelzinho chorava em silêncio, soltando um ou outro soluço que lhe escapava pela boca. Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – Dizia baixinho como a pedir ajuda milagrosa naquele momento difícil. Pegando-o de surpresa, rasgou a noite violentamente, um uivo que lhe arrepiou todos os pelos da nuca e o fez entrar em total desespero; verdadeiro pânico. E mesmo com a dor, começou a quase correr. O sangue esvaía-lhe da ferida ainda mais, mas Manoelzinho nada queria saber, a não ser salvar-se daquele ser dos infernos que logo sentiria o cheiro de seu sangue e viria atrás dele. Dito e feito! Manoelzinho tentava correr como um animalzinho ferido e no meio do mato, ao lado da estradinha, já escutava algo se mexendo, como a acompanhar-lhe o trajeto. O pânico era emocionalmente ensurdecedor e Manoelzinho já nem pensava quem era, ou qualquer outra coisa. Em sua mente apenas uma palavra: socorro! Aquela coisa que o acompanhava, continuava pelo meio do mato. Pelo menos, por enquanto, ainda não tinha investido contra ele. O que será que passava pela cabeça daquele bicho? Mas então, o bicho começou a rosnar. Manoelzinho sentia tanto medo, que se podia dizer que sua alma tentava lhe escapar pela boca, mas não conseguia passagem através dos dentes cerrados pelo esforço e pelo pavor. Uma pedra. Uma pequenina pedra no caminho entrou ferida adentro e Manoelzinho foi direto com a cara ao chão, urrando de dor. Chorava e urrava, mescla de dor e medo, enquanto sua cara toda enlameada, contorcia-se entre choro, dor e terror, pois, neste exato momento, viu assomar por entre

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as folhagens uma sombra enorme, cujos olhos pare- ciam faiscar à luz da lua. Manoelzinho só conseguia balbuciar: — Não! Não! Meu Deus! Não! Mas o bicho continuou indo em sua direção, lentamente, como a saborear o desespero cada vez maior de Manoelzinho, que já beirava a loucura. O lobisomem chegava cada vez mais perto e seu hálito já invadia as narinas de menino. O bicho babava em sua sanha de terror e famigerado desejo de carne. O cachorrão então parou, como se algo tivesse atraído sua atenção. Olhou para o lado e ficou atento. Alguns segundos de um hiato quase interminável na mente de Manoelzinho que tentava pensar em alguma coisa, enquanto o bicho parecia distrair-se, mas o que? Ele não teve tempo de pensar, pois aqueles enormes olhos faiscantes estavam sobre ele novamente. E sem que Manoelzinho tivesse tempo para um último suspiro, sentiu os dentes sufocarem sua garganta, entre o aperto das poderosas mandíbulas do bicho e o líquido salgado que encheu sua boca e sua garganta. Tudo ficou vermelho na visão fugidia do garoto que desfalecia ante o ataque do bicho. Sua última sensação era de que seu corpo estava balançando; o animal sacudia-o violentamente, destroçando carne e destrinchando os ossos do pescoço do menino. A noite estava em silêncio e nem os bichos faziam mais barulho. Ouvia-se apenas o mastigar e estalar de ossos. O tempo parara e agora, tomava movimento novamente. A lua estava chegando à altura da serra, quando o silêncio se fez completo. Não havia mais dor; não havia mais medo.... Apenas o silêncio.

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Tragédia Amanheceu como todos os dias. Aquele sol quente já pela manhã, avisava a que veio e o que reservava para o resto do dia. Cirino acordou cedo e saiu de casa, olhando o céu e aquele mundão de sertão. Tinha que ir trabalhar, pois deixara de ir no dia anterior. Se vacilasse muito, acabaria perdendo aquela oportunidade que fizera a maior diferença em seu orçamento. Não conseguia tirar sinhazinha Lu de sua cabeça e, por mais que soubesse que era melhor evitar vê-la pela fazenda de coronel Terêncio, seu coração saltava dentro do peito com a possibilidade de um encontro fortuito. Entrou na cozinha e pegou um saco de milho, misturado com farelos de pão e restos de cascas de legumes e frutas, e foi jogar para as galinhas, que vendo a aproximação de Cirino, vieram todas serelepes. Cirino jogou a mistura e as galinhas avançaram, umas até brigando com as outras por esta ou aquela casca, mesmo que ao redor tivessem outras tantas. Cirino que se ria todo com estas briguinhas das galinhas, hoje estava sério; o coração não deixava. Enquanto as galinhas comiam e disputavam os restos, Cirino aproveitou para ver como estava a postura. Voltou com um cesto de palha cheio de ovos. Bom sinal! Poderia trocar na venda ou comer ele mesmo, mas depois pensaria nisso. Deixou o cesto em cima da mesinha velha, acomodou a lenha no fogão, acendeu e colocou o café para requentar junto com uns pedaços de pão que sobraram do dia anterior. Enquanto o café requentava e o pão aquecia, acendeu um cigarrinho de palha e pôs-se a fumar. Olhava a natureza lá fora, através da porta. Era como um quadro em pé, mas tão cheio de vida, que nenhum quadro jamais poderia retratar daquele jeito. Lembrou-se da infância quando sua mãe lhe preparava o café

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mirrado com algum pedaço de pão, ou carne seca que ficava pendurada perto do fogão a lenha, exatamente como Cirino fazia. Cirino se apegava a estas lembranças com muita força, por isso evitava mudar a forma das coisas; talvez facilitasse lembrar-se de sua mãe e de seus tempos de menino que sabia não voltavam mais. As risadas gostosas de seu avô, homem sério, mas também de um chamego com o neto que só vendo! Era severo no educar, mas sabia ser carinhoso — até demais! —, quando olhava para Cirino, como que pensasse em algo distante e um semblante triste; seguia-se de um afago, um abraço e um: — Vá bulir com o mundo, vá, moleque! Como a incitar em Cirino, as brincadeiras que as crianças tinham para com o nada a fazer e a despreocupação como só a infância permite em seu inocente interlúdio. Cirino gostava de recordar de seu avô e lamentava que, por mais que tentasse preservar as lembranças, era como se elas fossem que nem tinta, que vai perdendo a cor com o tempo. A não ser quando sonhava. Ah! Quando sonhava, sim! Aí, era muito bom! Todas as imagens vinham claras, como se Cirino estivesse vivendo tudo naquele momento. Essa nostalgia toda ampliava a dor de estar longe de sinhazinha Lu e com a quase certeza de que nunca mais se tocariam novamente. Cirino despertou de seu cismar com o barulho do café fervendo. Levantou-se da cadeira e foi até o fogão. O pão começava a ficar com as bordas pretas. Mas não importava; Cirino até gostava deles assim, quase queimados. O queimadinho, segundo Cirino conversava consigo mesmo, dava um sabor especial ao pão; um azedinho que fazia toda a diferença. Pegou uma colherzinha de manteiga e passou no pão, que a sorveu rapidamente. E logo estava mastigando e tomando o café com muito cuidado, pois era mestre em queimar a língua e ficar com aquela sensação de que tem um papel grudando na ponta.

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Estava ali, tomando café, quando seu compadre chega na porta. — ‘Dia, Cirino! Cirino toma um susto danado e chega a derrubar um pouco do café na mão, quase largando tudo. Quase que um pedaço de pão fica entalado na garganta. Cirino dá duas tossidas e torna a engolir, dessa vez desce direto para o estômago. —Eita, homi! Qué me matá de susto, chegando assim na tocaia? Bom dia! — Eia! Desculpe, compadre! Não foi por querê. Mas tá tudo bem c’ocê? Se assustando assim, inté parece que tá esperando arguma coisa. — Tá tudo bem. Só me assustei, só isso! Mas diga lá, o que traz ocê por essas banda, assim tão cedo? O sol acabô de nascê! — Sabe quê que é? É que a cidade tá em polvorosa. — Mas qual que foi o acontecido? — Acontece que Manoelzinho, de Josefina, disse para a mãe que estaria na casa de seu amigo Zeca, fio do Teodoro, mas sua mãe foi inté lá onti à noite e o menino num tava lá, intonce ela e D. Maria, mãe de Zeca, atocharam o menino Zeca e ele acabô dando com a língua nos dente, dizendo que Manoelzinho foi atrás d’ocê, nas terras do coroné Terenço. — Ué?! Mas eu num fui trabalhá ontem. — Então que a coisa tá feia, compadre! Estão tudo doido atrás do menino e nada de achá! Já tão pensando que o lobisome pegô ele. — Que isso, compadre? Vire essa boca pra lá! Logo acham o menino e fica tudo bem. Eu vô agora memo pra fazenda do coroné e lá pergunto se viram esse moleque por lá.

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— Ih, compadre! O povo todo já tá por aquelas banda, atrás do menino. E eu também tô indo. Só num tô lá, porque vim falá c’ocê. —Mas então vamo pra lá, que é pra mode de ajudá a encontrá esse moleque. Veja só se é possível! Anteonte mesmo dei um carão nele, porque ele tava atrás de mim, quando fui na casa de D. Cambinda. — Ah! E ocê foi lá então? — E num fui? — Então me conta isso, compadre! Como foi que se assucedero as coisa lá? — Vamo andando, que no caminho eu vô contando tudo pr’ocê. Então, os dois foram seguindo e Cirino pôs-se a contar tudo o que lhe ocorrera na visita à preta velha. O compadre escutava tudo e, de vez em quando, soltava um “Ah!” ou um “Mas é?” e Cirino confirmava com outro “Mas num tô dizendo?”. Assim os dois foram conversando e Cirino tentando contar os detalhes, mesmo que toda a experiência tivesse sido confusa. Mas assim mesmo, Cirino tentava e contava lá do seu jeito. Compadre Zé ficava cada vez mais impressionado e pedia para ver o tal cordão com a medalha pendurada. Cirino mostrava e daqui a pouco ele pedia para ver novamente, como a comprovar e comprovar repetidas vezes a história. No meio da estrada encontraram com um moleque da cidade, que vinha correndo que nem um desesperado. Após pararem o menino, perguntaram o que estava acontecendo e porque ele estava com tanta pressa. Foi então que uma nuvem negra caiu sobre a cabeça dos dois, gelando o estômago e deixando-os sem saber o que dizer. A mensagem que o menino levava era mais do que triste e beirava o pior desfecho, que a história das invencionices e planos de Manoelzinho poderia ter.

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Cirino e Zé ficaram sabendo naquele momento, que os empregados e o povo que ia a frente, encontraram o menino morto, já frio e duro. Ou melhor, os pedaços do menino, pois este fora dilacerado pelo bicho. Seus pensamentos perambularam por vários cantos quase inexplorados de suas mentes, sem saber onde pousar. De uma sensação de estar perdido, Cirino foi mudando e suas emoções borbulhando e subindo, como leite que ferve na panela até que os sentimentos confusos apertassem seu peito, uma lágrima assomasse seus olhos, traduzindo a enorme culpa que o tomava de corpo inteiro. Cirino levou as mãos ao rosto e chorou. Compadre Zé, ainda estático com a notícia, não se movia e não sabia o que pensar, o que fazer. Cirino estava ao seu lado e era como se não estivesse. Para Cirino se dava o mesmo, com o agravante de que se culpava por tudo aquilo. Afinal de contas, fora ele quem contara ao menino a história toda, como realmente tinha acontecido com ele, preocupando-se ainda, em colorir bem cada detalhe da aventura, para impressionar o menino, como uma forma de satisfazer aquela ânsia infantil por boas histórias. Sentia-se culpado por isso, pois se não fosse ele, pensava, o menino jamais teria colocado na cabeça a ideia de segui-lo na empreitada de enfrentar o lobisomem. Tudo isso passava pela cabeça de Cirino como num turbilhão, indo e voltando várias vezes, como a alimentar-se de sua alma. Zé, acordando de repente de seu choque inicial, percebeu o estado de Cirino, que, entre lágrimas e soluços, o deixou perplexo. Abaixou-se e abraçando o amigo, ajudou-o a levantar, pois Cirino tinha se encolhido e já estava sentado no chão de terra. Zé não entendia o porquê daquela reação do amigo, não sabia que Cirino tinha tanto apreço pelo menino Manoelzinho. E simplesmente não sabia o que fazer diante daquela situação inesperada e inusitada.

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— Vamo homi... Erh... Vamo. A gente precisa sê forte, pra dá força pra família. Cirino respirou fundo, limpando o rosto cheio de lágrimas. Por uns instantes, permaneceu olhando para o chão, como se recobrasse o equilíbrio. Então, olhando para o céu, sentiu uma força monumental subir-lhe pelo peito e empertigando o pescoço, soltou um berro. — Aaaaaaaaaaaaaah! Mardito cão dos infernos! Sou eu agora é que vô atrás d’ocê e num vô sussegá, inté que tua sanha se finde na ponta de minha peixeira! Zé assustou-se com a inesperada reação de Cirino e, embora achasse aquilo uma maluquice sem tamanho, achou melhor não dizer nada, pois sentia que Cirino precisava desabafar. Cirino olhava em direção ao sol, como se quisesse cegar o próprio sol. Seus olhos ardiam, entre os restos de lágrimas e a revolta contra toda aquela situação da qual se considerava culpado. Para ele, enfrentar o lobisomem era uma questão de honra, a partir daquele momento. Se o bicho não viesse atrás dele, ele iria atrás do bicho. — Eu vô atrás d’ocê, seu fio do capeta! Fio dum rato! Neste instante, estranhamente, viu surgir em sua mente a imagem do índio, que o olhava meneando a cabeça afirmativamente, como se os dois acontecimentos se cruzassem ali naquele momento. Então, Cirino entendeu. Agora ele sabia, que aquele era seu destino. Ou ele matava o maldito do lobisomem, ou morreria junto com ele. Mas o bicho não sairia vivo de jeito nenhum. Acabara de ganhar e perder a pessoa que mais amava, sem ter como lutar por ela.

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Só podia ser que seu destino fosse bater-se com o cão do capeta e não poderia amar ninguém; estava proibido. Aceitava a sina e iria mostrar que faria o que Deus achasse que ele devesse fazer. Não importava se entendia ou não os propósitos dos céus, mas, já que era assim, não reclamaria; faria sua parte. Agarrou a medalha na palma da mão, como a invocar um poder sobrenatural, que Cirino não sabia o que era, nem de onde vinha, mas sabia que teria forças para enfrentar o bicho, quando o encontrasse novamente. Cirino estava firme em sua própria pele. Cirino tinha toda a certeza do mundo. Cirino, finalmente, tinha fé.

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Caixão de Criança Um sentimento pesado e arrastado consumia a cidade envolta em lágrimas disfarçadas e uma revolta silenciosa em alguns lugares e resmunguenta em outras. As pessoas iam e vinham muito pouco, na necessidade de ir e vir do dia a dia e mais nada. Não havia ânimo para diversão. As crianças, consternadas pela morte de Manoelzinho, mesmo que não fossem tão chegadas a ele, sentiam um medo primevo agitar-se em seus íntimos; todos tinham medo de encontrar o lobisomem e este era o assunto mais discutido entre os moleques mais corajosos, que aqui e acolá jogavam bola de gude ou atiravam peões, ousadamente desafiando os olhares de censura das mães mais severas que impunham luto aos filhos em respeito a D. Josefina. O medo circulava no ar, feito pipa divertida ao vento assanhado. As pessoas tentavam mostrar certa altivez, ou mesmo um pouco de sensatez no caso, mas a verdade é que estavam todos tomados pelo medo do tal cachorro que viera direto dos infernos, quem sabe talvez pelas mãos do próprio capeta, para assombrar aquela gente. Alguns até se perguntavam o que aquela cidade fizera para merecer tal maldição. Alguns já começavam a olhar torto para a casa vermelha, como se toda a culpa viesse das pobres putinhas, que divertiam os homens mais afogueados e escutavam aqueles cheios de sentimentos tristes e que nada mais precisavam do que um ombro feminino, em sua busca maternal de consolo, o que as meninas sempre faziam muito bem, talvez por não terem a rigidez das que se intitulavam mulheres de respeito. Mas o caso é que começavam a culpá-las da maldição. Alguns se atreviam a comentar que Deus consentira que o diabo enviasse este tormento, para castigá-los, por

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permitirem estas saliências e atitudes afrontosamente pecaminosas. Outros riam destas afirmações, criando certo ódio contido e até comentários de que estariam metidos com “aquelas donas”. O prefeito Severo Souza estava acostumado a estas contendas e não se preocupava muito com a falação dos carolas de plantão, acalmando os ânimos e preocupações que passavam pelas cabeças das meninas da vida, que, aliás, eram muito suas amigas, visto que o prefeito era assíduo frequentador da casa vermelha. Claro que isso era feito sempre dentro de todas as conveniências necessárias para que não explodisse qualquer escândalo. Afinal de contas, ele era casado e pai de família, além de ser o prefeito da cidade que mais era um vilarejo mesmo. Mas nem por isso menos cheia de costumes e conveniências sociais. A história de lobisomem o estava preocupando, pois há quase quinze anos surgira a tal lenda, mas sem grandes problemas. Agora, era a primeira vez que morria um menino conhecido e filho de um empregado da prefeitura. Algo precisava ser feito, mas o quê? E como? Tinha um grande respeito pelo coronel Terêncio e, embora as coisas se dessem em sua fazenda, era preciso muito tato para lidar com a situação, pois sabia muito bem como Terêncio era autoritário e mandava muito mais na cidade do que ele próprio, apesar de os dois pertencerem a famílias igualmente poderosas. Além do mais, Terêncio não era mesmo de dar intimidades para ninguém; sua vida era um mistério para as pessoas do lugar e ninguém bulia com isso, afinal ele era o coronel Terêncio. Assim como o prefeito, todos andavam preocupados com a situação perigosa nas terras de Terêncio e alguns já diziam que o coronel precisava dar um jeito naquilo de uma vez por todas, pois não era possível que aquele bicho maldito continuasse matando as pessoas, sobretudo uma criança.

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Os ânimos exaltados eram um reflexo da também tristeza da família de dona Josefina. D. Josefina não conseguia parar de chorar e foi assim que seu compadre acabou por acertar o enterro para aquela tarde, vendo que a comadre não tinha a menor condição. João se assustara com o que sobrara do menino. O velório teria que ser de caixão fechado e aconteceria no auditório da igreja, pois padre Eustáquio fez questão que assim fosse. O menino precisava ser abençoado antes de voltar ao pó. Cirino chegou à cidade em meio a olhares misteriosos das pessoas. Não conseguia entender o que se passava por trás daqueles olhares enigmáticos. Será que o culpavam? Talvez a história que se espalhara levasse a culpa diretamente sobre Cirino, pois não fossem terem acontecido as coisas como aconteceram, Cirino não passaria a ser visto como uma espécie de herói pelas crianças que o olhavam até com certa admiração. Será? – Pensava. Cirino seguia andando meio sem jeito, incomodado por estes pensamentos. Estava indo à casa de dona Josefina dar os pêsames pela tragédia. Sentia-se mesmo culpado por tudo e aceitava que o povo jogasse a culpa sobre ele, se assim fosse. Mas precisava fazer uma promessa à dona Josefina; promessa que ele incorporou a partir do momento em que soube da notícia, naquele mesmo momento em que caminhava com o compadre Zeca e chegou o menino com a miserável notícia. Tudo começara com ele e teria que terminar com ele, mesmo que lhe custasse a vida. Chegou-se à porta da casa de dona Josefina e nem precisou bater, pois esta estava aberta e dona Josefina recebia os pêsames do prefeito, que acabara de chegar. Ao ver Cirino de pé à sua porta, parou por um instante, olhando-o nos olhos. Todos olharam para Cirino, que se sentiu mal no mesmo instante. Simplesmente não sabia o que saltaria de trás daqueles olhos cheios de dor. No mais, ao perceberem que dona Josefina

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olhava para Cirino, todos também voltaram suas vistas para ele. Cirino, sem forças para suportas tantos olhos sobre si, baixou o cenho, triste e envergonhado, exatamente quando o silêncio foi quebrado. — Entre, Seu Cirino. Faça o favô. Cirino entrou e pegou a mão de dona Josefina, que estava estendida para ele. Beijou as costas de sua mão e já ia dizer algo, quando dona Josefina fez sinal para que ele esperasse. D. Josefina chamou Leandra, sua sobrinha, e pediu que ela trouxesse um café para Seu Cirino. Cirino continuava sem saber direito de que forma se comportar. Nada estava muito claro e Cirino sentia-se pronto para uma crucificação, caso isso se desse. Mas Leandra trouxe o café e Josefina pediu que Cirino e o prefeito se sentassem, pois, este levantara com a chegada de Cirino. Os dois trocaram olhares, enquanto Josefina baixava os olhos, como quem busca as palavras certas. E, um tanto nervoso, foi com surpresa que Cirino ouviu a voz de dona Josefina sair um tanto suave e serena. Pareceu-lhe a voz de uma pessoa cansada e calma que falava pausadamente, causando certa inquietação ao seu espírito perdido e sambando dentro de seu corpo. — Seu Cirino... Meu fio admirava o sinhô por demais... Ele foi atrás do lobisome, porque queria sê igual ao sinhô e ajudá a pegá o bicho. — A sinhora me perdoe, dona Josefina... Josefina fez novamente sinal, pedindo que Cirino esperasse. Cirino tinha vontade de cavar um buraco e se enterrar ali mesmo, tamanha era a vergonha que sentia de toda aquela situação que a seu ver fora ele mesmo quem causara. Sentia-se culpado, por ter contado a história recheada de detalhes.

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— O sinhô sabe como é criança... Quero dizê pro sinhô, que o sinhô não tem curpa de nada. Manoelzinho foi porque quando botava um troço na cabeça, não tinha quem tirasse. Ele lhe tinha como um grande amigo e por isso inventô de ir ajudá o sinhô. Cirino sentiu um pinguinho de alívio. Mas só um pinguinho mesmo; ainda estava tenso demais e por mais que ela o redimisse da culpa, não se sentia de fato redimido. De alguma forma tudo aquilo não se daria, caso ele não estimulasse o moleque com seus detalhes, com sua preocupação de contar sua versão, e ao mesmo tempo divertir o garoto. Sentia que não deveria ter feito isso; devia ter deixado as coisas como estavam. — Por favô, Seu Cirino. Tudo que eu lhe quero é bem, num sabe? O sinhô foi alguém que escapô desse bicho duas vez. Talvez a virgi o esteja protegendo. Num sei o que isso qué dizê, mas vai vê ela tem algum prano pro sinhô. Mas, por favô, tome cuidado. Era o que Cirino precisava ouvir, para tomar coragem e dizer o que tinha para dizer quando foi até a casa de D. Josefina. Sentiu sua responsabilidade crescer e subir queimando, juntamente com a culpa, através de seu íntimo, num compromisso que lhe sairia pela boca, nem que ele não quisesse. — D. Josefina, eu vim aqui para lhe dá os pêsame pela tragédia com seu fio, mas também vim dizê pra senhora, que eu me curpo pelo acontecido, sim sinhora. E vou lhe fazê uma promessa, aproveitando a presença do Seu Prefeito, para atestá o compromisso que eu assumo a partir desse momento.

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Todos olhavam para Cirino, tentando imaginar o que viria daquela boca. Eram cinco pessoas na salinha de dona Josefina. Sua sobrinha, sua irmã, seu José da padaria, D. Jandira, sua vizinha, entre ela e o prefeito, que estavam ali, de “butuca” em cima de Cirino, esperando e sem entender bem o que ele estava querendo dizer. Cirino, depois de uma pausa, continuou. — Eu quero dizê pra senhora, que eu já me aperreei por demais com esse cão do capeta. Pra mim chegô nos limites. Quero dizê, que depois do acontecido com seu fio, arresorvi que num vô mais ficá esperando o bicho vir me pegá. Eu vô enfrentá o cramulhão, dona Josefina, nem que isso custe minha vida. Mas lhe agaranto uma coisa: se eu tivé que morrê, eu levo o desgraçado comigo! A cara de espanto era geral. Todos na sala estavam estupefatos e sem saber o que pensar, pois a afirmação de Cirino pegara todos de surpresa. Esperavam palavras como desculpas, mas aquele tipo de coisa era algo extremamente absurdo. Cirino não devia estar regulando bem da cachola. O prefeito, sentindose como o único com autoridade ali, naquele momento, tomou por bem quebrar o espanto geral, trazendo Cirino de volta à razão. Então, rapidamente respirou fundo e retorquiu: — Que isso, Seu Cirino? O senhor está louco? Então vai querer bater de frente com essa assombração que já levou outras vidas. Pra quê? Para ele levar mais a sua? Por favor, não faça isso, homem. Não tem precisão. — Tem sim, Seu Prefeito. O bicho cismô comigo e deve de tê pego o menino porque ele cruzou seu caminho, quando sua sanha tava virada pra mim. Já tá decidido, Seu Prefeito. Tá feita minha promessa, dona Josefina. Eu vô atrás do ‘coisa ruim’, custe o que custá.

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Todos tentaram dissuadir Cirino deste tento, mas de nada adiantou. Cirino estava mesmo decidido a levar o plano adiante. Agradeceu pelo café, dizendo que fazia questão de estar no enterro, mas que ficaria de longe, pois estava muito cismado com tudo aquilo e não estava pra conversê do povo. Pediu desculpas por isso, mas que estaria lá, vendo de longe o enterro, que estava marcado para cinco da tarde. Todos ficaram ali, com cara de tacho. Para a maioria, Cirino estava louco. Para o restante, além de louco, poderia ser considerado um futuro defunto. Se o padre também estivesse ali, estaria lamentando mais uma alma, que em breve estaria perdida para o capeta. A cidade em peso compareceu ao enterro. O cortejo formava uma enorme lagarta preta pela rua central do vilarejo. Não havia cantoria, mas ouvia-se a reza sibilando baixinho e insistente. Na cabeça do cortejo ia Josefina, chorando e sendo consolada. O cortejo passou pela pracinha e foi subindo em direção ao morro, no topo do qual estava o pequeno cemitério. O padre ia à frente, carregando um incensário, que espalhava o odor forte de incenso pelo ar, despertando o respeito através de uma cerimônia, que o padre insistia em manter e que, a bem da verdade, o povo estranharia a falta, caso não se fizesse dentro dos conformes. Apesar de o padre estar sentido com a situação excepcional da morte de uma criança em condições tão brutais, utilizava-se disso para fazer com que o povo se voltasse mais para a Igreja; oportunamente era o momento para resgatar os fiéis que andavam sumidos das missas aos domingos. Talvez, com a ameaça agora clara do tal bicho, o povo sensibilizado voltasse sua vida para Deus novamente e com mais fé. O cortejo adentrou o cemitério e as pessoas circularam a cova, onde o caixão humilde seria baixado.

