A Maldição de Sarah Ellen

May 18, 2017 | Autor: Shirlei Massapust | Categoria: Folclore e Cultura Popular
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A Maldição de Sarah Ellen Shirlei Massapust Segundo um complexo dossiê de dados coletados pela Comisión de la Verdad y Reconciliación (CVR), no dia 09/06/1992, um professor e dez alunos da Universidad Nacional de Educación Enrique Guzmán y Valle “La Cantuta”, em Lima, foram executados extrajudicialmente numa chacina perpetrada por agentes do Estado. As investigações teriam sido deliberadamente obstruídas durante o governo do ex presidente Alberto Fujimori através de recursos administrativos e judiciais que buscavam evitar que os responsáveis recebessem uma sanção. A fim de distrair a população, agentes de inteligência espalhavam imagens de “Virgens que Choram” em diferentes cidades do Peru. Imediatamente o milagre préfabricado ganhou destaque na imprensa, abafando o caso de maior gravidade. Para a CVR as estátuas teriam a mesma função da galinha que sobrevive à explosão da armadilha que mata um policial corrupto numa cena do filme O Homem que Copiava (2003). Teoricamente o achado duma galinha presa no armário da cozinha deveria distrair a atenção da polícia e da mídia quando o homicídio fosse descoberto. Conforme o roteiro de Jorge Furtado, a imprensa falaria “mais da galinha do que do morto”. E assim foi feito. Perto da véspera do aniversário de morte das vítimas chacinadas explodiu na imprensa mundial a notícia de que uma poderosa, sensual e temível vampira estava prestes a ressuscitar, talvez seguindo o mesmo modus operandi. Para alguns a ideia era manipular a banalidade da mídia para evitar protestos, pois para a mídia, mais importante que uma chacina é o fato duma estátua parecer chorar sangue ou duma galinha sobreviver à explosão dum botijão de gás. Na língua indígena quéchua, Pisco significa pássaro. Trata-se duma cidade portuária conhecida por sua agricultura voltada ao cultivo de algodão e milho, bem como pela indústria de bebidas local. No início do século XX os marítimos iam e vinham. Eventualmente morriam ali. O historiador peruano Jose Oscar Flores Consilla, autor do livro Datos Sobre Pisco (2006), consultou registros portuários que atestam que J. Roberts era proprietário do navio The Said, registrado em Liverpool. Este navio aportou em Pisco onde ele desembarcou com sua esposa. Ela estava grávida. Entre os documentos oficiais da municipalidade de Pisco produzidos neste período se encontram a certidão de nascimento, em 03/06/1913, de

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Thomas Roberts, filho do casal, e a certidão de óbito da mãe, vítima de parada cardíaca oito dias após o parto.

Na Rua Ramon Aspillaga, em Pisco, Peru, existe um cemitério municipal em cuja gaveta nº 118 jaz Sarah Ellen, esposa de J. Roberts, nascida em 6 de março de 1872, em Blackburn, Inglaterra, falecia aos 41 anos de idade em 9 de junho de 1913, de acordo com seu epitáfio gravado em mármore. Bem no fim do texto consta a expressão inglesa “at best”, logo após a data da morte. Isso tem gerado comentários dos moradores do entorno que mal conhecem o idioma e não compreendem como a morte duma amada (beloved) esposa, relativamente jovem, não poderia ter ocorrido numa situação ou momento melhor (at best). Jose Oscar Flores Consilla cogita a hipótese de que ela tenha bebido um copo de sangue de vaca comprado fresco no abatedouro de Pisco, na tentativa de remediar a perda de sangue após um parto difícil. Quem viu se espantou e teria passado a falar em

