A MANCHA E A MANCHA: A METÁFORA DA AIDS NO TEATRO DE CAIO FERNANDO ABREU

June 16, 2017 | Autor: R. de Lima | Categoria: Literatura, Dramaturgia, Teatro, Literatura Brasileira Contemporânea, Caio Fernando Abreu
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A MANCHA E A MANCHA: A METÁFORA DA AIDS NO TEATRO DE CAIO FERNANDO ABREU Ricardo Augusto de LIMA (PG-UEL)1 Resumo: Desde que declarou ser soro-positivo em 1994, Caio Fernando Abreu, em sua literatura, pôs-se a refletir mais profundamente sobre a presença da AIDS na sociedade, não apenas como mal físico, mas, principalmente, como metáfora de uma epidemia que assolaria toda a humanidade interiormente. Embora tenha tratado desse tema em outras obras, direta ou indiretamente, é após aquele ano que o autor gaúcho se debruça com um olhar diferente sobre a doença, agora realidade também para ele. Assim, esta comunicação pretende analisar a criação dramática-literária de Caio Fernando Abreu pós-diagnóstico a partir da peça O Homem e a Mancha, de 1994, confrontando-a com outras peças teatrais que abordam a síndrome. Tal obra caiofernandiana nasce na maturidade dramatúrgica e literária de um autor que, através do intertexto e do metateatro, elabora um Quixote contemporâneo, onde o “inimigo” não é mais a fantasia avassaladora do personagem, e sim as coisas reais que o cercam. Desta forma, pretende-se mostrar como a metáfora da mancha se estabelece como horizonte e guia de uma literatura que fugia, mais uma vez, da rotulação. Palavras-chave: Caio Fernando Abreu. Teatro. AIDS. Intertexto.

“A peste de que nos acusam”. Assim fala Pérsio, personagem da novela “Pela noite”, primeiro texto publicado no Brasil no qual é citada a AIDS. Com isso, temos os dois aspectos da questão ideológica que a AIDS trouxe consigo (fato, antecipamos, inédito na história das grandes epidemias): o primeiro é o nome de peste, que instaura sobre a doença um histórico de grandes moléstias que assolaram a humanidade, a começar pelas pragas do Egito (pestes naturais), passando pela Peste Negra (peste “sanitária”), tuberculose, febre amarela, enfim. O segundo é o termo ligado à acusação/condenação, que une a doença aos seus primeiros vitimados: os homossexuais. Vale lembrar que desde sempre se justificou as doenças como “castigo de Deus”. Assim, a explicação da AIDS não seria mais que a punição a esses indivíduos que “procuraram”, por meio de sua postura “indecente” e desregrada, uma vida hedonista passível de condenação. Anos depois do aparecimento do primeiro caso, surgem os primeiros heterossexuais contaminados. Logo, verificou-se que a doença não seria uma doença somente de homossexuais. Em um momento inicial, supôs que isso “aliviaria” o preconceito contra esse grupo e contra os contaminados, visto que qualquer um, e não mais um grupo restrito, estaria sujeito à doença. Porém, 1

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras - Estudos Literários. Bolsa CAPES/Demanda Social. Centro de Letras e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Londrina. Londrina. Paraná. Brasil. [email protected].

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2 [a] ideia de que a AIDS vem castigar comportamentos divergentes e a de que ela ameaça os inocentes não se contradizem em absoluto. Tal é o poder, a eficácia extraordinária da metáfora da peste: ela permite que uma doença seja encarada ao mesmo como um castigo merecido por um grupo de “outros” vulneráveis e como uma doença que potencialmente ameaça a todos. (SONTAG, 2007, p. 127).