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Mais além do muro do cemitério, entre as árvores de um enorme mangueiral, Cirino observava tudo. Era pungido por um sentimento sem definição que acompanhava o caixão ser baixado à cova, enquanto o padre balançava o incensário e as pessoas se amontoavam e cantavam. Pôde ver Josefina entre a turba, chorando e sendo consolada por algumas outras pessoas. Lentamente, Cirino foi voltando-se para as árvores e dando as costas para aquilo tudo. O semblante impávido não deixava passar nenhum pensamento que permitisse transparecer como estava o coração de Cirino naquele instante. Poderia dizer-se que era ódio, tristeza ou qualquer outra coisa, mas a verdade era que seu rosto dizia nada e Cirino nada tinha mesmo para dizer, depois de ver o caixão de criança descer até o fundo da cova que começava a ser tapada. Seus olhos encheram de lágrimas que correram pouco por sua face à medida que se lembrava de momentos que teve com o menino, seu amigo. Talvez ele próprio acabasse daquela forma, mas não queria pensar nisso. Só sabia de uma coisa: pegaria o bicho e o mandaria de volta para as profundezas do inferno, mesmo que ainda não soubesse como.

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Caça e Caçador De alguma forma, durante aquela semana, apesar de ser lua cheia, não se teve nenhuma notícia do lobisomem. Cirino andava atento e só ia dormir altas horas da noite, pois queria estar pronto, caso o bicho resolvesse dar as fuças. Mas teve que se conformar com a misteriosa desaparição do dito cujo. A lua já entrava em quarto minguante e isso significava que teria que esperar o próximo mês. De certa forma, parte de Cirino preferia assim, pois teria mais tempo para elaborar algum plano, caso isso fosse realmente possível, levando-se em consideração que o sobrenatural tinha lá seus mistérios, o que dificultava bastante o traçado de alguma tática de ação, para pegar o bicho. No mais, será que era possível realmente pegar o tal bicho? – Pensava. Teria mesmo que descobrir na prática, pois não havia outro jeito. Aproveitou o tempo para ir recolocar os arames do cercado, que haviam se soltado desde a vez em que esteve consertando tudo para o coronel Terêncio. Trabalho feito de forma rápida e sem mais dificuldades. Na fazenda, todos notavam que havia algo de diferente em Cirino. A história de que ele prometera à mãe do falecido menino, pegar o lobisomem, já chegara até os ouvidos dos jagunços e do povo em geral que trabalhava na fazenda de Terêncio. O próprio Terêncio já tomara conhecimento do caso e, embora nada dissesse, algo parecia o estar incomodando nisso tudo. E foi pensando a respeito disso que mandou chamar Cirino para poder ter com ele uma prosa. Cirino era ainda o Cirino de sempre, com seu jeito meio quieto e sem saber como lidar direito com as pessoas poderosa; assim permanecia sem saber como se comportar, estando mesmo muito incomodado na presença do coronel.

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— Pois não, seu coroné. O sinhô mandô me chamá? — Mandei sim, Seu Cirino. Fiquei sabendo que o senhor andou fazendo promessas descabidas por aí, de pegar o tal do lobisomem. — Não sinhô, seu coroné. — Não? — Não sinhô. Eu só prometi a D. Josefina e a mais ninguém. — Pois então, o senhor prometeu, ora bolas! — Só pra ela. — E de onde o senhor tirou essa ideia de jerico, de que vai matar o tal bicho? Não bastou aquele encontro de onde o senhor saiu todo lascado, sabe-se lá como, mas com vida? De que forma o senhor acha que tem mais chances dessa vez? — Olha, seu coroné... Eu sei que o sinhô não acredita nas besteirada desse povo, mas depois de tudo o que assucedeu comigo, andei pensando sobre muitas coisas, num sabe? E vô dá lá meu jeito, pra mode de enfrentá o bicho. — O senhor não tem medo, Seu Cirino? Afinal, o bicho pode levar o senhor direto para os infernos. — Seu coroné, sabe, eu inté tenho. Mas vô lhe dizê uma coisa. Depois que o bicho foi atrás de mim, lá na minha casinha, percebi que num vô tê descanso, inté um dos dois morrê. — E o senhor não viu a desgraceira que ele aprontou com o pobre do menino? Não acha que ele é capaz de fazer o mesmo com o senhor? Cirino olhou para o coronel com os olhos faiscando ao lembrar do pobre menino e toda aquela tristeza na cidade. Como se uma coragem sem tamanho subisse por suas entranhas, falou com toda a segurança do mundo.

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— Ele inté pode fazê, seu coroné, mas eu levo ele junto comigo. Depois do acontecido, as coisas não podiam ficá do jeito que tavam. Eu ia me intocá e o bicho ia continuá as disgracera por aí e na minha sombra, me espreitando. Aquilo me arrevortô, seu coroné. Pra mim chega! Ou eu mato o bicho, ou os dois vão pro inferno junto. O coronel meneou a cabeça, pensativo. Reconhecia que as coisas tinham mesmo chegado a um ponto quase insustentável e algo precisaria ser feito. De certa forma, Cirino acabou falando para o coronel, mesmo que de forma indireta, tudo o que o povo comentava e que precisava ser dito a ele, deixando o coronel mais do que pensativo, sentindo-se na obrigação de fazer algo a respeito. Foi então que resolveu ter parte com isso. — Muito bem, Seu Cirino. Se o senhor vai enfrentar o bicho de qualquer forma, me deixe colocar um de meus jagunços te ajudando, quando o senhor for se embrenhar por esse mato, atrás do ‘coisa ruim’. — Toda ajuda é bem-vinda, seu coroné. Mas eu num gostaria de vê outra pessoa morrê, vítima da sanha do bicho. Prefiro que o sinhô me deixe fazê o serviço sozinho. — O que eu não posso, Seu Cirino, é deixar que o senhor se mate nesse tento, sem tentar ajudá-lo a resolver o assunto. Ainda mais que esse bicho anda causando esta desgraceira nas minhas terras. Juvenal vai com você, quando o senhor for se meter com o danado. E não aceito não como resposta. O senhor não vai querer me fazer uma desfeita, não é mesmo? Cirino sentiu um calafrio diante da autoridade e da voz dura do coronel. Toda a segurança de sua voz sumiu num instante e ele voltou a ser o Cirino de sempre.

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— N... Não sinhô, s-seu coroné! Como eu disse, qualquer ajuda é bem-vinda, sim sinhô. Pode avisá seu Juvenar, que vô tê muito prazê de tê sua ajuda. — Pois então, está combinado. O senhor pode ir. Quando estiver perto da lua cheia, mando Juvenal procurá-lo, para vocês acertarem o plano. — Tá certo, seu coroné. Muito agradecido, viu? Com sua licença. Cirino saiu dali sem entender muito aquele conversê do coronel, mas de qualquer forma melhor seria ter ajuda de um dos jagunços que eram sempre experientes no trato de situações mais duras e difíceis, sem contar que eles sempre andavam armados, sendo realmente uma grande vantagem; não seria apenas Cirino com sua arma velha e enferrujada, mas ele e Juvenal que também estaria com sua espingarda. Cirino se animou com a melhoria das chances na peleja. Ficou ali pela fazenda, zanzando e fazendo pequenos trabalhos, ou mesmo sem fazer nada, só pensando e tentando arquitetar um plano. Mas sua cabeça estava mesmo muito vazia e não conseguia fazer nada saltar de dentro da cachola. No fim da tarde, voltou para casa e cuidou de sua vida. Nada como as coisas ordinárias, para descansar um pouco a mente, depois de tanta tensão dos últimos dias. Alimentou as galinhas e tentou não mais pensar a respeito do bicho; merecia um descanso mental daquilo tudo dos últimos dias. Naquela noite, enquanto dormia, Cirino sonhou com o tal índio da experiência que teve na casa de D. Cambinda. O índio lhe mostrava umas ervas e dizia que aquilo dificultaria a aproximação do lobisomem. Não evitaria o ataque, mas o bicho não conseguiria ficar muito próximo, pois o cheiro da planta o deixava louco de queimação nas narinas. Portanto, Cirino deveria fazer um preparado com essa erva que ele encontraria

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num determinado local, perto de um rio que mostrou a Cirino no sonho. O índio ensinou todo o preparo da erva a Cirino. Ainda no sonho Cirino novamente viu as coisas se embaralharem e logo não estava mais com o índio, mas na beira de um rio onde via novamente sinhazinha Lu, de pé, sorrindo e estendendo a mão para ele. Aquela visão o fazia sentir-se bobo, feito criança, e tudo o que queria naquele momento, era beijá-la. Sinhazinha Lu, como se lesse seus pensamentos, foi em sua direção. E no momento que seus lábios se tocaram, Cirino abriu os olhos. Estava em sua casa, deitado na rede. Um sentimento de decepção assolou seu íntimo, enquanto uma paixão louca lhe queimava o peito. Cirino ainda fantasiou durante algum tempo com a possibilidade de um dia casar com sinhazinha Lu, mas logo sua razão foi voltando e ele novamente se deu conta da ilusão de suas fantasias. Num impulso, saltou da cama e foi até a porta da cozinha, pensando que eles jamais poderiam ficar juntos, pois Cirino era um ninguém, enquanto ela era filha do coronel. Meneou a cabeça quando considerou absurdo toda aquela fantasia. Até parece que sinhazinha Lu iria olhar diferente para Cirino. Ora, era memo um abestado! – Pensava. Novamente, Cirino sentiu-se pequeno, um nada. Estava ali, abando- nado, com um bicho do capeta atrás dele e sonhando com fantasias sem pé nem cabeça que nunca poderiam ser concretizadas. Virou-se para o lado e custou a dormir novamente, com as imagens de sinhazinha Lu indo e vindo em sua mente e sentindo-se extremamente só. Por fim, a noite acabou vencendo, mergulhando-o num dormir profundo e sem mais sonhos. Talvez fosse melhor assim. ***

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O mês foi passando e Cirino pouca coisa fazia. Não sonhara mais com o índio, mas fez questão de ir até o rio, e buscar a tal erva do sonho. Encontrou-a exatamente onde vira no sonho. Voltou para casa e deixou a erva secar sobre o fogão a lenha, como o índio lhe havia mostrado no sonho. De acordo com o que o índio dissera, estaria pronta para ser preparada um dia antes da lua cheia. Seu compadre Zé fora visitá-lo neste dia, pois queria tentar dissuadi-lo de seu plano de enfrentar o lobisomem, mas de nada adiantou que Zé usasse todos os motivos que, pensou, poderiam fazer com que Cirino voltasse à razão, pois pensava que Cirino estava tão fora de si com a ideia absurda de enfrentar um bicho do além, que só Deus poderia fazer algo a respeito. Afinal, quem Cirino pensava que era para poder enfrentar o maldito? Só poderia estar mesmo com o miolo mole. No entanto, Cirino não arredou pé e manteve-se irredutível. Zé viu todos os seus argumentos serem derrubados um a um e já considerava seu compadre um futuro morto. Zé tinha Cirino como seu grande amigo e, por mais que tivesse medo dessas coisas, não poderia deixar Cirino enfrentar o bicho e morrer num momento difícil sem ajuda. Cirino falaralhe da ajuda que o coronel praticamente enfiou-lhe goela abaixo, convocando Juvenal para acompanhá-lo na “caçada”. Isso diminuía um pouco a preocupação de Zé, mas não a eliminava. No mais, Zé sentia-se traindo a amizade de seu grande amigo, não o ajudando no que pudesse para que este tivesse pelo menos alguma chance de sair vivo. Cirino recebeu a ideia de forma muito ruim. Jamais! Jamais deixaria que Zé se metesse numa coisa dessas! Zé tinha sua filha, afilhada de Cirino, Marianinha, que em breve voltaria da capital. Imagina como seria para a menina chegar à sua casa e saber que seu pai morrera nas garras do capeta! Não, não e não! Cirino não podia nem imaginar tal coisa. E disse que Zé

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deveria largar mão daquela ideia. No mais, não queria mais esta culpa em suas costas; bastava a morte de Manoelzinho. Zé saiu de lá um tanto contrariado. Realmente queria ajudar o amigo, por mais que se pelasse todo de medo dessas coisas sobrenaturais. Mas Cirino fora enfático e até mesmo rude ao dispensar sua ajuda. Não havia mesmo jeito. Cirino iria direto ao encontro do bicho, do jeito que o lobisomem queria e não havia ninguém capaz de fazê-lo mudar de ideia. Nem sua ajuda ele aceitara. Pelo menos havia Juvenal na história, o que de forma nenhuma diminuía a loucura de tal tento, pensava Zé. Talvez, se Marianinha estivesse ali, tendo o respeito que Cirino tinha por sua afilhada, a um pedido dela talvez ele desistisse. Mas Marianinha só voltaria no próximo ano. Precisava fazer alguma coisa, mas o quê? Zé estava interditado em si mesmo. Assim, chegou o primeiro dia em que a lua estaria entrando em sua fase completa, redonda que nem uma bola iluminada; um sinal para que as pessoas não perambulassem completamente cegas pela escuridão, mas também o prenúncio de que certa entidade maligna estaria perambulando pelo mato e pelas estradas abandonadas — algumas vezes até pelas ruas da cidade, quando as horas iam altas — em busca de saciar sua sede de maldade e vingança. Cirino passou o dia preparando o tal do repelente de lobisomem, afiando seu facão enferrujado e limpando a espingarda de seu avô. Foi quando teve uma ideia. Passaria o tal repelente nas balas da espingarda, pois se o preparo repelia o bicho, provavelmente seria infernal ter uma bala besuntada do repelente, encravada em suas carnes. Tudo o que pudesse fazer para anular a sanha do bicho, Cirino faria. Então, se deu a besuntar as balas da mistura de erva ensinada pelo índio do tal “sonho” ou visão, fosse lá o que fosse aquilo que vivera. À medida que fazia as coisas, vez ou outra sua mente era assaltada pela imagem de sinhazinha Lu que Cirino

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tentava repelir com todas as suas forças; não podia se distrair com fantasias e ‘abestações’. Além do mais, de que adiantaria ficar sonhando com o impossível? Melhor era deixar de abestamento e se concentrar nas preparações para a peleja que provavelmente se daria à noite. O dia ia passando e Cirino ia ficando tenso. A verdade era que o destino era incerto ou possivelmente certo: morreria naquela noite. Mas não queria pensar nessas coisas; se agarrava às instruções do índio “fantártico”, como passou a chamar a aparição e olhava de vez em quando para a medalha pendurada no cordão que balançava em seu pescoço. Isso fortalecia sua confiança. No mais, estava protegido pelos “ispritos”, que a preta velha chamava de orixás. Iria entrar naquela briga com tudo, sem pestanejar. E não era verdade que não precisava entrar em briga nenhuma, pois já estava nela faz tempo? A diferença era que agora estava realmente imbuído da determinação de se atracar com o bicho até a morte... A morte do bicho ou dos dois juntos; não havia terceira opção. Quando se deu conta, a tarde findava e o horizonte começava a se pintar de um tom azul alaranjado. A primeira estrela já despontava no céu e a lua também já estava lá, começando a se assanhar com a despedida do sol. A coisa toda iria começar cedo pelo jeito. Logo estaria de noite e, com a lua já brilhando no céu, o bicho já se atreveria todo lá pelo início da noite mesmo. Podia-se dizer que o bicho viria dançando baião, de tanta sanha. Cirino foi até o tanque e pôs-se a lavar-se. Encheu de água as mãos em forma de concha e jogou sobre a cabeça. Deixou a água escorrer, como se sorvesse cada milímetro da sensação de frescor que aquela água proporcionava. Era como se vestisse nova roupagem de carne e benzia-se a si próprio, para entrar na luta. Lembrou da Virgem Maria e aproveitou para pedir perdão de todos os pecados que por acaso houvera cometido em sua ignorância de homem do mato sem preparo e

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sem eira nem beira. Foi sincero em cada palavra silenciosa com que ia formando uma frase humilde em sua mente, como se realmente se entregasse à bênção silenciosa da santa, como nunca fizera antes. A água descia por sua fronte e Cirino, mergulhado em si mesmo, renovava-se e crescia. Sentia uma força vir, não sabia de onde, que o tomava por inteiro, fortalecendo-lhe os músculos e esquentando a pele pouca que cobria as fibras musculares salientes na pele, resultado da vida dura de sempre. Seu corpo retesado naturalmente estava ali, entregue a um êxtase que Cirino nunca sentira em sua vida. Encheu novamente as mãos de água e jogou novamente na cabeça, desta vez falando silenciosamente com o tal índio “fantártico”. Cirino sentiu seu corpo balançar e uma leve tonteira nublou sua mente, mas mesmo assim não abriu os olhos. E em meio a uma névoa mental que se transformava em densas folhagens de uma floresta de sonhos, viu surgir, por entre as folhas, o índio que veio olhando para ele, colocando a palma da mão em sua testa, no que Cirino viu um flash de luz branca estourar em sua visão e se espalhar por todo o seu corpo, como um banho de luz, fazendo-o sentir-se ainda mais forte e corajoso. O índio afastou-se andando de costas e deu sua gargalhada divertida. Cirino também sorriu e logo estava gargalhando junto com o índio, feito criança arteira que apronta e depois se diverte com sua arte. O índio foi sumindo no ar e Cirino abriu os olhos, ainda gargalhando diante da bacia de água sobre o tanque velho. Era outro. Não era mais o fraco Cirino. Estava pronto para enfrentar de frente o cachorrão do canhoto. Cirino levantou o cenho e deu a volta na casa, entrando pela porta e colocando a calça velha e puída de couro, mas que protegia como nada mais. Colocou o cinto de seu avô na cintura e afivelou, enfiando o facão cujo fio chegava a brilhar, de tanto que Cirino o afiou. Pegou a velha espingarda e carregou-a, colocando o restante das balas no cinturão e

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numa bolsinha, cujas alças enfiou pela cabeça e cruzou sobre o peito, ajeitando-a ao lado esquerdo da cintura. Pegou a cuia onde estava o preparado de ervas e foi se besuntando, primeiro o pescoço e depois peito, braços e pernas. A tal erva fedia que só o capeta, mas, se era para protegê-lo, então valia qualquer coisa. Sentiu uma pequena ardência na pele, onde passava a pasta preparada, que logo passou à sensação de um frescor, como se fosse menta brava; a sensação era muito boa. Calçou as sandálias e olhou-se no velho espelho que ficava pendurado na parede. Estava pronto para ser o caçador e agora esperaria pela caça. A noite caiu rapidamente e a lua firmou-se poderosa no céu, iluminando tudo ao redor; podia-se ver longe. Caso o bicho viesse mesmo, como Cirino esperava, poderia vê-lo chegando de longe. Cirino sentou-se na porta de sua casa e esperou. Por volta das vinte horas, ouviu um uivo ao longe e empertigou-se na cadeira, firmando a espingarda na mão e afinando sua atenção no mato, que começava a uns cem metros de sua casa. Também ficou atento às laterais, pois o bicho poderia vir pelos lados, rodeando a casa e pegando-o de surpresa. Estava com a espingarda preparada e as demais coisas também à mão. Seria fácil usá-las, se assim fosse preciso. Ficou ali, com sua mente atenta e olhos afiados no mundo ao redor. A cada ruído Cirino prestava atenção e identificava como algo normal, coisa de bichos do mato. Nada ainda de estranho que deixasse Cirino mais pronto do que já estava. A noite seguia em frente com os barulhos característicos. Até que de repente tudo silenciou. Cirino estava atento a isso também e sentiu que algo mudara ao redor. Apertou os olhos e fustigou com o olhar cada detalhe visível na noite. O bicho provavelmente estava por ali, pois se dera como na noite que o encontrara pela primeira vez; os bichos da noite silenciaram

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também, como agora. Era como se a presença do capeta intimidasse os bichos que Deus criara e estes se calavam por medo de serem arrastados para o inferno. Ou, talvez, se calassem para prestar atenção, como espectadores da noite, assistindo às desventuras de quem caísse vítima do ser diabólico. Ou ainda talvez fosse por medo mesmo. Involuntariamente Cirino apertou a arma que estava em suas mãos, pronto a atirar quando viu um movimento na mata. Apontou na direção do barulho e pressionou de leve o gatilho; mais um pouco, o mecanismo acionava e o cão bateria na bala, disparando o tiro certeiro. Mas quem surgiu foi Juvenal, que vinha a mando do coronel. Cirino respirou fundo e relaxou o dedo do gatilho, pois por muito pouco não atirou em Juvenal. — Eita, homi! Como é que ocê vem assim pelo meio do mato? Quase que atirei n’ocê! Minha nossa! O jagunço apenas riu e foi se chegando. — Inda bem que não atirô, senão ia levá de vorta. Mas intão? Tá perparado? — Tô sim. E ocê? O jagunço novamente apenas riu, acendeu um cigarrinho de palha que estava no bolso e recostou na parede da casa, com a espingarda pendurada no ombro. Cirino não se incomodou com a falta de resposta. Já não gostava muito de Juvenal, então era melhor evitar muita prosa. Além do mais, entendera muito bem a expressão do jagunço; aquele “homi” estava sempre preparado. Assim, os dois ficaram ali, um atento e o outro fumando tranquilamente, como se nada demais pudesse dar-se. Aquilo incomodava um pouco Cirino, mas cada um que cuidasse de si. Se Juvenal quisesse fumar e ficar ali, sem prestação nenhuma,

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o problema era dele; além do mais, vai ver ele já estava tão acostumado com essas coisas que o bicho já nem bulia com ele. Ou então era uma questão de sorte mesmo e, por isso, o homem abusava. Ou ainda, nunca tivera encontrado o cachorrão, como aconteceu com Cirino; faltava-lhe apreço por sua vida, talvez por nunca a ter posto em perigo de verdade. A bem da verdade é claro que Cirino queria viver e dava muito valor à sua vida, mas imbuíra-se da missão de tal forma, que a vida era um detalhe apenas para poder levar a cabo o que pretendia. Se saísse vivo, muito melhor, senão tendo levado o bicho junto, dava-se por satisfeito. Mas preferia mesmo era viver. Juvenal fumava e Cirino estava nestes pensamentos, quando a noite silenciou novamente. Cirino apertou a espingarda na mão, atraindo um olhar meio de lado por parte de Juvenal, o que o fez empertigar o corpo e olhar para o mato, alumiado pela luz da lua. Os dois ficaram ali, atentos, olhando para o meio do mato, na espreita de qualquer atitude mais assanhada do bicho, porque só podia ser o dito cujo, pensava Cirino. O tempo passara e nada acontecia, apenas o silêncio ao redor. Cirino mantinha-se atento e aquela expectativa o deixava tenso e irritado. Sua mente tentava escapar-lhe, sugerindo outros pensamentos, mas logo Cirino voltava a dominar os pensamentos inquietos e sua atenção redobrava. Foi num destes momentos de vitória sobre a teimosia de sua mente que percebeu que algo mexera no meio do mato, como se alguma coisa estivesse rodeando a casa. Cirino levantou-se da cadeira e apontou a arma, seguindo o movimento irregular entre folhas, galhos e escuridão. Juvenal também estava com a arma em punho, mas não apontava para nada, apenas estava atento, olhando com um semblante pesado de homem duro e que costuma dar cabo de problemas da forma mais fácil, sem peso algum na consciência.

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Tudo estava parado de novo como se quem quer que estivesse por ali simplesmente parasse e ficasse observando-os. Os dois permaneciam atentos, sendo que Cirino adicionava tensão extra à sua atenção; aquela quietude espreitante o deixava mais do que ansioso. O mato tornou a se mexer, mas do outro lado, sem que os dois tivessem percebido qualquer movimento que denunciasse onde o bicho se movera. Aquilo deixou Cirino ainda mais atento. Se o bicho era capaz de mover-se assim, então poderia surgir de qualquer lado. Essa constatação o deixou mais temeroso e aflito. Precisaria ter mais do que atenção. Num piscar de olhos, algo peludo saltou da quina da parede da casa, agarrando Juvenal aos gritos para trás da lateral da casa. Cirino, mesmo com o susto, ainda disparou um tiro na direção do bicho, mas a rapidez do cachorrão e a surpresa do ataque fizeram com que o tiro saísse a esmo, indo a bala se perder na noite. Cirino rapidamente encostou-se à parede da casa e, arrastando-se rapidamente por ela, como quem se mantém em ataque prudente foi até à quina que dava para a lateral, ainda escutando os gritos de Juvenal se distanciando e, quando chegou à quina da casa e olhou, o bicho estava acabando de entrar o meio de um espinhal alto e Cirino não pôde atirar. Então, Cirino saltou como quem força a musculatura a obedecer e foi atrás, dando a volta no espinhal e procurando ao redor qualquer coisa que fizesse alguma sombra identificável. Os gritos de Juvenal logo pararam e Cirino só podia ir na direção de onde os escutara pela última vez. Andou ao redor, buscando, buscando e nada. Até que tropeçou em algo e, num susto inesperado, deu um salto para trás. — Minha mãe de Deus!