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vampirismo desde então.1 Trata-se duma hipótese engenhosa. Todavia o lapso de tempo (oitenta anos) em que ninguém falou no assunto, bem como a animação repentina, faz parecer que a verdade real esteja mais próxima duma teoria proposta pela redação do jornal brasileiro A Notícia e pela matéria “El Mito: Sara Hellen” elaborada pelos jornalistas Vladimiro Montesinos e Kenya Fujimori, exibida no programa Enemigos Públicos, na Panamericana Televisión. Essa também é a teoria que a Igreja Católica Apostólica Romana apresenta àqueles que visitam templos peruanos em busca de respostas. Em 1993 havia apenas cerca de cinquenta mil habitantes em Pisco. No mês de maio inúmeros deles assistiram à reprodução dum episódio de El Show de Cristina (1989-2010)2, num canal de TV aberta, onde dois especialistas foram estimulados a falar sobre o mito do vampiro. Um deles teria mencionado a referida gaveta nº 118 do jazigo coletivo, em Pisco, afirmando que ali dormia uma vampira que, antes de morrer, lançou uma maldição: “Quando passarem 80 anos, eu me levantarei da tumba para me vingar dos descendentes de meus assassinos”. O que se escutou ou se inventou haver escutado na TV seguramente não era verdadeiro. Sarah Ellen (1872-1913) não foi mordida pelo falecido George Hodgson, enterrado em 1715 no cemitério da St Andrew's Church, na vila inglesa de Dent. Ela também não foi executada por prática de feitiçaria em Blackburn. A personagem histórica que jaz em Pisco morreu de parada cardiorrespiratória (uma complicação pós-parto). Ninguém soube informar o nome do “expert” falante de espanhol, convidado a falar sobre a insólita realidade do mito literário em Miami, com a incumbência de dissertar sobre um hipotético diálogo travado entre os escritores Bram Stoker (1847-1912) e Frederick George Loring (1869-1951), interpretando Drácula (1897) à luz de The Tombo of Sarah (1910), vindo a concluir que estórias de morcegos dos “pampas argentinos” foram mal situadas fora da América do Sul; justificado utopicamente a cena onde “o piso cedeu” na ocasião da ressurreição da fictícia Condessa Sarah como uma maldição profética.

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HARLOW, John. Mystery of British “bride of Dracula”. Em: The Sunday Times, edição de 15 de outubro de 2006. URL:

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El Show de Cristina (1989-2010) é um talk-show em idioma espanhol, gravado em Miami para o canal Univisión. Infelizmente

eu não consegui localizar a entrevista específica exibida em 1993, no Peru, embora tenha tido acesso a um debate posterior, produzido em 2007, com tema “Vampiros Sexuais”, onde outros entendedores do que se passa num determinado nicho cultural foram reunidos e postos para dialogar a fim de buscar um denominador comum. Em geral o programa de auditório deixou a impressão de tratar-se dum trabalho de pesquisa social relativamente sério e mais ou menos imparcial, conduzido de forma apropriada pela apresentadora Cristina Saralegui.

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Este herói anônimo procurou e encontrou a tumba de Sarah, inventando para ela duas irmãs chamadas Erika e Andrea na intenção de nomear o time das stregoicas que habitam a ala empoeirada do castelo do conde, na Transilvânia. No livro de Bram Stoker, ambientado na era vitoriana, é dito que as stregoicas se comportam “como damas da mais alta classe3”, mas duas tem “tez de um moreno dourado4” e tratam a branca caucasiana como superiora hierárquica. Portanto dificilmente elas poderiam ser irmãs e certamente a Condessa Drácula não é Sarah Roberts, personagem do livro The Hunger (1988) de Whitley Strieber. Independentemente do fato de Cristina Saralegui ter ou não ter entrevistado alguém que se dizia expert em vampirismo em 1993, o boato sobre a vingança da vampira correu a uma velocidade excepcional, se estabelecendo como artigo de fé e lenda urbana. As pessoas fizeram um verdadeiro carnaval fora de época que atraiu muitos turistas. De um dia para outro uma multidão passou a repetir, inovar, inventar que J. Roberts foi o verdadeiro Conde Drácula. Jornalistas usaram até desenhos da Vampirella de Forrest J. Ackerman para representar Sarah Ellen. Na ficção a Condessa Sarah foi executada extrajudicialmente por populares em 1631, liberada em forma de névoa pela abertura de frestas no solo em 8 de julho de 1841 e restaurada à vida em 9 de junho do mesmo ano: Ela vivia completamente sozinha no velho castelo, cujas ruínas ainda se encontram a três milhas daqui, na estrada para Bristol. Sua reputação era péssima, mesmo naquela época. Ela era uma feiticeira ou mulher-lobo. (...) Era comum ente o povo a alegação de que ela jamais poderia ser morta. O que, no entanto, provou-se uma falácia, já que ela foi estrangulada um dia por uma camponesa enlouquecida que havia perdido suas duas crianças e afirmado que ambas foram levadas pelo espírito maligno da condessa.5

A interpolação de textos mostra como a hipotética figura deveria parecer:

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STOKER, Bram. Drácula. Trd. Vera M. Renoldi. São Paulo, Nova Cultura, 2002, p 45.