Uma vez atingindo também os heterossexuais, supôs que os homossexuais não fossem simplesmente vítimas da doença, mas uma espécie de hospedeiros desta. Não apenas sofriam do mal como o espelhavam. Caso inédito na história, os discursos sobre a AIDS “sobrecarregam pessoas com HIV e AIDS com um peso do passado que elas não deveriam carregar” (WEEKS apud BESSA, 1997, p. 20). Isso faz com que a doença seja relativamente jovem e incrivelmente histórica, característica que lhe atribui respostas e discursos. Obviamente, por se tratar mais de uma peste ideológica do que propriamente uma doença, a AIDS, cujo discurso se constrói movido de interesses alheios, geraria um discurso próprio, uma arte, uma literatura. Vale lembrar que, concordando com Susan Sontag, a doença seria bem menos dolorida se fosse vista simplesmente como doença, e não como castigo por algo. Assim, aceitá-la como ela é, parte de um ciclo, seria talvez o caminho mais curto para uma aprendizagem e/ou lutar por uma cura. Moacyr Scliar, médico e escritor renomado, escreve que, ao contrário de outras pestes históricas, a AIDS não constitui uma literatura própria, como fez a tuberculose (exemplificada em A Montanha mágica, de Thomas Mann). O autor concorda com suposições a respeito da literatura gay e, particularmente, daquela ligada a AIDS. Marcelo Secron Bessa, cujo mestrado e doutorado se centraram em discutir e problematizar a literatura gay e sua colocação frente à epidemia da AIDS, cita a resenha da primeira tese sobre a literatura gay no Brasil (ironicamente holandesa, escrita por Sape Grootendorst), escrita por Sérgio Barcellos em 1994. Nela, Barcellos mostra um dado (incorreto ou curioso) levantado pela tese: “o tema da AIDS é fortemente recusado por todos os escritores. Por não encararem a AIDS como pretexto, afirmam ainda que o tema é extremamente real, o que dificultaria uma elaboração poética.” (apud BESSA, 1997, p. 45-6). Tal afirmação anularia todas as produções que vieram à tona principalmente no século XX, cremos que devido ao memorialismo provindo das duas grandes guerras, das ditaduras latino-americanas, dos movimentos negro, feminista e gay e da epidemia da AIDS, produções estas que estavam vinculadas a esses movimentos e episódios, tão reais quanto uma doença, seja ela coletiva ou particular. Além disso, Grootendorst aborda autores brasileiros já reconhecidos pela crítica, como Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll, e outros, não conhecidos pela crítica e público como os anteriores. Logo, como se poderia dizer que o tema da AIDS tenha sido “fortemente recusado por todos os escritores”, quando na verdade ao menos dois dos

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3 abordados por ele, a saber: Caio Fernando Abreu e Silviano Santiago, empregam em sua literatura este tema de forma significativa? Posto isso, entendemos a AIDS a partir da sua metáfora, como o fez Susan Sontag (2007). Em AIDS e suas metáforas, a autora esclarece que geralmente as epidemias é que são consideradas pestes. Assim, a explicação divina para determinado mal era comumente utilizada, colocando a doença como castigo divino a um grupo ou sociedade, como aparece em Édipo. Coletiva, a doença não era vista como castigo, ao contrário de outras doenças, individuais, como a lepra. Segundo Sontag, a partir da epidemia da sífilis, no final do século XV, é que a metáfora nasce: a doença passa a ser castigo a alguém que a fez por merecer. O problema ideológico-linguístico da AIDS estaria em sua genealogia, que, segundo Sontag, é dupla: “enquanto microprocesso, ela é encarada como o câncer: como uma invasão. Quando o que está em foco é a transmissão da doença, invoca-se uma metáfora mais antiga, que lembra a sífilis: a da poluição.” (2007, p. 90). Daí seu desejo utópico de conceber a AIDS como doença e não como metáfora, visto que essa última é carrega de discurso e ideologia. Tal concepção, segundo Sontag, é algo a ser resolvido, também, pela linguagem. E a melhor linguagem para isso seria o discurso científico. Porém, como foi visto, durante anos esse discurso, por falta de conhecimento e/ou excesso de preconceitos, a biomedicina tomou a AIDS como “câncer gay”, não se baseando na materialidade real da doença. Assim, como escreve Marcelo Secron Bessa (1997, p. 26), “a ‘realidade’ da AIDS é sempre fundada em dados que não são, necessariamente, científicos, mas que partem de considerações socioculturais de certo e errado, de posições etnocêntricas e completamente ignorantes a respeito da sexualidade humana.” Fato no mínimo curioso, visto que é exatamente “por sua possibilidade racional, científica e neutra que [o discurso biomédico] detém as rédeas do controle discursivo da epidemia.” (BESSA, 1997, p. 28). Posto isso, vamos verificar como, então, o campo literário, logo metafórico, aborda a doença/mancha. Assim como o phármakon de Platão via Derrida, a mancha será igualmente dúbia, veneno e remédio, mostrando assim a ambiguidade do termo entre o discurso literário e o biomédico, tal como aparecerá na mancha oriunda da AIDS. A AIDS em cena: outras manchas Dentro da cultura americana (lembrando que foi neste país a “descoberta” de uma doença que matava homossexuais e que era provocada por uma espécie de vírus no sangue), temos na década de 1990 a peça de Tony Kushner, Angels in America, cuja presença da mancha também é utilizada para denominar a doença. Cruzando o drama da doença com questões políticas, religiosas e sexuais, o drama consegue dar forma àquela “mancha social” de que tanto se fala. Um homossexual revela a seu companheiro judeu uma mancha em seu peito. Nem um dos dois diz o