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Acabara de chutar a cabeça de Juvenal, que estava ali, de olhos abertos e ainda com a expressão de terror, com carnes penduradas do que seria parte de seu pescoço. O coração de Cirino batia mais que zabumba e ele percebeu que podia ter caído numa armadilha arquitetada pela mente diabólica daquele bicho dos infernos. Então, recuando lentamente e logo correndo como podia para sua posição privilegiada diante da casa, Cirino ia atravessando o mato, hora ou outra sentindo esse ou aquele espinho penetrar-lhe a pele. Mas era preciso chegar lá logo para ter novamente a vantagem de volta. Começou então a ouvir o som de algo que o perseguia, mas chegou ao ponto onde saía do mato e já podia ver a lateral da casa, quando percebeu outro enorme vulto pular do meio do mato, do lado oposto, exatamente do lugar para onde ele estava olhando, quando estava sentado na cadeira. Instantaneamente Cirino parou e apontou a espingarda na direção do bicho, mas quando ouviu um rosnado vindo de trás, virou rapidamente e disparou, sentindo, quase ao mesmo tempo, garras rasgarem seu ombro, desviando a mira e fazendo com que a bala atingisse o ombro do bicho que deu um terrível ganido de dor. Cirino caíra ao perder o equilíbrio, após levar a patada do bicho. O tiro, por sua vez, também tirara a atenção do bicho que se preocupava momentaneamente com a dor lancinante que, não só a bala provocava, mas também o fato de estar embebida no repelente de erva. Cirino buscou a espingarda ao redor, mas ela caíra a uns três metros dele, sem que ele pudesse alcançá-la. Olhou para o bicho e viu uma fumaça saindo do ferimento em seu ombro. Pensou: — Bendita erva do índio! Então Cirino lembrou-se do facão na cintura, puxando-o e desferindo um golpe violentamente rechaçado pelo lobisomem que já rosnava novamente, enfurecido pelo ferimento que Cirino lhe causara e que o enlouquecia de dor. O bicho, então, investiu na direção do pescoço de Cirino, mas foi atingido em cheio por um

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enorme corpo que, atracado com ele, os fez rolarem juntos até uns cinco metros de distância, na entrada do mato. Cirino, assustado com a investida inesperada de algo com o qual não contara, viu não só um, mas dois lobisomens que lutavam à sua frente. Aquilo o deixara desnorteado e com a mente confusa. Jamais imaginara esta possibilidade. Não mais apenas um, mas dois! E agora? Mas lembrando-se da espingarda, levantou-se correndo e foi pegá-la. Com ela em punho, apontou na direção da confusão, que era a briga entre os dois seres descomunais e atirou. Nada. A bala falhou. Com as mãos trêmulas pelo calor da situação, Cirino tentava dobrar a espingarda e substituir a bala ruim. Com dificuldade, conseguiu tirar a bala e colocar outra no lugar, apontando novamente para os bichos, no exato momento em que o bicho que parecia ser o mais forte atirou o outro longe como se fosse papel. Cirino atirou então no que se destacara não só pelo tamanho, mas também por ser o mais visível no seu campo de visão, atingindo o bicho no peito. O cachorrão deu um ganido e caiu, contorcendo-se, à medida que um vapor saía de sua ferida, como se a bala lhe estivesse fervendo o sangue. Cirino apontava a arma para todos os lados, à medida que se virava e procurava o outro, mas nada encontrava. Aproximou-se do bicho caído e apontou a arma na cabeça dele, mas um barulho no mato a seu lado desviou sua atenção. Era o outro lobisomem que se levantara e ainda tonto, balançava a cabeça na escuridão sombria das plantas. Cirino viu seus olhos reluzirem no escuro, à luz da lua, distinguindo em seguida, o vulto inteiro do animal. Essa pausa de Cirino foi o bastante para que o lobisomem caído reagisse e pulasse sobre Cirino, indo em direção à sua garganta. Porém, algo o deteve. O bicho mexeu sua cabeça pra lá e pra cá, como se algo o estivesse incomodando, espirrando violentamente três vezes seguidas em cima de Cirino, que ficou com o rosto cheio de secreção do nariz do lobisomem. Nessa confusão, o outro lobisomem que

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se tinha levantado e vinha na direção dos dois, atirou-se sobre o lobisomem que estava desnorteado sobre Cirino, fazendo-o rolar novamente para o lado, o que libertou Cirino mais uma vez. Tonto e enojado com o banho de secreção foi derrubado novamente, cada vez mais confuso com tudo aquilo. Porém, o desespero da situação o levou a buscar a espingarda novamente e levantar-se a tempo de ver o bicho maior jogar o lobisomem menor contra uma árvore e partir para cima de Cirino outra vez, pulando de onde estava sobre ele, que mais uma vez foi ao chão. Mas dessa vez, ao pular sobre Cirino, o bicho colocou a pata exatamente sobre a medalha que Cirino usava no peito e que brilhou instantaneamente soltando um facho de luz que perfurou a pata do bicho, fazendo-o largar Cirino e sair enlouquecido para dentro do mato. Em meio a essa confusão, estupefato com o que acontecera, Cirino pegou e olhou para a medalha que ainda brilhava em sua mão, maravilhado com o que vira, tanto que quase se esquecera do outro lobisomem. Quando se deu conta, olhou desesperado na direção onde o bicho caíra, já buscando o facão na cintura, mas o facão havia sumido, pois o deixara cair na investida que fizera com ele em punho. Cirino então viu o outro lobisomem levantar-se, sacudir-se e olhar para Cirino. Os dois ficaram assim, olhando-se. Algo acontecia naquele momento, algo inexplicável para Cirino. O lobisomem o olhava nos olhos e Cirino sentia o rufar de seu coração ir amansando; um interlúdio sem palavras. Era completamente irreal, mas Cirino não se dava conta do que era ou não real, apenas sentia o que sentia e era algo estranho, como se naquele olhar, olhar do bicho, sentisse algo quase inexplicável, mas que se parecia muito com familiaridade. Então o bicho olhou para o meio do mato e, antes de atirar-se na escuridão das sombras noturnas, olhou mais uma vez para Cirino, afastando-se rapidamente do local em seguida.

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Cirino ficou ali por uns instantes, ainda perplexo com o que ocorrera e a sensação que o transpassava. O que fora aquilo? O que acontecera? Por que o bicho não o atacou? E que sensação era aquela? Eram muitas as perguntas que se faziam, mas fora despertado, então, pela dor em seu ombro. Era melhor voltar e tratar a ferida. Percebeu que largara a espingarda que estava no chão, ao seu lado. Abaixou-se e pegou a arma, sentindo fisgadas no ferimento. O bicho ainda poderia voltar esta noite, mas Cirino sentia que não; algo lhe dizia que fora o bastante por enquanto. Mas, por via das dúvidas, era melhor se resguardar. Então, Cirino caminhou lentamente até a frente da casa e entrou, fechando a porta atrás de si. Sua cabeça começava a latejar à medida que a calma tomava cada vez mais espaço em seu íntimo. Pegou a cabaça, destapou, e bebeu diretamente do gargalo. Sentia uma sede tremenda e o corpo cada vez mais pesado. Queria cuidar do ferimento, mas só conseguiu jogar o que restara de água sobre o ombro, sentindo uma ardência suave. Arrastou-se lentamente em direção à cama e deixou-se cair. Estava de repente tão exausto, que é possível que tenha dormido antes mesmo de o corpo atingir o colchão. Viu-se num vertiginoso mergulho através de um turbilhão de luzes, como se o corpo fosse levado pelos ares através de estrelas, planetas, mar. Sentiu-se pousado suavemente sobre a relva, escutava o som dos bichos na densa floresta que o circundava. Suas mãos pareciam meio dormentes e sua respiração suave funcionava como um mantra a estabelecer um elo com a calma que perpassava não só seu corpo, mas, poderia dizer-se, sua existência. Tudo parecia mergulhado num ambiente mágico, onde a luz cintilava no orvalho que cobria esta ou aquela folha. Ouvia o som dos bichos, mas mesmo este som parecia em harmonia, como uma orquestra perfeita e natural. Cirino ouvia, mas não

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via os bichos, apenas a mata ao redor, exuberante em seu verde quase fluorescente. Seu corpo estava leve e Cirino sentia-se suave. Viu a mata mexer-se à sua frente e, do meio das folhagens, surgiu um menino índio, um curumim, que foi aproximando-se de Cirino, com um semblante muito amigo. Cirino sorriu e o menino sorriu de volta, pegando um saquinho em sua cintura de onde tirou um punhado de pó que jogou no peito de Cirino, espalmando sua mão e fazendo um movi- mento circular. Cirino sentiu-se mais leve. De repente, de trás do indiozinho surgiu o velho índio conhecido já por Cirino. Ele vinha com um semblante calmo e amigável como o indiozinho viera. Colocou a mão sobre o ombro direito do indiozinho e ficou olhando para Cirino com um meio sorriso nos lábios. Cirino olhou ao redor e tudo havia mudado. Estava agora na beira de um rio onde as águas corriam com um brilho sobrenatural. Para Cirino parecia um mundo de sonhos. Sentou-se e percebeu que estava deitado dentro d’água. Sentia a água escorrendo por seu corpo. Olhou para as mãos, para os braços, o peito e viu a medalha brilhando, pendurada no cordão. Então, lembrou-se da luta com o lobisomem e tudo parecia distante. Não tinha certeza de como tudo terminara. Será que morrera? Perguntava-se. Neste instante, o velho índio deu uma gargalhada e o indiozinho sorriu mais largamente. Cirino olhou sem entender. — Você não morreu, Cirino. Cirino ficou olhando o velho índio e deu por si que também estava sorrindo e como aquilo tudo era engraçado. Não sabia bem porque era engraçado, mas era. Sentiu-se divertido e entregou-se de vez à magia do mundo ao seu redor. Levantou-se e a passos inseguros, foi em direção à cachoeira que aparecia

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por entre as folhas das árvores. Ouviu a voz do velho índio atrás de si. — Ainda não acabou, Cirino. Em seu íntimo, ele pensou: eu sei...eu sei. Mergulhou nas águas brilhantes sobrenaturais da cachoeira. Sentiu uma energia poderosa e de um frescor indescritível atravessar sua alma. Sentia-se um só com tudo aquilo, como se a floresta fosse uma extensão de seus membros, aquela água fosse uma extensão de suas veias e toda vida ao redor fosse sua própria vida. Sentiu-se assim por um tempo e abriu os olhos. Estava deitado em sua própria cama, cujos lençóis estavam embebidos de sangue coagulado, sua camisa rasgada, estava manchada de sangue, mas ficou surpreso ao verificar seu próprio ombro e não encontrar a ferida da noite anterior; estava como se nada tivesse acontecido.

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Pobre Diabo Os pássaros cantavam e o sol ainda não estava tão escaldante quando o prefeito resolveu sair. Precisava conversar com Terêncio a respeito desse bicho que rondava suas terras. Era uma prosa difícil, mas a situação chegara num ponto a que não havia alternativa. Alguma coisa precisava ser feita no sentido de acabar de vez com a sanha desse bicho. E a pessoa que tinha que tomar alguma providência era Terêncio, pois o bicho sempre aparecia por suas terras levando terror por toda a região, já que as terras de Terêncio circundavam boa parte da cidade. Severo Souza era um homem precavido e cheio das artimanhas de um bom político, mas aqueles eventos nada ordinários o deixavam realmente sem saber de que forma abordar a situação. Vinha pela estrada pensando sobre essas questões quando o cavalo empacou. Levou um susto com a súbita parada do animal e, ao olhar para frente, o susto foi muito maior. O animal parara numa curva que dava para a entrada de uma porteira abandonada e um tanto quebrada. Sobre as madeiras em pedaços, estavam outros pedaços, pedaços humanos, que encharcavam de sangue o que restava de porteira. Ficou ali, estático por uns instantes, sem saber o que pensar a respeito. Então, num impulso de quem volta à realidade, desceu do cavalo e foi andando lentamente até a porteira, sempre olhando para um lado e para o outro, como se algo pudesse ameaçar sua segurança. O visual era aterrador e ele mesmo estava tremendamente abalado. Nunca vira nada daquele tipo. Era um assassinato e esquartejamento de deixar de cabelo em pé a pessoa com mais sangue frio que pudesse existir.

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Não era possível identificar o defunto, pois o que restara do corpo estava sem cabeça. Montou rapidamente em seu cavalo e pensou. Para onde iria afinal? Voltar à cidade ou seguir até a casa grande da fazenda de Terêncio, que distava uns dois quilômetros à frente? Decidiu seguir em frente e, juntamente com Terêncio, voltar ao local para verem que medidas tomariam a respeito do defunto desconhecido. Chegou à casa grande e o coronel estava já na varanda, fumando seu charuto. Cumprimentou Te r ê n c i o , que meneou a cabeça, desceu do cavalo e foi logo dizendo o que vira. Terêncio escutou paciente. Quando terminou, ficou em silêncio alguns instantes, mandou Genivaldo selar seu cavalo, pois iria até a tal porteira junto com Severo ver quem diabos era o tal morto. Genivaldo correu até o curral e aprontou o cavalo do coronel. Enquanto isso, Severo contava detalhes do que vira, procurando impressionar Terêncio que ouvia sem muita expressão. Seu semblante só mudou, quando Severo tocou na palavra lobisomem, numa sugestão de que pudesse ser mais uma vítima do bicho. Terêncio franziu o cenho. Severo então atentou para algo que até então não havia cogitado. Será que a vítima era Cirino? Afinal de contas, Cirino andava com o tento de enfrentar o bicho. Talvez fosse mesmo ele que fora atrás do tinhoso e acabara por sofrer as consequências de tal estultice. Os dois montaram e foram em direção à porteira. Severo continuava a tentar chamar a atenção do coronel, falando e falando, mas, como o coronel permanecia calado e inexpressivo, calou-se e os dois foram em silêncio pela estrada no último quilômetro que os separava da porteira. Ao chegar ao local, Terêncio apeou e foi ver de perto a carnificina. Olhou daqui, olhou dali. Não tinha dúvida, fora mesmo o bicho. As marcas de unhas em forma de sulcos profundos na pele da vítima entregavam o autor do serviço. E

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apesar de atestar a autoria do massacre, continuou em silêncio, olhando aqui e acolá, na tentativa de reconhecer o morto sem cabeça. Não conseguia. De repente, atentou para uma cicatriz no ombro esquerdo. Conhecia aquela cicatriz. Era Juvenal. — Juvenal – disse baixinho. Severo escutou. — Juvenal? Seu jagun... Seu empregado? É ele? Tem certeza? Terêncio incomodou-se por Severo ter escutado a palavra que lhe escapara da boca sem que o quisesse. Mas enfim era mesmo Juvenal e logo todos ficariam sabendo. — É... É ele. Reconheço pela cicatriz no ombro. Parece que o pobre diabo foi pego pelo bicho do capeta. Severo engoliu em seco. Mais uma vítima. A coisa estava mais séria do que pensava. Nunca o bicho tinha atacado um empregado do coronel. Provavelmente agora ele tomaria uma atitude mais drástica. — É, Terêncio. Parece que a coisa tomou proporções que precisam de uma atitude. Terêncio não gostou muito do tom de cobrança disfarçado por trás daquele comentário, mas o homem tinha razão. As coisas não poderiam continuar dessa forma. Juvenal era homem de sua confiança e logo isso se espalharia. Era preciso fazer alguma coisa a respeito. Severo olhava para o coronel, ansioso por saber o que se passava em seus pensamentos. Afinal, o que o homem decidiria? Terêncio não se fez esperar por muito tempo. — Severo, Juvenal era meu homem de confiança. Eu o mandei ajudar Cirino na sua ideia maluca de enfrentar o lobisomem. Parece que alguma coisa saiu muito errada nessa

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aventura. Antes de qualquer coisa, preciso saber o que aconteceu. Vou até a casa de Cirino. — Está certo. Eu vou com você, afinal, sou o prefeito e preciso saber dos detalhes. Talvez tenha sido coisa de Cirino, que não anda regulando muito bem da cabeça, pelo que sei. — Olhe. Não quero acusar Cirino de nada. Não gosto muito dessa maluquice dele querer enfrentar o lobisomem, mas não podia deixar que ele acabasse na sanha do bicho, sem colocar alguém de minha confiança para ajudá-lo. Mas parece que o tiro saiu pela culatra. Quero saber de cada detalhe do que aconteceu. Não estou gostando do cheiro desta história. Severo apenas concordou com a cabeça. Os dois então montaram em seus cavalos e seguiram pela estrada, com intenção de visitar Cirino e saber o que realmente acontecera naquela noite e que deixara Juvenal aos pedaços. E afinal onde diabos, estava a cabeça do homem? A casa de Cirino não era longe dali e logo eles já podiam ver a casinha em meio ao mato do lugar. Apearam dos cavalos e chamaram. — Ô, de casa! Cirino, que estava ainda deitado e acabara de acordar de seu sonho fantástico, levantou perguntando-se q u e m poderia ser àquela hora, quando se deu conta de que já era bem tarde e dormira talvez até por volta das dez horas da manhã. Abriu a porta e surpreendeu-se com coronel Terêncio e o prefeito Severo à sua porta. — Bom dia, seu coroné, Seu Prefeito.

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Cirino levantou tão surpreso com o chamado à sua porta, que nem se deu conta de sua camisa rasgada e manchada de sangue. Simplesmente esquecera que estava em tal situação, ainda fruto da noite anterior. — Seu Cirino, o sinhô está bem? Parece que levou uma surra. Que monte de sangue é este em sua roupa? —Então, olhando para suas vestes, Cirino lembrou-se de seu estado e envergonhou-se ainda mais, embaralhando-se com as palavras, sem saber bem o que dizer e por onde começar. — Seu coroné... erh... Eu e Juvenar... então... — Desembuche, homem! — É que nós encontremo o lobisome onti... qué dizê... Os lobisome, porque num era um só, não sinhô. Eram dois! — Dois? Como assim, Seu Cirino? – Perguntou Severo. — Sim, sinhô. Eu também num esperava, quando vi com esses meus óio, os dois ‘coisa ruim’ sartá do mato e brigá na minha frente. — Espere um momento, Seu Cirino. Essa história está muito confusa. O senhor viu dois lobisomens e eles ainda brigaram entre si? É isso? — Sim, sinhô. E... um deles pegô o Juvenar e arrastô pro meio do mato. Nem tive tempo de ajudá o pobre. Terêncio e Severo se entreolharam estupefatos com o que ouviam de Cirino. Severo bem mais do que Terêncio que mantinha a dureza de sua postura. — Pois então, o senhor me conte tudo, desde o começo. Disse o coronel. Então Cirino foi contando tudo, da melhor forma que podia. A briga dos bichos, o tiro no ombro do animal, só omitindo a ferida em seu ombro que se curara milagrosamente.

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Até o momento em que trocara aquele olhar estranho com o outro lobisomem, Cirino contou. Só não falou da sensação de familiaridade que teve ao olhar nos olhos do bicho. Terêncio achou estranho o comportamento do bicho, que dera as costas para Cirino e fora-se embora, sem nada fazer a ele. Mas o importante agora era achar a cabeça de Juvenal que Cirino contara ter tropeçado, quando perseguira o lobisomem, após ele ter pegado o pobre diabo. Então, os dois foram para o meio do mato e procuraram entre as folhagens, encontrando a cabeça já cheia de formigas que a atacavam vorazmente. Cirino correu até a casa, pegou um balde de água no poço e levou para jogar na cabeça de Juvenal e assim livrar o que restara da dignidade do homem, da voracidade das formigas que a atacavam. O coronel e Severo olhavam para a cara de Juvenal, quase irreconhecível, resultado do ataque das formigas, mas ainda assim podiam reconhecê-lo. Severo mandou Cirino colocar a cabeça dentro de um saco e prender na cela de seu cavalo. Era preciso que agora chamassem o delegado para que mandasse recuperar o que restara do corpo do homem e que estava preso na velha porteira. Enquanto Severo cogitava das providências a serem tomadas quanto à vítima, Terêncio permanecia calado, observando Cirino misteriosa- mente. Cirino percebeu o olhar do coronel, mas fingiu que nada vira. — Seu Cirino, depois quero ter uma prosa com o senhor, a respeito dessa sua ideia maluca de enfrentar este bicho assassino... Ou melhor, estes bichos. Parece que agora o problema se duplicou, e se for mesmo verdade o que o senhor disse, precisamos tomar algumas providências bem rápidas para que estas chacinas não continuem acontecendo. — Sim, sinhô, seu coroné. Hoje memo vô até a casa grande, falá com o sinhô.

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— Hoje não, Seu Cirino. Hoje tenho muito que providenciar por causa dessa tragédia. Amanhã o senhor me apareça por lá para que possamos ter uma prosa. — Sim, sinhô. Terêncio montou em seu cavalo e Severo fez o mesmo, e se voltando para Cirino ainda disse. — Seu Cirino, pode ser que eu também precise falar com o senhor, portanto espero que o senhor não suma. — Ô, Seu Prefeito. E pra onde que eu sumiria, uai? No que o sinhô precisá, eu tô às ordens. — Muito bem. Disse o prefeito, antes que os dois esporassem seus cavalos e seguissem estrada afora. Cirino ficou ali, matutando. Agora parecia que as coisas iriam esquentar mesmo. Talvez mais gente o ajudasse a caçar os bichos. Quem sabe? Pensava. Na verdade Cirino não tinha mesmo ideia de como as coisas se complicariam a partir daquele momento, sobretudo para ele.

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O Plano A notícia caiu como uma bomba na cidade. As pessoas já não saíam mais de casa depois das cinco da tarde e evitavam estar na estrada à noite, mesmo quando não era lua cheia. A morte de Juvenal deixara muitas dúvidas, sobretudo porque, segundo o prefeito, era muito suspeito o fato de as roupas de Cirino estarem banhadas em sangue, sem que ele mesmo estivesse ferido. Uma nova polêmica começava a crescer entre as pessoas. Será, afinal, que Cirino era também um lobisomem? Será que Cirino matara Juvenal e inventara tudo? Talvez os dois tivessem se desentendido e a história escreveu-se tragicamente. Eram tantos “serás”, que toda essa incerteza deixava as pessoas ainda mais sem saber o que pensar, dando margem para que o medo se alastrasse de forma quase irracional. Em meio a tudo isso, alguns defendiam Cirino, outros o incriminavam, e outros ainda afirmavam que Cirino era lobisomem, que o bicho o mordera e sua alma fora levada para o inferno. Em seu lugar, fora colocado esse coisa ruim. A despeito de todo esse conversê do povo, Cirino permanecia alheio a tudo em sua casa. Ainda estava intrigado com a aparição do outro lobisomem e do efeito daquele olhar sobre ele quando os dois pareceram petrificados, hipnotizados um pelo outro, numa sensação de familiaridade que realmente incomodava simplesmente porque não se tinha certeza de nada. Mas não era possível ficar naquela situação por muito tempo, pois era preciso tocar a vida, além de, é claro, ter que ir até a fazenda ter uma prosa com o coronel Terêncio. Cirino sentia-se muito mal com essa necessidade de ir até lá, mas fora o próprio coronel que falara com ele, na porta de sua casa. Não tinha como não ir, afinal, morrera o homem que era o braço

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direito do coronel e as coisas precisavam ficar bem claras; pelo menos era assim que o coronel queria, pensava Cirino. Respirou fundo, soltando o ar ruidosamente e saiu porta a fora, fechando-a atrás de si. Tomou rumo da fazenda para falar com o coronel. Terêncio acordara cedo àquela manhã. Poderia dizer-se mesmo que nem dormira. Aquela tinha sido uma noite difícil, mas reservava sua intimidade para si mesmo e preferia não comentar com ninguém. Maldita hora em que esse bicho resolvera perseguir Cirino. Quem poderia imaginar que o homem se revelaria osso duro de roer, cabra macho de verdade? Logo aquele homenzinho franzino, sem cultura, morando no meio do mato. Pois é, essas coisas não escolhem; surgem onde surgem e pronto. O caso era que agora tinha que acertar as coisas, colocar o trem nos trilhos novamente porque essa história toda estava mesmo indo longe demais, como nunca deveria ter ido. Terêncio precisava fazer alguma coisa e começaria por esta conversa com Cirino. Tinha tudo em mente e esperava apenas a chegada de Cirino para que colocasse em prática seu plano. Cirino tinha algo de especial, que atraía o bicho e isso não podia ser ignorado. Foi em meio a estes pensamentos que percebeu Cirino surgindo lá longe, na curva da estradinha de terra. Não se mexeu e permaneceu onde estava. Por mais que estivesse um tanto ansioso, era por bem manter a postura e a autoridade nas calças. Cirino foi chegando perto da casa e já tirando o chapéu da cabeça para cumprimentar o coronel. — Bom dia, seu coroné. O coronel permaneceu onde estava, apenas olhando para Cirino.

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— Tô aqui como o sinhô mandô, pra mode de nós proseá. Terêncio levantou da cadeira, meneando a cabeça e fazendo sinal para Cirino com a mão. — Vamos entrando, Seu Cirino. A prosa é pra debaixo de teto. Vamos. Cirino subiu a escada da varanda, entrando na casa logo atrás do coronel. A casa mantinha o mesmo aspecto de sempre. As coisas antigas sobre um aparador, com espelho, alguns quadros com retratos da família, um oratório no canto, onde se podia ver uma imagem de nossa senhora e um castiçal de três velas, simbolizando a trindade. Cirino entrou apertando e torcendo o chapéu nas mãos. Estar ali para uma prosa com o coronel já não era muito natural para ele, ainda mais quando o assunto era tão sério. Isso o deixava realmente nervoso. Além do mais, estar dentro da casa grande era como ser um pequeno ratinho frente a um leão, na autoridade e tradição da família do coronel Terêncio. O coronel o mandou sentar-se num sofá antigo, frente a uma cadeira, que pela imponência, só poderia mesmo servir a Terêncio. Cirino chegou a imaginar naquele instante, que ninguém realmente deveria jamais sentar naquela cadeira, sendo ela como um trono de rei, como de certa forma era o coronel Terêncio naquela região. Terêncio olhou bem fundo nos olhos de Cirino e isso o deixou ainda mais inseguro. Mas porque sentir-se assim, ora bolas? Pensou Cirino, num instante de coragem súbita. Ora, se ele estava ali para tirar as dúvidas que pudessem ter sobrado ainda na mente do coronel e fora mesmo ele quem insistira em colocar Juvenal nesta história, não tinha que ele, Cirino, sentir-se oprimido! Cirino respirou fundo, levantou a cabeça e sustentou o olhar do coronel de tal forma, que o duelo inesperado de

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olhares, fez com que Terêncio vacilasse. Não tinha o costume de receber de volta olhar tão forte quanto aquele; todos geralmente baixavam a cabeça diante de sua altivez. Remexeuse na cadeira, pigarreou e respirando fundo, pôs-se a iniciar a prosa. — Seu Cirino, não chamei o senhor aqui para me contar novamente a história de como aconteceu a morte de Juvenal. Isso o senhor já me fez ontem. Chamei-o aqui porque este assunto cresceu demais da conta e agora é preciso que nós tomemos atitudes igualmente enérgicas e drásticas para sanar da melhor forma toda a desgraceira que se desembestou por estas terras. Cirino olhava atento, tentando entender, primeiro, esse palavreado todo com o qual não estava acostumado e dificultava demais da conta. Segundo, ainda não tinha pescado onde o coronel queria chegar com aquela história. — Outra coisa que me chamou atenção nessa história é que o senhor afirma ter visto aparecer diante de si, outro ‘coisa ruim’. Isso me deixou intrigado, Seu Cirino. Por que, afinal, só um dos bichos resolveu atacar o senhor quando o outro parecia protegê-lo? Cirino não tinha parado para pensar neste ponto de vista e isso soou surpreendente em sua mente. Mas pensando bem a respeito, não era verdade que o bicho bem poderia estar ali, tentando defendê-lo? Mas como? Seria mesmo possível? Pensava. Mas por que o diabo enviaria um capetão para matar ele e outro para defendê-lo? Alguma coisa não fazia muito sentido nisso tudo. Então, novamente veio à sua mente o momento em que os dois trocaram aqueles olhares e a mesma sensação se avivou em seu íntimo, como se estivesse revivendo aquilo tudo. — O senhor está prestando atenção, Seu Cirino?

