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A manipulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, à luz do artigo 282º, nº 4, da Constituição, pelo Tribunal Constitucional rui tavares lanceiro*

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a) Considerações gerais 1. O presente texto tem por objecto o estudo da manipulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 282º, nº 4, da Constituição. O seu objectivo prende-se, portanto, não com o estudo teórico da figura em causa, mas com a efectiva actuação do Tribunal neste contexto. Nesse âmbito, pretende-se estudar a jurisprudência que veio a ser desenvolvida pelo Tribunal Constitucional no exercício desta sua competência, tendo-se procedido a uma recolha extensiva dos acórdãos proferidos onde existiu uma decisão de manipulação de efeitos. Neste texto começa-se por proceder a uma breve apresentação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e a possibilidade da sua limitação, para se defender, de seguida, a existência de um dever de ponderação pelo Tribunal Constitucional dos efeitos dessa declaração. Analisa-se, posteriormente, a * Assessor do Gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional, assistente convidado e doutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, investigador associado do CIDP – Centro de Investigação de Direito Público. 489

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operação de restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade e são elencados os tipos de limitação dos efeitos admissíveis. Neste âmbito, refere-se o afastamento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em razão do tempo, aí se incluindo a atribuição simples de eficácia ex nunc à declaração, sem e com modelação de efeitos, e o afastamento parcial destes efeitos, o afastamento parcial dos efeitos em razão das normas inconstitucionais e em razão do âmbito de aplicação. São expostos, de seguida, os limites da manipulação dos efeitos. Por fim, são apresentadas algumas conclusões. b) Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade e a sua limi­ tação 2. O sistema português de fiscalização abstracta sucessiva encontra-se previsto nos artigos 281º e 282º da Constituição1. Aí se prevê que quando o Tribunal Constitucional conclui que uma norma é inconstitucional, emite uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, cujos efeitos típicos têm como objectivo reparar as consequências da norma considerada desconforme com a Lei Fundamental. Esses efeitos-regra abrangem não só a cessação de produção de efeitos da norma inconstitucional para o futuro, mas igualmente a destruição de todos os efeitos por si produzidos, tendo, em regra, eficácia retroactiva (ex tunc) – desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, no caso da inconstitucionalidade originária (artigo 282º, nº 1), ou desde o momento que se tornou desconforme com a Constituição, no caso da inconstitucionalidade superveniente (artigo 282º, nº 2). A destruição retroactiva de efeitos pode abranger o efeito revogatório da norma declarada inconstitucional, levando à repristinação de norma por esta revogada2. A retroacção da eficácia destruidora dos efeitos da norma inconstitucional encontra o seu limite nos casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria sancionatória e for de conteúdo menos favorável ao arguido (artigo 282º, nº 3). 3. A Constituição, no entanto, atribui expressamente ao Tribunal Constitucional português o poder de modelar os efeitos (temporais e circunstanciais) da eficácia repressiva da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória Os artigos que sejam referidos ao longo do presente texto de forma desacompanhada da indicação do texto normativo a que pertencem são preceitos constitucionais. 2 Sobre o efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, cfr. R. T. Lanceiro, “O efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e a sua limitação pelo Tribunal Constitucional”, in As sentenças intermédias da justiça constitucional, C. Blanco de Morais (coord.), AAFDL, 2009, pp. 581-664. 1

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geral, de forma fundamentada, dando-lhe «um alcance mais restrito» (i.e., efeitos mais restritos ou menos onerosos do que a eficácia tipo), através do artigo 282º, nº 4, quando tal for exigível para evitar lesões desproporcionadas aos imperativos da protecção da segurança jurídica, da equidade ou a um interesse público de especial relevo3/4. A limitação de efeitos surge como meio de atenuar os riscos da incerteza e insegurança que, de forma paradoxal, acabam por decorrer, por vezes, da declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica5. Repare-se que o Tribunal não manipula os efeitos da inconstitucionalidade proprio sensu da norma em questão, como se poderia depreender de uma leitura apressada do preceito constitucional citado. De facto, os efeitos da inconstitucionalidade de uma norma estão fixados na Constituição e não são manipuláveis. Trata-se, isso sim, da restrição dos efeitos. O que o artigo 282º, nº 4, atribui competência ao Tribunal Constitucional para fazer é manipular os efeitos da decisão de provimento (da sua declaração de inconstitucionalidade) – a sua produção de efeitos, mais concretamente. A utilização desta competência pelo Tribunal Constitucional, no exercício dos seu poder conformador, alterando os efeitos normais da declaração de inconstitucionalidade, dá origem a um dos tipos das usualmente designadas sentenças manipulativas6. c) Dever de ponderação pelo Tribunal Constitucional dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral 4. O Tribunal Constitucional não pode ser indiferente aos efeitos, por vezes extremamente gravosos, das suas decisões de provimento em fiscalização abstracta sucessiva. De facto, há já algum tempo que se tem assistido, ao nível do Direito Comparado, a um interesse crescente dos Tribunais Constitucionais pelos efeitos colaterais das suas decisões. Esta preocupação tem como fundamento principal a crescente consciência de que estes efeitos podem ser muito onerosos – quer para os particulares, quer para o interesse público, quer para a Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, vol. II, 2ª ed., Coimbra Editora, 2011, pp. 337 ss.; R. Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, 1999, pp. 661 ss.; J. M. M. Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3ª ed. Almedina, 2007, pp. 92-96. 4 A actual redacção do artigo 282º, nº 4, foi introduzida logo na primeira revisão constitucional, em simultâneo com a criação do próprio Tribunal Constitucional. 5 Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 272/86, nº 15-16. As decisões judiciais citadas de seguida sem indicação do tribunal devem ser consideradas como sendo do Tribunal Constitucional. 6 Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 259 ss.; R. Medeiros, A decisão, pp. 661 ss. 3

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comunidade em geral –, podendo mesmo dar origem à violação de princípios constitucionais ou a situações mais graves do que as resultantes da vigência da norma inconstitucional7. A retroactividade plena da declaração de inconstitucionalidade da norma pode ofender vários princípios constitucionais, como o princípio da segurança jurídica, pilar fundamental do Estado de Direito, da proporcionalidade, da igualdade ou da conservação dos actos normativos produzidos pelo legislador democrático e o respeito pela sua vontade8. A eliminação de uma norma do ordenamento dá origem a lacunas e vazios que têm malefícios relacionados com a ausência de regulação a incerteza que dela decorre, bem como com a destruição dos efeitos por ela provocados9. Para além disso, pode comportar a lesão de direitos fundamentais e de interesses públicos constitucionalmente protegidos10. Mesmo quando a questão da criação de lacunas seja ultrapassada pela existência de efeito repristinatório, os efeitos da reposição em vigor do complexo normativo revogado pela norma inconstitucional podem também levantar importantes problemas de segurança jurídica e de igualdade, entre outros. A rigidez subjacente à mera alternativa entre decisões de acolhimento ou rejeição da arguição da inconstitucionalidade revela falhas na salvaguarda destes importantes princípios constitucionais. É na tentativa de evitar, de corrigir ou, pelo menos, de controlar excessos decorrentes da aplicação rigorosa dos efeitos das suas decisões de provimento na esfera jurídica dos cidadãos e dos poderes públicos que os Tribunais Constitucionais têm vindo a recorrer a sentenças manipulativas. Também se pretende, se possível, a conservação de actos jurídicos praticados à luz da norma inválida, aproveitando ao máximo as suas componentes não necessariamente afectadas pela inconstitucionalidade11. 5. A Constituição portuguesa, dentro desta linha de preocupação com os efeitos das declarações de inconstitucionalidade, atribui, no seu artigo 282º, nº 4, de forma bastante generosa, uma competência ao Tribunal Constitucional de manipulação dos efeitos das suas decisões. Quanto mais que não seja para utilização dos poderes que lhe são conferidos pelo citado preceito constitucional, a maioria da doutrina aceita, pelo menos em certa medida, a possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer, a

Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 172-179; pp. 267-271. Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 267-271, p. 277, pp. 337 ss. 9 Cfr. o Acórdão nº 272/86, nº 16. Cfr. também o nº 2 da declaração de voto do Conselheiro Raul Mateus ao Acórdão nº 38/84. 10 Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, p. 263. 11 Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 262-265. 7

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título prévio, das consequências da sua decisão de procedência12. O problema está no reconhecimento de que existe não só uma possibilidade, mas um dever do Tribunal Constitucional de, sempre que emita uma decisão de procedência, conhecer e analisar as suas consequências. Entende-se que o dever de o Tribunal Constitucional conhecer das consequências da declaração de inconstitucionalidade através de um juízo de antecipação da aplicação da norma advém, desde logo, do próprio artigo 282º, nº 4. Este preceito dá oportunidade ao Tribunal de ultrapassar a “rusticidade” das suas decisões, prosseguindo o estabelecimento de decisões equilibradas e proporcionais. Para que isso aconteça, é necessário que o Tribunal, para além da prossecução do princípio da constitucionalidade e do uso de decisões ablativas “a seco”, pondere as consequências da declaração de inconstitucionalidade face aos diversos princípios constitucionais aplicáveis relevantes. É desse juízo de ponderação prévio que decorre a decisão de manipulação dos efeitos dessas mesmas decisões. Ao admitir o afastamento ou a modelação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, o artigo 282º, nº 4, da Constituição, estabelece a necessidade (um poder-dever) de o Tribunal Constitucional indagar das consequências repressivas da decisão de forma preventiva, ex ante13, através de juízos antecipatórios. Ou seja, após o momento em que o plenário do Tribunal Constitucional decide declarar uma norma inconstitucional, encontra-se obrigado a ponderar os efeitos dessa declaração. A justiça constitucional não pode ignorar, de forma “cega”14 os efeitos das suas decisões e está constitucionalmente obrigada a conhecê-los, para poder utilizar a competência de restrição de efeitos. 6. A ultrapassagem da “rusticidade” das decisões de simples acolhimento em pleno respeito pelos princípios constitucionais deve ser feita com recurso a juízos de proporcionalidade dos efeitos da declaração, de forma a encontrar o justo equilíbrio entre a eficácia sancionatória e a projecção do seu conteúdo e dos seus efeitos na ordem jurídica, afastando o seu carácter excessivo ou desnecessariamente oneroso. Efectivamente, o dever do Tribunal Constitucional de emissão de decisões ponderadas (em relação ao seu conteúdo) decorre também da sua vinculação à tutela dos princípios constitucionais (que não pode ser seriamente contestada), que abarca todos os aspectos da sua actividade, em especial no domínio da fiscalização da constitucionalidade abstracta sucessiva, Cfr., com uma posição algo diferente, J. Miranda, Manual de Direito Constitucional, Inconstitucionalidade e garantia da Constituição, t. VI, 4ª ed. Coimbra Editora, 2013, pp. 352-360, p. 353. 13 Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, p. 337. 14 Cfr. J. Miranda, Manual, VI, p. 257. 12