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4 nome da doença: tudo fica entendido a partir da mancha. O companheiro fica tentado a abandonálo, apesar de ter consciência da crueldade de sua atitude, além da consciência de sofrer o remorso para o resto de sua vida, pois é o cristão que acredita em perdão; o judeu acredita na culpa. A peça é dividida em episódios, que fazem as vezes dos atos, cada um com um título próprio. Assim, como em uma peça shakespereana, Kushner monta uma peça de forma episódica, entrelaçando uma série de enredos diversos invocando, para dar unidade a esses enredos, narrativas mitológicas e teológicas, sempre com um teor cômico próprio do estilo trágico-cômico norte-americano, misturando fantasia e realidade, causando naquele que lê/assiste um desmanchamento da realidade. O mérito da peça de Kushner, que ganhou o Prêmio Pulitzer por ela, está no fato de conduzir ao coletivo através do individual, seja ele político (representado pelo discurso do advogado Roy M. Cohn que assume ter relações com homens, embora não se considere homossexual), religioso (principalmente no discurso que abre a primeira cena do rabino Chemelwitz que, ao conduzir um funeral, não fala da morte de uma pessoa, mas de uma pessoa como um todo) e sentimental (já que um homem abandona seu companheiro de anos por medo do que a doença possa causar). São personagens de todos os tipos, mas que conduzem a uma certa humanidade que é compartilhada por todos nós, pensamentos cuja natureza não está na religião ou no ideal político do homem, mas na sua própria essência humana. O que Kushner procura na peça é fazer levantar uma comunidade apagada no meio da Grande Civilização: a comunidade gay. Apesar de desmanchar fronteiras de gênero na peça, não se pode ignorar o subtítulo da mesma: A Gay Fantasia on National Themes (“Uma fantasia gay sobre temas nacionais”). Na verdade, o que Kushner faz é convidar o público gay a se "identificarem nos conflitos levantados na peça inteira" (MARTINS, 2009, p. 62). Tratando de questões humanas universais, Kushner as apresenta com um "olhar mais queer" (MARTINS, 2009, p. 63), explorando o surgimento da AIDS como um momento adequado para que a comunidade gay se questione e mergulhe em uma autocrítica necessária. Ora, se a história não apenas americana, mas ocidental, exclui os homossexuais, fazendo-os vir à tona apenas quando uma epidemia se alastra, a voz de presença deve vir de dentro dessa mesma exclusão, como uma mancha, cresce antes dentro, para depois atingir o exterior, o social. Aqui está o objetivo de Kushner: promover a desmistificação da equação mancha = exílio, propondo uma nova e contrária: mancha = inclusão. A mesma funçao denunciadora da mancha encontramos nos filmes que tratam do tema, como Philadelphia, de Jonathan Demme. Uma mancha na testa de um advogado revela aos seus sócios que ele está contaminado, revelação que leva à sua demissão.