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— Ô! Tô sim, seu coroné! O sinhô me descurpe, mas é que tava aqui escutando o sinhô falá e tomei intento de que o outro bicho podia de tá lá pra me protegê. Mas será possível? Mas por que diabos, ora? — É isso que precisamos descobrir Seu Cirino... É isso que precisamos descobrir. — Será que há de sê mais uma arapuca do chifrudo? — Olhe, Seu Cirino. Acho que temos que estar prontos para qualquer coisa. Há muitos anos, quando o canhoto apareceu pra mim, eu não me acovardei e por isso mesmo até hoje ele deve estar querendo as forras. Não duvido nada que ele possa estar tramando algo com isso tudo. Cirino ouvia pela primeira vez, da boca do coronel, a tal história que o povo contava nos quatro cantos da cidade desde que Cirino era garoto. Afinal de contas, aquilo tudo era verdade, então. Nunca pensara em dar crédito a estas coisas, pois nunca vivera nada sobrenatural antes e, mesmo morando num lugar isolado de tudo, sempre esteve de frente com as coisas ordinárias de sempre. Escutar uma afirmação dessas, vinda da própria boca do coronel, mudava tudo. Então a coisa toda era verdade e agora, ele também estava envolvido nessa confusão de outro mundo. — Seu coroné, mas se o cramulhão fugiu há tanto tempo, por que só agora ele arresorveu de aparecê de novo? — Quem disse que ele fugiu, Cirino? — Uai! Mas num fugiu? — Não senhor. Cirino, com cara de tacho, viu o coronel se virar e ir até a cristaleira. Remexeu, remexeu, afastou alguns potes e, do fundo, por trás de um espelho solto, puxou uma garrafa e veio

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andando de volta. Assim que chegou diante de Cirino, ainda tapando o conteúdo da garrafa, fez os devidos introdutórios. — Se eu tivesse deixado o danado fugir, provavelmente ele já teria se vingado de mim faz tempo, Seu Cirino. Pois então, eu prendi o peste dentro de uma garrafa, quando ele ainda estava tonto, depois da surra com espada de São Jorge que eu apliquei no safado. O coronel então descobriu a lateral da garrafa e estendeu o braço para Cirino, que finalmente pode ver o ‘cramulhãozinho’ preso dentro da garrafa. Com as garras apoiadas no vidro, fazia caretas, cuspia e xingava coisas. Na verdade, Cirino não sabia se ele realmente xingava, mas falava com tanto ódio nos olhos de serpente, que parecia mesmo que o bicho estava xingando os piores palavrões que poderiam existir. Cirino estava estupefato. Verdadeiramente impressionado com o que via, não conseguia tirar os olhos do bicho; era a primeira vez que via um capeta de verdade, na sua frente e ainda se assanhando todo, como a querer brigar. Cheio de dúvidas sobre a história do coronel, mas sem saber verbalizar, achou por bem ficar calado mesmo e apenas olhou para o coronel, com os olhos arregalados. O coronel sorriu com a expressão de Cirino e orgulhoso pelo feito. Então, foi como se uma rolha que estivesse presa em sua garganta, saltasse, liberando uma enxurrada de dúvidas que saíram um tanto incompreensíveis de sua boca. O coronel se pôs a gargalhar com a confusão de Cirino. Cirino então se calou, pensou melhor e disparou a única dúvida que lhe foi possível verbalizar naquele momento. — Se-seu coroné... Mas se o bicho tá preso aí dentro, cumé que ele pode de tá armando alguma arapuca?

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— Seu Cirino, o bicho tá preso, mas o capeta não anda sozinho. Ele tem os seus comandados que devem estar armando tudo que é plano para poder libertar seu chefe. Cirino recebeu aquela informação como se tudo fizesse sentido de uma hora para outra. Então só podia ser isso mesmo! – Pensou. Os dois lobisomens, aquela sanha toda... Os comparsas do ‘cramulhão’ na garrafa estavam causando toda aquela balbúrdia para fazer com que o povo tivesse cada vez mais medo de se aproximar das terras do coronel e até mesmo do próprio coronel. Se tudo continuasse assim, logo o coronel estaria cada vez mais sozinho e eles poderiam cair em cima dele, buscando a vingança pelo atrevimento de prender seu chefe. Mas... Uma coisa permanecia sem resposta para Cirino: Qual sua participação nisso tudo? Por que o bicho continuava insistindo em persegui-lo? Afinal, ele não tinha nada a ver com a história do coronel. Outra coisa curiosa lhe ocorreu de repente: por que o bicho raramente voltava nos dias seguintes a um ataque. Fora assim com o menino e, depois, com Juvenal. Será que o bicho se saciava por um tempo? Eram muitas as dúvidas ao redor daquela história toda. Faltavam vários pedaços e era impossível entender tudo sem eles. O coronel dispensou Cirino, apenas dizendo que ele mantivesse segredo sobre o conversado. Sendo ele o único com quem o coronel conversara, ficaria fácil descobrir se Cirino por algum acaso abrisse a boca por lá. Cirino fez que sim; sua vida era bastante discreta e o incomodava muito toda essa evidência que o tal do lobisomem estava dando sobre ela. Queria mesmo era resolver logo isso e ter sua vidinha de antes de volta. Assim, Cirino deixou a casa grande e rumou para a cidade, pois que- ria resolver logo o que precisasse resolver diante da necessidade de ter uma prosa também com o

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delegado, na presença do prefeito. Passaria na prefeitura e de lá partiria junto com o prefeito para a delegacia. Qual não foi sua surpresa ao chegar à prefeitura e, entrando na sala do prefeito, dar de cara com o delegado, como se os dois já estivessem esperando. Mas achou ótimo, pois assim lhe poupava tempo. O prefeito o indicou uma cadeira antiga de frente para sua mesa e que Cirino achou muito confortável. Jurava para si mesmo que poderia até dormir ali naquela cadeira, como se fosse cama, de tão gostosa era a bichinha. — Seu Cirino, precisamos saber o que o senhor conversou com o coronel Terêncio. Disse o prefeito. Cirino olhou de um para outro, sem entender aquele início de prosa. Acabara de prometer ao coronel que não falaria nada a respeito e não falaria mesmo! Resolveu, então, dizer nada com nada, coisas que o prefeito já sabia, para ver até onde eles iriam com este assunto. — Só o que o sinhô já sabia, Seu Prefeito. O coroné só queria qu’eu falasse das miudezas, que era pra mode de sabê de tudin que aconteceu naquela noite. — Seu Cirino, o senhor tem certeza do que está dizendo? Não está nos escondendo nada? Cirino olhou para os dois novamente e não titubeou: — Óia, Seu Prefeito. Eu acabei de sair da casa grande e se o sinhô tá pensando que eu tô falando mentira, então acho melhó esse conversê pará por aqui. Eu num sô homi de ficá escondendo as coisa. — Calma, Seu Cirino. Nós só estamos querendo saber da verdade que é pra não culpar o senhor. Interrompeu o delegado.

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— Ara! Mas me culpá do quê? Então o bicho vem atrás de mim, pega o jagunço do coroné e a culpa é minha? Agora ocês tão me tomando de besta, sô? A coisa é séria, uai! Tem dois bicho sorto por aí, num é um só não! — Isso é o que o senhor tá falando, né? Retrucou o delegado. O sangue de Cirino esquentou com aquelas acusações descabidas. Levantou-se da cadeira, já quase soltando fumaça pelas narinas.

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— Óia aqui, Seu Prefeito. Eu tenho muito respeito pelo sinhô, mas num vô dexá que o sinhô fique aí me acusando de assassino. O sinhô sabe muito bem que existe o tal do lobisome, que agora é dois. O sinhô me respeite, senão eu me vô embora e essa prosa acaba agora mesmo! — Calma, Cirino. Nós só estamos averiguando. São apenas perguntas de praxe que todo mundo faz. Mas, convenhamos, o bicho anda cismado com o senhor; por que será? — Ah, mas agora que eu também quero sabê, uai! Que eu já tô encafifado com isso. Num sei por que cargas d`água esse coisa ruim anda cismado comigo. Vai vê é porque eu consegui escapá da sanha dele duas vezes. Agora ele tá querendo as forra de qualqué jeito. O prefeito olhou para o delegado que deu de ombros. Então, o prefeito virou de costas e foi até a janela do gabinete. Olhou para fora, alisou o queixo e voltou-se para Cirino. — Seu Cirino, a coisa anda muito grave. — E eu num sei, Seu Prefeito? — É. Pois precisamos armar um plano para pegar esse cão do capeta e acabar logo com essa história de terror que virou nossa cidade. — E o sinhô tem alguma ideia? — Antes de o senhor chegar, o delegado e eu estávamos conversando a respeito disso. Como o senhor é o perseguido por este bicho, que parece ter mesmo cismado com o senhor, achamos que o senhor é importantíssimo para nosso plano, pois sabemos que o bicho já veio atrás do senhor três vezes e, com certeza, virá novamente porque tem sido frustrado em sua sanha desde o primeiro encontro. — É. E o capeta num gosta mesmo de sê passado para trás. Agora ele deve de tá querendo levá minha alma pro inferno de qualqué maneira.

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— Pois, então? Na entrada da próxima lua cheia, vamos reunir alguns homens da cidade e vamos nos preparar em sua casa, para receber o bicho à bala. Dessa vez ele não vai conseguir escapar. Vamos colocar homens na porteira, enquanto outros vão ficar em sua casa para lhe dar apoio. — Mas cumé que os homi da porteira vão se protegê do bicho? Quando o bicho sentir o cheiro deles, vai vir com vontade pra cima dos coitados. — Isso também já foi pensado, Seu Cirino. Todos passarão folhas de boldo pelo corpo, que é para disfarçar o cheiro de gente. Então, quando o bicho passar, nem vai saber o que acertou ele. – disse o delegado. — Acho que esse prano pode de dar certo memo. Só não pode achá que é valentão, porque o Juvenar tava todo posudo lá na varanda e nem viu o bicho chegar pelo lado da casa. Quando deu por si, tava sem a cabeça. — Pois então, estamos conversados, Cirino. Assim que estivermos no final da lua crescente, nos reunimos para os preparativos. Dessa vez, o cachorrão não escapa!

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Magia Cirino voltou para casa, animado com a ideia do prefeito e do delegado. Mas sabia que, mesmo com tudo muito bem organizado, o capeta tinha uma carta na manga que podia fazer a diferença na hora do embate; o bicho tinha todo o sobrenatural do seu lado e ninguém poderia saber ao certo quantos canhotos estariam à espreita, para ajudar o cachorrão a se livrar daquelas armas e, aproveitando, levar as almas de todo mundo para o inferno de uma vez só. Levou a mão ao peito e segurou a medalha, que trazia pendurada na corrente. Sabia que tivera ajuda na última vez, mas não tinha certeza se ainda teria toda a força de antes. Olhou para a medalha e decidiu ir até a casa de Cambinda mais uma vez. Estava incerto do próximo capítulo de sua aventura e ela era a única que poderia ajudá-lo de alguma forma. Acreditava na força da união de todos os homens que o prefeito e o delegado pudessem reunir, mas sabia que contra o capeta só Deus podia. Talvez todos aqueles espíritos em que Cambinda acreditava e, da qual fazia parte também o índio que, de certa forma, tornara-se querido por Cirino. Eram seres, tantos que faziam parte do exército de Deus cujas tradições ninguém sabia bem como eram. Todas as religiões tinham uma forma de ver Deus, mas todas viam com olhos de homens e do jeito que melhor lhes conviesse. Ter estado diante daquela realidade totalmente nova deu a Cirino a capacidade de perceber quão enorme poderia ser Deus, por mais que não pudesse compreender seu tamanho e suas razões, ele sabia que Ele lá as tinha, com certeza. O sol estava quente naquele dia e Cirino, para dificultar a situação, tinha fome. Deu por si que nada comera até aquele momento e já passava de uma da tarde.

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De repente, parou no meio da estrada e emburrou consigo mesmo. Quantas vezes ficara dias sem comer direito e agora já estava mal-acostumado a comer bem? Só porque fazia alguns meses que trabalhava para o coronel e vinha comendo regularmente, já se permitia ficar frouxo? — Ara! Larga mão de sê besta, homi! – Disse para si próprio, com cenho fechado e verdadeiramente aporrinhado com a ideia de estar amolecendo, depois de tantos anos de dureza e dificuldades. Tomou novamente o passo e seguiu em frente. Logo estaria chegando ao pé da serrinha, onde morava D. Cambinda. E foi de peito estufado e vigilante com seus pensamentos teimosos que Cirino foi discutindo em silêncio pelo caminho. Quando deu por si, já estava quase na porta da casa de Cambinda, mas, para sua surpresa, Cambinda não estava e a porta estava trancada. Cirino então olhou ao redor, buscou de um lado, depois do outro e nada. Sentou numa pedra e ficou esperando; afinal, ela não deveria demorar muito. Resolveu, então, dar uma volta por aquelas bandas; talvez acabasse dando com a preta velha por ali. Cirino foi até junto da subida da serra, onde tinha uma nascente mirradinha e que se juntava com o rio, onde Cirino fora buscar da outra vez a erva de lobisomem. Depois seguiu junto dos espinheiros e uns pés de araçá que se assanhavam por ali. Rodou, rodou e, finalmente, resolveu voltar então para a casinha de Cambinda. Quando já se aproximava por entre as folhas da mata, viu o corpinho frágil de Cambinda chegando perto da porta e apertou o passo. Cambinda virou-se sorrindo, como que pressentindo a aproximação de Cirino. Ele foi pego de surpresa e todo o aperreio que lhe ia n’alma desapareceu como que por encanto; encanto daquela velhinha que possuía uma aura tranquilizadora

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e boa. Muita gente já falara do efeito da presença de Cambinda e ele comprovara isso mais uma vez e ainda mais claramente do que da primeira vez que estivera com ela. Cambinda fez sinal para que Cirino se aproximasse e logo foi surpreendendo-o mais uma vez. — O caboclo disse que o sinhô tava vortano pra falá com essa preta. Já era hora memo do sinhô vortá. Já tava esperano o sinhô. Venha Seu Cirino! Vá entrando, vá! Cambinda largou algumas ervas que trazia num saquinho, sobre o fogão a lenha e voltou-se para Cirino, olhando-o profundamente nos olhos, como quem vasculha a alma da pessoa. Ele que já estava avexado mesmo ficou ainda mais desconcertado, mas sustentou o olhar, na expectativa de alguma coisa. — Seu Cirino, o sinhô precisa sabê, se é que já num sabe, que é um homi predestinado. O sinhô tá nessa terra num é pra mode de passeá, não, num sabe? Andei tendo umas prosa com o caboclo, que o sinhô conhece bem e ele me disse, que vossemecê precisa sabê da verdade por trás dessa mardição de lobo, que o capeta jogou nessa terra. Cambinda deu uma pausa e remexeu em algumas coisas em um pote que estava ao lado de onde colocara o saco com as ervas. Cirino escutava ávido de saber que informações eram essas, que ninguém nunca chegou nem perto de lhe revelar, mas que ele sentia serem essenciais. No mais, toda essa história de que era esse tal de predestinado e que tinha uma missão ainda o deixava cheio de dúvidas e cismado para valer. Então, prestava atenção a cada sílaba que Cambinda proferia, esperando encontrar a solução de suas dúvidas escondida por trás delas.

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— Sabe, Seu Cirino, o coroné Terênço num é o homi que o sinhô pensa, não sinhô. Tem muito mais segredo por trás da história daquela fazenda, do que ele contô pro sinhô e do que muita gente sabe por aí. Aquela família tem o pé nas sombra, mas o sinhô vai descobri que nem tudo que parece é rearmente o que se vê. — Óia, D. Cambinda, eu tô aqui prestando muita atenção no que a sinhora tá dizendo, mas tá difícil de entendê. Que diacho de segredo é esse? O coroné já me mostrô o cramulhãozinho na garrafa e contô a história de prendê o bicho ali, por isso agora os amigos do capeta andam atrás dele. — É, mas ele contô a história que queria contá. O que ele disse pro sinhô foi a história que o sinhô precisava de ouvi. Agora Cirino estava mesmo confuso. Afinal de contas, parecia que tudo ao redor dele carecia de realidade. Seria possível que o coronel tivesse mentido para ele? Mas por quê? Que importância tão grande era essa que Cirino tinha para que valesse uma prosa com intuito de ludibriá-lo e colocá-lo num caminho errado? Será que tudo era plano do ‘cramulhão’ e o coronel estava mancomunado com ele, na intenção de prender Cirino numa arapuca e acabar de vez com essa falta de sorte do lobisomem, que ainda não conseguira seu tento na sanha de pegar Cirino? — Carma, seu moço. Eu sei o que anda passando por esse seu pensadô. O caboclo me disse isso tudo que o sinhô tá passando agora. Mas fique carmo, porque tudo vai ficá bastante craro, quando eu lhe explicá tudin. Aquela senhorinha continuava impressionando Cirino. Era verdadeiramente incrível como ela tinha acesso a praticamente todos os pensamentos dele, uma afinidade tão

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grande com as coisas do além. Não restava a Cirino alternativa, senão respeitar profundamente aquela preta velha cheia de conhecimentos que Cirino jamais pensou chegar nem perto; aliás, nunca nem sequer teve a pretensão de imaginar existirem. — Acontece, Seu Cirino, que o coroné não pegou o cramulhãozinho e prendeu na garrafa e só por isso, os ‘coisa ruim’ do capeta anda atrás dele. Quando sinhá Rosana ainda era viva, o coroné que, apesá de amá profundamente sua sinhora, era um homi muito vortado pro bango. — Bango?! — Dinheiro, Seu Cirino. O coroné tinha uma sede de podê sem igual por essas terra. E naquela época, existia em suas terra um homi muito poderoso que conhecia os caminho dos espritos e todas as coisa do além. Esse homi num era um homi mau e o coroné sabia disso, mas mesmo assim tentava o homi pra vê se ele se vortava para as má intenção do coroné e fazia o coroné ganhá mais bango do que já tinha. O homi conhecia bem as intenção do coroné e sempre evitou fazê as coisas que ele vivia insistindo. Mas, um dia, depois de muita insistênça do coroné, sendo conhecedor das lei de retorno, arresorveu deixá o coroné se enforcá na própria corda. As pessoa diz muita coisa por aí, mas a verdade é que o homi só se deixô levá pelo coroné, porque o coroné ameaçô de matá a muié que ele amava e que tava embuchada do fio dele. Cirino acompanhava atentamente a história que Cambinda ia narrando lentamente; sua boca ia proferindo as palavras no linguajar de senhorinha humilde e seu olhar voltava-se para o alto, como quem vê as imagens passarem diante de si, num relembrar de coisas muito antigas e cheias de poeira do tempo, poeira que ia sendo espanada lentamente feito cortina num vento de pensamentos à medida que as palavras iam saindo de sua boca.

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— O feiticeiro aprontô tudo conforme as vontade do coroné. Foi quando o isprito apareceu na frente do homi, dizendo pocas e boas para o coroné, culpando Terênço de ser um homem muito do ruim e que castigava por demais os empregado e as pessoa da região, dizendo que num daria mais nada pra ele e ainda ia tirá o que ele tinha. Terênço tirou da sacola uma garrafa que o feiticeiro deu a ele antes do trabaio. O isprito que apareceu num era um isprito alumiado, Seu Cirino, era um ser das sombra, mas, mesmo assim, Terênço num teve medo e sartô pra cima do isprito, tomando o cuidado pra que a boca da garrafa acertasse a cabeça do isprito sombrio. Acontece que o isprito foi chupado pra dentro da garrafa e o coroné se apressô pra tapá o gargalo. A verdade, Seu Cirino, é que uma garrafa de cachaça vazia, mas ainda com o melado da pinga, tem o podê de atraí os isprito ruim, virando uma arapuca. O feiticeiro sabia e ensinô ao coroné, muito a contragosto, o que fazê para prendê o bicho. Intão, desde aquele dia, o isprito engarrafado veio dando bango para o coroné, na esperança de um dia sê sorto. — Nossa mãe do céu! Ele num me contô essas coisas, não. Mas... E o tal do lobisome? Será que é isso memo que ele contô pra mim? Que são os comparsa do cramulhão, tentando sortá ele? Ou será que é mais uma mentira do coroné? Será que o coroné é o tal do lobisome? — Seu Cirino, esse lobisome é uma mardição que foi jogada na família do coroné. Num é nenhum comparsa do cramulhão, não sinhô. O si- nhô vai discobri logo, logo. O caboclo disse que o sinhô precisa discobri sozinho, quem é o lobisome. Tá no seu destino, Seu Cirino. Nós tá aqui pra ajudá o sinhô na empreitada, mas num pode falá demais, porque os isprito superior num permite. — Mas como que essa mardição se assucedeu?

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— Antes de fazê o coroné começá a ganhar bango sem pará, o isprito ruim disse que ia cobrá um preço muito arto. Memo assim o coroné, na sua sanha de podê, num si importô, tarvez porque num creditô que seria possívir. Mas desde então sua família sofre com essa mardição. O que piorô a situação do coroné foi que ele começô a exagerá nos mando e castigá pessoas que nada tinha a vê com os pobrema dele. Sabe, Seu Cirino, muita gente humilde sofreu nas mão daquele homi e isso só deixô a situação mais embaraiada. Mardade só traz mais mardade. A mente de Cirino fervilhava com todas aquelas informações. Lembrou do tal filho do coronel, que havia sumido no mundo, trazendo tremendo desgosto para o velho. Talvez o ‘cramulhãozinho’ tenha dado muito dinheiro e poder para Terêncio, mas também tenha lhe cobrado o sofrimento de perder a mulher e depois, o filho, que nunca mais voltou ou deu notícia. No mais, tanta gente em que o coronel descontou sua raiva e que nada tinham a ver com nada. Quanta maldade! Como alguém era capaz de agir assim? – Questionava-se. Ele então se lembrou de sinhazinha Lu. Seu coração acelerou só de a imagem de seu rosto lhe surgir com clareza na mente. Terêncio só tinha sinhazinha Lu como algo de bom e livre da tal maldição do ‘cramulhão’. Talvez por isso tenha votado todo seu amor a ela; não lhe restara mais ninguém; estava só e cego por sua sede de poder, muito embora pudesse com isso perder a única coisa boa que lhe restara — sua filha. — Toda essa gente que tá se juntano pra ajudá o sinhô, sei não... O lobisome vai vir atrás do sinhô, mas num vai sê quando esse povo pensa e espera. Ocês vão se encontrá de novo e por isso o sinhô tem que tá preparado. O caboclo me disse que é preciso que o sinhô encontre com ele novamente, para que

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ele reforce as proteção. Mas Seu Cirino, as proteção são só pra ajudá; a empreitada toda vai dependê do seu próprio esforço. Dizendo isso, Cambinda foi até uma caixa que estava num canto, pegou uma cabaça, desarrolhou, jogou um pouco do conteúdo num copo de leite de cabra e deu a Cirino. Cirino olhou para dentro do copo, sentindo o cheiro forte do preparo que já conhecia de outra vez. Olhou para Cambinda que meneou a cabeça afirmativamente. Cirino então entornou tudo de uma vez só, fazendo uma careta misturada com um suspiro de quem acaba de soltar a respiração que estivesse presa por muito tempo; era uma tentativa de aliviar o amargo da poção. Cambinda mostrou a cama e mandou Cirino deitar. A poção era muito forte e, antes de chegar à cama, Cirino já começava a perceber a realidade se distorcendo. Achava engraçado e ao mesmo tempo incômodo. A vontade era de deitar-se logo. E foi exatamente isso que fez. Desta vez, o processo todo foi muito mais rápido. Assim que se deitou, sua vista perdeu foco e escureceu. Cirino estava imerso em completa escuridão. Nada acontecia. A impressão que tinha é que o tempo estava passando e nada. Começou a achar que algo estava errado, quando começou a ouvir risadas ao longe, junto com sons nada agradáveis de grunhidos e respiração ofegante. Cirino girava e tentava olhar ao redor, mas a escuridão era total. Estava nervoso e começava a sentir medo. O que estava acontecendo? Onde estava o tal caboclo? Todas estas dúvidas pairavam em sua mente, mescladas com o medo crescente. De repente, do meio da escuridão saltou alguma coisa sobre ele, rosnando e rindo ao mesmo tempo. Cirino entrou em pânico e começou a lutar com aquela coisa que o agarrava e mordia seu ombro, sem conseguir se livrar. Ouvia risadas ao redor, como se estivesse cercado por todos os lados. Uma dor

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lancinante atravessava seu ombro que a criatura mordia furiosamente como se quisesse arrancar sua alma. Sentiu que outra coisa qualquer agarrava e mordia sua canela, sem que pudesse fazer qualquer coisa, pois sentia braços e pernas imobilizados. As risadas eram ensurdecedoras e Cirino começava a entrar numa estrada que parecia levar à loucura. Seu desespero era tanto, que já não sabia mais o que fazer e debatia-se de todas as formas possíveis. Pensou em Deus, em Jesus e já começava a sentir-se esvair, como se estivesse morrendo. Ele estava prestes a perder a razão e os sentidos na eternidade, quando uma explosão luminosa surgiu por trás de todos aqueles seres, revelando a Cirino as horripilantes criaturas que o atacavam e jogando-as para todos os lados. A luz ia se aproximando dele e os seres foram soltando-o e fugindo. Cirino pouco conseguia ver e pensar. Apenas via tudo e não discernia nada. Um homem de cajado foi se aproximando e toda aquela luz parecia surgir dele. Já perto dele, o tomou nos braços e Cirino viu de alguns relances o homem que o segurava com muito cuidado. Parecia o índio. Viu os olhos cheios de amor que o fizeram sentir algo que, apesar da razão exangue, se aproximava muito de conforto; viu um bracelete indígena, viu penas num colar, viu o sorriso de um menino, o sorriso do menino índio. Tentou sorrir também, mas perdeu os sentidos. Som de água. Som de água que escorre. Som de rio. Pios. Sons de pássaros. Tudo escuro. Tudo calmo. Sons ao redor. Abriu os olhos lentamente e a luz o invadiu, trazendolhe discernimento. Muito verde. Céu azul. Um gavião voando e lançando uma flecha sonora e aguda. Cirino. Olhou ao redor e tomou ciência de quem era. Cirino. Estava deitado numa esteira e sentia-se bem. Via cores mais vivas do que a própria vida. Então, viu surgir do meio das folhagens o menino índio que vinha sorrindo e sentou-se ao seu lado, segurando seu rosto

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com as mãos e encostando a testa em sua testa. Cirino sentiu um amor muito grande por aquele menino. Não sabia explicar, mas sabia que era mais que uma reverência; era um compartilhar de existência, como se Cirino e tudo mais fossem uma coisa só. O indiozinho o conduzia através desta consciência. Então, o indiozinho afastou-se e Cirino viu que o caboclo estava de pé, olhando para ele e sorrindo suavemente. O indiozinho levantou-se a afastou-se, dando passagem para o caboclo, que tocou a testa de Cirino com o indicador, desenhando um sinal, que ele não entendia e dizendo umas palavras na velha língua Tupi, cujo significado também não compreendia. Depois, o índio colocou a mão sobre o peito de Cirino e meneou a cabeça num sinal de afirmação muito suave e novamente com um leve sorriso na face. Ele sentia-se muito bem, mas ao mesmo tempo começava a questionar o que havia acontecido. Algumas imagens soltas perambulavam por sua mente ainda um tanto confusa com o episódio que vivera e que parecia tão distante, como um sonho ruim que tivera muito tempo atrás. Sentiu ímpeto de levantar-se, mas o índio o conteve. Ele entendeu que era melhor permanecer deitado. Não se importou. Ficar deitado era bem melhor mesmo; podia continuar admirando o cintilar das cores em tons variados de verde. O caboclo sentou-se a seu lado. — É bonito, não é? – Cirino fez que sim, com a cabeça. – Sabe Cirino... Dessa vez as sombras quase o levaram embora, mas estávamos prontos. Sabíamos que isso poderia acontecer, pois você está muito envolvido nessa história que já se estica por muito tempo nessa existência terrena. Mas tudo o que está acontecendo é como deve ser; nada acontece por acaso. Cirino escutava atentamente, enquanto olhava o sol cintilar por trás de um tufo de folhas no alto das árvores.