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quando tem o poder de emitir decisões com força obrigatória geral. É pre­ciso encontrar a justa medida que permita a plena operatividade do princípio da prevalência da Constituição e os outros valores jurídicos e interesses públicos também são dignos de especial protecção15. A verdadeira salvaguarda dos princípios da segurança jurídica, da proporcionalidade, da igualdade ou da conservação dos actos normativos produzidos pelo legislador democrático só poderá ser alcançada através de uma preocupação pelas consequências das decisões da justiça constitucional que se repercuta na possibilidade de uma modulação de efeitos dessas decisões. Estando o Tribunal Constitucional vinculado à prossecução dos diversos princípios constitucionais referidos, então a decisão de manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com o fim de os proteger é vinculada. Assim sendo, aí se encontra uma outra fundamentação para a existência de um dever do Tribunal Constitucional de averiguar qual a repercussão desses mesmos efeitos. 7. Uma das objecções possíveis à existência de um dever de o Tribunal Constitucional de aferir os efeitos das suas decisões seria a impossibilidade de controlar o cumprimento desse dever e a falta de previsão da consequência da sua violação. De facto, a única forma objectiva de controlar o cumprimento deste dever é com base nas próprias decisões emitidas pelo Tribunal, uma vez que estas são a exteriorização da actividade jurisdicional neste âmbito. Ora, o facto de o Tribunal não ter mencionado, nem mesmo em obiter dicta, a realização de uma avaliação ou ponderação dos efeitos de determinada decisão, não implica que esse juízo não tenha sido feito. Um dos casos em que se poderá afirmar, com segurança, que este dever foi violado ocorre quando se possa concluir que o Tribunal Constitucional violou também o dever de limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionali­ dade. Nestes casos verifica-se que o dever de ponderação não foi realizado, pelo menos, de forma correcta, uma vez que, se tivesse sido realizado, o Tribunal teria restringido os respectivos efeitos. Também se pode concluir pela violação do referido dever de ponderação através da análise da fundamentação da decisão do Tribunal, através de obiter dicta, ou em casos em que deveria esclarecer, de forma não vinculativa, qual a norma repristinada e também não o fez. Nesse sentido, a consequência da violação do dever de conhecimento dos efeitos da declaração será idêntica àquela que se reconheça para a violação do dever de manipulação de efeitos.

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Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 337-338.

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Não se defende que o acórdão do Tribunal Constitucional se torna inválido pela violação do dever de conhecimento das consequências das suas decisões16. Em boa verdade, tal violação não afecta a decisão do Tribunal, em si, de declaração da inconstitucionalidade de uma norma. Existe uma autonomia entre a declaração de inconstitucionalidade da norma, o dever de ponderação dos seus efeitos e a decisão de restrição de efeitos. O problema coloca-se, pois, num momento posterior ao da declaração. Em última análise, trata-se de um dever jurídico sem sanção, o que não é invulgar. 8. Da afirmação da existência de um dever de averiguação dos efeitos de uma decisão de provimento do Tribunal Constitucional não se extrai a exigência de que o Tribunal Constitucional os identifique expressamente no texto do respectivo acórdão. Trata-se de efeitos automáticos da decisão de inconstitucionalidade que decorrem directamente do seu regime17/18. Apesar disso, nada impede que o Tribunal Constitucional, em casos de dúvida, clarifique quais esses efeitos. Tal pode acontecer, por exemplo, no âmbito do efeito repristinatório, podendo referir se este se verifica in casu e referir qual a norma repristinada19. 9. A decisão de restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade pressupõe a existência desta mesma declaração e a ponderação dos seus efeitos. A autonomia entre estas fases é comprovada pelo facto de existirem precedentes em que o Tribunal Constitucional ponderou os efeitos, concluindo expressamente pela sua não restrição20. Assim, após a declaração de inconstiCfr. R. Medeiros, A decisão, pp. 738-739. O mesmo não acontece, por exemplo, na Áustria, onde o artigo 140º, nº 4, da Constituição exige a determinação, pelo Tribunal, da respectiva eficácia repristinatória. Por seu lado, na Alemanha, perante o silêncio da Lei Fundamental de Bona, os juízes de Karlsruhe têm reclamado a competência para definir, em termos imperativos, se há repristinação, com base em argumentos de segurança jurídica. Cfr. W. Zeidler, Die Verfassungsrechtsprechung im Rahmen der Staatlichen Funktionen, Bundesverfassungsgericht der Bundesrepublik Deustland, in VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, pp. 45 ss.; K. Schailch, Das Bundesverfassungsgericht, 3ª edição, C. H. Beck, 1994, pp. 34 ss 18 Cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 2003, p. 1075; L. Nunes de Almeida, “A justiça constitucional no quadro das funções do Estado. Relatório do Tribunal Constitucional de Portugal”, in VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, Tribunal Constitucional, 1985, p. 137; R. Medeiros, A decisão, p. 666; C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, p. 184. J. Miranda, Manual, VI, pp. 336-337. 19 Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, p. 172, nota 246; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 987. 20 Cfr. o Acórdão nº 154/86, nº 3. Neste aresto foi declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 42/84, de 3 de Fevereiro, na parte em que determinou a integração nas empresas públicas ou nacionalizadas dos funcionários e agentes do quadro geral de adidos junto das quais se encontravam requisitados sem o seu 16 17

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tucionalidade, deve o Tribunal ponderar as suas consequências jurídicas para, tendo em conta essa ponderação, decidir da eventual restrição dos seus efeitos. A manipulação dos efeitos é, pois, um momento decisório necessariamente posterior e autónomo. Desta forma, a decisão de declaração de inconstitucionalidade não deve ser influenciada ou condicionada pela posterior manipulação de efeitos. Não faz sentido o argumento de que uma determinada norma não deveria ser declarada inconstitucional por inexistência de manipulação de efeitos ou que uma hipotética declaração de inconstitucionalidade imporia a necessidade de limitar os respectivos efeitos, pelo que seria inútil apreciá-la. O Tribunal Constitucional, no entanto, não tem seguido este entendimento. Existe uma jurisprudência consolidada, segundo a qual o Tribunal Constitucional não deve tomar conhecimento do pedido quando uma «hipotética declaração de inconstitucionalidade imporia, manifestamente, por força de razões de segurança jurídica e interesse público e em conformidade com o disposto no artigo 282º, nº 4, da Constituição, a imperiosa necessidade de limitar os respectivos efeitos», sendo «de todo inútil responder às questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos requerentes a propósito desta matéria»21 – nomeadamente por inexistência de «interesse jurídico relevante»22 ou «interesse útil»23 na apreciação do pedido. A jurisprudência em causa busca assentimento. Aí, após ponderar os efeitos da declaração, o Tribunal Constitucional conclui que «se porventura a declaração de inconstitucionalidade viesse a implicar a necessidade de qualquer providência normativa, incumbirá naturalmente ao legislador (que não ao Tribunal) adoptá-la». Um outro exemplo pode ser encontrado no Acórdão nº 297/86, nº 4, onde o Tribunal Constitucional conclui pela desnecessidade de restrição de efeitos, tendo em conta que se trata de «uma inconstitucionalidade parcial (ratione temporis)». 21 Cfr. o Acórdão nº 168/88, nº III, 2. Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 238/88, nº 8, B)’’; nº 319/89, nº 10; nº 415/89, nº 18; nº 73/90, nº 3, B); nº 135/90, nº 8-9; nº 465/91, nº 5-7; nº 467/91, nº II; nº 214/92, nº 10; nº 175/93, nº 6; nº 308/93, nº 7; nº 397/93, nº 5-6; nº 398/93, nº 7; nº 587/93, nº 4; nº 763/93, III.; nº 804/93, nº 7-8; nº 186/94, nº 8; nº 188/94, nº II; nº 57/95, 8.1.-8.2.; nº 119/95, nº 7; nº 120/95, II, 1.1., 2.3.1. e 2.3.2.; nº 121/95, nº 4; nº 580/95, nº 4; nº 118/96, nº 8-9; 527/96, nº 8; nº 497/97, nº VI, 1 e 2; nº 625/97, III, 1 e 2; nº 639/98, nº 4.4 e 4.5; nº 31/99, nº 7.1.; nº 54/99, nº III; nº 671/99, nº 5; nº 98/2000, nº 4; nº 139/2000, nº 3; nº 140/2000, nº 4; nº 255/2000, nº 7; nº 270/2000, nº 7; nº 338/2000, nº 4; nº 413/2000, nº 10-11; nº 531/2000, nº 7; 152/2001, nº 3; nº 269/2001, nº 5.2; nº 376/2001, nº 3; nº 32/2002, nº 7-8; nº 140/2002, nº 13; nº 142/2002, nº 4; nº 404/2003, nº 4; nº 617/2003, nº 4; nº 76/2004, nº 4; nº 19/2007, nº 6; nº 497/2007, nº 6-7; nº 525/2008, nº 5; nº 31/2009, nº 4-6; nº 539/2012, nº 8-11; 22 Cfr. os Acórdãos nº 135/90, nº 9; nº 465/91, nº 7; nº 397/93, nº 6; nº 587/93, nº 4; nº 497/97, nº VI, 1; nº 31/99, nº 7.1.; nº 98/2000, nº 4; nº 617/2003, nº 4; nº 31/2009, nº 4. A ausência de «interesse jurídico relevante» nestes termos chegou a ser invocada pelo Primeiro-Ministro como questão prévia que obstaria ao conhecimento da constitucionalidade no processo que conduziu ao Acórdão nº 806/93, tendo sido afastado pelo Tribunal (cfr., por exemplo, o Acórdão nº 806/93, II, 2., com uma declaração de voto do Conselheiro António Vitorino, que ficou vencido quanto a este ponto, sendo acompanhado do Conselheiro Bravo Serra). 23 Cfr. o Acórdão nº 398/93, nº 7. 496