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5 No Brasil, a primeira peça a levar para os palcos a temática da AIDS foi A mancha roxa, de Plínio Marcos, de 1989. Em uma cela especial feminina, a descoberta de que uma das encarceradas possui uma “mancha” na pele desencadeia uma situação de caos. Especial por ser uma cela de detentas de nível superior, e por terem elas certos privilégios. As mulheres, na sua maioria lésbicas, se tornam incomunicáveis, mostrando que aquela mancha não pode ser diluída pela linguagem, como defende Sontag. O discurso sobre ela, a mancha, já estava feito, pronto. Só resta a elas, então, temê-la. A partir do momento em que Plínio Marcos “leva” a AIDS para a cela de um presídio feminino, ele desmitifica certas questões, como a visão da AIDS ser apenas doença de homens homossexuais e a revelação de sua existência entre os “marginalizados” da sociedade, isto é, aqueles que não participam, a priori, ativamente de uma sociedade, visto que estão encarcerados. Ao contrário do que se verá na peça de Caio Fernando Abreu, a dor aqui não é suavizada por lirismos. A dor que Plínio Marcos revela é real, não metafórica. A realidade é, perdoem o clichê, nua e crua. Em certos pontos, a objetividade do texto chega a tanto que envolve o público em um mal-estar, aproximando A Mancha roxa de Barrela, primeira peça do autor. Assim, na cena inicial, enquanto a personagem chamada de Santa lê a Bíblia, Doutor (outro apelido para outra detenta) aplica uma dose de droga nas colegas. Ao amarrar a borracha no braço de Isa, vê uma mancha roxa. Automaticamente, e ignorando qualquer outro motivo/sintoma, revela-se a AIDS. O contexto de encarceramento, de troca de agulhas e de intimidades faz com que a atmosfera se modifique, tornando-se tensa, quase pânico, quase caos. Ameaças e defesas começam a acontecer, até que o bate-boca chama a atenção da agente penitenciária, Grelão. Santa tenta suborná-la para sair da cela, da zona de contaminação. Após muita algazarra, começa uma vistoria em todas as detentas. Concluí-se que todas estão contaminadas, pois todas estão com manchas. “Cada roxa faz mil. Cada uma, mil.” Ouvem-se gritos fora de cena, anunciando que há roxas em outras celas. Entretanto, o que nos interessa na em A mancha roxa é a inexistência da mancha. As personagens se despem, e umas veem nas outras a mancha roxa, em lugares diferentes do corpo. O público, porém, não vê nada. A obsessão pela mancha faz com que ela exista de fato ou apenas na imaginação igualmente doente? Finda-se a peça com as presidiárias dizendo falas sensuais, se insinuando ao público, revelando um metateatro que convida a plateia para um ato sexual que a contaminará. A mancha em Caio Fernando Abreu Apesar de só ter a certeza de ser soro-positivo em 1994, Caio Fernando Abreu já tinha citado a doença em alguns escritos. Sempre sob o aspecto de mistério e segredo, a metáfora

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6 da AIDS na obra caiofernandiana surge como reflexo de outras doenças já aparentes em seus escritos: a morte, a solidão, a cidade, o sexo, o amor. Nesse viés, contos como o urbano “Dama da noite”, o nostálgico “Linda, uma história horrível”, o angustiante “Depois de agosto” e o fantástico “Eles” trazem a doença por trás de sua máscara de não ser nomeada, visto ser, a priori, provinda do amor que não ousa dizer seu nome, ela também seria uma doença que não ousaria dizer seu nome. Há, porém, uma nova visão: a mancha/marca na obra caiofernandiana desde antes da epidemia da AIDS no final da década de 1970 já tinha uma significância. A mesma ambiguidade assumida por ele em outros aspectos, incluindo o da sexualidade de seus personagens, permitiu que as fronteiras bem delineadas da cultura tradicional fossem desmanchadas. Ao contrário do que possa se pensar, a mancha/marca presente nos textos de Caio define não os excluídos ou marginais, mas os eleitos. Contos como “Eles” e “Iniciação”, ambos do livro O ovo apunhalado, de 1975, permitem uma leitura paralela àquela que os inclui como textos constituintes de uma literatura de temática gay. Em “Eles”, uma comunidade de seres extraterrestres são uma clara referência à comunidade gay que se fortalecia naquela década. Ao contrário do que acontecia com o grupo gay, a comunidade d’“Eles” não ficava à margem da outra, normativa. Seus indivíduos só se tornavam visíveis para aqueles que conseguiam identificar “a mesma marca daquele menino” (2001, p. 64). Esse menino é um que mantém contato com esses seres, “inteiros leveza, amor, bondade” (2001, p. 67). O legado deixado por esses seres é dito logo na primeira frase do conto: “O que eles deixaram foram estes três postulados: importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta, e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias” (2001, p. 32). Já em “Iniciação”, um jovem narra seu primeiro encontro amoroso em uma atmosfera circense, partilhado com um ser extraterrestre que possuía uma “pequena mancha escura no centro da testa”, e sem que este informasse, ele sabia: “vinha dali a sua força” (2001, p. 113). Após o ato sexual, o extraterrestre revela ao seu parceiro que em breve ele também conseguiria formar aquela mancha/marca, para que fossem “profetas do mesmo apocalipse” (2001, p. 113). Apesar de seu teor realista-fantástico e de sua época, O ovo apunhalado já como que previa o apocalipse que viria anos mais tarde: um apocalipse baseado no exílio e na morte oriundos da mancha de uma doença em toda uma sociedade. Porém, desde essa época, a mancha seria para Caio Fernando Abreu uma marca de eleição, que incluiria aquele que a possui em um meio de onde era, até então, marginal. Além disso, o fato da mancha/marca estar situada na pele de um extraterrestre, isto é, o Outro, comprova teorias iniciais da epidemia, para as quais a doença teria surgido no continente africano.