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STOKER, Bram. Obra citada, p 45.

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LORING, Frederick George. A Tumba de Sarah. Em: CHIARELLI, Marta (Org). Contos Clássicos de Vampiro. Trd. Bruno

Costa. São Paulo, Hedra, 2010, 162-163.

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Era dotada de rara beleza — o que de mais fascinante se possa imaginar sob a forma de mulher —, com uma farta e longa cabeleira de cachos dourados e olhos magníficos, da cor e com o brilho de safiras. Tive a impressão, embora indefinida e imprecisa, de já haver visto seu rosto e de conhecê-lo por meio de sua aparição em algum sonho tenebroso, do qual na hora não me foi possível lembrar.6

A variante parcialmente narrada e parcialmente encenada por atores diante do jornalista Paulo Henrique Amorin, à beira mar, no porto de Pisco, deu à Condessa Sarah um julgamento mais justo e completo, com defesa patrocinada pelo esposo e recursos levados até à última instância do Poder Judiciário. Todavia, mesmo em última instância, o pedido de anulação da sentença de pena de morte proferida pelo tribunal de Blackburn foi rejeitado. As três irmãs foram enforcadas por crime de homicídio motivado pela corrupção dum tipo de prática religiosa (vampirismo e/ou feitiçaria). Indignada, a feiticeira profere a maldição, prometendo voltar “reencarnada numa bonita mulher” e se vingar dos descentes daqueles que a acusaram.7 Uma vez morta, de bruxa virou vampira. As autoridades de Blackburn mandam cravar uma estaca no coração de Sarah Ellen, acorrentá-la e prendê-la num caixão de chumbo hermeticamente fechado. Também proíbem que suas irmãs sejam sepultadas no Cemitério de Highgate. Como em nenhum país foi possível enterrar as três de uma vez, J. Roberts teve de viajar pelo mundo com o ataúde de sua esposa durante quatro anos. Ele trasladou Erika para um túmulo na Hungria, ocultou Andrea em local incerto e não sabido no México e conseguiu dar um enterro digno para Sarah num lugar onde ninguém conhecia a maldição. Nesta peça rusticamente improvisada por atores amadores, em 1917 o angustiado J. Roberts chegou ao Peru, desembarcou no porto de Pisco e buscou as autoridades locais, que aceitaram receber o ataúde por apenas cinco libras. Pouco depois, John Roberts retornou à Europa e nunca mais se ouviu falar nele. Ao fim deste ato, os turistas repletos de ideias alimentadas pela estória se tornavam personagens figurantes atuando diretamente na história, vivenciando o desenrolar dos fatos fictos. A população aderiu massivamente ao evento onde a palavra de ordem era interpretar o papel de caça-vampiros. A maioria das casas de Pisco tinha “réstias de alho penduradas

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STOKER, Bram. Drácula. Trd. Vera M. Renoldi. São Paulo, Nova Cultura, 2002, p 45.

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MULHER-VAMPIRO ENTERRADA NO PERU PODE RESSUSCITAR. Em: A Notícia, edição do dia 09/06/1993, p 5.

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atrás das portas e estranhas ervas amazônicas espalhadas pelos cantos8”. Durante três meses a cidade foi se enfeitando cada vez mais com réstias de alhos variados, cruzes e etc. Muitos quiromantes, tarólogos e todo tipo de terapeuta holístico colorido saiu às ruas para a felicidade geral da horda de consulentes que parecia ignorar que eles já viviam ali desde sempre e não deixariam de existir depois de 09/06/1993. No Peru os benzedeiros tradicionalmente recomendavam defumação e chás de alho-macho (Sisyrinchium platense Johnst) para atrair bons auspícios no trabalho, no amor e na saúde. Isto mudou subitamente graças à demanda e à dificuldade de explicar para uma horda de leigos que tamanho não é documento. O bulbo de alho comum (Allium