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inspiração numa outra linha jurisprudencial, relativa à apreciação da constitucionalidade de normas revogadas, relativamente às quais o Tribunal erige exigência equivalente de demonstração de interesse processual – tendo em conta os efeitos da declaração de inconstitucionalidade24. No entanto, não se pode concordar que as situações sejam equivalentes: enquanto que, relativamente a uma norma revogada, há uma análise dos efeitos de uma hipotética inconstitucionalidade, neste caso parte-se dos efeitos dessa possível inconstitucionalidade para se antever uma eventual decisão de manipulação de efeitos25. O Tribunal admite que poderia existir «um interesse suficientemente relevante» que levasse ao conhecimento do mérito do pedido de fiscalização abstracta sucessiva, «se acaso se soubesse da pendência de um número elevado de processos em que esta questão tivesse sido suscitada e fosse decisiva para o respectivo desfecho»26. Não foi possível encontrar nenhum caso em que tal tivesse ocorrido27. A linha de argumentação defendida por esta jurisprudência é de rejeitar pois não respeita a devida autonomia do momento de declaração de inconstitucionalidade, de ponderação e de restrição, resultando de um salto lógico que não é aceitável à luz da Constituição portuguesa28. Como afirma o Conselheiro Vital Relativamente a esta linha jurisprudencial, cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 17/83, nº 4-5; nº 453/95, nº 11; nº 116/97, nº 4; nº 117/97, nº 3; nº 601/99, nº 3; nº 672/99, nº 5.3. Esta jurisprudência parece inspirar-se na posição da Comissão Constitucional de que era necessário um «interesse de conteúdo prático apreciável» para justificar o «accionamento de um mecanismo de índole genérica e abstracta como é a declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade» neste contexto (Parecer da Comissão Constitucional nº 21/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16, p. 203 – cfr. também os Parecer nº 4/81, in Pareceres, vol. 14, pp. 230-231 e Parecer nº 22/81, in Pareceres, vol. 16, p. 210). Quanto à utilização destes precedentes quanto à influência da manipulação de efeitos para a exigência de interesse processual, cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 120/95, II, 1.1.; nº 672/99, nº 5.4; nº 139/2000, nº 3; nº 140/2000, nº 2. 25 Por exemplo, no Acórdão nº 497/2007, nº 7, o Tribunal considera que «a fixação de efeitos retroactivos (ex tunc) no caso (…) iria acarretar a realização de inúmeras e custosas operações de natureza administrativa e burocrática, certamente com acentuada repercussão a nível orçamental», pelo que «forçoso é admitir que o caso dos autos consubstancia uma daquelas situações em que é previsível que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de alcance prático a declaração de inconstitucionalidade (…), fixando, nos termos do nº 4 do artigo 282º da Constituição, efeitos temporais mais restritos (efeitos prospectivos ou ex nunc em vez dos efeitos retroactivos)». Devido a essa “previsibilidade” «o prosseguimento do presente processo revelar-se-ia desproporcionado». 26 Cfr. o Acórdão nº 32/2002, nº 8. Cfr. também o Acórdão nº 31/2009, nº 6. 27 Nos exemplos encontrados, o Tribunal refere, a este propósito, que «se ainda estiver pendente algum recurso contencioso em que a questão da inconstitucionalidade da norma a que se reportam estes autos seja decisiva, sempre restará aos interessados a via da fiscalização concreta» (cfr. o Acórdão nº 31/2009, nº 6). Cfr. também os Acórdãos nº 531/2000, nº 7; nº 32/2002, nº 8; nº 19/2007, nº 6; nº 497/2007, nº 7; nº 539/2012, nº 11; 28 Como o Conselheiro Mário de Brito afirma, em declaração de voto ao Acórdão nº 168/88, «a questão da restrição dos efeitos da inconstitucionalidade, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 282º da Constituição, 24

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Moreira, em declaração de voto, «só se podem restringir os efeitos de inconstitucionalidades verificadas. Só depois de se concluir pela existência de uma inconstitucionalidade é que se pode colocar a questão de saber se e ou não de restringir os efeitos, ao abrigo do artigo 282º, nº 4, da CRP. Deixar de conhecer da inconstitucionalidade com o argumento de que, afinal, se teriam de restringir os respectivos efeitos e inverter a questão, pôr a cabeça no lugar dos pés, em termos metodologicamente insustentáveis e teoricamente indefensáveis»29. Trata-se de uma inversão metodológica injustificada – o Tribunal parece começar por conhecer quais seriam os efeitos da declaração de inconstitucionalidade antes de aferir se esta teria lugar30/31. Não se defende a ausência do interesse processual como um dos pressupostos processuais neste âmbito, apenas o facto de no controlo desse pressuposto se estar a ficcionar uma aplicação do artigo 282º, nº 4, sem todo o percurso hermenêutico prévio ser completado. A declaração de inconstitucionalidade sempre terá o efeito de impedir a norma em causa de continuar a produzir efeitos para o futuro – o que pode acontecer mesmo que já tenha sido revogada32 (ou tenha caducado33), quando à projecção no presente e futuro de efeitos destas normas, como ocorre em muitos dos casos em que o Tribunal Constitucional seguiu esta via34, embora ela se aplique mais genericamente, independentemente disso35. Para além disso, a revogação não substitui a declaração de inconstitucionalidade da norma, uma que «enquanto a revogação dispõe, em princípio, de uma eficácia prospectiva (ex nunc), a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tem, por via de regra, uma eficácia retroactiva (ex tunc), podendo assim haver interesse na eliminação dos efeitos jurídicos produzidos medio tempore, isto é, no período de vigência da norma sob sindicância»36. só se põe depois de se ter resolvido – em sentido afirmativo – a questão da inconstitucionalidade, isto é, depois de se ter declarado essa mesma inconstitucionalidade» (nº 3; cfr. também as suas declarações de voto aos Acórdãos nº 238/88, nº 319/89, nº 415/89 [acompanhado pelo Conselheiro Vital Moreira], nº 73/90, nº 135/90, nº 465/91 e nº 214/92). 29 Cfr. o nº 2.4 da declaração de voto do Conselheiro Vital Moreira ao Acórdão nº 168/88. 30 Cfr., neste sentido, J. Miranda, Manual de Direito Constitucional, Constituição e inconstitucionalidade, t. II, 3ª ed., 1991, pp. 504-505, em que afirma «não pode aceitar-se (…) que se faça depender a apreciação da constitucionalidade de uma qualquer verificação prévia da utilidade da sua eventual declaração (…), como se se estivesse em fiscalização concreta. Seria inverter todo o sentido do artigo 282º». 31 Por exemplo, no Acórdão nº 120/95 o Tribunal Constitucional faz um longo estudo dos efeitos das normas objecto de pedido e da hipotética declaração de inconstitucionalidade, sem se pronunciar sobre a verdadeira e própria inconstitucionalidade objecto do pedido. 32 De acordo com o Tribunal Constitucional apenas se justifica que «se conheça de pedidos relativos a normas revogadas sempre que tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar os efeitos entretanto produzidos por tais normas durante o período da sua vigência» (cfr. o Acórdão nº 531/2000, nº 7). 33 Cfr., por exemplo, o Acórdão nº 142/2002, nº 4. 34 Mas não só, há casos de aplicação quando não existiu revogação, cfr. o Acórdão nº 57/95, 8.2. 35 Cfr., por exemplo, o Acórdão nº 32/2002, nº 7. 36 Cfr. Acórdão nº 806/93, II, 2. Cfr. também os Acórdãos nº 186/94, nº 8 e nº 175/93, nº 6. 498

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Como afirma o Conselheiro Alberto Tavares da Costa, mesmo que o fim de expurgar o ordenamento jurídico da norma inconstitucional, já tenha sido conseguido com a sua revogação, não se «devem negligenciar os efeitos produzidos pela norma revogada quando, pelo menos, possam estar em causa valores jurídico-constitucionais relevantes, não necessariamente ‘sanáveis’ mediante meios individuais e concretos ao alcance do eventual lesado, como sejam a reclamação ou a impugnação judicial»37. Basta que exista uma eventualidade de que efeitos da norma inconstitucional se continuem a produzir para se justificar o conhecimento38. O Tribunal responde a esta crítica referindo que, nesse caso, sempre podem os lesados recorrer à fiscalização concreta da constitucionalidade39. Ao não conhecer do objecto, para além de desrespeitar o princípio do pedido, o Tribunal prolonga uma situação de incerteza e insegurança sobre a inconstitucionalidade da norma em causa – de facto, desta forma, o Tribunal recusa-se a analisar da conformidade com a Constituição da norma em causa. Como o conhecimento passa a depender de uma ponderação hipotética de uma eventual restrição de efeitos, torna-se difícil prever se determinada situação será objecto de conhecimento ou não40. Só isso bastaria como interesse jurídico relevante Cfr. o nº 2 da declaração de voto do Conselheiro Alberto Tavares da Costa ao Acórdão nº 135/90. Cfr. também a sua declaração no Acórdão nº 73/90. O Conselheiro reafirmou a sua posição nos Acórdãos nº 214/92, nº 763/93, nº 804/93 e nº 186/94. 38 Há casos em que o Tribunal Constitucional admitiu que existiam processos ainda a decorrer em que a norma em causa era aplicável, mas considerou que «seria excessivo ou desproporcionado continuar o presente processo até à eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, apenas para contemplar os litígios em que as normas revogadas tivessem sido aplicadas ou objecto de recusa de aplicação por decisão judicial» (cfr. o Acórdão nº 397/93, nº 6). O que se afigura excessivo é o Tribunal recusar o exercício da sua jurisdição neste caso. Uma vez pedida a fiscalização abstracta da constitucionalidade de uma norma ao Tribunal Constitucional, não lhe cabe tecer juízos sobre a dispensabilidade da sua intervenção. Um outro exemplo extremo ocorreu quando o Tribunal Constitucional chegou a não conhecer, por este motivo, da inconstitucionalidade de normas disciplinares (cfr. os Acórdãos nº 120/95; nº 804/93). 39 No Acórdão nº 175/93, o Tribunal perante essas situações em que existiam «litígios em que a norma revogada havia sido aplicada por decisão judicial, da qual fora tempestivamente interposto recurso de constitucionalidade», preceituando que em «tais situações, basta que prossigam os respectivos recursos de constitucionalidade até ser proferida decisão pelo Tribunal Constitucional, não sendo, para tal, indispensável a prossecução do processo de fiscalização abstracta, mais complexo, por não se mostrar que tal seja aconselhado por quaisquer “valores jurídico-constitucionais relevantes” (formulação retirada do já citado Acórdão nº 238/88)» (cfr. o Acórdão nº 175/93, nº 6). No Acórdão nº 413/2000, nº 10, o Tribunal também referiu que «os meios concretos de defesa postos à disposição dos interessados são suficientes para acautelar os seus direitos ou interesses, impedindo a aplicação da norma inconstitucional». 40 Já ocorreram situações em que normas semelhantes conheceram resultados diferentes – sendo a constitucionalidade conhecida, num caso, e não conhecida, no outro. Um caso impressivo é o do Acórdão nº 98/2000 (cfr. nº 4), em que o Tribunal admite expressamente que «numa situação semelhante à suscitada no presente processo, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 637/95 (…), decidiu 37