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— Um dia você vai entender tudo, mas, por enquanto, Tupã acha melhor que você se concentre no que tem para fazer. Sua tarefa não é fácil, mas precisa ser feita. Muitos caminhos tortos serão dolorosos, mas nem tudo serão lágrimas e isso compensará sua jornada como homem nesta terra de Deus. Nós estamos aqui para ajudá-lo; eu e muitos outros que você não consegue ver. Mas isso não importa. O importante é você manter sua determinação e coragem. Não se deixe levar por fraqueza. Lembre-se sempre desta nossa conversa. Você nunca estará sozinho, por mais difícil que seja o momento em que estiver. Cirino não entendia muito bem aquilo que ouvia, mas era como se algo lá dentro de si desse a certeza de que tudo fazia sentido, por mais que naquele momento, estivesse confuso. Vinha de seu coração uma certeza de que sabia o que o caboclo dizia para ele e isso bastava. — Agora é hora de voltar, Cirino. Mas antes, leve a força deste povo que o apoia. Lembre-se de que nada é só o que parece; sempre há um significado por trás das coisas, pois tudo é vida; vida que corre através de você, de mim, de todos e de todas as coisas. Mesmo as sombras têm vida. E um dia, o que hoje é sombra, será luz, pois nada está parado, nada fica para trás. Lembre-se, Cirino. Hoje você chorará pelo coração, mas suas lágrimas lhe darão força para que possas vencer as dificuldades e sorrir a felicidade no futuro. No final da jornada tudo se justificará e você verá que nada poderia ter sido diferente. Venha. O caboclo levantou-se e estendeu a mão a Cirino, convidando-o a levantar. Cirino segurou sua mão e sentiu-se flutuar. Ficou maravilhado com mais esta surpresa.

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O caboclo o conduziu em direção ao rio, de onde por trás das folhas via-se uma linda cachoeira. Na mesma hora Cirino lembrou-se da imagem de sinhazinha Lu, que vira da última vez. S eu coração bateu descompassado. O índio sorriu. Cirino sorriu e entrou nas águas em queda, sentindo toda a energia daquele banho sobrenatural. Logo se sentiu desfazer-se, e inspirou profundamente, abrindo os olhos. Estava novamente na casa de Cambinda, deitado na cama. Cambinda estava no fogão a lenha, terminando de preparar um café, que serviu a Cirino com um sorriso nos lábios, como se tivesse assistido a tudo que se passara com ele. Talvez tivesse assistido mesmo, mas isso Cirino nunca saberia com certeza. Na despedida, antes de tomar o rumo de casa, Cambinda segurou sua mão com força e olhou bem fundo em seus olhos. — Se alembre de tudo que aprendeu, Seu Cirino. Use as coisa que nós te demo. Podi parecê que enfrentá esse bicho é a coisa mais difícil do seu destino, mas num é, não sinhô. Esse vai sê o seu batismo, Seu Cirino. Muitas outras coisa o sinhô vai vivê por essa vida a fora. Mas tenha fé! Tenha fé... Cirino humildemente fez que sim com a cabeça, com a determinação brilhando nos olhos e seguiu pela estrada. A noite caía e ele sabia que seria a última noite de lua crescente. Faltava pouco para a caçada começar, muito embora ele soubesse que teria que acabar enfrentando o bicho sozinho. Então, de repente teve um estalo. E o segundo lobisomem? Esquecera completamente de perguntar ao caboclo sobre o segundo lobisomem! Estalou os lábios e deu um tapa na têmpora direita, em reprovação à sua cabeça oca. A noite estava agradável e ele, mesmo se repreendendo pelo esquecimento, seguia adiante se sentindo como parte de tudo a seu redor. Ele era Cirino, era a noite, eram os bichos, era o chão da estrada, eram as estrelas, era o céu, era a vida.

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O Prefeito A cidade estava em polvorosa e os homens andavam de lá para cá, tomando as medidas que achavam cabíveis para a noite daquele dia. Uma tensão pairava no ar do vilarejo, como se uma guerra estivesse pronta a se iniciar. O prefeito andava de um lado para o outro dentro de seu gabinete, pensando numa maneira de colocar alguém na sua frente, alguém que pudesse servir de escudo. A verdade era que estava se borrando todo de medo do tal enfrentamento que se daria com o cão do capeta. Era pai de família, responsável pela cidade que não era lá grandes coisas, mas precisava de sua mão firme na condução dos assuntos políticos. Não tinha vergonha nenhuma de esconder-se por trás de tantas desculpas na tentativa de safar-se da situação que se via metido por uma iniciativa de Terêncio, desde que não tivesse de tornar pública sua covardia. Sabia que essa história iria sobrar para si. Então, era isso: caminhava e caminhava, de um lado para o outro naquela saleta que insistia em chamar de gabinete, mas que só tinha uma mesa velha e comida pelo tempo, uma antiga máquina de escrever, que vivia dando defeito e um pequeno armário de ferro todo enferrujado onde guardava os poucos papéis realmente importantes da prefeitura. O que fazer? – Questionava-se o tempo todo. Não havia jeito! Teria que enfrentar a situação junto com todos os homens da cidade que se prontificaram a formar aquele singular exército de pequenos agricultores, que nunca fizeram mais do que caçar um preá ou um calanguinho. Agora, porém, teriam que enfrentar o fio do capeta frente a frente! Se pudesse, se achasse uma saída, saltava fora da situação. Mas era o prefeito e tinha que mostrar valentia, mesmo a que não tinha; teria que arrumar um jeito de não se mijar na frente de todos. Era homem de política, mas teria que ser também homem de ação.

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Sua esposa entrou na sala, quebrando sua concentração. Percebeu que o marido estava aperreado e entendeu que poderia ser o tal enfrentamento com o lobisomem que os homens preparavam para aqueles dias de lua cheia. Sabia o quão difícil era a empreitada, mas sentia-se orgulhosa do marido que nunca fora de atitudes violentas, embora fosse um político fervoroso. Os dois olharam-se, ele suando na testa e ela com os olhinhos brilhando de orgulho do marido, embora estivesse com medo de perdê-lo. Então os dois se abraçaram e ela o beijou como há muito tempo não fazia. Ele sentiu aquela força de quem se lembra o quão é importante ter o apoio da mulher que ama, e de repente viu todos os momentos que passaram juntos, desde o dia em que começaram a namorar até aquele momento. Sentiu-se corajoso e pronto para enfrentar o que viesse. No final das contas — lembrou-se do padre — seria sempre como Deus quisesse.

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O Coronel Terêncio Eram já onze horas da manhã e Terêncio ainda não saíra do quarto. Estava acordado desde antes do despontar do sol, mas permanecia deitado; a mente entre pensamentos secretos, a que só ele tinha acesso. Fumava um charuto atrás do outro. Levantou-se algumas vezes, pegou fotos antigas de Rosana, Luzinha e de seu filho Edgar, de quando ele ainda tinha quinze anos, pouco antes de ter sumido no mundo. Ficou olhando as fotos com um sentimento indecifrável nos olhos. Por um instante pareceu que lágrimas se formavam em seus olhos, mas, como surgiram, também desapareceram, sem chegarem a ter contingente suficiente para um revoltoso salto para fora daquela fortaleza. Levantou-se, abriu uma gaveta na escrivaninha e pegou a garrafa com o ‘cramulhãozinho’ dentro. Ficou olhando o pequeno e feio ser, que lá de dentro parecia praguejar sem parar. Terêncio permanecia impávido, olhando o pequeno ser. De repente, o pequeno ser parou e ficou olhando para Terêncio, como que percebendo o que ninguém mais era capaz de perceber; parecia conseguir ler a alma de Terêncio. Um sorriso maligno lentamente se formou na careta do ‘cramulhãozinho’ que se pôs a gargalhar descontroladamente, enquanto apontava o dedo para Terêncio, num desavergonhado sinal de deboche. Terêncio, num ímpeto de raiva chegou a levantar a garrafa no ar, como a querer atirá-la contra a parede, mas conteve-se para a insatisfação do pequeno diabrete que se pôs novamente a praguejar através do vidro da garrafa. Terêncio sorriu com raiva e ao mesmo tempo com os olhos brilhando de cobiça. Terêncio tornou a guardá-la na gaveta e trancar a chave. Voltou a sentar-se na cama, apertando a cabeça entre as mãos. Ficou assim por alguns minutos, levantando-se de repente como uma muralha, ao som de um resfolegar forte e

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denso. Seus olhos estavam firmes como sempre e vermelhos pela noite mal dormida. Pegou o chapéu pendurado atrás da porta e saiu do quarto, não sem antes dar uma chibatada na própria bota, assustando os empregados que andavam preocupados com a demora do coronel em levantar-se aquela manhã. Mas Terêncio passou por eles como se nada houvesse ali e dirigiu-se para a cozinha, no intuito de afogar numa caneca de café forte e sem açúcar o que ainda sobrava de pensamentos contraditórios em sua mente.

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Padre Eustáquio Eustáquio acordou cedo, com aquele gosto de vinho passado na boca. Foi cambaleando até o banheiro, parte pela idade e parte porque sentia um leve desconforto por ter exagerado no vinho na noite anterior. Escovou os dentes sentindo o gosto da pasta, como se esta investisse agressivamente sobre seu paladar, num violento quase rasgar das papilas. Olhou-se no espelho e sentiu-se mais velho do que era. Estava com seus cinquenta e cinco anos e isso era bastante tempo. Apesar de sua entrega a Deus, tinha seus momentos de melancolia, como qualquer ser humano. Vestiu a batina sobre as cuecas e preparou-se para tomar café. Na cozinha da igreja, dona Jupira, uma das carolas da cidade, que pareciam morar mais na igreja do que em suas próprias casas, já tinha aprontado tudo. — Bom dia, Dona Jupira. — Bom dia, seu padre. Sentou-se à pequena mesa, pegou um pedaço de pão e deu-se a comer, enquanto Jupira enchia sua caneca com o café que acabara de sair do fogo. Sentiu o cheiro gostoso do café e seu apetite acordou. Mas junto com o apetite veio a lembrança do dia fatídico; o primeiro dia de lua cheia. E os homens se juntariam para esperar a investida do enviado do diabo. Meneou a cabeça, olhou para cima, como quem fala com Deus e suspirou sonoramente. Nunca tinha imaginado tal coisa. Tornara-se padre achando que seria fácil levar a vida de sacerdócio, e quando foi enviado para aquele vilarejo, adorou a ideia de lidar com aquela gente simples e ter uma vida sossegada. Nunca imaginou que qualquer coisa mais séria se daria naquele lugar tranquilo.

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Deu outro suspiro profundo. Era preciso preparar logo o altar, pois prometera abençoar os homens que se atirariam naquela empreitada contra as forças do mal. Apesar de sentir-se incomodado com toda aquela movimentação, sentia no peito a responsabilidade de reforçar a autoridade espiritual da Igreja neste embate. Revoltara-se com a morte do menino Manoelzinho. Não era possível que deixasse estes seres dos infernos virem aterrorizar sua cidade. Tinha que se impor e impor o poder da Igreja como representante de Deus na terra. Tomou uma grande golada de café e levantou sentindose energizado. Prepararia tudo e abençoaria os homens. Enquanto se preparava, lembrou de seus tempos de seminário, de como descobriu Deus de uma forma mais abrangente, apesar do pulso firme de seus professores com seus dogmas poderosos e cheios de mistérios. Eustáquio era um padre diferente. Amava a Igreja e seus postulados, mas tinha consciência de que a divindade ia além de dogmas e doutrinas. Lia muito, inclusive livros que a Igreja condenaria, mas não ligava para isso. Mantinha suas leituras em segredo; a quem mais pode- riam interessar, senão a si mesmo? Lia muito sobre diversas filosofias e tinha até dúvidas sobre a existência do Diabo, mas numa situação como a que passava a cidade naquele momento, a doutrina e os interesses da Igreja Católica falavam mais alto e Eustáquio deixava os demais estudos de lado. Estava pronto. Abriu a porta que dava para o altar e saiu. Surpreendeu-se. A igreja estava cheia de gente. Tinha até pessoas em pé, pois não havia mais lugar para se sentar. Nunca vira a igreja tão cheia. Estava mesmo surpreso. Homens, mulheres, crianças... As pessoas buscavam a Igreja nas horas difíceis, pensou consigo. Reclamavam, tinham suas opiniões e censuras, mas, quando a coisa apertava, era para a igreja que todos corriam.

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Eustáquio sentiu sua autoridade crescer dentro de si, ao mesmo tempo em que uma onda de emoção o invadia de todos os lados. Subiu ao púlpito, pigarreou e começou sua preleção com um “B om dia, meu povo”.

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O Delegado Puta dor de cabeça. Puta dor de cabeça. Não conseguia pensar direito. Só sentia a puta dor de cabeça! Abriu os olhos lentamente e olhou ao redor. O quarto ainda estava em penumbra, mas sentiu por quase um segundo a insegurança de não estar em seu quarto e ter que identificar o lugar. Lembrouse da noite anterior. Claro! Estava no quarto de Lili. Respirou fundo, sentou-se na beirada da cama e pensou consigo: — Depois dessa noite, posso até morrer feliz. Riu. Coçou a cabeça, olhou para o lado e lá estava Lili, jogada na cama, nua e em sono profundo. Sorriu com a visão espetacular daquela mulher que amava profundamente, apesar dos pesares. Levantou-se, acendeu um cigarro, encostou à penteadeira e ficou olhando aquele corpo lindo sobre a cama. Talvez esta fosse a última vez em que veria aquela mulher. Talvez nunca mais deitasse novamente na mesma cama. Maldito lobisomem! – Pensou. Coçou novamente a cabeça, os cabelos desgrenhados e sentiu a barba por fazer quando esbarrou no próprio queixo. Precisava ir. Precisava organizar as coisas e preparar-se para a noite. Seria um dia estranho este dia. Sentia que estava na hora de, pelo menos uma vez na vida, mostrar serviço. Ser policial num vilarejo como aquele era mais emocionante do que ser delegado. Por mais que enchesse a cara toda semana e dormisse no bordel algumas noites, precisava manter a postura de autoridade. Um policial comum tinha sua vida mais relaxada do que a dele. Pelo menos tinham alguma coisa para fazer além de mandar. Não que mandar fosse uma coisa ruim; poder sempre é bom, mas responsabilidade era uma coisa chata. Enfim. Passaria em casa, tomaria um banho e iria para a delegacia fazer os preparativos. Foi quando percebeu que Lili acordara e olhava para ele com um sorriso convidativo. Parou

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um instante e pensou. Ora, para o diabo com toda esta responsabilidade! Se vou morrer que seja duas vezes e a primeira vai ser agora de manhã, nos braços de Lili. Apagou o cigarro no cinzeiro sobre a cômoda, encheu o copo com o restante de vinho da garrafa, tomou tudo de uma vez só e deixou-se cair nos braços de Lili, que o envolveu num mergulho quase eterno de entrega e paixão, enquanto se ouvia o galo cantar meio fora de hora, do lado de fora da casa. Se tinha só esta vida, que pudesse despedir-se dela com chave de ouro!

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Compadre Zé Joana preparava o café da manhã com mais zelo do que o comum. Queria que aquele café da manhã fosse especial, pois sabia dos riscos que o marido correria nesse enfrentamento com as coisas do inferno. Tinha medo de perdê-lo, mas ao mesmo tempo tinha orgulho de Zé ter sido o primeiro a se oferecer para montar guarda na casa de Cirino, a fim de que juntos enfrentassem o bicho, quando este viesse com sua maldita sanha de sangue. Estava nervosa aquela manhã. Tomava mais cuidado do que de costume ao mexer com as coisas e lidar com o fogão; não queria se queimar. Suas mãos estavam meio trêmulas, mas tentava abstrair o quanto pudesse, por mais que sua mente traísse sua vontade e seu coração insistisse em tagarelar-lhe no peito. Admirava demais a coragem de Cirino, mas também tinha pena dele. Era um homem de bem, como poucos nessa vida. Tinha muito orgulho de ser sua comadre e sabia da importância de Zé apoiá-lo nessa hora difícil. Afinal, se Deus era maior, tinha que confiar em sua providência. Fosse qual fosse sua vontade, acataria. Mas sabia que era importante não abandonar o compadre, por isso apoia a decisão de Zé de juntar-se ao amigo de tantos anos na luta contra aquela assombração do capeta. Zé levantou-se da cama apertado e foi direto para o banheiro aliviar-se. Dormira uma noite tranquila, apesar da preocupação com a empreitada daquele dia. Achava estranho sentir-se tão calmo na verdade. Nunca gostou de meter-se com essas coisas, mas talvez saber que estaria ajudando seu compadre Cirino o deixasse satisfeito. Desde o início achava uma maluquice essa postura de Cirino de enfrentar o tal bicho maligno, mas no fundo sentia que deveria estar ajudando-o desde o início. E talvez estivesse ajudando-o mesmo, se Cirino não fosse irredutível em não admitir que Zé se colocasse em

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perigo. Usava sempre o argumento de que Zé tinha Marianinha e que esse era o bem mais importante de todos, até mesmo que a amizade que perdurava desde a infância. Zé sabia que Cirino tinha razão. Mais que isso, sentia. Portanto, nunca conseguia argumentar em contrário. Mas agora a coisa era diferente. A maioria dos homens importantes da cidade estava envolvida neste plano do prefeito e do delegado. Era a desculpa perfeita para poder ajudar seu amigo. Surpreendeu-se mesmo quando Joana aprovou e incentivou sua participação. Não acreditava que ela fosse agir desta forma. Sorriu ao pensar nisso. No fundo – pensou — não poderia ser diferente. Ninguém o entendia melhor do que aquela mulher. Não era à toa que foram os primeiros namorados um do outro. Entendiam-se. Respeitavam-se. Amavam-se. Chegou à cozinha para o café e reparou logo que a mesa estava posta de forma especial. Bolo, doce de abóbora, geleia, café, leite, doce de leite... Joana preparara-lhe um café de rei, pensava. Para preparar tudo aquilo ela deveria ter acordado muito antes de o sol nascer. Sorriu para ela quando ela se virou em sua direção. Ela sorriu-lhe de volta. Os dois ficaram assim, um enamorando o outro por alguns instantes até que Joana quebrou o silêncio. — Ande! Sente-se e coma, homem! Tá pensando que fiz isso tudo pr’ocê ficá oiando? Ocê precisa de ficá forte, que hoje a luta vai sê grande. Zé sentou-se no banco e experimentou de um tudo. A comida estava deliciosa e Zé sentia-se feliz.

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Luciana Luciana acordou tarde. Quando abriu a janela de seu quarto, o sol entrou com força e Lu sabia que já deviam ser umas dez e meia da manhã. Parou na janela um instante e, ao olhar para o mundo verde lá fora, veio-lhe à mente a imagem de Cirino. Lembrou-se, sonhara com ele. Sorriu. Não era a primeira vez. Sonhava sempre com Cirino. Achava Cirino corajoso, mas preocupava-se com ele, mesmo que os dois não se falassem direito havia alguns dias. Mas o primeiro encontro dos dois fora mais que um sonho. Nunca sentira nada parecido por ninguém. Nunca se entregara; Cirino foi o primeiro. Então, calou sua mente por alguns instantes. Ficou séria quando lembrou a situação de ambos. Era filha do coronel, Cirino era um homem simples, apesar de perceber que seu pai olhava e tratava Cirino de forma diferenciada. É claro que era quase imperceptível, mas era seu pai e Luciana sabia perceber seu pai como ninguém. Via seus pequenos deslizes emocionais que ninguém mais via. Seu pai era uma muralha de seriedade, autoritarismo e prepotência, mas com ela se desmanchava e foi assim que ela aprendeu a ler suas emoções, mesmo quando ninguém mais percebia o que se passava no coração do velho. Mas como será que ele receberia qualquer manifestação da filha referente a seu amor por Cirino? Luzinha tinha quase certeza de que seria uma tragédia. No mais, a maldição ajudava a piorar a situação. O que faria? Como seria isso tudo para Cirino? Ele estava determinado a matar o lobisomem, mas e se o lobisomem o matasse? Certo nervoso espalhou-se por seu ser quando pensou nisso. Por quê? Por que tinha que nascer numa família tão complicada? Não gostou de pensar isso. Amava sua família. Apesar de tudo, amava sua família. Sabia que seu pai tinha feito besteira e que isso acabou prejudicando a todos, mas não tinha como não amar seu pai. Ele nunca se poupara para a

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filha e a amava profundamente. Seu coração apertava e seus olhos encheram-se de lágrimas. Sentou na penteadeira, pegou um lenço e secou as lágrimas antes que elas rolassem por seu rosto. Sentia-se condenada à solidão. Olhou para si mesma no espelho e pensou mais uma vez em Cirino. Precisava protegê-lo. Mas seu pai acabaria sabendo, pois não tinha outro jeito; era o rumo natural das coisas. Se pelo menos Edgar não tivesse sumido no mundo, poderia apoiá-la. Com certeza a apoiaria. Ele sempre a apoiava quando era nova, por mais errada que ela estivesse. Edgar era seu protetor e ela estava precisando deste apoio. Mas Edgar não estava lá. Edgar se fora há muitos anos e nunca mais dera notícias. Teria que enfrentar a situação sozinha quando chegasse a hora. Levantou-se a saiu do quarto, sabendo que precisaria resguardar-se aquela noite. Os ânimos na cidade estavam bastante exaltados, com certeza. Essa caçada ao lobisomem poderia ser muito perigosa até para quem não estivesse envolvido. E Luzinha estava envolvida, muito envolvida.