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7 O “outro”, como um estranho às normas e às condutas morais, sociais e legais de uma comunidade, aproxima-se do “estrangeiro”, pois ambos não comungam das mesmas práticas coletivas de um “todo”. Desta forma, o outro lugar-comum da peste é que sempre vem de outro lugar, do estrangeiro. (BESSA, 1997, p. 21).

Quando o livro Os dragões não conhecem o paraíso, foi lançado em 1988, a epidemia já estava formada. Markito, primeira vítima brasileira conhecida e amigo de Caio, estava morto há cinco anos; Cazuza já havia se declarado publicamente soro-positivo, e Caio Fernando já suspeitava estar infectado2. Logo,os contos que o compõe possuem uma presença bem mais clara da doença e da metáfora da mancha. Dois deles merecem destaque: “Linda, uma história horrível” e “Dama da noite”. No primeiro, um homem soro-positivo vai vistar a mãe doente e idosa, beirando a insanidade. Nessa visita, o filho-narrador se depara com um ambiente completamente deteriorado, assim como a saúde de sua mãe. As manchas escuras no tapete outrora vermelho; as manchas rosadas na pele da velha cachorra Linda, e as manchas na pele de sua mãe, sinais da velhice, se confundem com “as manchas púrpuras, da cor antiga do tapete na escada – agora, que cor? –, espalhadas embaixo dos pelos do peito” (ABREU, 2005, p. 28). Nesse ambiente de repulsa e de morte, Caio faz brotar esperança e vida. A ambiguidade do título, Linda/horrível, acompanha a escrita do conto todo, desmanchando não apenas as manchas físicas, mas também as manchas sociais, dando aos personagens um olhar mais humano e piedoso. No segundo conto, “Dama da noite”, uma mulher fala com um interlocutor desconhecido, de quem só se sabe a idade: vinte anos. Apenas ela é quem fala, em um monólogo quase didático. Ela, possivelmente uma prostituta, afirma que naquele tempo todos têm medo do amor, pois ele trouxe a morte. Ela própria é chamada Dama da noite por isso: Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. (ABREU, 2005, p. 86).

A Dama da noite representa uma geração que sofreu a ilusão de ter acreditado que “parecia que ia dar certo”. Já o boy havia nascido “depois que mataram a ilusão”. Ele “já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar AIDS. Vírus que mata, neguinho, vírus do amor” (2005, p. 85). Nesse discurso, Caio desconstrói o pensamento homofóbico que pregava que somente homossexuais morriam de AIDS. Ao colocar a voz na boca de uma prostituta que dialoga, mesmo que sozinha, com um garoto de vinte anos, ele

2

Segundo relatórios médicos, Caio Fernando Abreu teria se contaminado por volta de 1985. (ABREU, in MORICONI, 2002, p. 312).