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para justificar o conhecimento, mas também se pode invocar, a este propósito, o princípio da constitucionalidade. Através desta orientação jurisprudencial o Tribunal Constitucional acaba por utilizar um instrumento que lhe permitia reagir à inconstitucionalidade de normas com maior liberdade (uma vez que poderia obstar a consequências menos desejadas da declaração de inconstitucionalidade) para não reagir a essa inconstitucionalidade. A função central do Tribunal é fiscalizar a constitucionalidade das normas – não prosseguir esse fim, invocando uma hipotética e incerta restrição de efeitos, é frustrar o papel que lhe foi atribuído pela Constituição. 10. A competência para a restrição de efeitos é oficiosa, pertencendo exclusivamente ao Tribunal Constitucional. No entanto, existem casos em que os intervenientes no processo de fiscalização chamaram à atenção para a necessidade de restrição e a solicitaram41 – tal ocorreu em especial no caso dos autores das normas42 – ou para a desnecessidade dessa restrição – como aconteceu com os autores dos pedidos43. Existem diversos outros exemplos44, com e sem su­cesso45. No âmbito destes pedidos, o Tribunal já fez questão de referir que o poder de restrição é da sua «competência exclusiva» e que nunca seria deter­ declarar a inconstitucionalidade» da norma em causa. No entanto, como nesse caso acabou por limitar os efeitos, no processo em causa, entendeu que não existia «interesse na apreciação do pedido». Não foi fornecida uma razão substantiva o justifique o tratamento diferenciado. A mesma relação se pode estabelecer entre o Acórdão nº nº 254/2000, em que foi declarada a inconstitucionalidade de uma norma, restringindo-se os efeitos (nº 6) e o Acórdão nº 531/2000, num processo que o Tribunal reconhece como semelhante (nº 7), não conheceu o objecto do pedido. 41 Cfr., por exemplo, o Acórdão nº 539/2012, nº 1, em cujo processo o Procurador-Geral da República peticionou «a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade, nos termos do artigo 282º, nº 4 da CRP, de modo a que os mesmos se produzam apenas a partir da publicação da decisão a proferir nos autos». 42 No processo que deu origem ao Acórdão nº 92/85, o Primeiro-Ministro «chamou (…) à atenção para a necessidade de, em caso de ‘procedência do pedido’, se ressalvarem os efeitos produzidos por esses mesmos despachos [objecto de apreciação], de harmonia com o nº 4 do artigo 282º da Constituição» (cfr. o Acórdão nº 92/85, nº 4). O mesmo ocorreu no Acórdão nº 73/90, nº 2, alínea e). Um outro exemplo é o do processo que originou o Acórdão nº 368/92, onde o Primeiro-Ministro solicitou, na hipótese de declaração da inconstitucionalidade, que fossem «os respectivos efeitos limitados de molde a não atingir os actos da Administração que, ao abrigo dessas normas, tivessem sido praticados e não tivessem sido objecto de impugnação contenciosa» (cfr. o Acórdão nº 368/92, nº III.1). 43 Cfr., por exemplo, o Acórdão nº 208/2002, nº 3, e), em cujo processo o Provedor de Justiça argumentava que não se deveria «fazer uso do poder previsto no artigo 282.°, nº 4, da CR, ‘sob pena de se criar um sentimento de impunidade face a uma evidente violação da Constituição, gerando-se um privilégio inaceitável’». 44 Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 866/96, II e V, 4.; nº 869/96, nº 2; nº 254/2000, nº 1; nº 356/2001, nº 3; nº 123/2004, nº 3; nº 682/2005, nº 4; nº 34/2006, nº 2; nº 635/2006, nº 3; nº 19/2007, nº 3. 45 Cfr., por exemplo, com sucesso, os Acórdãos nº 866/96, II e V, 4., ou nº 254/2000, nº 1 e 6, e nº 34/2006, nº 2, sem sucesso, o Acórdão nº 635/2006, nº 3 e IV. 500

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minante «para a apreciação de tal questão qualquer pedido do requerente quanto a esta matéria»46. d) A operação de restrição de efeitos da declaração de inconsti­ tucionalidade 11. A competência do Tribunal Constitucional prevista no artigo 282º, nº 4, da Constituição permite-lhe restringir os efeitos típicos da declaração em razão do tempo (v.g., durante o período de tempo ressalvado é mantido o influxo da norma inconstitucional sobre situações jurídicas conexas) ou em razão da maté­ ria em questão ou das circunstâncias (a cristalização do influxo da norma, em determinado período, abarcará só algumas dessas situações ou casos)47/48 podendo combinar várias opções. Desde logo, o «alcance mais restrito» significa que o Tribunal pode determinar que a declaração de inconstitucionalidade não tem efeitos retroactivos reportados à entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, como resultaria do nº 1 do artigo 282º, mas a partir de um momento ulterior, que poderá ser a data da declaração da inconstitucionalidade ou da publicação do acórdão (eficácia ex nunc) – este é o resultado mais comum da manipulação de efeitos, como se verá – ou qualquer momento intermédio. De facto, o artigo 282º, nº 4, ao admitir o afastamento total do efeito retroactivo da declaração de inconstitucionalidade, consagra implicitamente a possibilidade de restrição apenas parcial desse efeito. No entanto, ler o artigo 282º, nº 4, da Constituição como apenas relativo a uma manipulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade é redutor. A letra da Constituição assume a possibilidade de o Tribunal dar «um alcance mais restrito» a todos efeitos-tipo da declaração de inconstitucionalidade. Cada efeito pode ser limitado de forma isolada ou em conjunto com os restantes efeitos da declaração de inconstitucionalidade. O efeito repristinatório é também um dos efeitos sancionatórios da declaração de inconstitucionalidade que pode ser limitado devido a características da própria norma repristinanda em questão, em especial devido à sua invalidade. A decisão de afastamento do efeito repristinatório é considerada uma modali-

Cfr. o Acórdão nº 208/2002, nº 10. Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 337-339; L. Nunes de Almeida, “A Justiça Constitucional”, p. 137. 48 Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 272/86, nº 15-16. Cfr. também o nº 2 da declaração de voto do Conselheiro Raul Mateus ao Acórdão nº 38/84. 46 47

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dade secundária ou colateral de limitação de efeitos uma vez que incide, a título principal, na restrição da eficácia temporal da sentença de acolhimento49/50. 12. A restrição de efeitos depende, nos termos da Constituição, de uma ponderação feita pelo Tribunal Constitucional entre as consequências nefastas da declaração de inconstitucionalidade da norma em questão e da destruição dos seus efeitos face à segurança jurídica, à equidade ou a interesse público de especial relevo (cfr. artigo 282º, nº 4). A restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional deve ser exercida e fundamentada de acordo com critérios estritos de proporcionalidade e de igualdade51. A decisão de limitação de dado efeito e a medida dessa limitação dependem da existência de um sacrifício desproporcionado da segurança jurídica, da equidade ou de interesse público de excepcional relevo e do grau desse sacrifício. Daqui resulta o carácter vinculado do poder do Tribunal de manipulação de efeitos, uma vez que não se trata de um espaço de absoluta discricionariedade. Estamos perante uma competência do Tribunal Constitucional – um poder-dever. A forma como o Tribunal exerce essa sua competência só pode ser controlada se este fundamentar as suas decisões de forma substantiva, permitindo que se perceba a justificação de ter actuado de determinada forma. No entanto, do estudo da jurisprudência do Tribunal Constitucional nota-se que essa fundamentação se encontra, por vezes, limitada a um mero parágrafo ou frase52 – o que parece ser insuficiente para um controlo efectivo da utilização deste poder importante do Tribunal. 13. Um dos fundamentos que pode justificar a limitação de efeitos é o da segurança jurídica. De facto, apesar de a declaração de inconstitucionalidade de uma norma contribuir para o reequilíbrio do sistema jurídico, a verdade é que, como já vimos, pode conduzir a situações em que é, ela própria, factor de incerteza53. O efeito ex tunc da decisão desestabiliza situações jurídicas formaCfr. R. T. Lanceiro, “O efeito repristinatório”, pp. 627 ss.; C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 369 ss. 50 Por um lado, a eliminação ou limitação do carácter retroactivo dos efeitos da declaração implica, naturalmente, na mesma medida, uma restrição do efeito repristinatório. Por outro lado, a eliminação ou limitação apenas do efeito repristinatório não tem repercussões no carácter retroactivo da declaração quanto aos restantes efeitos, nomeadamente quanto à invalidade das situações constituídas à sua sombra. 51 Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 348-350. 52 Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 184/89, nº 5; nº 395/93, nº 10; nº 637/95, nº 24; nº 641/95, nº 12; nº 140/2002, nº 12; nº 208/2002, nº 10; nº 406/2003, nº 2.8; ou nº 61/2004, nº 7. 53 Cfr. o Acórdão nº 308/93, nº 7. 49

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das à sombra da norma inconstitucional, de uma forma que pode levar a uma perturbação de interesses públicos ou privados constitucionalmente protegidos, pondo em causa o princípio da segurança jurídica. Sendo uma consequência normal do efeito-tipo da declaração de inconstitucionalidade, a justificação para a restrição destes efeitos deve assentar nos casos em que esta perturbação do princípio da segurança seja desproporcional e, logo, inaceitável54. O Tribunal deve analisar se a destruição retroactiva dos efeitos da norma inconstitucional (e a eventual aplicação da norma repristinanda) conduz a um eventual constrangimento excessivo das legítimas expectativas dos cidadãos, à imposição de sanções ou sacrifícios injustificados e ao desrespeito pelas situações jurídicas individuais estabilizadas. É importante que a ordem jurídica forneça aos cidadãos a possibilidade de organizarem a sua vida de acordo com critérios de previsibilidade e estabilidade de forma suficientemente razoável para que estes possam representar as consequências normativas possíveis das suas acções55. Se a projecção dos efeitos da declaração de quanto ao passado conduzir a resultados jurídicos imprevisíveis e desproporcionados para os sujeitos, então esta deve ser afastada na medida desse excesso56. Quanto ao efeito repristinatório, o Tribunal Constitucional deve, designa­ damente, analisar as consequências da aplicação do regime da norma repristinanda à realidade fáctica enquadrada pela norma inconstitucional. Nesse âmbito, o Tribunal deve aferir se essa aplicação conduz a situações em que o cidadão é confrontado com consequências jurídicas das suas acções que sejam razoavelmente imprevisíveis ou desproporcionadas ou a situações de dúvida ou incerteza. Este fundamento foi invocado num vastíssimo número de Acórdãos57, embora por vezes em conjunto com um interesse público58 ou com a equi-­ Cfr. o Acórdão nº 272/86, nº 17, que refere que «não bastará para justificar a limitação de efeitos que a declaração de inconstitucionalidade envolva uma certa incerteza para o mundo do direito e para a vida social dele dependente. Isso, como se viu, o que por regra sucederá. Essencial será, sim, que a investida contra a segurança jurídica resultante da inconstitucionalização seja de grau elevado». Cfr. o também nº 2 da declaração de voto do Conselheiro Raul Mateus ao Acórdão nº 38/84, onde se exige «que a investida contra a segurança jurídica resultante da inconstitucionalização alcance excepcional relevo». 55 Cfr. C. Blanco de Morais, Segurança jurídica e justiça constitucional, RFDUL, vol. XLI, nº 2, 2000, p. 621 56 Cfr. o Acórdão nº 308/93, nº 7. 57 Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 56/84, nº 27 (onde surge conjugado com a proibição de retroactividade da lei penal – «dentro do espírito do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição»); nº 92/84, nº VII; nº 91/85, nº VII; nº 144/85, nº 2.4; nº 82/86, nº 4; nº 272/86, nº 17; nº 206/87, nº 47 (a segurança jurídica foi invocada a propósito de «matéria orçamental», para «evitar que as receitas cobradas e as despesas efectuadas, nos quadros de orçamentos regionais, venham de repente a ficar sem suporte legal»); nº 157/88, nº 22; nº 267/88, nº 83 (face a normas inconstitucionais que tinham «directa incidência financeira ou 54