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A Cidade Não havia outro assunto nas bocas populares que não fosse o grande evento daquela noite em que muitos poderiam morrer nas garras do diabo e outros, talvez poucos, poderiam sair heróis. As pessoas falavam, comentavam, achavam isso, achavam aquilo. Uns encorajavam os homens a fazerem parte, outros, principalmente as mulheres, tentavam dissuadir seus maridos de tal intento. Está certo que a grande maioria não queria bulir com o ‘coisa ruim’ e desconversavam, dizendo que com essas coisas só o padre. Outros se desculpavam, justificando-se no fato de serem pais de família e que não correriam riscos. Outros ainda assumiam mesmo que tinham medo de morrer e tiravam o corpo fora. No final das contas, apenas alguns poucos afirmavam que fariam parte do grupo de bravos a enfrentar o lobisomem. Mas ainda era manhã e até a noite, muitos supostos corajosos, certamente tirariam o corpo fora, diminuindo tremendamente o contingente de valentes, para alivio da maioria das mulheres da cidade. O prefeito mandara anunciar na pequena Rádio AM — única na cidade -, que radiodifundisse a convocação, incitando os que fossem corajosos a participarem da luta contra as forças do mal, com a promessa de que seus nomes entrariam para a história da cidade, como valentes eternos a serem lembrados pelas gerações seguintes. Alguns valentões se apresentaram na delegacia e na prefeitura, onde receberam as instruções para o encontro no fim da tarde, onde seriam distribuídos os que ficariam na casa de Cirino e os que ficariam na porteira. O prefeito esperava por muitos e já começava a achar que seria difícil distribuir aquela gente toda em só duas posições. Mas não havia como ser diferente; duas posições já eram

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bastante ousadas, diante do perigo iminente e mortal que representava o bicho. Era melhor não dividir muito os homens, sob pena de perder várias vidas. O delegado chegou tarde à delegacia e a rádio já devia estar anunciando o chamado havia pelo menos umas duas horas, então foi uma surpresa chegar lá e encontrar cinco sujeitos prontos a se inscreverem no grupo. Mas o delegado já sabia como lidar com qualquer situação, pois previra tudo com antecedência. Pegou os nomes, repassou a hora do encontro que se daria na praça da matriz às dezessete horas, antes de o sol se pôr, para que tivessem tempo de dividirem os dois grupos e todos seguirem juntos para seus locais e ficarem de prontidão, sem correrem o risco de serem pegos no meio do caminho, quando a noite caísse. Assim, quando fosse noite, todos já estariam em suas posições. O dia passou com esse ar de agitação contida, mas tudo transcorreu normalmente. As pessoas faziam suas coisas e as crianças brincavam nas ruas. O fim de tarde foi chegando. O prefeito pegou sua espingarda, colocou a munição pendurada na cintura e saiu. O delegado fez o mesmo e os dois se encontraram na praça da matriz. Ainda não havia chegado ninguém. Eram dezesseis e trinta. O relógio bateu dezessete horas e ainda não havia chegado ninguém. Quando eram dezessete e vinte, chegaram seu Zé e Seu Caleb. Lá pelas dezessete e trinta chegaram os dois valentões mais valentões da cidade – pelo menos era o que diziam: João Machado e Waldemar Cachaça. Mais ninguém chegou depois deles. Da cidade inteira, apenas seis homens estavam dispostos a pôr suas vidas em risco e enfrentar aquela situação escabrosa. O delegado suspeitava que no final das contas o contingente seria baixo, mas apenas seis homens estava muito abaixo de seus cálculos aproximados. A verdade era que muito

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se falava, se contava de vantagem, mas era nessa hora, hora de mostrar serviço, que se via quem tinha peito de encarar a rebordosa. Todos estranharam o não aparecimento do coronel Terêncio, mas acharam que ele iria direto para a casa de Cirino, já que sua fazenda era depois de onde Cirino morava. O grupo então ficou dividido da seguinte forma: Zé, Prefeito Sereno e João Machado ficariam na casa de Cirino, enquanto Seu Caleb, o delegado e Waldemar Cachaça ficariam de prontidão na porteira. Caleb não gostou muito da divisão, mas o prefeito, com sua habilidade para as politicagens de todos os tipos, argumentou que, assim que o coronel chegasse, com certeza ficaria na porteira com o segundo grupo, complementando a força deles com grande vantagem para todos. Isso deixou Caleb satisfeito e todos partiram em direção às terras onde morava Cirino do Araçá. Aquela noite prometia ser longa e tensa.

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Amarguras Cirino acabara de comer um pedaço de pão com carne seca e um copo de leite, quando ouviu gente chegando do lado de fora. Imaginou logo que seriam os homens da cidade. Tomou o último gole de leite e, limpando a boca na manga da camisa, foi até a porta, abrindo-a. Viu a comitiva de seis cabras que se aproximavam. Pensou consigo: — Os outros devem estar vindo logo atrás. O lobisome num vai se safá fácil dessa. — Boa noite, Seu Cirino. – Falou o prefeito. — Boa noite, Seu Prefeito. Boa noite a todos. — Barnoite! – responderam todos quase em uníssono. — Então, os outros homi tão vindo aí atrás? Tem muita gente envorvida? — Não, Cirino. Somos só nós seis mesmo. — Falou o delegado. Cirino ouviu, mas ficou confuso. — Ué! Mas só isso? Pensou. — Pois é, Seu Cirino. Parece que essa cidade tá cheia de cabra acovardado que, na hora de bulí com o lobisome e prová que tem arguma coisa dentro das calça, desaparece. – Disse cheio de si, Waldemar Cachaça, como se respondesse ao pensamento de Cirino. João Machado olhou com desdém para Waldemar, achando-o muito cheio de si. Na verdade, os dois eram tão cheios de si, tão metidos a valentões que havia mesmo era uma rixa entre eles, sempre um querendo ser mais valente que o outro, sem que nunca houvesse momento oportuno para que qualquer um dos dois pudesse provar alguma coisa, no que permanecia sempre o disse me disse, mas sem que houvesse provas de ambas as partes.

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Cirino olhou para os dois e balançou a cabeça em desaprovação. — Então tá, né? Vamo vê o que nós podemo fazê contra esse fio do capeta. – Acabou por dizer Cirino. – Melhó que eu sozinho! A noite ainda não tinha aparecido no céu, quando os homens separaram-se. O delegado verificou pela última vez suas armas – o homem estava armado até os dentes! – Mesmo com garrucha, espingarda, revólver e faca na cintura, ainda se achava despreparado. Na verdade, tinha suas dúvidas de que fosse realmente encontrar com o ‘fio do demo’. Por mais que falassem das desgraceiras que o bicho fizera, tem gente que precisa ver as fuças do dito cujo para poder acreditar. O delegado era desses. Preparara-se para o embate da melhor forma possível, pois tinha lá sua experiência com enrascadas e fora treinado assim na escola de polícia, mas tinha a impressão que o coçava por dentro de que em nada daria. O negócio é pagar para ver! – Pensava. Olhou para Waldemar Cachaça e para Seu Caleb em seguida. Os três trocaram olhares, como a concordar que chegara a hora da verdade, mas não estavam muito seguros e apenas Seu Caleb dava clara demonstração de insegurança e até medo; os outros dois, preferiam manter a pose de valentes, até porque Waldemar e o delegado tinham suas diferenças também e não dava para uma autoridade se deixar passar por menos valente do que o valentão da cidade; não pegava bem. Waldemar parecia estar tinindo e foi pelo meio da estradinha até a porteira, resmungando daqui e dali sobre pegar o bicho na ponta da faca. Na verdade, estava era com muito medo e não queria deixar transparecer isso. Sua mãe – que Deus a tenha! – Sempre lhe contava histórias de muito tempo atrás, sobre essas coisas do além e que Waldemar sabia respeitar; mas agora estava em jogo sua fama e, mesmo a contragosto, estava ali, fazendo sua cena e indo para o que poderia ser seu

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abatedouro. Cruz em credo! Que nossa sinhora me proteja! — Pensava consigo mesmo, tentando afastar estes pensamentos negativos; segundo sua mãe, pensar nessas coisas só atraía coisa ruim. Chegaram à porteira e colocaram-se, um de costas para o outro, tendo cada um vasto campo de visão que poderia significar a diferença entre serem pegos de surpresa ou não. Assim, qualquer investida do bicho, poderia ser percebida antes mesmo que se desse. Enquanto isso na casa os três que lá ficaram viram o nascer da lua com apreensão. Era o sinal de que deveriam estar mais que preparados para o bicho que poderia aparecer dentro em pouco. O prefeito suava muito, talvez porque fosse gordo e estava um calor dos diabos, mas o nervoso também tinha um papel importante, pois era um homem de discursos e papéis, não um cabra pronto para a ação. Este evento era inédito em sua vida e logo contra um ser sobrenatural. Isso o deixava sem saber o que pensar. Sua mente vagava entre razão e descrença. Ainda não conseguira definir uma linha de pensamento sensata e era bem possível que não o conseguisse, posto que naquelas condições, o nervoso só permitiria um atinar mais conciso quando o sol nascesse e tudo aquilo terminasse. O delegado ficou do lado direito da varanda, pois era canhoto e era mais fácil manusear a espingarda daquele lado. João Machado ficou do lado esquerdo, guardando aquele lado. Zé e Cirino ficaram juntos diante da porta da frente, observando a escuridão que começava a dez metros, onde a mata ia se fechando, justamente depois do araçazeiro. Ali era o limite do que se podia ver com clareza e, portanto, um ponto de especial atenção. Como Cirino já enfrentara o bicho três vezes antes era o mais indicado para perceber qualquer coisa anormal que pudesse significar movimento de lobisomem, como se isso fosse uma ciência adquirida no combate; as pessoas tinham estas

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manias que tiravam não se sabe de onde. Para Cirino, tudo bem. Estava pronto para quando o bicho chegasse. Os outros estranharam o cheiro ruim da pasta que Cirino espalhara pelo corpo, mas como disse que era um conhecimento antigo que ajudava dificultar a aproximação do bicho, os outros acataram, mesmo que não acreditassem muito. Apenas Zé confiava plenamente no amigo e acreditava no poder da tal pasta, pois conhecia bem a história dos encontros de Cirino com Dona Cambinda, coisa que os outros não sabiam. A noite progredia lentamente com nada mais do que os barulhos tão comuns da mata. A Lua caminhava pelo céu, como a deslizar suavemente por um salão de baile, onde as estrelas eram os convivas. Vez ou outra, alguém se assustava com este ou aquele barulho diferente, algo mais proeminente que visse do meio da mata próxima para, logo em seguida, voltar ao estado de tensão, que se poderia dizer normal à situação de tocaia. A espera era por demais incômoda, mas não havia outro jeito, senão esperar; era a vontade do bicho que mandava então. Na porteira, os três permaneciam ainda mais tensos e já começavam a questionar essa ideia de dividir o grupo em dois, para que um ficasse naquela posição ingrata de quase isca. Caleb segurava sua garrucha, que trepidava o tempo todo, pois não conseguia controlar o tremor que se espalhava por todo seu corpo; o medo era muito poderoso, afinal de contas, era apenas um dono de venda e jamais imaginou ver-se em tal situação escabrosa. Waldemar estava atento, talvez mais atento que os três, pois não poderia dar pinta de não ser esta valentia toda que os outros conheciam e tinham por verdade. O delegado acendera um cigarro e encostara-se na porteira. Por mais que os outros falassem que ele não deveria dar as costas para a estrada, ele justificava que era só enquanto durasse o cigarro. De repente, um movimento mais acentuado na mata para o lado de Waldemar, fez o delegado levantar os olhos para

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o meio do mato, enquanto Waldemar deu dois passos para trás e Seu Caleb virou-se tremendo ainda mais para a direção do barulho. O delegado desgrudou-se da porteira e lentamente tomou sua posição junto aos outros dois. Os três ficaram assim, atentos. Ouviram barulho semelhante do lado contrário e viraram-se automaticamente para ele. O delegado atinou para o que se dava e avisou os outros. — O bicho tá circulando a gente. Cada um que fique na sua posição inicial, que é para não dar brecha para que o bicho ataque a gente por trás. Os três colocaram-se em suas posições de prontidão, com as armas apontadas para a escuridão por trás das plantas. A luz da lua dava uma boa visibilidade e, se o bicho resolvesse atacar, precisaria se aproximar de forma que os três teriam tempo de reação. Mas o silêncio imperava. Não era um bom sinal, pois se os bichos da noite se calavam, era porque alguma coisa incomum estava por ali, rondando, na espreita. Os três ouviram de repente, um rosnar que veio do lado de Seu Caleb que, sem pestanejar, e no impulso que o medo lhe dera, atirou sem nem mesmo saber em quem e para o nada. Então o silêncio. Tudo parecia normal. Mas os três ainda estavam nervosos pela situação, quando saiu correndo do meio do mato, um porco selvagem. Os três riram de si mesmos. Na casa, ouvir o tiro fez com que os quatro se entreolhassem e ficassem ainda mais atentos; era sinal que alguma coisa partira para cima do primeiro grupo. — Acho que o bicho tá atacando eles! O que nós faz? – disse Zé. — Nós fiquemo aqui, que eles sabem se cuidá. O combinado foi cada grupo ficá preparado no seu posto. Além do

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mais, isso pode sê uma arapuca do tinhoso, para pegá nós fora de prontidão. — Disse Cirino e os outros três concordaram, não se sabe muito bem se porque pensavam o mesmo, ou se era por medo de irem até lá, metendo-se pela estrada no meio da noite, mesmo que fosse para ajudar os outros. Sem perceberem, acabaram deixando seus postos, voltando a atenção para a direção de onde vinha o som do tiro para ver se escutavam alguma coisa, deixando o lado esquerdo sem a atenção devida e isso foi o suficiente para que a besta aproveitasse o descuido e, sorrateiramente, saísse do mato e viesse em direção à varanda. Quando João Machado tornou a olhar na direção de sua guarda, deu de cara com o bicho enorme de uns dois metros e meio, já quase chegando perto de si. Apertou a arma nas mãos, virando atabalhoadamente a pontaria na direção do bicho, sem conseguir mirar com tento. O bicho, aproveitando-se da vantagem, deu uma patada no cano, arrancando a espingarda das mãos de João Machado e jogando-a longe. Nisso, os outros três já se voltavam a tempo de verem João Machado lutando na mão com o lobisomem e ao mesmo tempo tentando tirar a faca da cintura. O bicho abocanhou seu braço e João Machado berrou de dor, mas conseguira finalmente alcançar a faca, desferindo um primeiro golpe, que resvalou raspando na coxa esquerda do animal enfurecido. Porém, sentindo a dor do golpe, que, embora não fosse certeiro o suficiente, fizera algum estrago, soltou o braço de João, correndo de volta para dentro do mato, choramingando feito cachorro ferido. Mas afinal, não era isso mesmo que era o bicho, um cão? Só que era um cão do capeta! Os três rapidamente seguraram o companheiro e o deitaram no chão da varanda. Seu braço estava em carne viva e muito sangue espalhava-se ao redor. Cirino correu até dentro de casa, pegou um litro de pinga e uma toalha velha e, entornando algumas doses de cachaça na ferida, o que fez João

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ver estrelas e quase perder os sentidos de tanta dor porque parecia chumbo derretido atravessando seu braço de lado a lado. Cirino então rasgou a toalha e enrolou no braço de João, que gemia e se mexia tanto, que era preciso ser segurado pelos outros dois para que Cirino conseguisse amarrar a toalha, estancando o sangue. Novamente, em meio a esta confusão, embora ferido, o bicho continuava por ali e aproveitou-se para se reaproximar da varanda. Cirino percebeu o movimento com o canto dos olhos e, rapidamente pegando sua espingarda, levantou-se, o que fez com que todos os outros buscassem fazer o mesmo, mas o bicho já se atirava no ar sobre os três, derrubando-os na varanda. No meio da confusão, os três não conseguiam atinar para onde caíram suas armas. Os olhos vermelhos do animal deixavam-lhes sem reação. Somente Cirino sacou seu facão e partiu para cima do bicho, sem medir consequências. A ousadia de Cirino fora tanta, que mesmo o bicho fora pego desprevenido; simplesmente não esperava que alguém tivesse a ousadia de partir para o contra-ataque. Perdendo o equilíbrio com a investida de Cirino, os dois acabaram se embolando e caindo juntos, rolando para fora da varanda. Enquanto isso os outros dois, que permaneciam estáticos, caíram em si e foram em busca de suas armas que estavam caídas num canto. Em meio à luta, o bicho retomou o controle, arremessando Cirino com grande violência pelos ares, jogandoo no meio do mato. Ao virar para as demais vítimas, encontrou pelo menos o prefeito de arma em punho, pronto para atirar no bicho. O lobisomem não se intimidou com a ameaça que talvez nem reconhecesse como tal e partiu para cima de Sereno, que não perdeu tempo e acionou o gatilho. Mas, para sua surpresa e desespero, a arma travou, dando tempo de o Lobisomem atirarse em sua direção, arremessando-o pelo ar para dentro de um espinheiro com um dar de ombros.

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Neste momento, Zé já estava em desespero e mal conseguia segurar a arma que acabara de pegar do chão. Disparou um tiro que passou longe do bicho, perdendo-se na noite. O bicho avançava para ele, babando-se e em sanha suprema; estava determinado a levar quantos pudesse para o fundo dos infernos. Mas Cirino, que já vinha saindo do mato, viu o bicho na sua varanda, partindo lentamente para cima de seu compadre, como se a saborear o momento. Buscou sua espingarda, mas não estava por perto, então sacou o facão e correu gritando para cima do bicho, chamando sua atenção. O lobisomem deixou sua vítima de lado e virou-se para Cirino, com um brilho especial nos olhos demoníacos; afinal, Cirino era seu principal alvo e teria o maior de todos os prazeres em destrinchar as carnes de seus ossos. Cirino aproximou-se, preparando-se para desferir um golpe de facão, mas seu punho foi detido no meio do caminho pelas garras do bicho que, com a outra pata, o arremessou de volta ao chão à medida que avançava sobre ele. Na varanda, Zé pegou uma faca que estava caída ao seu lado e partiu para cima do bicho que nem se deu ao trabalho de virar, dando-lhe um tapa com as costas da pata esquerda e arremessando-o através da porta nova de Cirino. A porta foi arrancada e ambos entraram com porta e tudo casa adentro. Então eram apenas Cirino e o cão do capeta, que avançava lentamente sobre ele; finalmente o teria em suas garras. Cirino tinha medo, mas estava com muito mais raiva do que com medo. Ia arrastando-se de costas e de olhos no bicho que parecia estar se deliciando com a aproximação gradual e a tentativa de se afastar que Cirino fazia a cada passo do bicho. Então o lobisomem, como a querer acabar de vez com aquela cena e dar finalmente vazão à sua sede de sangue, saltou sobre Cirino, mas foi interceptado ainda no ar por um enorme vulto que, se embolando com ele, rodou para os fundos do terreno, mergulhando no meio do mato e da escuridão. O som era

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aterrador e Cirino podia ver os vultos em luta no meio da noite, sem conseguir definir o que era o quê. De repente, alguém foi arremessado contra a parede da casa, batendo com força e caindo no chão. Rapidamente se pôs de pé e sacudiu a cabeça, pronto para partir para o embate novamente. Cirino então reconheceu o segundo lobisomem que aparecera da outra vez. O lobisomem maior vinha saindo do meio do mato, visivelmente ferido no flanco esquerdo pela facada ineficaz de João Machado e por algum outro ferimento que talvez fosse uma mordida do outro lobisomem menor. A luta prosseguiu e o lobisomem maior, apesar de ferido, ainda levava vantagem sobre o outro. Cirino olhou ao redor e viu seu facão caído. Saltou sobre ele, agarrando-o na mão. A princípio não sabia o que fazer e ficou ali, tentando identificar o que acontecia no meio da briga entre aqueles dois seres sobrenaturais. Mas, com uma mordida no ombro, o lobisomem maior desarmou o menor, que caiu ao chão urrando de dor. E então voltou-se para Cirino que estremeceu, mas se colocou firme, esperando a investida do bicho que não demorou muito. Atirando-se sobre ele, chegou a arrastá-lo de costas na areia seca. O bicho, apesar de evidentemente lutar contra o cheiro da pasta que Cirino colocara no corpo, desferiu um golpe com sua mandíbula aberta na direção do pescoço de Cirino, mas foi contido por um facão atravessado em seu caminho, travando-lhe a mandíbula; Cirino havia interposto o facão entre a boca do bicho e sua garganta, impedindo o ataque que seria inevitavelmente fatal. A luta continuava, mas o bicho parecia não ser muito inteligente, pois apesar da faca estar atravessada em sua mandíbula, continuava tentando investir na direção de Cirino, tamanha era sua sanha. Escutou-se então um estampido. Algo atravessou a testa do bicho e ele caiu desfalecido sobre o corpo de Cirino. No ímpeto de ver o que acontecera e identificar o que em seguida reconheceu como um tiro, Cirino fazia de tudo para tirar o bicho de cima de si, mas o peso era descomunal. Finalmente,

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com um impulso da perna esquerda, conseguiu girar parte do corpo do bicho para o lado, arrastando-se de debaixo do corpo inerte. Levantou-se com dificuldade, olhando ao redor, buscando o atirador que finalmente acabara com todo aquele desespero. Ao pé do araçazeiro estava de pé um vulto ofuscado pela luz da lua. Cirino foi se aproximando e viu surgir diante de seus olhos o coronel Terêncio que estava com um fuzil em mãos. Do cano do fuzil, ainda saía um filete de fumaça. — O senhor está bem, Seu Cirino? Cirino olhou para si mesmo, ainda ofegante por toda aquela luta e se deu conta de seu estado — peito cheio de sangue do bicho, arranhões por toda parte. Olhou de volta para o coronel. — É... Podia sê pior, né não? — E deu um sorriso amarelo. O coronel sorriu junto e Cirino, por mais que achasse estar vendo coisas, identificou naquele olhar do coronel, certo brilho de admiração. Será possível? — Pensou consigo mesmo. O coronel passou então por Cirino e foi até o lobisomem, que já estava a meio da transformação, que ia mudando seu corpo lentamente e tomando as feições de um ser humano. Ainda não se conseguia ver um rosto identificável, pois havia muito de bicho naquela cara em transformação e o processo todo era muito lento. Mas o coronel e Cirino, que também acompanhava a transformação, permaneciam ali, esperando a mutação findar-se para identificar finalmente quem era o pobre diabo, vítima de maldição tão horrível. Aos poucos, seu rosto ia mudando e, junto com o rosto do lobisomem, ia mudando também o semblante do coronel que gradativamente ia reconhecendo a face daquele ser caído diante de si. Subitamente, como num lampejo definitivo, os

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olhos do coronel encheram-se de lágrimas; reconhecera o ser humano diante de si. Cirino olhava, mas não via naquele rosto qualquer rosto conhecido. Estava mais impressionado era com a reação que aquele reconhecimento provocara em Terêncio. Terêncio abaixou-se lentamente, sentindo-se destruído por dentro e já sem se preocupar em manter qualquer postura de autoridade. Sentia como se um punhal estivesse encravado em seu coração, pois não conhecia dor maior do que a dor que sentia naquele momento e que o dilacerava por dentro, destruindo o homem e deixando sair a criança que parecia ter sido suprimida por todos aqueles longos anos. O então coronel nada mais tinha de coronel naquele momento; era um menino que chorava. Terêncio sentia a dor da morte, a dor suprema, a dor de quem perde a alma, a dor de ter matado seu próprio filho. Cirino estava impávido, olhando a transformação e consequente sofrimento impresso no rosto doído do coronel Terêncio, quando, de um estalo, lembrou-se do outro lobisomem. Levantou-se, já olhando para o lugar onde caíra o bicho, mas ele não estava mais lá. Foi andando a passos lentos até o local. Estranhamente não sentia medo. Ele mesmo não se atinha a este fato, apenas caminhava até o local onde viu uma mancha de sangue na areia e alguns capins. O sangue fazia uma trilha para dentro do mato e Cirino pôs-se a andar quase que mecanicamente, buscando o fim daquela trilha que reluzia à luz da lua. Enquanto isso, no céu, uma revolução nebulosa se apressava, prenunciando através de alguns relâmpagos distantes, uma tempestade que se aproximava. Cirino seguia, afastando os galhos de arbustos e espinheiros, não sem espetar-se aqui e ali. Mas estava tão absorto na sua trilha, que quase nem sentia os espinhos que lhe perfuravam as mãos. Talvez estivesse mesmo um tanto anestesiado pela guerra de nervos dos eventos daquela noite.

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De súbito, viu um corpo grande e peludo caído a uns cinco metros, em meio às folhagens de um arbusto pequeno. Aproximou-se lentamente e observou aquele ser caído, ainda respirando ofegante, mas até então, aparentemente desacordado. Com muito cuidado, Cirino foi abaixando-se e olhando a cara do bicho. Era tremendamente pavoroso, mas Cirino não sentia medo. As nuvens no céu começaram a compactar-se sobre a região, cobrindo a lua completamente. Junto com a escuridão que tomou tudo ao redor, um processo de mutação começou a ocorrer no bicho caído. Cirino já vira o mesmo acontecer momentos antes, então sabia que alguma pessoa estaria esperando a revelação ao final daquela transformação. O pelos iam desaparecendo lenta e misteriosamente, como se a pele os fosse absorvendo, enquanto os músculos pulsavam e as articulações estalavam, reduzindo-se e mudando. Cirino observava e seu coração foi acelerando lentamente à medida que surgia a impressão, depois certeza, de que conhecia aquela pessoa. Diante de si, viu desnudar-se da pele demoníaca a pessoa que jamais imaginou poderia estar naquela situação. À sua surpresa mesclou-se a dor, mergulhados ambos num eflúvio mais que sobrenatural que não será dado a qualquer homem entender plenamente, embora sinta em cada átomo de seu corpo. Diante si viu surgir o lindo rosto de seu amor impossível, sinhazinha Lu. Cirino, cujas lágrimas já cingiam sua pele sofrida, de impulso a tomou em seus braços, abraçando-a com força e beijando-lhe a face, os olhos, a boca. Lentamente, certo tremor nas pálpebras revelava que ela estava prestes a acordar. Ao abrir os olhos e ver o rosto manchado de lágrimas de Cirino, assustou-se. Olhou ao redor confusa, buscando entender o que acontecia e onde estava. Alguns flashes do que se passara naquela noite invadiram sua mente, dando-lhe a compreensão um tanto ou quanto confusa, mas, já indubitável, de tudo.

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Tentou um sorriso, apesar da dor que sentia no ombro direito. Seu ombro ferido pela mordida do lobisomem maior. Os dois olhavam-se e silenciosamente existia entre eles um laço que ambos percebiam e já não se preocupavam com dificuldades, com o futuro que teriam. Estavam ali, apenas estavam ali. — Ci-Cirino... Eu... — Xiii... Eu sei... Eu entendo. — Eu sou amaldiçoada, Cirino. Dizia a pobre menina, chorando copiosamente nos braços de seu amado que permanecia sem reação diante de tão grande sofrimento. Cirino compreendia o que se passava, mas jamais conseguiria imaginar a dimensão daquele sofrimento; sabia disso. — Lu... Eu amo ocê. Cirino beijou-a como se a beijasse com a alma. Simplesmente deixou-se esvair naquele beijo, sem pensar, sem querer mais nada neste mundo, a não ser estar ali, abraçado com Luciana. Tudo mais poderia deixar de existir, pois em seu coração pulsava um novo mundo, pronto a substituir este mundo tão sem importância diante daquele momento. Das sombras das árvores ao redor, por trás de uma grande moita, observava-lhes Terêncio, sem que estes percebessem. Ouvira tudo que disseram e sua mente, ainda que conturbada por tanta dor, compreendeu aquele sentimento que viu entre sua filha e Cirino. Era o mesmo sentimento que tivera pela mãe de Luciana. Mas sabia que aquele amor traria sofrimento, sabia que a maldição estaria para sempre entre eles. Será que Cirino suportaria isso? Depois de tanta tragédia, depois de tantas mortes, todas fruto de sua ganância, de sua sanha de poder, finalmente o coração de Terêncio rompera-se diante de tamanha enxurrada de perdas e consequências que finalmente o atingiam com uma força insuportável. Via então, diante de si, a esperança de algo

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novo que surgia como uma flor de lótus nascida no meio do lodaçal. O amor secreto de Luciana e Cirino antes lhe provocaria tempestades de ira, mas agora, depois de tudo, era como um bálsamo cujo significado para si era tão profundo, que seus olhos encheram novamente de lágrimas, que rolaram abundantes, junto com a chuva que começava a cair naquele momento. Terêncio estava nu.