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8 abala a estabilidade da sociedade heterossexual, alterando as relações entre homem-mulher, jovem-velho, seguro-perigoso. Já no romance Onde andará Dulce Veiga, de 1990, a doença surge em vários vieses: na pele da cantora lésbica e drogada, duplo do jornalista sem nome que narra o romance; supostamente na mãe desta, também cantora que dá nome ao romance; na figura trazida diegeticamente pela memória do narrador, chamado de Pedro, que, misteriosamente, desaparece, deixando apenas um bilhete onde dizia achar ter “contaminado” o jornalista; e, enfim, na pele do próprio narrador, que não se olha no espelho com medo de encontrar manchas no corpo e ver estampado o rosto de Caim (isto é, de marcado por Deus) no próprio rosto. Para finalizar esse histórico, a novela “Pela noite”, de 1983, traz um homem, autodenominado Pérsio, com AIDS e sua jornada de conquista do outro pela noite paulista. Desesperançoso com o amor, ele é completamente o contrário daquele que quer seduzir, apelidado de Santiago. Não apenas o amor é discutido entre os dois, mas limites entre homossexual/heterossexual, passivo/ativo, doente/saudável são questionados. “Pela noite”, como já dito, foi o primeiro texto a trazer a palavra AIDS para a literatura. Escrever sobre o vírus é escrever sobre uma “morte anunciada” a exemplo de Gabriel Garcia Marquez, tecendo uma crônica não apenas de um indivíduo, mas de toda uma classe. O Homem e a Mancha: o teatro como uma Zona Contaminada Em pelo menos dois textos teatrais, Caio Fernando Abreu aborda a AIDS ou como peste/doença ou sob a metáfora da mancha. Em Zona Contaminada, um mundo pósapocalipse tomado por um vírus que matou parte da humanidade, deixando infectado quem só faz esperar pela morte, se torna metáfora do período pós-utópico do qual falava a Dama da noite. Um dos personagens merece destaque para a análise principal desse artigo: o Homem de Calmaritá, para quem o contato corporal se tornou ato de piedade. É para ele que uma outra personagem grita: “maldição, deve ser algum contaminado. Preciso matá-lo (Aos gritos) Sai daí, besta imunda! Mostra tua cara purulenta, verme do apocalipse” (ABREU, 2009, p. 184). Em sua versão final, a peça apresenta um desastre nuclear como fonte de epidemia. Porém, a primeira versão mostrava exatamente a epidemia da AIDS tornando o mundo um lugar inabitável. O Homem de Calmaritá vai de encontro com outro Homem do teatro caiofernandiano: o Homem da Mancha. No ano em que publicou Dulce Veiga, isto é, 1994, Caio Fernando Abreu escreve durante o Carnaval a peça O Homem e a Mancha. O monólogo trata dos desdobramentos do único Ator em vários personagens, todos alter egos de uma única persona. Assim, o Ator dá origem ao personagem Miguel, aposentado frustrado na vida e no amor que resolve não sair

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9 mais de casa; que, por sua vez, dá origem ao aventureiro Quixote, retrato fiel, ou quase, daquele outro cervantino; que, ao se denominar Quixote de La Mancha, traz à luz o Homem da Mancha, um sujeito obcecado por uma suposta mancha presente no seu corpo/espaço. Em dado momento, todos os personagens interagem em uma “apoteose esquizofrênica”, trazendo ao palco um último e, talvez, mais verdadeiro personagem: o Cavalheiro da Triste Figura, já condenada à morte, melancólico e distante, que recita, em um último alento intertextual, Garcia Lorca. O Homem da Mancha, personagem que mais nos interessa aqui, ao menos por ora, surge a partir de Miguel, um homem recém-aposentado que decide naquele dia, até o dia da sua “morte-amém”, nunca mais sair de casa. E confessa em um movimento intertextual e metateatral: “Como Marcel Proust, como Juan Carlos Onetti. Não preciso de nada lá de fora. Tenho estas quatro... (Hesita. Olha a platéia, os telões. Por um segundo volta a ser o Ator, consciente das três paredes teatrais.) bem... estas três paredes do meu apartamento.” (ABREU, 2009, p. 224). Ele personifica no palco, então, o homem moderno, indivíduo enclausurado e amedrontado, que reconhece a facilidade da vida frente aos serviços dellivery, tendo tudo sem sair de casa, pois, “qualquer problema, sempre existe o velho e bom telefone. E só pegar e ligar.” (2009, p. 225). Farmácia, supermercado, pizzaria, locadora de vídeo, pronto-socorro, delegacia, “se for preciso”. Tudo muito rápido, eficiente e moderno. Pois “hoje em dia tudo tem entrega a domicílio. Até sexo.” (2009, p. 225). O autoexílio no qual se inseriu o personagem permite que ele se torne “um homem desses [que] pode apenas ficar lembrando, mastigando, remexendo na memória.” Com isso, ele se sente à vontade para começar sua história com “era uma vez”: MIGUEL - Era uma vez Miguel Quesada, o homem que cansou de tudo e nunca mais saiu de casa. Enterrado vivo, diziam. Demente, maníaco. Mas ele não se importava. Tinha suas próprias histórias para lembrar. (Poético.) E quando eu estiver cansado de pensar no que vivi, ainda me restarão os livros, que foram sempre o que mais amei, desde menino, e que guardam outras histórias dentro deles. Todas as histórias do mundo. Que maravilha. Nenhum contato com o mundo lá de fora, esse maldito mundo que chamam de “real”. Nunca mais filas nos bancos, nunca mais sinais fechados, nunca mais correrias, ansiedade, violência. Nunca mais desejo. Nunca mais pessoas, nunca mais ninguém. Só o indispensável, o essencial, o estritamente necessário. (ABREU, 2009, p. 225).