sativum) é maior que o de alho-macho. O de alho poro (Allium porrum) é maior que de alho comum. O de alho-rei (Allium ampeloprasum) só perde em tamanho para a cebola (Allium

cepa). Então toda e qualquer hortaliça similar se tornou “ajo macho” na boca do povo. “Isso mesmo, comprem bastante alho!”, aconselhou um alegre produtor de alho, diante das câmeras da Rede Globo. O aumento na demanda fez o alho dobrar de preço em menos de sete dias. Um empresário produziu “Kits de Vampiro” compostos de cruz, estaca, martelo e um folheto descrevendo a lenda. Havia ambulantes distribuindo o souvenir em diversos pontos da cidade, a preço equivalente a dois dólares e cinquenta centavos por conjunto. Segundo o fabricante, para ser eficaz a madeira importada da Inglaterra não pode ter nenhum prego nem “nada de metal”. Até hoje pessoas vão ao cemitério para rezar, atuando em coreografia, empunhando tais cruzes peruanas de madeira inglesa. Alguns estaqueiam cebolas ou bonecos de feitiço diante da gaveta de Sarah Ellen. Na primeira reza, registrada na noite de 09/06/1993, as pessoas apontavam cruzes na direção da lápide e diziam: “Coração de Sarah Ellen descanse em paz”. Depois repetiam gestos e falas em coro, algumas vezes, até cansarem. Jornalistas peruanos divulgaram que a “vampira” deveria ressuscitar em 09/06/1993 – exatamente no dia do aniversário da chacina em “La Cantuta”. – Por algumas semanas a atividade em Pisco foi noticiada em periódicos de diversos países e localidades. No Rio Comprido, Rio de Janeiro (RJ), por exemplo, os jornaleiros proporcionaram acesso direto a uma série de reportagens em A Notícia (edições de 08, 09 e 10/06/1993, p 5 ou 6), um

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MULHER-VAMPIRO ENTERRADA NO PERU PODE RESSUSCITAR. Em: Obra citada, p 5.

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pequeno artigo em O Globo e uma nota ilustrada na revista Incrível (edição de agosto de 1993, nº 13, p 48).9 No início da semana marcada a lápide, até então intacta, começou a rachar. “Sinal de mau agouro, segundo a crendice”.10 Será que a mulher-vampiro abriu frestas para escapar em forma de névoa? Ou coisas que racham misteriosamente indicam que há algo perigoso acontecendo debaixo da terra? Deus demorou a jogar dados. Formou-se um intenso sentimento de expectativa por coisa nenhuma. Embora Belinho, o padre de Pisco, e Dom Ricardo Durand, bispo de El Callao, desaprovassem aquilo a frequência nas igrejas cresceu e o número de missas subiu a nove por dia. Segundo Belinho, depois de oitenta anos Sarah Ellen deveria estar “no céu, como santa” ou “embaixo, no calor”. Na véspera do dia fatídico dezenas de pessoas já se amontoavam ao redor da lápide rachada. Com destaque para um monte de mulheres vestidas de negro e usando argolas vermelhas. Elas depositam flores e acompanham com cânticos o som de violinos dos músicos que foram contratados para o grande dia.11

O túmulo foi visitado “por caravanas que chegam de todas as procedências para rezar em conjunto e depositar flores para que a mulher-vampiro não saia da sua cripta12”. Em 09/06/1993 o point mais animado da cidade era o cemitério cheio de tudo e todos que se poderia esperar encontrar numa feira mística. Emissoras de rádio e TV transmitiam ao vivo todas as novidades. As capas dos principais tabloides peruanos traziam as manchetes “Todo el Perú a la expectativa” (El Libertador), “Mujer Vampiro Deja Mensaje a Espiritista” (El Popular), “Avalancha de Periodista por «Resurrección» de Sarah Ellen” (Notícias), etc. A gráfica da cidade lançou até um gibi intitulado Sarah Ellen fue Mejor. A ginecologista do hospital de Pisco constatou que o número de partos em 09/06/1993 caiu para menos de um terço. As mães que podiam esperar optaram por desmarcar a cesariana a fim de não estigmatizar o bebê com a probabilidade de ser Sarah Ellen reencarnada. Enquanto isso, no cemitério, uma figura exótica atraia câmeras e 9