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ou com a equi­dade59, sendo a causa de limitação de efeitos mais utilizada pelo Tribunal Constitucional. 58

14. Um segundo fundamento elencado no artigo 282º, nº 4, da Constituição para fundar a decisão de limitação de efeitos é a equidade. Esta é tradicionalmente reconduzida a uma ideia de “justiça do caso concreto”, de alguma forma abrindo caminho para considerações específicas de um determinado circunstancialismo e assim alterando as consequências da aplicação directa do Direito. A equidade permite ao Tribunal Constitucional recorrer a critérios de razoabilidade ou de bom senso, que se afastam da aplicação estrita da norma jurídica em geral. Permite uma análise mais casuística e circunstancial que permite afastar a aplicação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em determinados casos. Quando analisa as consequências de uma declaração de inconstitucionalidade sobre este prisma, o Tribunal Constitucional pode atender ao resultado da destruição de efeitos da norma inconstitucional ou da aplicação da norma repristinanda à realidade fáctica e jurídica e aferir da existência de resultados iníquos dessa aplicação. Este fundamento foi já invocado a par da segurança jurídica60 ou autonomamente61, mas permanece pouco utilizado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional nesta matéria. 15. Por fim, o artigo 282º, nº 4, prevê a restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade em casos em que estes efeitos contendam com “interesse público de especial relevo” – relacionados com ou relevantes ao níveis dos fins ou tarefas do Estado. Trata-se de uma situação em que se confrontam e devem ser balanceados dois interesses públicos: por um lado, o princípio da constitucionalidade, que exige a total destruição dos efeitos da norma inconstitucional; por outro, determinado interesse público que será afectado pelos efeitos de uma declaração “seca” de inconstitucionalidade.

orçamental»); nº 184/89, nº 5; nº 414/89, nº 9; nº 637/95, nº 24; nº 866/96, nº V, 4.; nº 869/96, nº 9; nº 254/2000, nº 6; nº 356/2001, nº 4; nº 140/2002, nº 12; nº 208/2002, nº 10; nº 405/2003, nº 11; nº 406/2003, nº 2.8; nº 616/2003, nº 16; nº 61/2004, nº 7; nº 295/2004, nº 13; nº 323/2005, nº 13; nº 682/2005, nº 10; nº 34/2006, nº 5; nº 551/2007, nº 10; ou nº 239/2008, nº 4. 58 Cfr., por exemplo, o Acórdão nº 96/2000, nº 6; nº 123/2004, nº 3. 59 Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 15/88, nº 2.5; nº 394/93, nº 10; nº 395/93, nº 10; nº 362/94, nº 4; nº 641/95, nº 12; nº 527/96, nº 13; nº 532/2000, nº 20; nº 81/2003, nº 9; nº 18/2007, nº 3. 60 Cfr. a nota anterior. 61 Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 430/93, nº IX, 2; nº 231/94, nº 7. 504

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À partida, deve ser feita uma chamada de atenção. Quando a Constituição refere “interesse público de especial relevo” neste contexto, não pretende transformar o Tribunal Constitucional em órgão de decisão ou ponderação polí­tica de interesses que apenas cabe ao decisor político democraticamente legitimado. Tal seria, aliás, desconforme com os princípios do Estado de Di­ reito democrático e da separação de poderes62. A ponderação feita pelo Tribunal só poderá basear-se, neste sentido, em motivos estritamente jurídicos, ou seja, na protecção de fins ou valores protegidos pela Constituição. A restrição, em deter­minado caso, de efeitos com esta base terá, assim, de encontrar funda­ mentação sempre num determinado princípio constitucional. Nestes termos, por exemplo, o Tribunal Constitucional não poderá recorrer ao afastamento do efeito repristinatório porque discorda politicamente da solução normativa contida na norma repristinanda por um qualquer motivo ou porque a considera inadequada ou inconveniente. O juízo de adequação ou conveniência é político e como tal reservado ao legislador democrático63. Verificando-se os requisitos de repristinação da norma revogada pela norma inconstitucional64, o Tribunal apenas a pode afastar com base numa motivação estritamente jurídica65. Cabe assim ao Tribunal Constitucional aferir se algum interesse jurídico público é violado pela norma repristinanda ou pela sua execução ou aplicação, de forma a balancear essa violação com a possibilidade de afastamento da repristinação e consequente criação de uma lacuna jurídica. Neste âmbito, já foi invocado como interesse público de especial relevo66: i) evitar a «perturbação que adviria para os serviços (…) se estes tivessem de restituir» o valor de uma tarifa67; ii) a «permanência de manutenção dos actos decisórios da Administração praticados à luz das normas analisadas e que não foram objecto de impugnação, pois que são tarefas fundamentais do Estado (…), na prossecução do direito social estatuído no nº 1 [do artigo 66º]»68; «grande perturbação no funcionamento dos tribunais e no andamento dos próprios processos»69; «encargos administrativos bastante consideráveis, manifestamente desproporcionados por confronto com os benefícios a colher por quem vier

Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 345 ss.; R. Medeiros, A decisão, p. 661. Cfr. R. Medeiros, A decisão, pp. 661 e 738-739. 64 Sobre os requisitos, cfr. R. T. Lanceiro, “O efeito repristinatório”, pp. 592 ss. 65 Cfr. em sentido contrário, V. Canas, Introdução às decisões de provimento do Tribunal Constitucional, 2ª ed., AAFDL, 1994, pp. 158-159. Cfr. também J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 1017. 66 Já ocorreu a mera invocação da existência de «interesse público», sem concretização – cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 96/2000, nº 6; nº 123/2004, nº 3. 67 Cfr. Acórdão nº 76/88, nº 16. 68 Cfr. o Acórdão nº 368/92, nº III.2. 69 Cfr. o Acórdão nº 123/2004, nº 3. 62

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a beneficiar da decisão»70; por «em perigo a manutenção do financiamento acordado e a consequente solvabilidade do Estado»71; ou «evitar a perda para o Estado da poupança líquida de despesa pública já obtida no presente exercício orçamental por via das reduções remuneratórias»72. Não parece existir, portanto, um cuidado específico na enunciação destes interesses, nem a sua categorização. 16. Apesar de a letra do artigo 282º, nº 4, apenas prever a limitação de efeitos face à segurança jurídica, à equidade ou a interesse público de especial relevo, o Tribunal já utilizou esta faculdade sem invocar expressamente estes fundamentos. Tal ocorreu no Acórdão nº 24/83, em que o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade de normas relativas às taxas moderadoras sobre o consumo de medicamentos, «na parte em que estabeleceu uma parte fixa no montante de 25$, a pagar pelos utentes dos Serviços Médico-Sociais, por embalagem de cada especialidade farmacêutica, cujo preço de venda ao público seja igual ou superior àquela quantia», tendo os efeitos sido restringidos no sentido de a declaração «não [ter] eficácia retroactiva e só [produzir] efeito útil a partir da data da sua publicação no Diário da República». A fundamentação da restrição de efeitos resume-se a um parágrafo, onde o Tribunal justifica o recurso à «faculdade que lhe é concedida pelo nº 4 do artigo 282º da Constituição» com a «conveniência de evitar qualquer perturbação financeira ou no bom funcionamento dos serviços que, porventura, esta decisão pudesse originar»73. O Tribunal não recorre, portanto, expressamente a nenhum dos fundamentos constantes no artigo 282º, nº 4, o que seria motivo suficiente para considerar a restrição inconstitucional, por o Tribunal ter actuado ultra vires74. No entanto, a fundamentação utilizada pode ser interpretada como uma referência a interesses públicos de especial relevo, o que justificaria essa restrição75. Este aresto (e respectiva argumentação da «conveniência de evitar qualquer perturbação financeira ou do bom funcionamento dos Serviços») foi usado como funCfr. o Acórdão nº 494/2009, nº 8. Cfr. o Acordão nº 353/2012, nº 6. 72 Cfr. o Acordão nº 413/2014, nº 99. 73 Cfr. o Acórdão nº 24/83, III. 74 Foi esse o fundamento alegado contra a restrição de efeitos para ficarem vencidos os Conse­ lheiros Mário de Brito («por entender que se não verifica o condicionalismo previsto no nº 4 do artigo 282º da Constituição»), Vital Moreira («por entender que se não verifica nenhuma das circunstâncias previstas no nº 4 do artigo 282º da Constituição da República Portuguesa, não devendo haver nesta matéria qualquer interpretação extensiva»), e Armando Marques Guedes («porque entendo que nenhuma das situações referidas no nº 4 do artigo 282º da Constituição, que haveriam de ser fundamentadas, se verifica no caso concreto»). 75 Esta ideia é reforçada pelo facto de, em arestos posteriores, se usar o argumento de evitar a «perturbação que adviria para os serviços (…) se estes tivessem de restituir» o valor de uma tarifa, considerando-se este tratar de um interesse público de especial relevo (cfr. o Acórdão nº 76/88, nº 16). 70 71