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Três Dias Cirino despertou de um sono pesado na marquesa da varanda. O corpo doía, mas sua mente não se ocupava com isso, tinha apenas pensamentos para Luciana que ajudara a trazer para a casa grande. Ficara ao pé de sua cama até altas horas da madrugada. Terêncio nada disse contra essa determinação silenciosa de Cirino, mas quando faltava pouco para o dia começar a clarear, Cirino rendeu-se ao cansaço, saindo para a varanda e desabando na marquesa, praticamente pegando no sono ao mesmo tempo em que deitava sua cabeça numa velha almofada de renda, que acabou deixando marcas em seu rosto. Os jagunços do coronel olharam para Cirino com uma cara diferente, sacudindo de leve a cabeça, como quem cumprimenta alguém que respeitam. Cirino achou estranho, mas não se prendeu muito a isso. O coronel surgiu na porta exatamente quando Cirino tentava esticar o que era possível de seus músculos, já que a dor se espalhava por quase todas as articulações de seu corpo. Cirino estancou. O rosto do coronel espantosamente parecia muito mais calmo, apesar de visivelmente cansado. — ‘Dia, Seu Cirino. — ‘Dia, coroné. — O senhor faça o favor de entrar, que é pra tomar o café comigo. A noite ontem... O senhor deve estar com fome e precisa se alimentar. Venha. Cirino entrou na casa, assim meio sem jeito, segurando o chapéu com as duas mãos na frente do corpo, dando bom dia até para a parede. Sentou à mesa meio sem jeito. O coronel Terêncio foi logo pegando as coisas com a mão e levando à

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boca, até que parou e olhou para Cirino, que continuava estático, olhando para ele. — O senhor se sirva, Seu Cirino. Não o convidei para me ver comer, ora! Deixe de vergonha, que depois de ontem, o senhor é como se fosse da família. — O seu coroné não se preocupe comigo, não sinhô... — Deixe de avexamento, Homem! Faça o favor de ir se servindo. Cirino foi esticando o braço meio sem jeito e pegando um pedaço de pão. Comeu. Depois pegou mais um e, vendo um pequeno sorriso que surgia na cara do coronel, foi se entusiasmando e logo estava comendo bem à vontade junto com ele. Até que parou com uma metade de pão na mão, enquanto mastigava outra. — Sobre o que aconteceu ontem à noite... Cirino olhou para o coronel e continuou comendo, já sem se preocupar tanto; a comida estava muito boa. —Vou lhe dizer o seguinte: O senhor tomou conhecimento de uma coisa que há muito faz parte da tristeza de minha vida que é esta doença de minha filha Lu. Cirino já foi parando de comer e prestando maior atenção à prosa, voltando a ficar preocupado com o conversê do coronel. — Tenho-lhe o coração grato pelo acontecido de ontem e... Bem, tudo aquilo me fez repensar muita coisa, Cirino. Cirino olhava para o coronel e entendia muito bem todo aquele sofrimento, tanto que não tinha palavras e preferia

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deixar o coronel falar, afinal, toda aquela dor era resultado de uma atitude cega de Terêncio e Cirino, longe de querer julgar o coronel, antes sabia bem que o resultado de tudo realmente desmoronara aquele homem na noite anterior. À medida que o coronel falava, Cirino ia percebendo que o homem de antes morrera diante e junto do próprio filho. Alguém novo surgia a partir de então e Cirino estava ali, testemunhando este nascimento doloroso e longe de ser alegre. — Depois de todos estes anos, foi preciso que eu matasse meu próprio filho, para que a realidade caísse na minha frente, me esbofeteando a alma e finalmente me fazendo perceber o quanto fui ganancioso e cego na minha sede de poder... Parece que a gente só percebe as coisas depois que já não têm mais volta, quando não dá para corrigir os erros. À medida que ia falando, seus olhos enchiam de lágrimas prontas para saltar a qualquer momento, levando junto mais alguns pequenos fragmentos do espírito estilhaçado de Terêncio. Cirino escutava e observava aquele novo homem, cheio de amargura e que nada tinha a ver com o coronel que conhecia. Como uma pessoa poderia mudar tanto numa noite, diante de um acontecimento? — Pensava. — Cirino, eu não lhe contei a história toda. Não lhe disse o que realmente aconteceu quando consegui o cramulhãozinho na garrafa. E acho que lhe devo isso, depois de tudo que aconteceu. — O sinhô não se preocupe com isso, coroné. D. Cambinda já me contô tudo.

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O coronel, pego de surpresa, olhou para Cirino sem saber o que dizer. Misto de vergonha e surpresa. Cirino sorriu meio amarelo. — Coroné, quando fui enfrentá o lobisome, arresorvi seguir o conselho de meu compadre Zé e fui falá com D. Cambinda, pois ela é sabedora desses conhecimentos do além e de ispritos. Ela me contô a história toda. — Sabe, coroné, D. Cambinda é uma pessoa mágica, num sabe? Muito especial. Tem muita bondade naquele serzinho e ela sabe muita coisa. Acho que se num fosse ela e os isprito da luz, como ela memo chama eles, eu num tinha conseguido de dá com as força do lobisome e o bicho tinha acabado com minha raça logo no início. — Pois então, Cirino... Acho que agora é hora de acabar de vez com essas sanhas e maldições que perseguem minha família há tantos anos. Eu fui o causador de tudo isso e agora preciso tentar resolver o que ainda me resta de bom nesta vida. Cirino entendeu que Terêncio estava falando de sua filha, pois nada mais restava a Terêncio e que fosse realmente bom, puro e belo. Pelo menos era assim que Cirino pensava. — Preciso soltar o cramulhão da garrafa, mas não sei como fazer isso, sem que ele resolva se vingar em minha filha. São muitos anos preso ali dentro e ele deve estar com muita raiva; vai sair lá de dentro querendo acabar com tudo de que gosto e que hoje está limitado a apenas uma coisa, Luzinha. — Mas então, seu coroné! Tarvez o sinhô num saiba como fazê, mas com certeza D. Cambinda sabe. Por que o sinhô num vai falá com ela? Garanto que, do jeito que ela é, cheia de bondade, não vai se recusá a recebê o sinhô e inté ajudá!

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— Não sei, Cirino. Acho que sou tão cheio de maldade na minha vida, que ela deve querer manter distância de gente como eu. — Que nada, seu coroné! D. Cambinda é uma pessoa muito diferente de todas as pessoa que eu conheci na minha vida. Só de chegá perto dela a gente já sente que ali tem alguma coisa de especiar. E ela é boa memo, seu coroné! Eu posso apostá como ela vai ajudá o sinhô da melhó forma que pudé. — Não sei, não, Cirino. Terêncio andou de um lado para o outro da sala, parou diante da janela, enquanto pensava na ideia de Cirino. Quem poderia querer ajudá-lo de alguma forma, depois de toda aquela maldade, mandos e desmandos? Será que ela seria uma pessoa realmente tão especial assim, a ponto de lhe estender a mão? — Pensava. Enquanto olhava para fora, com um inspirar profundo, resolveu-se. — Está certo, Cirino! Eu vou. Mas você vai comigo, para me apresentar para D. Cambinda. Não tenho cara para chegar lá sozinho e pedir ajuda; não acredito que tenha o direito de chegar assim e pedir, depois de todo o estrago. — Tudo bem, seu coroné. Eu vô com o sinhô lá na casa dela. Também quero sabê um jeito de livrá sua fia dessa mardição do capeta. Quem sabe nós num conseguimos pegá dois calango numa arapuca só? O coronel achou graça da forma como Cirino falou, mas não conseguiu ir muito além nesta diversão fugidia; a dor e a culpa não deixavam. Os dois resolveram ir até lá, assim que Luciana acordasse. A verdade é que isso levou três dias para acontecer. A menina estava muito ferida a princípio e ferrada num sono profundo, que ninguém tinha coragem de tirá-la. Donana

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cuidava de seus ferimentos com muito zelo e eles iam cicatrizando numa velocidade surpreendente; o que levaria semanas para sarar, parecia levar apenas horas. Assim que acordou, perguntou por Cirino, que passara os três dias trabalhando e dormindo na fazenda, para poder estar perto de Luciana, quando esta acordasse. Está certo que foram três dias sem grandes movimentos na fazenda, pois tudo permanecia parado, como se o estado de Luciana deixasse a todos mergulhados numa suspensão. Portanto, Cirino passava a maior parte do dia por ali mesmo; muitas vezes na varanda da casa grande. Cirino estava na varanda na hora em que Luciana chamou por ele. Donana olhou para o coronel que assentiu com a cabeça, levantando-se da cabeceira e indo até a varanda chamá-lo. Cirino, que estava sentado no último degrau da escada, consertando uma enxada, levantou de um salto, largando tudo quanto segurava e limpando o suor das mãos na calça surrada. Com os olhos em atenção, entrou correndo na casa, assim que Donana disse que Luciana acordara e chamava por ele. Chegando ao quarto, seus olhos se encheram de lágrimas, como se uma grande represa de tensão emocional cedesse de repente. Correu até a cama, pegando nas mãos da menina, enquanto esta ensaiava um pequeno sorriso sonolento. — Cirino, meu Cirino. Eu estou bem, viu? Não se preocupe. Cirino não conseguia falar e, enquanto as lágrimas de alívio e sentimento desciam por seu rosto, beijava repetidamente as mãozinhas de sinhazinha Lu. Terêncio olhava com um pequeno sorriso apertado entre os lábios, aliviado também por ver sua filha novamente acordada.

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O sol já começava a se pôr, quando Cirino e Terêncio saíram do quarto para a varanda do casarão. Os dois tinham em mente o mesmo assunto e era apenas uma questão de quem falaria primeiro. Terêncio tomou a iniciativa. — Então, Cirino, amanhã de manhã cedo nós vamos até a casa de Da. Cambinda. Vou levar a garrafa com o cramulhão. Cirino olhou nos olhos do coronel e fez que sim com a cabeça, dando boa noite e, descendo as escadas que davam para a varanda da casa grande, parou no último degrau. Voltando-se para o coronel, disse: — Coroné. Quarqué mudança no estado de sinhá Lu, o sinhô me avisa? — Pode deixar, Cirino. Vá tranquilo, pois faz três dias que sua casa está abandonada e com a porta da frente destruída. Foi então que Cirino deu-se conta disso. Como será que estavam as coisas? E seu compadre, estaria bem? E os outros? Não sabia de nada e, até então, não atinara para mais nada que não fosse a saúde de sinhazinha Lu. Deu um “boa noite” para o coronel e seguiu junto com o sol que se ia pondo por trás da serra distante, iluminando de fogo toda a vegetação da região. Em sua mente, Cirino tentava imaginar como estariam as coisas. Estava ansioso para descobrir um jeito de livrar sinhazinha Lu da tal maldição e assim, nada mais os impediria de ficarem juntos de uma vez por todas.

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A Dura Verdade Zé assustou-se em seu cochilo, deitado na rede e acordou sobressaltado, com a garrucha nas mãos, já apontando para a porta, ou se poderia melhor dizer a entrada da casa, já que a porta estava destroçada num canto, perto do fogão a lenha. Zé não dormia direito fazia tempo. Seus sonhos eram mais pesadelos do que qualquer outra coisa. Era um dormir e acordar a todo instante durante a noite que parecia não ter jeito. Sentia dores no corpo, da sova que tomara ao enfrentar o lobisomem junto com os outros homens. Estava com muitos arranhões e uma dor no peito que incomodava há três dias. Ser jogado contra a porta com tal violência teve lá suas complicações, mais do que poderia imaginar. Mas, mesmo estranhando e sentindo até um arrepio, quando viu a sombra assomar-se à porta, logo se aquietou, reconhecendo na silhueta seu compadre Cirino. — Graças a Deus! Ocê tá bem, homi? Faz três dia que ocê num aparece. Se num fosse uns homi do coroné vir avisá que ocê tava lá, aos pé da cama da menina Lu, eu ia ficá pensando que ocê tava acabado, depois da briga com o bicho. Cirino riu de Zé, mas logo ficou sério novamente, em respeito a seu amigo de tantos anos. Afinal de contas, sua preocupação era mais que legítima. — E ocê tá bem, cumpadre? Me lembro de vê ocê avoar direto contra a porta, atravessando com tudo, depois que o ‘coisa ruim’ te varejô. — Ah, compadre! Só alguns arranhão, uma dô aqui, outra acolá... Mas acho que num aconteceu nada de pió comigo, não. Mas... E então? É verdade que o coroné matô memo o

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bicho e que o tarzinho era seu fio Edgar que andava sumido há muitos ano? — É, Compadre... Uma disgracera só. Mas se o tiro num matasse o bicho, quem tava finado era eu. O coroné apareceu na hora certa. Mas sabe... O coroné tá que é de dá pena, compadre. Quem poderia imaginá, que o lobisome era seu fio? Quando o coroné viu o bicho desvirá nas carne do fio, quase ficô louco. E eu vi uma montanha desmoroná na minha frente, compadre. O coroné se mudô em outra pessoa; parece que perdeu inté o gosto de vivê. — É memo, compadre? — E num tô lhe dizendo? Acho memo que o que tá segurando o homi nessa vida é sua fia, que é a única coisa boa que sobrô pro véio. — Mas e agora? Cumé que as coisa vão ficá? Joana me disse que tá um rebuliço na cidade, por conta das história que o prefeito Sereno e o Delegado andam contando por lá. Cada um conta uma história mais cabeluda que a outra, como se tivessem enfrentado o bicho cheios de heroísmo. Cirino riu novamente, dessa vez mais largamente e pensou consigo mesmo: — Esse povo num tem jeito memo! — Eu já sabia que isso ia assucedê, compadre. Esse povo adora contá um causo, ainda mais depois de passá por um fuzuê desse tamanho. Mas ocê num sabe, compadre! — Então diga, homi. — Nessa história do cramulhão, que ocê acabô de me perguntá... Pois então! Nós num sabia o que fazê, mas aí eu lembrei de D. Cambinda e dei a ideia de a gente ir inté lá, pra vê se ela num podia ajudá nós. — E o homi? Aceitô assim? — Óia! No princípio ele ficô meio assim, mas eu insisti e ele pensô, pensô, inté que decidiu que nós vamo amanhã

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de manhã falá com ela. E ele vai levá a garrafa com o cramulhãozinho dentro. — Nuss! Depois ocê me conta o que aconteceu, compadre! — Pode deixá, compadre! Agora, deixa eu drumi que amanhã tenho que acordá cedinho. E ocê pode ficá por aqui inté amanhã, num precisa de saí no meio da noite. — Nada disso, compadre! Joana tá me esperando em casa. Eu vô hoje memo. — Ocê que sabe, compadre! Num vejo necessidade de sair desesperado por aí, mas se ocê qué ir, então vai com Deus e, antes de mais nada, muito obrigado por tudo. Ocê foi muito corajoso enfrentando o bicho e, depois, cuidando da minha casa, enquanto eu tava lá na fazenda do coroné. — Que isso, compadre! Nós é amigo desde criança, ora! E eu ia deixá sua casa largada e de porta aberta, pra ficá entrando bicho aqui dentro? Quando precisá é só chamá, que eu tô sempre pronto a ajudá ocê. Cirino meneou a cabeça, com um profundo sentimento de carinho por seu amigo e com o peito transbordando de gratidão. Zé era mesmo seu amigo e mais de uma vez provara isso. Mas desta vez, mostrou que amizade dos dois não tinha mesmo limites. Os dois despediram-se e Zé saiu meio capenga pela porta, dando boa noite e metendo-se estrada afora. Cirino olhou ao redor, vendo o estrago de três noites atrás. Novamente a porta! Pensou. Coçou o cocuruto, respirou fundo, soltando um suspiro. Bebeu um copo de água da cabaça e foi deitar-se na rede. O dia seguinte era uma incógnita. Será que D. Cambinda teria uma solução? Não conseguia parar de pensar em sinhazinha Lu. Se D. Cambinda não tivesse uma solução, Cirino faria de tudo para descobrir um jeito de salvar sinhazinha Lu daquela maldição. Cairia no mundo, se fosse preciso, atrás de

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uma solução, mas jamais desistiria de Luciana; jamais desistiria desse amor que nunca imaginou seria capaz de sentir, até porque jamais acreditou que um sentimento desta dimensão existisse e que alguém um dia pudesse senti-lo, muito menos ele próprio. Cirino acordou meio assustado, com o galo cantando bem no meio da cozinha. O bichinho tinha entrado pela porta escancarada e cantara para o sol nascente, pousado bem em cima do fogão. Enxotou para fora de casa o bicho que saiu cacarejando, como que reclamando do tratamento. Apesar do susto, Cirino riu da situação. Precisava dar um jeito naquela porta. Foi até lá fora e pegou umas tábuas velhas que estavam encostadas à casa, perto do poço. Deu um jeito da melhor forma que pôde nos restos de porta que estavam caídos dentro de casa, criando uma versão meio troncha, mas que servia muito bem para quebrar um galho e pelo menos evitar a entrada de bichos dentro de casa. Encostou a porta improvisada no lugar devido e amarrou com um pedaço de corda. Afastou e deu uma olhada, para ver se estava a contento. Fez uma careta, mas achou que estava bom assim mesmo. Pelo menos serviria temporariamente. Quando voltasse da casa de D. Cambinda resolveria o caso. Cirino foi até o poço, jogou o balde e puxou. Encheu outro balde com a água e foi até o tanque onde despejou na cabeça e lavou-se. Enxugou-se na toalha velha que estava pendurada, calçou as sandálias e estava pronto. Deu outra olhada na casa, o terreno meio bagunçado da luta com o lobisomem, mas isso ele ajeitava mais tarde. Achou que estava tudo bem, então se pôs a caminho da fazenda de coronel Terêncio.

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Começava a fazer a pequena curva de subida do monte de onde já perdia de vista sua casa, quando deu com o coronel chegando a cavalo e trazendo outro pelo arreio. — ‘Dia, Cirino. — ‘Dia, seu coroné. — Trouxe esse cavalo, que é para chegarmos logo na casa de D. Cambinda. O senhor faça o favor de montar. Cirino não montava a cavalo havia muito tempo, mas essa é uma daquelas coisas que a gente aprende e depois nunca esquece. E Cirino não teve dificuldades, nem de montar, nem de guiar o bicho. Assim, os dois se puseram a caminho da casa de D. Cambinda que ficava no pé da serra, a umas duas léguas da casa de Cirino. Não levariam muito tempo para chegar. Aquele dia estava nublado e o clima agradável. Os dois seguiram em silêncio. Terêncio tentava imaginar o que encontraria e o que diria a velha Cambinda. Por mais que tentasse abrir sua mente para tudo aquilo, ainda lutava com a insistente altivez, que sempre tivera em relação às pessoas mais simples e que agora repudiava fortemente. Cirino percebera um saco muito bem atrelado à sela do cavalo de Terêncio, onde provavelmente estava a garrafa com o capetinha enclausurado. Apesar de ter esperança de que Cambinda pudesse resolver o problema, seguia cheio de dúvidas, pois não saía de sua cabeça a possibilidade de que não existisse uma solução fácil. Argumentava consigo mesmo o fato de que Cambinda mais do que entendia desses assuntos do além e que saberia como solucionar a maldição, mas permanecia lá com suas dúvidas e inseguranças a respeito do assunto, até porque tudo aquilo era muito incerto e tratar com coisas do além sempre dava a impressão de que umas coisas davam certo e outras não, simplesmente porque não havia uma fórmula que servisse para dois casos diferentes. Sua insegurança vinha exatamente deste

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pensamento. Não queria imaginar um caso sem solução. Todo caso tem uma solução! Por mais que nós num consiga vê, a solução tá ali, só esperano a gente achá! – Tentava se convencer, pensando repetidamente nesta afirmação. Começaram a ver a casa de Cambinda ao longe, por entre a vegetação. A serra estava meio encoberta por uma camada espessa de nuvens daquele dia nebuloso, o que chegava a dar um ar de mistério ainda maior a tudo quanto estava envolvido.

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Iam se aproximando quando viram Cambinda sair pela porta, com um sorriso no rosto enrugado e amável. Cirino sorriu. O coronel não sabia como se comportar e apenas seguiu em frente até chegarem à porta de sua casa e apearem. — ‘Dia, D. Cambinda. Disse Cirino. — ‘Dia, Seu Cirino. Tava esperando ocês. Aquela afirmação sempre desconcertava Cirino, mas dessa vez ele sentiu-se à vontade e abriu ainda mais seu sorriso, como se fosse um garotinho. Cambinda olhou para Terêncio e, com um menear de cabeça, como que numa afirmação, cumprimentou o coronel. — ‘Dia, seu coroné. — ‘Dia, D. Cambinda. Disse o coronel um tanto sem jeito. — Seja bem-vindo. Ocês queira esperá aqui, pruquê o que é preciso fazê, nós vai fazê na beira do rio. Cambinda entrou na casa e os dois ficaram esperando. Terêncio ficou ali matutando: — Como ela sabia que nós estávamos chegando? Não demorou muito e Cambinda veio saindo com um saco cheio de coisas que os dois não conseguiam imaginar o que seriam. Ela fez com a cabeça a direção que seguiriam e partiu na frente, acompanhada pelos dois. Foram assim entrando no mato por uma trilhazinha estreita, tendo que afastar alguns galhos de plantas ao redor, alguns espinheiros, que vez ou outra lhes picavam os dedos e a mão. Chegaram num ponto do rio cuja margem era bastante pedregosa e onde, ao centro, havia uma pedra grande e chapada. Cambinda foi até lá, fazendo sinal para que eles esperassem e riscou uns desenhos na pedra. Terêncio sabia por experiência própria que eram desenhos de

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magia e que serviam para evocar espíritos, muito embora não conseguisse identificá-los. Cirino sentia-se naquele estado de respeitoso suspense, observando atentamente Cambinda em seus movimentos e afazeres que se resumiam em tirar coisas do saco e preparar tudo. Depois de falar algumas palavras num idioma que os dois desconheciam, pareceu ficar quieta, esperando alguma coisa. A suave brisa que rondava por ali pareceu se intensificar, movimentando as folhagens da mata com mais energia. Cirino sentiu no ar um perfume que lhe pareceu familiar. Tentava lembrar-se de onde conhecia aquele perfume, mas não conseguia. De repente, o vento parou. Os dois se entreolharam e depois, voltaram a olhar para Cambinda, que continuava quieta. Então, num movimento suave, Cambinda pegou um charuto que estava preparado à sua frente, levou-o a boca e acendeu. Depois de duas baforadas, fez sinal para que os dois se aproximassem. Então, indicou o local onde cada um deveria sentar-se. Assim que os dois se sentaram, Cambinda encheu duas pequenas metades de coco com um líquido barrento que estava numa cabaça, cuja tampa era fixada ao gargalo com um emaranhado de fios de palha trançados. Cirino levou o líquido à boca e virou de uma vez só. Já Terêncio, cheirou o líquido antes, como querendo identificar aquilo. Cambinda fez sinal para que ele bebesse e Terêncio virou tudo de uma vez, fazendo uma careta e até tossindo um pouco, com a acidez da bebida. Cambinda deu uma risadinha e voltou a baforar no charuto mais uma vez. Enfiou a mão no saco, tirou um pequeno círculo com vários fios amarrados, cruzando-se ao redor, em seu interior e colocou diante do rosto de Terêncio, falando uma frase numa língua que Terêncio desconhecia. Em seguida, pegou o objeto circular e colocou à sua frente, sobre a pedra, no

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centro de um desenho de uma estrela de cinco pontas, rodeada por um círculo maior. — Me dê o isprito na garrafa, mizinfio. Terêncio desatrelou a sacola do cinto e de dentro tirou a garrafa, com o ‘cramulhãozinho’ mexendo-se frenético lá dentro. Assim que viu Cambinda na sua frente, o diabrete num salto, como se quisesse fugir, colou-se de costas ao vidro do lado oposto da garrafa. Cambinda pegou a garrafa das mãos de Terêncio e colocou no centro do círculo. O diabrete olhava para tudo ao redor, visivelmente nervoso com o que poderia acontecer. Enquanto isso, a velha mexia mais uma vez no saco e tirava um ramo de ervas amarrado com um pedaço de palha. De um pote, tirou um punhado e pó preto e salpicou o ramo de ervas. Em seguida, pegou uma garrafinha, desarrolhou e deixou escorrer um líquido pegajoso, sobre o ramo de ervas. Passou então o ramo de ervas por todo o vidro da garrafa, enquanto cantarolava uma música estranha e cheia de nuances. Os dois acompanhavam atentamente o que a velha senhora fazia. Colocando a mão novamente dentro do saco, Cambinda pegou uma machadinha indígena que parecia ser muito antiga, decorada com penas verdes e cordões vermelhos. Levantou a machadinha em direção ao céu e falou mais algumas palavras no estranho idioma. O vento voltou a movimentar-se ao redor dos três, chamando a atenção de Cirino e Terêncio que olharam ao redor. Cambinda elevou a voz, quase berrando e o vento aumentava de velocidade, num redemoinho que movimentava as folhagens da mata, muito embora no centro permanecesse tudo calmo. Cambinda segurou o gargalo da garrafa onde estava o ‘cramulhão’ e num movimento rápido, porém cuidadoso, bateu a machadinha logo abaixo de onde segurava, quebrando a garrafa em minúsculos fragmentos, que desintegraram no ar

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como poeira. No mesmo instante, percebendo o que se dera, o pequeno diabrete tentou escapar, chocando-se contra uma parede invisível que parecia existir nos limites do círculo que rodeava a estrela desenhada na pedra. Meio atordoado, olhou ao redor, fixando-se em Cambinda, que olhando para o pequeno ser, ofereceu-lhe o conteúdo da garrafinha, cujo líquido jogara no ramo de ervas. Ressabiado, o pequeno ser aproximou-se da garrafa e, como se reconhecesse o que era, meteu a boca no gargalo, bebendo avidamente o conteúdo. Cambinda retirou a garrafa então vazia e colocou do lado. Fez alguns sinais na frente do pequeno ser e disse mais algumas palavras ininteligíveis. O diabrete então se curvou numa reverência à Cambinda e começou a crescer. À medida que crescia, perdia também a opacidade, como se adquirisse uma textura fluida e vaporosa. Cresceu até ficar com meio metro. Cirino estava com os olhos esbugalhados; nunca vira algo assim em toda a sua vida. Era uma tensão entre medo e surpresa. Afinal, pela primeira vez, estava lidando com esses espíritos ali, ao vivo, sem que fosse em “sonhos”. — Antes de libertá ocê de vez, é preciso que ocê tire a mardição da família do coroné. Ele tá arrependido do mal que lhe fez e já sofreu muito pelos ato cometido. Ocê já teve sua vingança, agora precisa se libertá desse sentimento, para podê corrê em paz pelas mata, senão vai ficá livre da garrafa, mas preso ao coroné. Disse Cambinda. O espírito olhou para Terêncio com os olhos vermelhos de raiva, mas no que acabara de ouvir, reviu todo o sofrimento que a família de Terêncio passara e foi mudando o semblante, até que seus olhos ganhassem a mesma textura do restante de seu corpo vaporoso. Olhou novamente para Cambinda.