Em 1998 recebi uma carta do colega Ronaldo Baptista, relatando: “Minha namorada levou um susto quando leu o que você

escreveu sobre Sarah Ellen. O pai dela era cônsul, e sua família morava na Bolívia. Em 1993, houve por lá também uma grande agitação. As crianças falavam de Sarah Ellen como numa espécie de bicho-papão”. 10

MULHER DO DRÁCULA ESTÁ PRONTA PARA RESSUSCITAR. Em: Obra citada, p 5.

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MULHER DO DRÁCULA ESTÁ PRONTA PARA RESSUSCITAR. Em: Obra citada, p 5.

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MULHER-VAMPIRO ENTERRADA NO PERU PODE RESSUSCITAR. Em: Obra citada, p 5.

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microfones como as luz atrai insetos. Era uma feiticeira – também jornalista e astróloga nas horas vagas – orando e jogando pétalas para o ar. No dia seguinte aquela mulher alegou que ninguém deveria se preocupar, pois Sarah Ellen reencarnou nela mesma na forma de uma vampira boazinha. Sarah Ellen se revelou um milagre econômico. A indústria hoteleira local experimentou dias de glória pela primeira vez. A polícia aumentou a vigilância no cemitério, prevendo a possibilidade de profanação, mas a turba não foi contida. Pessoas invadiram o local, pisaram túmulos, derrubaram lápides. Uma multidão se amontoou no interior enquanto centenas de pessoas esperaram do lado de fora. Paulo Henrique Amorin observou visitantes trocando “receitas contra mordidas”. Um jovem peruano resumiu a expectativa geral exibindo sua cruz protetora: “Se houve vampiros no passado porque não existiriam hoje?” No correr da noite a gaveta 118 enegreceu de tanta fumaça de vela. “Quatro curandeiros esperaram pela meia-noite diante do túmulo da mulher, realizando estranhos rituais de limpeza”.13 Quando finalmente terminaram de limpar aquilo “um afoito” sujou tudo novamente jogando sangue no vidro que cobria a lápide rachada. A matéria exibida no Brasil pelo telejornal Fantástico incluiu a dramática cena do sangue fresco e espesso escorrendo da gaveta rachada no jazigo à meia noite.14 À zero hora local os locutores de rádio anunciaram que “a maldição não se cumpriu”.15 O público bateu palmas. A cerveja usurpou o status da cruz como principal objeto de consumo. Porém os místicos insistiam que o caso não estava encerrado e que a maldição continuava latente. “Ninguém pode se sentir tranquilo ante a ameaça de Sarah Ellen16”. O profético terremoto que destruiria o cemitério – tal como na ficção de Frederick George Loring – não aconteceu em 09/06/1993. Isto ocorreu pouco mais de quatorze anos depois, no dia em que alguém, em Pisco, fotografou uma pareidolia num piscar de raios.

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VAMPIRA DEIXOU O PERU NA MÃO. Em: A Notícia. 10/06/1993, p 6.

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AMORIM, Paulo Henrique. A Maldição de Sarah Ellen. Exibido no telejornal Fantástico (Rede GLOBO) no domingo, 20 de

junho de 1993. 15

VAMPIRA DEIXOU O PERU NA MÃO. Em: Obra citada, p 6.

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Idem, p 6.

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Raio identifica por crédulos como a silhueta de Sarah Ellen, causando o terremoto.