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damentação para um outro caso de limitação de efeitos, no Acórdão nº 92/85, onde foi declarada a inconstitucionalidade do despacho do Ministro da Saúde que actualizou a tabela de preços para os hospitais oficiais, e do despacho do Ministro dos Assuntos Sociais que fixou taxas moderadoras, para restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade deste último despacho. Neste aspecto, existem os mesmos problemas apontados à restrição de efeitos reali­zada pelo Acórdão nº 24/83, referidos no parágrafo anterior. Quanto ao primeiro despacho, o Tribunal decidiu restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade por considerar que «a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc permitiria aos subsistemas de saúde uma espécie de enriquecimento sem causa, já que, realizadas pelos beneficiários as contribuições devidas ou feitos a esses subsistemas os respectivos financiamentos, os mesmos subsistemas ficariam com a possibilidade de repetir importâncias pagas aos hospitais, ou de deixar de pagar importâncias que a estes eram devi­das, por serviços prestados aos respectivos beneficiários»76. O problema aqui, de novo, é que evitar o enriquecimento sem causa não é um dos motivos apontados pelo artigo 282º, nº 4, para justificar a limitação de efeitos77. Esta limitação só será conforme à Constituição se, também aqui, considerarmos que se está a prosseguir um interesse público de especial relevo. e) Tipos de limitação do efeito da declaração de inconstituciona­ lidade com força obrigatória geral 17. A decisão, por parte do Tribunal Constitucional, de restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pode assumir várias modalidades78. Desde logo, o Tribunal Constitucional pode restringir os efeitos em razão do tempo, atribuindo eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade. No entanto, o Tribunal, após a sua operação de avaliação das consequências da sua declaração de inconstitucionalidade, também pode concluir que a limitação apenas parcial dos efeitos é suficiente para salvaguarCfr. o Acórdão 92/85, nº 4. O Conselheiro Mário de Brito votou vencido exactamente porque «como disse a propósito do caso paralelo que foi tratado no Acórdão deste Tribunal nº 24/83, não se verifica o condicionalismo previsto no nº 4 do mesmo artigo». O Conselheiro António Luís Correia Costa Mesquita também votou vencido neste aspecto mas por entender «que não são suficientemente ponderosas as razões invocadas no acórdão para afastar o princípio geral da ‘repetição do indevido’, com a consequência chocante de serem penalizados os que pagaram pontualmente e protegidos os devedores relapsos». 78 A este propósito o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que «a restrição de efeitos é susceptível de comportar uma mera referência temporal (durante o período de tempo ressalvado é mantido o influxo da norma inconstitucionalizada sobre todas as situações jurídicas com ela conexionadas) ou envolver ainda uma indicação categorizadora (a cristalização do influxo da norma, em tal período, abarcará só algumas dessas situações)» (cfr. os Acórdãos nº 272/86, nº 16, nº 206/87, nº 44, nº 76/88, nº 16). 76

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dar os interesses em causa, não sendo necessária a atribuição de eficácia ex nunc. A limitação parcial dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade pode ter vários pontos de referência, como proceder a uma manipulação dos efeitos em razão do tempo diferente, incidir unicamente sobre os efeitos de algumas das normas declaradas inconstitucionais, ressalvar os efeitos produzidos quanto a determinados grupos de pessoas ou situações, tendo como fundamento al­guma circunstância juridicamente relevante79 ou afastar apenas o efeito repristinatório80. O Tribunal Constitucional, ao utilizar a competência conferida pelo artigo 282º, nº 4, da Constituição, pode combinar os diversos tipos de limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, ou seja, podem existir casos em que a restrição ratione temporis também pode ser só parcial, no sentido quantitativo – parte do complexo normativo repristinando é afastado – ou qualitativo – o seu âmbito de aplicação81/82. A possibilidade de manipulação dos efeitos dá ao Tribunal um vasto leque de opções para que, perante as consequências normativas da declaração de inconstitucionalidade, as possa manipular de forma a garantir a salvaguarda da segurança jurídica, da equidade, os diversos interesses públicos de especial relevo, ao mesmo tempo que prossegue o princípio da constitucionalidade, na vertente da destruição dos efeitos de norma inconstitucional e.1) Afastamento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em razão do tempo 18. Uma das possibilidades à disposição do Tribunal Constitucional é a restrição do efeito da declaração de inconstitucionalidade ratione temporis, limitando a duração da destruição dos efeitos da norma inconstitucional ou da repristinação da norma revogada pela norma inconstitucional – da sua vigência –, tendo em conta um determinado ponto de referência, sem manipular o seu conteúdo material. A manipulação, nesse sentido, pode incidir sobre o momento em que os efeitos da norma inconstitucional começam a ser destruídos ou o momento a partir do qual a destruição cessa. No limite, o Tribunal poderá atribuir eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade, procedendo a Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça Constitucional, II, pp. 268-270, 337 ss.; R. Medeiros, A decisão, pp. 673-674, 696 ss.; V. Canas, Introdução às Decisões, pp. 195-196. 80 Cfr. R. T. Lanceiro, “O efeito repristinatório”, pp. 627 ss. 81 Cfr. L. Nunes de Almeida, “A justiça constitucional”, p. 137; Idem, “O Tribunal Constitucional e o conteúdo, a vinculatividade e os efeitos das suas decisões”, in Portugal. O sistema político e institucional. 1974-1987, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1989, pp. 970-971. 82 Um exemplo pode ser encontrado no referido Acórdão nº 56/84, nº 27. 79

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um afastamento global dos efeitos produzidos, por vezes conjugada com modelação de outros efeitos, mas também se abrange aqui outros tipos de manipulação tendo em conta o tempo. e.1.1) Atribuição simples de eficácia ex nunc à declaração 19. O Tribunal Constitucional pode optar por afastar totalmente os efeitos da declaração de inconstitucionalidade até um determinado momento temporal, normalmente coincidente com a publicação da decisão, aí se abrangendo a ressalva dos efeitos produzidos pela norma declarada inconstitucional, que se mantém intocados e não são assim postos em causa, e o efeito repristinatório, impedindo a revivescência da norma repristinanda como efeito automático da declaração de inconstitucionalidade. Trata-se de situações em que a destruição dos efeitos ou a aplicação da norma repristinanda são tão gravosas que levam o Tribunal a preferir manter os efeitos da norma inconstitucional ou criar uma lacuna na ordem jurídica. Neste caso, o Tribunal opta por atribuir eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade, relegando a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade para a data do acórdão ou da sua publicação em Diário da República83. Apesar de se referir aqui o afastamento total dos efeitos, o efeito de impossibilidade de produção de efeitos pela norma inconstitucional para o futuro não é considerado pela maior parte da doutrina como manipulável. É, aliás, um dos limites da manipulação de efeitos, como se verá, infra. 20. Trata-se de uma das formas mais comuns de limitação de efeitos. O Tribunal Constitucional já recorreu a esta forma de manipulação de efeitos, por exemplo, em matéria orçamental e tributária84, para manter a estabilidade da relação laboral85, para acautelar a confiança dos particulares86 ou as legítimas Cfr., por exemplo, o Acórdão 92/85, nº 4. O Acórdão nº 206/87 declarou inconstitucional um conjunto de normas relativas à competência orçamental regional, bem como normas do orçamento da Região Autónoma da Madeira para 1985. O Tribunal considerou que, como as normas em causa respeitavam «a matéria orçamental, (…) por razões de segurança jurídica, é aconselhável que (…) proceda, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 282º, a uma limitação dos efeitos de tal declaração, de modo a evitar que as receitas cobradas e as despesas efectuadas, nos quadros de orçamentos regionais, venham de repente a ficar sem suporte legal» (cfr. o Acórdão nº 206/87, nº 46). 85 O Acórdão nº 157/88 declarou inconstitucional uma determinada interpretação de “portarias de regulamentação do trabalho”. Por se considerar que era violador da segurança jurídica que, por esta declaração as empresas em causa «se devessem ter por vinculadas, ab initio, as cláusulas da Portaria de regulamentação do trabalho» e, por isso, tivesse de «reajustar os contratos individuais de trabalho que entretanto tivessem celebrado com os trabalhadores potencialmente abrangidos por essa Portaria sem observância do regime nela estabelecido, harmonizando-os retroactivamente com esse regime» (cfr. o Acórdão nº 157/88, nº 22). 83

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ou as legítimas expectativas de trabalhadores da função pública87, entre outros88, onde se determinou a produção de efeitos também apenas após publicação. Neste contexto, merece especial referência o Acórdão nº 413/2014, onde foi declarada a inconstitucionalidade de parte de um corte de retribuições de trabalhadores do sector público. Neste caso, o Tribunal Constitucional nos termos do nº 4 do artigo 282º da Constituição, atribuiu, com fundamento em interesse público de excepcional relevo, eficácia ex nunc a essa declaração de inconstitucionalidade, de modo a que apenas produzisse efeitos «a partir da data da sua decisão». Os efeitos da totalidade do corte até à decisão foram, assim, mantidos, embora parcialmente inconstitucionais. A decisão suscitou debate no Tribunal, que foi levado a quatro declarações de voto em sentido divergente do adoptado89. Refira-se que essa restrição de efeitos levou à formulação de um pedido de aclaração por parte da Assembleia da República, quanto a dúvidas de ordem prática, rejeitado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 468/2014. A formulação do pe­ dido de aclaração demonstra, no entanto, a dificuldade que por vezes é sentida 86

No Acórdão nº 395/93, o Tribunal Constitucional considerou que o diploma em causa (o Decreto Regulamentar Regional nº 21/88/A, de 25 de Maio) tinha «estado a ser executado», pelo que «produziu ele, decerto, efeitos nas esferas jurídicas dos particulares – efeitos que, assim, podiam ficar sem cobertura legal» (cfr. o Acórdão nº 395/93, nº 10). No Acórdão nº 637/95, por sua vez, face à declaração de inconstitucionalidade das normas do Decreto Legislativo Regional nº 1/93/M, o Tribunal Constitucional veio a considerar que «a segurança jurídica exige que os efeitos de inconstitucionalidade sejam limitados, produzindo-se apenas a partir da publicação deste acórdão, a fim de evitar que tenha de haver reposição por terceiros de prestações remuneratórias percebidas de boa fé» (cfr. o Acórdão nº 637/95, nº 24). 87 No Acórdão nº 430/93, declarou-se a inconstitucionalidade de normas relativas ao regime de pessoal do Instituto Nacional de Estatística. Aí o Tribunal considerou estarem em causa «situa­ ções já criadas ao abrigo da estatuição delas constante e cuja destruição, que seria operada pela declaração de inconstitucionalidade, se postaria como iníqua, tanto mais que algumas das normas abrangidas por essa declaração consagram, para os trabalhadores do I.N.E., regimes pontualmente e em abstracto mais favoráveis que aqueles regulados nas leis gerais» (cfr. Acórdão nº 430/93, nº IX, 1). No Acórdão nº 362/94, por sua vez, foi declarada a inconstitucionalidade de normas relativas ao regime de pessoal da Inspecção-Geral das Actividades Económicas. O Tribunal considerou ser «perfeitamente figurável» que existissem «situações já criadas ao abrigo da estatuição delas constante e cuja destruição, que seria operada pela declaração de inconstitucionalidade, se postaria como iníqua, pois que afrontariam posições já antecedentemente adquiridas, e isto tanto mais que algumas das normas abrangidas pela proferenda declaração, e como acima se teve a ocasião de sublinhar, representam a consagração de um regime mais favorável para determinadas categorias de pessoal da IGAE comparativamente aos demais funcionários da Administração Pública, tendo já criado situações que dificilmente seria aceitável para esse pessoal serem perdidas» (cfr. Acórdão nº 362/94, nº 4). 88 Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 92/85, nº 4; nº 82/86, nº 4; nº 641/95, nº 12; ou nº 295/2004, nº 13. 89 As declarações de voto no sentido de vencimento da Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros (parcialmente), da Conselheira Catarina Sarmento e Castro, do Conselheiro João Cura Mariano, do Conselheiro João Pedro Caupers e do Conselheiro Fernando Vaz Ventura. 86