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— Vossemecê me sortô e diz coisas certas. Ainda sinto uma amargura por todos esses anos preso nessa arapuca, mas vejo que vossemecê tem razão. Os dois lado já sofrero muito e tá na hora de pará o giro dessa roda. Eu liberto Terêncio da mardição que joguei em sua famía, mas há coisas que num posso disfazê. Terêncio franziu a testa, tenso. — Intão fale, isprito. Disse Cambinda. — A mardição que caiu sobre sua fia poderia ser tirada, mas quando Terêncio matou o fio, a sanha que tava nele, foi se juntar com a sanha que tava na menina. Além disso, ele fez muita mardade por essa vida e agora a coisa toda acumulô no seu lombo. Isso eu num posso mais arresorvê; ele vai tê que buscá outra ajuda. Cirino escutava tudo aquilo e uma revolta mesclada à tristeza apoderou-se de seu espírito, enchendo-lhe os olhos de lágrimas que rolaram poderosas por seu rosto. Lembrava das histórias contadas, tanto pelo coronel, quanto por Cambinda, juntando as peças. Tudo aquilo era realmente muita coisa, sem falar nas maldades do coronel que só ele mesmo poderia saber de que tamanho eram. Cirino estava ali, lágrimas caindo e sentindo-se acuado, de mãos atadas. Cambinda olhou para Cirino. — Cirino, o sinhô seja forte e mantenha a fé. Agora num é momento pra deixá caí a fé que conseguiu. Seja forte! Cirino limpou os olhos, tentando a todo custo eliminar aquele senti- mento opressivo que o tomava quase por inteiro. Tentou afastar de si a ideia de que o caso de Luciana não tivesse

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solução. Talvez ainda existisse uma saída. E foi pensando assim que, respirando fundo, conseguiu restabelecer seu equilíbrio. Cambinda, depois de ver que Cirino se recompunha novamente, voltou-se outra vez para o espírito diante deles. — Num existe caso sem solução nessa terra de Deus. Ocê diga intão o que nós podemo fazê, para arresorvê. O espírito pensou por um instante e disse: — É verdade. Tudo tem solução nessa vida. E esse caso tumem tem lá sua solução. Mas a solução num é fácil. — Então diga, isprito. Reforçou Cambinda. — A única forma de acabá com a força da mardição, dispersanu as energia é dipindurá no pescoço da menina, na primeira noite de lua intera, no momento em que ela tivé começando a se virá em lobo, um muiraquitã. — Muiraqui... o quê? Perguntou Cirino. — Muiraquitã, Cirino. Disse Cambinda. Muiraquitã é um amuleto poderoso dos índio. Num é tão difícir de achá. — Ah! Mas é aí que as coisa complica, pruquê para fazê o efeito certo, tem que sê um muiraquitã feito por índio de Paititi, cidade perdida no tempo. Tem que sê achado no lugá sagrado de Paititi. O muiraquitã que foi do pajé daquele povo antigo. Esse muiraquitã tem podê. Muiraquitã dos índio de hoje num serve pra esse tento, pruquê é muito fraco; só serve para infeitá. Disse o espírito. — Mas se a gente encontrá esse tar de mui-muiraquitã e fizé tudo direitinho, então ela se livra da mardição? Perguntou Cirino. — Se vossemecê achá e fizé tudo certo, como eu disse, ela fica livre pra sempre. E vossemecês pode inté casá. Completou o espírito, dando uma risadinha safada.

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Terêncio ainda tinha um semblante aflito. Pensava consigo mesmo em como faria isso. Nem ao menos entendera direito que negócio era esse tal de muiraquitã e onde achar esta tal de Paititi. Estava confuso. — Eu vô! Disse de repente Cirino. Todos olharam para Cirino. — Eu vô atrás desse muiraquitã. Num tenho dinheiro, num sei pra onde ir, num tenho nada nessa vida, só o amor de Luzinha e isso eu num quero perdê. Vô inté o fim do mundo, se precisá. Cambinda meneou afirmativamente a cabeça, enquanto o coronel ainda estava situando-se no que acabara de ouvir. O espírito olhou para Cirino. — Ocê tem uma missão nessa terra, posso vê nos seus óios. É ocê memo que precisa de ir. Mas eu vejo tumem que ocê num vai sozinho; tem o povo índio do seu lado no mundo dos isprito. Ocê vai tê muita ajuda, moço. Mas o caminho num vai sê fácir. Vai tê muita peia. Ocê vai precisá de sê forte. Olhando continuou.

novamente

para

Cambinda,

o

espírito

— Agora, ocê me sorta? — Sim. Ocê pode ir. Está livre. Mas se tivé mentindo, os guia vão atrás de ocê. - Avisou Cambinda. — Essa é a verdade. Ocê num se engana, não. Eu respeito ocê, pruquê os grande respeita ocê. Agora, por favô, me sorte como prometeu. Cambinda fez que sim e, jogando uma cuia d’água sobre o desenho, apagou metade do círculo e da estrela, libertando o espírito, que se esvaiu no ar, enquanto flutuava veloz em

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direção à mata, mas não sem antes olhar para Cirino e dizer com uma voz que sumia no ar: — Paititi está nas floresta do tempo. Ao retornarem à casa de Cambinda, Terêncio chorou convulsivamente pedindo perdão de tudo que fizera. Parecia que tudo aquilo que estava acumulado no coração do velho coronel durante todo um longo tempo, simplesmente desaguava ali, na frente de Cambinda e Cirino. Terêncio, aproveitando então aquele deságue, abriu de vez seu coração, contando os detalhes de sua sede por poder e como fora injusto com o feiticeiro que só queria lhe mostrar o caminho certo, mas que, cego como estava, não quis prestar atenção nas advertências daquele homem. Cirino que antes andava com algo entalado na garganta em relação a isso tudo que o coronel fizera, simplesmente sentiu-se penalizado por aquele resto de homem que estava ajoelhado diante de si, completamente arrependido e humilhado por sua própria vergonha. Cambinda apenas observava e nada dizia. Foi Cirino que tomou a frente e ajudou o coronel a se levantar, olhando em seus olhos e dizendo que o perdoava, quando ele deveria fazer o mesmo por si próprio. Chamou Terêncio de volta à coragem, pois precisaria disso para que as coisas pudessem ser consertadas. Cambinda, que observava, aprovou meneando a cabeça e sorrindo levemente, admirando a atitude íntegra e fraterna de Cirino que revelava ser um grande homem. Terêncio, depois de limpar as lágrimas e beber um copo de água que Cambinda lhe dera, despediu-se e agradeceu a Cambinda, por lhe ter tirado tamanho peso dos ombros. Agora era seguir em frente e tocar a vida de uma maneira nova. Cambinda pedira a Cirino para esperar. Então, antes de ir, Terêncio combinou com Cirino de se encontrarem no dia

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seguinte, pois ele daria o suporte necessário para que Cirino fosse à busca do tal muiraquitã. Não podia fazer muito, embora sua vontade fosse ir ele próprio em busca do objeto mágico, mas além de desconhecer qualquer coisa sobre o assunto, ouvira do próprio espírito o vaticínio de que Cirino era o escolhido. Começava a entender que tudo estava interligado de alguma forma. O próprio sentimento que nascera entre ele e sua filha Luciana era um detalhe que agora começava a fazer sentido também, pois parecia completar o quadro. Um plano misterioso parecia existir por trás daquilo tudo e talvez Cirino fosse mesmo a chave para que as coisas voltassem ao normal. Assim que Terêncio se foi, Cambinda convidou Cirino para entrar, mandando-o deitar em sua cama, não sem antes dar-lhe para beber o mesmo líquido que outras vezes Cirino bebera. Logo, Cirino via esta realidade esvair-se e mudar-se em uma conjunção de imagens fluidas que bailavam diante e ao redor de si. Sentia-se leve como uma pluma e viu-se novamente deitado à beira do mesmo riacho naquela floresta de cores sobrenaturais onde sabia que logo encontraria seu amigo que gostava de chamar de índio “fantártico”. Não demorou muito e logo o índio veio surgindo por entre as folhagens, acompanhado do pequeno curumim, que, sorrindo, beijou a face de Cirino que, por sua vez, também se sentiu muito feliz. O índio aproximou-se e sentou-se em frente a Cirino. Cirino também sentou e o índio meneou positivamente a cabeça, sorrindo para Cirino, enquanto colocava a destra sobre seu ombro. Cirino também sorriu, sentindo no índio um amigo especial que estava cuidando dele e guiando-o naquele mundo diferente que Cambinda chamava de mundo dos espíritos. — Ainda falta você saber de umas coisas, Cirino.

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Cirino permanecia olhando atento para o velho índio, mas pensava: — Ainda tem mais? Isso num tem fim? Cirino não sabia, mas seus pensamentos eram formas naquele lugar e podiam ser lidos por todos os seres, e acabaram de fazer o velho índio sorrir para Cirino. — Sim, ainda há mais coisas. Falta você saber quem era seu pai. Cirino empertigou-se e prestou mais atenção no que o índio falava. Não entendia bem o porquê de falar de seu pai naquele momento; a coisa parecia não ter sentido algum. — Seu pai, que um dia conheceu sua mãe e que depois sumiu neste mundo, na verdade nunca deixou de pensar em você. Sim, Cirino. Ele ainda está vivo e você vai encontrar com ele em sua futura jornada. — Num sei se quero conhecê ele... Tumém, nem sei como ele é! — Você vai saber, Cirino. Você vai saber. Seu pai é um homem poderoso, mas não como Terêncio. Seu pai é um poderoso mago, alguém que fez parte de toda essa história, depois que conheceu sua mãe. Ele partiu, porque foi preciso que partisse. — Espera! Meu pai era o tar feiticeiro que tentô ajudá o coroné? — Sim, Cirino. O nome do feiticeiro é Guilherme e ele é seu pai.

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Cirino estava embasbacado com aquilo que acabara de ouvir do velho índio. Não sabia o que pensar, mas tentava ligar tudo. Aquela história toda estava mais enrolada do que imaginava e nunca pensou que pudesse estar tão envolvido em tudo desde tão cedo. O índio continuou. — Depois daquilo tudo, Guilherme saiu pelo mundo, tentando limpar-se do que havia acontecido, pois a maldição acabou por respingar nele. Vagou por anos e anos, até encontrar um velho pajé, numa distante e isolada tribo aos pés da cordilheira dos Andes, que o livrou dos demônios que o perseguiram incansavelmente, abrindo-lhe as portas de Paititi novamente para ele. Sim, Cirino. Seu pai foi o único homem destes tempos que um dia chegou a Paititi, onde aprendeu tudo que sabia. Seu envolvimento com Terêncio e a forma desajeitada com que lidou com a situação, gerou consequências para ele. Mas, mesmo com a ajuda do pajé e livre dos espíritos que o perseguiam, Guilherme estava cansado da convivência com as pessoas do mundo e pediu para ficar em Paititi, pois precisava de tempo e estudo de si mesmo para voltar a recuperar aquele contato com seu ser de pura luz que perdera naquela aventura funesta. Os sacerdotes de Paititi e o pajé atenderam seu. O pajé se dispôs a ajudá-lo sempre, pois conhecera em seu coração um homem de valor e de grande conhecimento; um ser iluminado que buscava a redenção. Agora você entende o porquê de tudo, Cirino? Você tem uma missão, que vai muito além de salvar a mulher que ama de uma maldição terrível. Dependendo de como estiver seu coração, ao encontrar seu pai isso poderá significar o coroamento de seu arrependimento. A separação do passado que gerou feridas de ausência se fechará de uma vez por todas, trazendo a harmonia e o amor de volta às suas vidas e limpando

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as sombras que um dia uma tempestade deixou pelo caminho de ambos. Cirino estava muito confuso com tanta informação que entrava em sua cabeça naquele momento e sabia que precisaria de certo tempo para ir juntando as coisas e, então, todas pudessem fazer sentido do jeito dele, do jeito que Cirino sabia pensar. Então, deixou um pouco o assunto de lado e se lembrou de sinhazinha Lu; pensou na difícil missão que tinha pela frente, mas não desanimou. Sabia que a viagem seria longa e não tinha nem ideia de por onde começar direito. Afinal, Cirino nunca saíra daquele lugar e seria sua primeira vez no mundo. Além de buscar e encontrar o muiraquitã, também encontraria novamente com seu pai. Será que estava preparado para tanto? Duvidava de si mesmo. Sabia que encontraria muitas dificuldades nas diversas curvas daquela estrada a ser percorrida a partir de então. — Não vamos nos ver por um bom tempo, mas estarei observando seus passos e ajudando no que me for permitido. No entanto, essa missão é sua e o esforço terá que ser seu. — Eu sei. Disse Cirino. Quero acabá com essa mardição que assombra minha Lu. Mas encontrá meu pai... Ainda num sei, não. O índio sorriu largamente, fez que sim com a cabeça e levantou-se, estendendo a mão para Cirino, ajudando-o a levantar. Enfiando a mão nas águas da cascata que caía perto deles, tirou de dentro um cristal que cintilava à luz do sol. Cirino olhava maravilhado o cintilar daquela pedra que a seus olhos parecia coisa do outro mundo. Mas, afinal, ele não estava no outro mundo mesmo, uai?! Pensou e achou graça da obviedade. O índio olhou novamente para Cirino e encostou o cristal em seu peito, fazendo com que Cirino sentisse vertigem

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à medida que um formigamento se espalhava por todo seu corpo, partindo do local em que o cristal tocara. Várias cores bailaram à sua frente, sem que Cirino per- desse a consciência e nem deixasse de ver a floresta ao redor. Era uma situação estranha e completamente diferente de tudo o que vivera desde que começou a visitar aquela outra realidade tão diferente da realidade que sempre viveu. As cores rodavam no ar, envolvendo seu corpo por todos os lados, ora passando por debaixo de suas pernas, ora enlaçando-o por sobre os braços, como se fossem levantá-lo no ar. Seus cabelos esvoaçavam em meio às cores que, por entre os fios, penetravam, dando uma sensação de frescor no couro cabeludo. Lentamente, as cores foram se dissipando e mesclandose à floresta ao redor, como se passassem a fazer parte da própria textura da floresta. — O toque deste cristal dos antigos fortalecerá sua alma para quando você estiver em momentos sombrios e difíceis em que até mesmo a fé mais fervorosa vacila. Nos embates que seu próprio coração lhe reserva no caminho que seguirá, ele será um alento a mais iluminando sua estrada. Aqui nos despedimos, Cirino. Paititi fica para o norte. As tribos que ainda mantêm sua pureza estão dentro da floresta profunda, a floresta do tempo. Que aquele que tudo sabe e tudo criou abençoe seu caminho por essas andanças. O povo da floresta segue com você. Os ancestrais de todas as raças velam por você. Vá, meu filho. Vá. Com um toque de seu indicador na testa de Cirino, este se viu mergulhar num turbilhão de imagens, numa velocidade estonteante, sentindo-se cair vertiginosamente e entrar em seu próprio corpo violentamente, como se caísse de cima do telhado. Seu estômago revirou violentamente e Cirino virou-se de lado na cama rapidamente e vomitou no chão. Neste momento, viu balançar no cordão pendurado em seu pescoço, o cristal,

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justamente no lugar onde estava antes a medalha que o protegera do lobisomem. Segurou a pedra translúcida com a mão e olhou em seu interior, em que cintilavam, através de sua superfície facetada, pequenas estrelas da cor do arco-íris. Cirino quase pôde sentir novamente o frescor daquelas cores que bailavam ao seu redor no outro mundo. Olhou para frente e viu Cambinda sentada num banquinho, sorrindo para ele, como se tivesse presenciado tudo que Cirino vivera do “outro lado”. Mais tarde, antes de voltar para sua casa, Cirino perguntou a Cambinda sobre o tal espírito que estivera preso na garrafa por tanto tempo. Era um diabo? Um capetinha? Pensava que era uma coisa do inferno, coisa do demônio, mas ficara com dúvidas, depois do ritual em que Cambinda o libertou. Afinal, parecia que ele era apenas mais um espírito. — Cirino, ocê tá certo. Ele era apenas um isprito da natureza. Essa coisa de inferno, diabo, demônio é tudo coisa dos homi. Deus criô isso tudo que a gente vê e mais as coisa que a gente num vê, mas num criô nada de ruim. Ele criô as coisa pra elas aprendê com a vida e crescê, só que a maioria de nós num sabe dessas coisa e nem sabe o que é a vida. Por isso nós faz essa confusão e imagina essas bobeirada. É tudo porque nós num sabe como é que as coisa funciona nesse universo. A única mardade verdadera, Cirino, é a mardade criada pelos homi ignoran- te; mas com o tempo esses memos homi aprende o caminho, vê que a mardade num serve de nada e acaba vortano pra quem fez. Um dia – se Deus quisé! – todos os homi vai percebê que o universo é todo bondade e vai entendê como as coisa funciona. Aí, Cirino, o mundo vai sê um lugá muito mió. Cirino escutou aquilo, matutando a cada palavra, cada frase. Era bem verdade que nunca conhecera ninguém que soubesse dessas coisas. Cada um sempre tinha sua própria

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visão da vida e sempre falava das coisas de formas diferentes, inventando isso ou aquilo só para poderem preencher uma lacuna que eles próprios não sabiam como. Cirino despediu-se de Cambinda, agradecendo por tudo e foi andando para casa, com todos estes pensamentos dançando em sua cabeça. Cogitava sobre tudo no Universo, partindo daquela aula que a bondosa velhinha acabara de lhe dar. Tentava imaginar, em sua cabeça confusa, como seria o mundo onde os homens finalmente entendessem tudo aquilo e achou mesmo que o mundo seria bem melhor de se viver, sem mandos e desmandos, sem ninguém querendo passar os outros para trás. É... – Pensou. O mundo seria bem melhó memo. A tarde ia caindo lentamente e dando lugar à noite que se aproximava. Algumas estrelas já brilhavam no céu e Cirino parou no meio do caminho para olhar aquele céu que começava a cintilar por todos os lados. Um sentimento de expansividade espalhou-se por seu peito e, de repente, sentiu-se como parte importante daquilo tudo, assim como tudo ao se redor passou a ter uma importância maior do que jamais imaginou. Cirino viu-se como o próprio universo, um pedacinho dele! Mas que mesmo assim não deixava de ser o universo, pois o universo era tudo, inclusive as pedras, as plantas, o planeta, as estrelas... Inclusive ele.

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Inté o fim do mundo O araçazeiro amanheceu cheio de flores e o sol da manhã, assim que despontou por trás da mata, quase fez saltar as cores daquelas flores todas, como se a própria árvore fosse tornar-se um caleidoscópio, convidando o dia a mergulhar nas cores pintadas pelo sol daquela manhã sem igual. Alguns pássaros esvoaçavam entre arbustos e espinheiros, numa afronta ao perigo dos espinhos, saindo incólumes, quais inatingíveis anjos naturais dançando entre as folhas e por vezes desafiando inocentemente a realidade. Cirino acordou cedo e saiu de casa para abraçar aquela sua vida, como se fora uma despedida. Olhou ao redor, as árvores, as plantas, a casa, as galinhas – que Zé cuidaria para ele — e, finalmente, o araçazeiro de tantos anos, plantado por seu avô. — É, vô! Tá na hora de mostrá que eu num sô um qualqué. Se o sinhô tivesse aqui, ia de tê muito orgulho desse seu neto. Cirino parou e pensou bem em tudo que vivera até ali, desde que encontrou com o lobisomem pela primeira vez, como tudo mudou de uma hora para outra. E sua vida, que até então tinha sido uma vida simples, acabou virando um pandemônio, que se contasse para alguém, diriam que era coisa de cordel, fantasia e essas coisas todas que se dizem por aí e que são coisas de gente supersticiosa, lenda... Mas a verdade é que sua vida realmente deixara de ser ordinária e mostrara a Cirino o quanto de coisas existem por trás da realidade, mas das quais as pessoas geralmente não se apercebem simplesmente porque não veem direito; riem e vão-se, sem se darem ao trabalho de prestar mais atenção. 179

Cirino olhou para a mata e depois para o ar ao redor de si. — Pois então, seu índio fantártico! Vô mesmo precisá de sua ajuda. De sua ajuda e de todos os seus amigos isprito, porque a coisa num vai sê fácil. Foi com certo ar de amizade e brincadeira que Cirino disse isso, como se falasse com alguém invisível e, para sua surpresa, um lufar de vento atravessou as folhagens das plantas ao redor, ao passo que em sua mente ecoou a risada divertida do pequeno indiozinho, o que fez Cirino abrir um enorme sorriso e sentir-se feliz, apesar de tudo. Era hora de ir, mas queria tomar seu café. Então, entrou na cozinha e pôs-se a preparar o café, como se também se despedisse desses afazeres simples de sua casa. Não sabia bem por quê, mas sentia saudade daquilo tudo, como se nunca mais fosse voltar a ter. Na verdade, talvez não voltasse mesmo. Só o tempo diria. Cirino tornara-se outro homem e nem percebera isso. Talvez, por este motivo, não conseguisse entender bem este sentimento que quase lhe afogava a alma naquela manhã tão linda em que se despedia e se meteria mundo afora. Cirino nunca tivera exatamente uma cabeça pequena de quem vive sua vidinha e é só isso a vida inteira, porém nunca saíra de seu canto e isso com certeza lhe traria muitos conhecimentos. Tantos que Cirino ainda não conseguia imaginar. Mas não havia porque apressar as coisas; tudo viria a seu tempo, assim como a seu tempo também as palavras cantarão cada passo desse menestrel sem música, mas cheio de letras nas sandálias que léguas e léguas ainda iriam percorrer. Cirino deu uma última olhada para sua casa, antes de partir rumo à fazenda do coronel Terêncio onde, sem que ele soubesse, já estava preparado um cavalo forte, carregado de coisas que Cirino poderia precisar na viagem. 180

Ele foi pela estrada com um sentimento tranquilo e a determinação de que faria de um tudo para salvar sua querida Luciana de sua sina triste. Ao chegar à fazenda, Cirino encontrou sinhazinha Lu sentada na varanda, esperando-o. Seu coração acelerou e ele apertou os passos, largando o saco com suas coisas no meio do caminho e indo ao encontro de Luciana. Os dois abraçaram-se e beijaram-se como se fosse a última vez que estariam juntos. Luciana olhou em seus olhos sem saber ao certo o que dizer. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela só conseguiu abraçá-lo mais uma vez, como se nunca mais pudesse soltá-lo. Todas as pessoas estavam emocionadas. Donana, que chorava desde o momento em que Luciana e Cirino abraçaram-se e beijaram-se, veio até ele, apertando-lhe as mãos com força e desejando-lhe toda a sorte do mundo, dizendo baixinho em seu ouvido que sempre soubera de tudo e que às vezes até facilitara as coisas para que sinhazinha Lu não fosse pega aos olhares com ele. Cirino tinha muito carinho por Donana que sempre o tratara bem na cozinha da casa e até proseava com ele tarde da noite, uma conversa gostosa antes dele voltar para sua casa ou dormir no galpão da fazenda. Cirino ficou meio sem graça, ouvindo aquilo ao pé do ouvido, em forma de confissão amiga; nunca imaginara que Donana fosse tão esperta e estivesse envolvida nesse segredo que para ele era apenas de sinhazinha Lu e seu. Mas, afinal, gostou de saber que sempre tivera mais alguém que torcia pelos dois. Em seguida, seu compadre veio até ele, dando-lhe um abraço forte. — Vá com Deus, meu amigo. Nós se vê em breve, com ocê vortando vitorioso e sarvando sinhazinha Lu. Nós tá torcendo por ocês dois. Terêncio se aproximou de Cirino, mostrando-lhe tudo que preparara para sua viagem. Deu a Cirino um 181

cinturão onde estava um bolo de notas, para que ele usasse quando precisasse. Cirino achou que tinha muito dinheiro, mas Terêncio insistiu que ele precisaria, desejando-lhe boa sorte. Era chegada a hora de partir. Cirino olhou para todos, olhou para o sol e olhou mais uma vez para sua querida Luciana que chorava. Abraçou-a mais uma vez, beijando-lhe profundamente os lábios e sentindo um aperto em seu coração, que parecia espremer a si próprio, como se fosse implodir. — Eu vou voltá. Eu vou voltá e vô trazê o tal de muiraquitã, que vai livrá ocê dessa mardição, ou meu nome num é Cirino do Araçá! Então, beijou-lhe as mãozinhas, voltou as costas com muita dificuldade, montou o cavalo e numa cutucada nos flancos do bicho, disparou pela estrada sem olhar para trás, pois a dor de se distanciar de sua que- rida Lu já era forte demais e as lágrimas escorriam profusamente por sua face. Mesmo depois de tudo que vivera, com o coração batendo e cheio de coragem, uma esperança e uma certeza de que conseguiria trazer o bendito muiraquitã, a sensação que tinha naquele momento era de que a verdadeira aventura começaria agora e nem conseguia sequer imaginar o que havia de encontrar pela frente, nas estradas desse Brasilzão de Deus. Estava certo de que não seria fácil, mas também sabia que nada poderia ser tão difícil, que não tivesse uma solução. E Cirino encontraria essa solução. Ah, encontraria! Custasse o que custasse.

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