Em 09/06/1993, nas últimas horas da madrugada, a Prefeitura de Pisco decidiu decretar 9 de junho como “Dia do Reencontro dos Almas pela Paz”.17 Ao amanhecer uma banda tocava um hino religioso. O prefeito Edgar Núñez surgiu com uma coroa de flores para adornar a gaveta e discursou prometendo contatar as autoridades britânicas a fim de pedir um “desagravo” à memória de Sarah Ellen. Declarou-se que a falecida foi tornada cidadã pisqueira, patrimônio da cidade, marco do progresso que ainda há de vir... Neste momento uma idosa inaugurou a nova fase da lenda urbana. “É uma santa!”, ela disse. Foi seguida por outra senhora que irrompeu em júbilo: “Agora vão olhar para nós!” Sarah Ellen santificada A estória não caiu no esquecimento depois que a não ressurreição de Sarah Ellen foi mundialmente testemunhada. Fatos subsequentes superaram em relevância ao ridículo nascimento da lenda (que deixou de ser uma semente de superstição e comédia para frutificar atos de fé). Está nascendo uma nova religião. A lápide de Sarah Ellen é a única que nunca deixa de estar decorada com flores frescas deixadas quase diariamente por visitantes anônimos. De lá para cá ela ganhou dezenove placas votivas fixadas por fiéis agradecendo pela realização de milagres (quatorze antes do terremoto, cinco depois). York Dueñas Boada, um cidadão peruano, morador de Pisco, comentou o caso alguns meses antes do terremoto. Seu vídeo amador focaliza buquês de flores e etc.

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Ibidem, p 6.

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Esperaban el despertar de un vampiro pero despertó una santa. Aunque los Ángeles lloren ella ya es una santa. Elegida por un pueblo que al ser olvidado por el Cielo refugió su fe en un ser condenado al Infierno... Sarah Ellen, patrona de Pisco, cuenta con más de 5.000 devotos en todo el Perú, un templo y muchos milagros imposibles de objetar. 18

Curiosamente, na lenda urbana, ela não deixou de ser vampira para se transformar em santa. Hoje Sarah Ellen é as duas coisas ao mesmo tempo. Virou uma versão bonita da Santa Muerte (caveira sagrada venerada no México). O músico peruano Julio Andrade compôs e gravou a melodia “Sarah Ellen”, incluída no álbum Algo más de mí… No videoclipe uma atriz latino-americana interpreta a personagem rediviva. Hoje em dia os devotos recriminam a sensualização da “santa” pela mídia. Eles dizem ter descoberto duas fotografias da mulher real. As imagens são compatíveis com o vestuário e biótipo duma esposa anglo saxônica de quarenta e um anos no período visado.

Há quem sensualize a personagem, descrevendo a santa vampira como uma justiceira que ataca e castiga os maridos das mulheres traídas. Durante estudo realizado entre 1960 e 1970, Clarival do Prado Vallares se deparou com casos parecidos em território brasileiro, onde notórios malfeitores se tornaram objeto de culto:

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Tradução: “Esperavam o despertar de um vampiro; porém despertou uma santa. Ainda que os anjos chorem, agora ela é

uma santa. Eleita por um povo que, ao ser castigado pelo Céu, refugiou sua fé num ser condenado ao Inferno... Sarah Ellen, padroeira de Pisco, conta com mais de 5.000 devotos em todo o Peru, um templo e muitos milagres impossíveis de contestar”. (Ref.: BOADA, York Dueñas. “Sarah Ellen: Santo Demonio”. Vídeo enviado para o canal ::YORK:: no Youtube, em 13/03/2007. URL: )

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Um funcionário do Cemitério de Piedade, de Maceió, nos disse que as “devoções” se renovam. Quando surge uma “novidade”, esta costuma esvaziar a que a antecede no mesmo cemitério. O aspecto mais desafiante para a compreensão imediata das devoções é o fato de que o personagem não necessita estar qualificado por virtudes morais, nem religiosas, do código do bom comportamento. Facínoras, pistoleiros, bandidos de assaltos covardes, prostitutas e vítimas inocentes de assassinatos e de crimes passionais são exemplos dessas devoções espontâneas nos cemitérios urbanos e rurais brasileiros. No do Bom Pastor, da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, cemitério dos pobres, formou-se recentemente, há cerca de três anos, uma piedosa devoção em torno da cova rasa do bandido sanguinário mais violento desse último decênio, com crimes praticados em Natal e no interior do Estado. Chamava-se Baracho. Ninguém nos informou de onde veio. Quando dele se soube, já era assassino no noticiário da capital. Pequeno, sertanejo, moderado de gestos e de aparência inócua, vestindo-se com certa distinção, especializou-se numa modalidade de crime adequado para as grandes cidades, mas inteiramente imprópria para Natal: o assalto e o assassinato de motoristas de táxi. Baracho também matou alguns dos seus perseguidores policiais. As vítimas, de preferências motoristas, eram homens quase do seu nível social, e o fruto do roubo era ridículo para tanta eficiência de assalto e crueldade. Uma vez abatido na perseguição policial, foi enterrado, discretamente, numa cova rasa do Bom Pastor. Tivemos o empenho de obter informações do administrador, dos coveiros, de pessoas que rezavam e levavam flores à sua cruz, de motoristas da praça, de jornalistas e de quantos contemporâneos pudessem dizer algo. Esta experiência nos ensinou que a fabulação popular se gera rápida e com profunda disparidade dos relatos e detalhes, porém fortemente unificada por uma logicidade ficcional. Lembramos aqui algumas das histórias ouvidas como explicação da devoção: a viúva de um motorista assassinado por Baracho estava em extrema dificuldade para vender, por preço justo ou razoável, o táxi que lhe ficara de herança. As ofertas dos negociantes da praça eram ultrajantes. Alguém que já tinha obtido uma graça por interferência de Baracho, mediante uma novena de um terço rezado de joelhos na terra de sua cova rasa, aconselhou à viúva do motorista a fazer o mesmo e, antes que a