Assim, na Cena 5, “na qual se introduz um novo e inquietante personagem, bem como sua estranha obsessão”, surge o Homem da Mancha a partir do sonho de Miguel, expondo desta forma o caráter onírico desses personagens, assim como no mundo do Quixote de Cervantes. Tal fato torna-se conhecido pela rubrica inicial da cena: Miguel está adormecido. Silêncio e paz. Luz suave sobre o globo terrestre. Entram acordes de uma melodia espanhola, talvez só castanholas ou bater de saltos. Ritmo de flamenco, ardente mas suavíssimo. Quando Miguel

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10 desperta, já está transformado no Homem da Mancha. Mas a transformação é sutil, gradativa. De vez em quando voltam nesse Homem as suas porções Miguel e Ator, ao mesmo tempo em que também começa a emergir o Quixote. (ABREU, 2009, p. 227).

É esse Homem da Mancha a metáfora do indivíduo do final do século XX enquanto aquele que teme pela sua sexualidade. Ora, como já foi colocado, embora brevemente, a AIDS traz em meados da década de 1980 uma realidade doentia sob a metáfora da peste. Na peça de Caio Fernando Abreu, a metáfora recai sobre a mancha: HOMEM (Acorda de repente.) - A mancha, meu Deus, a mancha. Onde foi parar a mancha? Estava aqui, agora mesmo. Não pode ter sumido assim. (Procura no chão.) Bem aqui, ela estava bem aqui. Era clara, isso eu me lembro. Não era uma mancha suja, não era uma mancha feia. Era só... só de outra cor. Bem clarinha. Assim... como se tudo fosse branco ou preto ou cinza, e em determinado lugar dessa superfície de repente lá estivesse ela, entende? Parada, quieta. De outra cor. Azul celeste. Amarelo água. Lilás, violeta, roxa. (Meio alterado.) Não, isso não. Roxa não, pelo amor de Deus, roxa não! (ABREU, 2009, p. 227-8).

A procura pela mancha não só pelo seu corpo, mas também pelo seu espaço, define a igual presença da doença biomédica e daquela outra, talvez mais cruel e mais mortífera: a social. O personagem deixa claro não se tratar de uma mancha suja ou feia, realizando na ficção o que propunha Susan Sontag, isto é, a aceitação da doença enquanto doença, diminuindo, ao menos teoricamente, a carga metafórica que ela pudesse carregar. Entretanto, a mancha como presença da AIDS se mostra apenas pela sua cor, a cor roxa. Ele afirma que ela poderia ser de qualquer cor, mas “roxa, não!”. A mancha social também fica explícita adiante, noutra aparição do Homem da Mancha, quando ele afirma que estava dentro da mancha, não “feito uma rede, uma teia, uma bolha”, mas como uma “poça de água da chuva”. A questão da doença oriunda do “outro” também é abordada por Caio Fernando Abreu: As Índias... o caminho das Índias... Etiópia, Pérsia, Madagascar. E o Novo Mundo. Dizem que existe um novo mundo do outro lado do mar sem fim. [...] Mas onde estará a mancha? Talvez aqui, um pouco ao sul de Trebizonda. Mas Trebizonda também não existe neste globo. Esquisito. Mais ao norte, quem sabe. Que estranho, aqui deveria estar localizada Pasárgada. Mas também não está. E onde estarão as Terras de Calmaritá? Gozado. Nem a leste, nem a oeste, noroeste ou sudoeste. Pode ser então que cerca de Barcelos, talvez. Ou mais acima, no caminho de Santiago de Compostella. (Agitado.) Ela tem que estar aqui, em algum lugar, eu estava dentro dela. Dentro... dentro não. Em cima, em baixo. Não sei, não lembro, não importa. Se ela não está aqui, ela não existe. E. se ela não existe, eu também não...” (ABREU, 2009, p. 228-9).