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em dar execução às decisões do Tribunal Constitucional, em especial em caso de manipulação de efeitos. e.1.2) Atribuição de eficácia ex nunc à declaração com modelação de efeitos 21. Por vezes a restrição global de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com a atribuição de eficácia ex nunc, é estabelecida com excepções – com a salvaguarda de determinadas situações ou grupos de pessoas90. Existe um conjunto significativo de casos no âmbito de trabalhadores da administração pública. A decisão de se ressalvarem os efeitos produzidos até à publicação do acórdão, sem prejuízo dos casos ainda susceptíveis de impugnação contenciosa ou que dela se encontrem pendentes, tornou-se comum nos casos em que a norma declarada inconstitucional versava em matéria com repercussão em admissões, concursos, provimentos, alterações e progressões de carreira, mobilidade, remunerações, processos disciplinares, suplementos ou aposentação dos funcionários91. Uma solução idêntica – ou seja, a ressalva os efeitos produzidos pelas normas até à publicação do Acórdão que declara a sua inconstitucionalidade «sem prejuízo dos casos ainda susceptíveis de impugnação contenciosa ou que dela se encontrem pendentes» – foi adoptada no âmbito tributário em geral92, de visto prévio do

C. Blanco de Morais designa esta situação como “restrição de restrição”. C. Blanco de Morais, Justiça Constitucional, II, pp. 356-358. 91 Cfr. o Acórdão nº 81/2003, nº 9, que refere o Acórdão nº 394/93 como precedente para a limitação de efeitos que opera. Cfr. também, por exemplo, os Acórdãos nº 15/88, nº 2.5 [admissões, progressões e promoções nas carreiras, penas disciplinares]; nº 394/93, nº 10 [concursos e provimento dos lugares]; nº 527/96, nº 13 [ingresso]; nº 18/2007, nº 3 [alterações de carreira, remunerações, suplementos e aposentação]; nº 551/2007, nº 10 [mobilidade]; nº 239/2008, nº 4 [concursos]; nº 413/2014, nº 99 [suplementos remuneratórios]. 92 No Acórdão nº 494/2009, relativo à inconstitucionalidade de normas do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, nomeadamente relativas ao pagamento especial por conta, foram ressalvados os «efeitos produzidos até à publicação deste acórdão pelas normas cuja declaração de inconstitucionalidade agora se opera, sem prejuízo dos casos ainda susceptíveis de impugnação contenciosa ou que dela se encontrem pendentes» (cfr. Acórdão nº 494/2009, nº 8). No Acórdão nº 437/2000, onde perante a declaração de inconstitucionalidade da norma que atribua ao sindicato o direito de exigir ao trabalhador que dele se desvincule o pagamento da quotização referente aos três meses seguintes ao da comunicação de desvinculação, restringiu os efeitos dessa declaração, «por forma a que só se produzam a partir da publicação da mesma declaração, salvo quanto às quantias não pagas ou cujo pagamento foi impugnado» (cfr. o Acórdão nº 437/2000, nº 7). No Acórdão nº 76/88, onde foi declarada a inconstitucionalidade da Deliberação n° 17/CM/85, que previa uma “tarifa de saneamento”. Nesse caso os efeitos foram restringidos com base no interesse público de especial relevo de evitar a «perturbação que adviria para os serviços (…) se estes tivessem de restituir» o valor já cobrado «de tal modo que eles só se virão a produzir para o futuro, ou seja, a partir da data da publicação do presente acórdão no Diário 90

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Tribunal de Contas93, a remição de pensões94, contratos a celebrar no âmbito do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos95, ou a competência dos tribunais96. Trata-se de uma formulação sui generis em que, apesar da ressalva dos efeitos produzidos, se permite aos cidadãos que reagiram contenciosamente aos actos praticados ao abrigo das normas inconstitucionais em causa ou que ainda possam reagir, afastar a ressalva de efeitos. e.1.3) Afastamento parcial dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em razão do tempo 22. Para além dos casos de atribuição de eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional também pode recorrer a outros tipos de manipulação tendo em conta o tempo. Esta decisão pode ser motivada por ser importante tomar em consideração determinado ponto temporal diferente da entrada em vigor da norma inconstitucional ou da publicação da declaração de inconstitucionalidade, por algum motivo juridicamente relevante. Aqui se abrange, por exemplo, a decisão de estabelecer que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade (todos ou alguns) comecem ou terminem em momento posterior ao do início da produção de efeitos da norma inconstitucional mas anterior ao da data do acórdão ou da respectiva publicação. Quando se restringe apenas o início da produção de alguns dos efeitos, isso implica que os restantes efeitos da declaração se produzem, passando a existir uma situação singular, construída pela manipulação de efeitos do Tribunal Constitucional. 23. No caso do efeito repristinatório, o afastamento parcial em razão do tempo pode incidir sobre o momento em que a norma revogada revivesce ou a data até quando a norma é repristinada. Em relação ao primeiro momento – a partir do qual a norma repristinanda revivesce –, o Tribunal pode optar por determinar que os efeitos da declaração em geral, ou o efeito repristinatório em particular, apenas se produzirão a partir da sua publicação, dando à decisão de inconstitucionalidade eficácia ex nunc, ou preferir outro momento temporal (que pode tomar a forma de uma data concreta ou da ocorrência de um deter-

da República» – mas com ressalva «da situação dos contribuintes que não tiverem ainda pago, no todo ou em parte, a ‘tarifa de saneamento’» (cfr. o Acórdão nº 76/88, nº 16 e 17). 93 Cfr. o Acórdão nº 140/2002, nº 12. 94 Cfr. o Acórdão nº 34/2006, nº 5. 95 Cfr. o Acórdão nº 616/2003, nº 16. 96 Cfr. o Acórdão nº 123/2004, nº 3. 512

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minado facto – trata-se, no fundo, da fixação de um termo inicial) para determinar a revivescência da norma revogada97. 24. Um exemplo pode ser encontrado no Acórdão nº 56/84, em que o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de um conjunto de normas do Decreto-Lei nº 349-B/83, de 30 de Julho, que despenalizava certas infracções nos domínios monetário, financeiro e cambial. O problema que se colocava era a repristinação das normas da legislação revogada por aquele diploma legal definidoras de crimes e de transgressões nos termos do artigo 281º, nº 1, da Constituição98. Decidiu o Tribunal, nesse caso, restringir esses efeitos repristinatórios ao abrigo do artigo 282º, nº 4, «por razões de segurança jurídica, dentro do espírito do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição», afastando-os «para aqueles que hajam praticado os factos previstos na legislação revogada dentro do período de vazio legislativo balizado pelos Decretos-Leis nºs 356-A/83 e 396/83, e que decorreu entre 3 de Setembro e 2 de Novembro de 1983» e para os que «tenham praticado qualquer uma das contra-ordenações ou qualquer um dos crimes previstos no Decreto-Lei nº 349-B/83, durante o período da sua vigência (de 30 de Julho a 2 de Setembro de 1983) e que — por via da mencionada declaração de inconstitucionalidade e da repristinação de normas que lhe anda ligada —, estariam sujeitos, não havendo restrição de efeitos, a serem mais gravemente sancionados, à luz de preceitos anteriores, pelas condutas então cometidas»99. Neste último caso existe uma combinação do afastamento parcial do efeito repristinatório em razão do tempo, mas também em razão do âmbito de aplicação. Um outro exemplo possível, embora mais polémico, é o do Acórdão nº 353/ /2012, quando o Tribunal determinou que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma norma do Orçamento de Estado de 2012 «não se apliquem à suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes aos 13º e, ou, 14º meses, relativos ao ano de 2012»100. Este aresto será tratado mais desenvolvidamente infra. e.2) Afastamento parcial dos efeitos da declaração de inconstitucionali­ dade em razão das normas inconstitucionais 25. É possível que a restrição dos efeitos incida sobre o próprio complexo normativo objecto da declaração de inconstitucionalidade. Trata-se de situações Cfr. R. T. Lanceiro, “O efeito repristinatório”, pp. …. Esta conclusão não foi pacífica, tendo o Conselheiro Messias Bento defendido que esta repristinação não ocorria, em declaração de voto aposta ao Acórdão nº 56/84. 99 Cfr. o Acórdão nº 56/84, nº 27. 100 Cfr. o Acordão nº 353/2012, nº 6. 97 98

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em que o Tribunal manipula os efeitos da declaração de forma a aceitá-los em relação a determinadas normas e a afastá-lo em relação a outras. Como é bom de perceber, este género de manipulação só poderá acontecer quando a declaração de inconstitucionalidade incide sobre duas ou mais normas, por exemplo, quando engloba um diploma, ou um preceito que se possa decompor interpretativamente em várias normas. A admissibilidade de uma manipulação deste género é confirmada pela letra da Constituição que, no artigo 282º, nº 1, refere que os efeitos da declaração incidem sobre as normas e não os preceitos ou os diplomas legais. Nestes casos, o Tribunal pode optar por excluir o efeito destruidor dos efeitos ou o efeito repristinatório, por exemplo, em relação a determinado segmento normativo autónomo, produzindo-se os efeitos da declaração quanto ao restante conteúdo normativo do preceito ou diploma. Esta exclusão pode inci­ dir sobre um determinado preceito ou secção de um preceito ou sobre um segmento normativo ideal de diploma ou preceito. Deve, mais uma vez, chamar-se a atenção, no entanto, para que os critérios utilizados nesta manipulação devem ser estritamente jurídicos e não políticos ou de conveniência. Os critérios formulados pela doutrina para a admissibilidade da declaração de inconstitucionalidade parcial poderão ser aplicados ao raciocínio que deve ser feito pelo Tribunal neste domínio. e.3) Afastamento parcial dos efeitos da declaração de inconstitucionali­ dade em razão do âmbito de aplicação 26. O Tribunal Constitucional pode optar por restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, de forma a salvaguardar algumas situações, casos concretos ou grupos de pessoas dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, ou seja, a manipular o respectivo âmbito de aplicação subjectivo e objectivo. O âmbito de aplicação territorial também pode ser manipulado, o que é especialmente relevante no que diz respeito a normas resultantes de diplomas regionais (decretos legislativos regionais ou decretos regulamentares regionais, por exemplo)101. A manipulação dos efeitos em razão do âmbito de aplicação pode tomar as mais variadas formas102. Cfr., por exemplo, o Acórdão nº 246/90, nº 17, 3º, que limita os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, «em termos de salvaguardar a eficácia das portarias emitidas ao abrigo do artigo 2º do Decreto Legislativo Regional nº 26/86/A e, bem assim, o resultado das avaliações realizadas, ao abrigo da legislação declarada inconstitucional, até à data da publicação deste acórdão, salvo se a avaliação ainda for susceptível de recurso ou se encontrar dele pendente». 102 Por exemplo, em declaração de voto ao Acordão nº 413/2014, nº 21, a Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros defendeu que a restrição de efeitos da norma declarada inconstitucional 101