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novena se concluísse, chegou a Natal um caminhão do Sul levando um comprador de automóvel que fez uma oferta muito acima da obtida na praça, pelo menos considerada decente e de acordo com o preço do mercado. Um outro caso, relatado pelo zelador, é a história de uma parturiente sem assistência e sem luz elétrica, na hora em que uma aparadeira se dispunha ao trabalho. Fez-se apelo e prece a Baracho, pedindo sua interferência naquela situação absurda em que a luz de fifó não podia ajudar bastante. Quem nos contou assegura que a luz voltou, que o parto se fez sem complicações, e que depois se verificou que a luz voltara somente naquela casa, em todo o bairro. Outra história é a do julgamento de um assassino pistoleiro de políticos, com pouca probabilidade de sucesso no júri. Sua mãe e irmãos rezaram tanto na terra quente da cova de Baracho que o resultado do julgamento foi o de legítima defesa, até hoje parecendo um mistério. Os devotos de Baracho não o têm como um santo, nem lhes reconhecem virtudes. Consideram-no um interferente, uma alma endemoninhada que necessita de muitas preces, que tem poderes de mensagiar ao Todo-Poderoso os apelos dos que vão orar junto à sua cruz.19

O assunto situa-se num dos capítulos mais difíceis de abordagem da escatologia e da antropologia. Implica na verificação de como se formam as devoções, isto é, os valores mais elevados da espiritualidade coletiva, gerados por motivos e razões psíquicas, sociais, e éticas geralmente estranhas aos nossos códigos. Este acontecimento se registra em quase todo cemitério. Antigamente, no tempo dos sepultamentos em igrejas, era da conveniência clerical favorecer as devoções em torno de frades e padres com sinais de santidade. A partir dos cemitérios secularizados formou-se rápida e eficaz concorrência de leigos e profanos também dotados de santificação. Muitas dessas devoções são temporárias, sumindo na lembrança ou na crônica dos velhos zeladores. Contudo, os fatos que originaram a lenda de Sarah Ellen tiveram uma dimensão tal que talvez a façam viver para sempre. Bendita e amaldiçoada, ela continua a ser uma esperança de ressurreição econômica dum lugar onde mais da metade da população sofre

19

VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros. Rio de Janeiro, MEC, 1972, Vol I, p 441-

442.

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com a miséria e o desemprego. O jazigo em que se encontra o túmulo de Sarah Ellen ficou intacto e suportou a violência do terremoto de 8 graus pela escala Richter que destruiu 70% da cidade em 15/08/2007, incluindo a tradicional igreja de São Clemente e a maior parte do cemitério. A gaveta de Sarah Ellen que pertencia a um jazigo coletivo foi transformada pela natureza num jazigo individual e depois reformada como tal, fato por si só tido por milagroso. Um cético não negaria a coincidência espantosa.

Cidadãos de Pisco comentam sobre a rachadura no túmulo da vampira Sarah Ellen. Caricatura de cartunista brasileiro publicada no jornal A Notícia, em 08/07/1993.

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