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11 Nesse trecho Caio retoma a Terra de Calmaritá, origem do personagem da peça Zona Contaminada, argumento para afirmar que ambas as peças, embora metaforicamente, abordam a AIDS e seu poder apocalíptico. Percebe-se que o personagem não queria a mancha dentro dele, mas em qualquer outro lugar. Enquanto outrora o Ator, personagem inicial, afirma não ser nada sem o personagem, este, por sua vez, afirma não ser nada sem a mancha. Chega, então, ao ponto desejado por Sontag: a mancha, metáfora da doença, se torna identidade. A mancha pode estar dentro dele, na sua pele, como queimadura, tatuagem. Segundo Alberto Sandoval (apud ALBUQUERQUE, 2004, p. 158), a AIDS possibilita aos personagens/indivíduos a “forjarem identidades híbridas, que são múltiplas, permeáveis e heterogêneas.” Além disso, a presença da mancha justifica a fuga da realidade proposta por Dom Quixote, e não só ele, mas todos os personagens com os quais o Ator dialoga e encena, desdobramentos da mesma persona: o Cavaleiro da Triste Figura. A priori, parece-nos que o Ator é fonte de todos os outros personagens. Porém, a medida que o aparecimento de personagens vai acontecendo, logo se percebe que o próprio Ator inicial é personagem desse indivíduo, triste por causa da morte física que se aproxima e da morte social já instaurada. Em suma, parece-nos que a mancha na obra caiofernandiana vai se desmanchando, culminando nesse seu último texto dramático, onde a mancha, além de ser utópica, é também invisível, objeto de procura e de enfrentamento. A AIDS torna-se assim um elo que elege indivíduos ao passo que os nomeia e os une. A fragmentação dos personagens, desde os primeiros textos de Caio até seu Ovelhas negras, de 1996, é desconstruída a partir da metáfora da mancha/marca, além de outros sinais, chegando a afirmar que era “cedo demais e nunca tarde” (ABREU, 1996, p. 257) em seu conto mais derradeiro, onde a AIDS aparece sem máscara e sem metáforas. Assim, podemos dizer que a mancha/marca na obra caiofernandiana se constrói diferente daquela de Plínio Marcos, por exemplo. Enquanto que em Plínio a mancha revela o caráter marginal dos indivíduos, em Caio a mancha marca os eleitos, como faz Kushner em Angels in America, que culmina com a visita de um anjo aquele que foi marcado, não mais para castigá-lo, como no primeiro marcado, Caim, mas para promovê-lo através da doença que padece. E sua promoção é a sua própria humanidade.

Referências: ABREU, Caio Fernando. Cartas. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. ______. Teatro completo. Rio de Janeiro: Agir, 2009. p. 217-259.

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______. O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&PM, 2001. ______. Caio 3D: O essencial da década de 80. Rio de Janeiro: Agir, 2005. ______. Ovelhas Negras. Porto Alegre: L&PM, 2002. ______. Triângulo das Águas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. ALBUQUERQUE, Severino J. Tentative Transgressions: homossexuality, AIDS, and the Theater in Brazil. Madison: The University of Wisconsin Press, 2004. BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro: Record, 1997. KUSHNER, Tony. Angels in America: a Gay fantasia on National Themes. New York: Theatre Communications Group, 1992. MARCOS, Plínio. A Mancha Roxa. São Paulo: Edição do autor, 1988. MARTINS, Cláudio Luís Serra. Desmanchando preconceitos: a AIDS e a estética da mancha nas peças Angels in America, O Homem e a Mancha e A Mancha Roxa. Rio de Janeiro, 2009. Tese (Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras. SONTAG, Susan. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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