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27. Um exemplo de restrição em função do âmbito de aplicação pode ser encontrado no Acórdão nº 56/84 que restringe o efeito repristinatório determinando a sua não aplicação aos que «tenham praticado qualquer uma das contra-ordenações ou qualquer um dos crimes previstos no Decreto-Lei nº 349-B/83, durante o período da sua vigência (de 30 de Julho a 2 de Setembro de 1983) e que – por via da mencionada declaração de inconstitucionalidade e da repristinação de normas que lhe anda ligada –, estariam sujeitos, não havendo restrição de efeitos, a serem mais gravemente sancionados, à luz de preceitos anteriores, pelas condutas então cometidas»103. O Acórdão nº 414/89 contém uma situação semelhante, em que o Tribunal limita os efeitos da inconstitucionalidade das «normas em causa do Decreto-Lei nº 187/83 e do Decreto-Lei nº 424/86, de modo que os autores de infracções fiscais aduaneiras praticadas depois da entrada em vigor do primeiro daqueles diplomas não possam ser punidos com sanção mais grave que a prevista no momento da correspondente conduta»104. Neste caso temos a rejeição da aplicação de normas repristinadas a um grupo de pessoas que se encontram numa determinada situação. Um outro exemplo impressivo de limitação de efeitos deste tipo foi feito no Acórdão nº 866/96, onde foram declaradas inconstitucionais normas relativas à integração nas zonas de caça associativas e turísticas de terrenos relativamente aos quais não existiu uma efectiva manifestação de vontade pelos respectivos interessados. Nesse caso, o Tribunal Constitucional decidiu restringir os efeitos de forma quanto às «zonas de caça associativa por forma a que os terrenos (…) apenas delas fiquem excluídos a partir da publicação do presente acórdão; e relativamente às zonas de caça turísticas, tais terrenos se mantenham nelas integrados até ao termo do prazo da respectiva concessão», isto «sem prejuízo das impugnações contenciosas pendentes ou ainda susceptíveis de ser apresentadas»105. Quanto à restrição em função do âmbito subjectivo, um exemplo pode ser encontrado no Acórdão nº 92/84, em que foi declarado inconstitucional um despacho do Ministro da Educação que estabelecia uma equivalência entre o ensino preparatório e secundário, ministrado nos seminários menores católicos ao ensino oficial, tendo os efeitos sido restringidos, por motivos segurança jurídica, «de forma a salvaguardar a posição de docentes e discentes dos seminários menores durante o ano lectivo de 1983-1984»106.

relativa à redução remuneratória devia apenas abranger a «redução remuneratória para que reconhece existir fundamento constitucional bastante», 103 Cfr. o Acórdão nº 56/84, nº 27. 104 Cfr. o Acórdão nº 414/89, nº 9. 105 Cfr. o Acórdão nº 866/96, nº V, 4., e alínea c) da decisão. 106 Cfr. o Acórdão nº 92/84, nº VII. 515

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A restrição de efeitos quanto a casos concretos pode ser encontrada, por exemplo: i) Quanto a matérias orçamentais, em especial, a receitas públicas percebidas107: a. No Acórdão nº 92/85, onde foi declarada a inconstitucionalidade, nomeadamente, de um despacho do Ministro dos Assuntos Sociais que fixou taxas moderadoras, o Tribunal decidiu restringir os efeitos deste último «por forma que não haja lugar à restituição de taxas pagas» b. No Acórdão nº 144/85, onde foi declarada a inconstitucionalidade de normas do Orçamento do Estado para 1985, ressalvaram-se os efeitos para «salvaguardar as transferências de verbas eventualmente já efectuadas à data da publicação deste acórdão»108; c. No Acórdão nº 267/88, onde foi declarada a inconstitucionalidade de normas do Orçamento de Estado para 1988, os efeitos foram ressalvados de forma a «salvaguardar a validade dos actos de natureza financeira ou orçamental praticados até à data da publicação do presente acórdão ao abrigo das normas inconstitucionalizadas»109; d. No Acórdão nº 96/2000, declarada a inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 44.158, de 17 de Janeiro de 1962, que criava a “taxa da peste suína africana”, os respectivos efeitos foram limitados «de modo a não serem afectadas as liquidações não impugnadas ou já definitivamente decididas»110; ii) Quanto a efeitos produzidos no âmbito de procedimentos administrativos em curso ou concluídos: a. No Acórdão nº 184/89, onde foi declarada a inconstitucionalidade de normas do Regulamento da Aplicação ao Território Nacional do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros nº 44/86, de 5 de Junho, ressalvaram-se os efeitos para que esta não atingisse «os processos de candidatura à intervenção do FEDER, já decididos ou pendentes»111; b. No Acórdão nº 368/92, onde foi declarada a inconstitucionalidade de normas do então regime da Reserva Ecológica Nacional (Decreto-Lei nº 321/83, de 5 de Julho), ressalvou-se «a permanência de manutenção dos actos decisórios da Administração praticados à luz das normas analisadas e que Quanto à declaração de ilegalidade, o Acórdão nº 532/2000, que declarou ilegais normas do Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2000, ressalvou os «empréstimos já contraídos, bem como os necessários para assegurar compromissos já assumidos» (nº 20). 108 Cfr. o Acórdão nº 144/85, nº 2.4. 109 Cfr. o Acórdão nº 267/88, nº 83-84. 110 Cfr. o Acórdão nº 96/2000, nº 6. 111 Cfr. o Acórdão nº 184/89, nº 5. 107

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não foram objecto de impugnação» (os actos abrangidos pelo designado «caso resolvido»)112; c. No Acórdão nº 231/94, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade do Regulamento Especial do Regime de Pensões de Sobrevivência, aprovado por Despacho ministerial de 23 de Dezembro de 1970, foram restringidos de forma a apenas se aplicarem «aos casos pendentes sobre os quais não tenha ainda incidido acto administrativo cujos efeitos se tenham consolidado no ordenamento jurídico ou decisão judicial transitada em julgado»; d. No Acórdão nº 869/96, declarada a inconstitucionalidade de norma onde se previa o regime de prioridades na atribuição de licenças para a exploração da indústria de transportes de aluguer em veículos ligeiros de passageiros, os efeitos produzidos foram ressalvados de forma que que a declaração «não afecte a validade dos actos administrativos que tenham atribuído licenças em aplicação de portarias emitidas ao abrigo da norma agora declarada inconstitucional, desde que tais actos não estejam pendentes de impugnação contenciosa nem sejam já susceptíveis dessa impugnação»113; iii) Quanto a efeitos produzidos no âmbito de carreiras e pessoal da administração pública: a. No Acórdão nº 254/2000, onde se declara a inconstitucionalidade de norma que restringia um benefício remuneratório concedido aos funcionários públicos, limitaram-se os respectivos efeitos de forma a que estes não implicassem «a liquidação das diferenças remuneratórias correspondentes ao ‘reposicionamento’, agora devido aos funcionários, relativamente ao período anterior à publicação do presente acórdão no Diário da República» mas «sem embargo de a presente ‘ressalva’ não abranger os actos administrativos entretanto praticados e que hajam sido objecto de impugnação contenciosa por eventuais interessados»114. Esta decisão fundou uma orientação jurisprudencial de, face à inconstitucionalidade de normas que provocam inversão de posições remuneratórias entre funcionários, se utilizar a faculdade de restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fundando-se em razões de segurança jurídica115; b. No Acórdão nº 208/2002, que declara a inconstitucionalidade de normas relativas ao estatuto dos funcionários do Centro de Gestão da Rede Informática do Governo (CEGER), limitam-se os efeitos «relatiCfr. o Acórdão nº 368/92, nº III.2. Cfr. o Acórdão nº nº 869/96, nº 9. 114 Cfr. o Acórdão nº 254/2000, nº 6. 115 Esta orientação jurisprudencial foi aplicada também nos Acórdãos nº 356/2001, nº 4; nº 405/2003, nº 11; nº 323/2005, nº 13; e nº 682/2005, nº 10. 112 113

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vamente aos membros do quadro do CEGER que tenham já preenchido, na data de publicação do presente Acórdão, as condições previstas naquelas normas que lhes permitiriam adquirir o vínculo definitivo ao Estado»116; c. No Acórdão nº 406/2003, que declarou a inconstitucionalidade de uma norma dos Estatutos do Instituto Nacional de Aviação Civil (INAC), salvaguardando «a validade dos contratos de trabalho celebrados pelo INAC até à data da publicação deste acórdão»117/118; iv) Quanto à validade de títulos profissionais: a. No Acórdão nº 91/85, onde foi declarada a inconstitucionalidade de normas que impunham que o pedido de passagem de carteiras profissionais fosse feito obrigatoriamente aos sindicatos pelos trabalhadores, fossem ou não sindicalizados, e também aos sindicatos o encargo de as passar e entregar. O Tribunal considerou que, apesar de este preceito ter sido já revogado e substituído à época, a declaração de inconstitucionalidade, se não limitada nos seus efeitos, poderia «provocar situações de insegurança jurídica», salvaguardando, por esse motivo, «a validade das carteiras profissionais emitidas ao abrigo do (…) Decreto-Lei nº 29 931, até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 358/84, de 13 de Novembro»119; b. No Acórdão nº 272/86, onde foi declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que cometia «aos sindicatos, e obrigatoriamente, a tarefa de emitir cadernetas de registo da prática de determinados auxiliares de farmacêutico», restringiu os efeitos dessa declaração de forma a que «até ao momento da publicação do acórdão no Diário da República ficará ressalvada a validade de todas as cadernetas de registo da prática passadas pelos sindicatos»120. 28. Especificamente quanto à ressalva de actos decisórios da administração praticados à luz de norma inconstitucional, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 368/92, chegou a referir que esta restrição não seria necessária caso se considere que o «‘caso resolvido’ deve ser o mesmo do que o do caso julgado», ou seja, abrangido pela ressalva constante do artigo 282º, nº 3, mas considerou neste

Cfr. o Acórdão nº 208/2002, nº 10. Cfr. o Acórdão nº 406/2003, nº 2.8. 118 No mesmo sentido, no Acórdão nº 61/2004, nº 7, após a declaração de inconstitucionalidade de uma norma do Decreto-Lei que criou o Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR), salvaguardou-se «a validade dos contratos de trabalho celebrados pelo IPCR até à data da publicação deste acórdão». 119 Cfr. o Acórdão nº 91/85, nº VII 120 Cfr. o Acórdão nº 272/86, nº 17. 116 117

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aresto que esta era uma «questão que agora não interessa resolver»121, procedendo à salvaguarda destes efeitos122. No Acórdão nº 231/94, o Tribunal fez uma aná­ lise mais aprofundada da doutrina existente sobre essa questão, deixando ainda assim a sua posição em aberto123. No posterior Acórdão nº 869/96 o Tribunal Constitucional continuou a não tomar posição, referindo a conveniência da limitação de efeitos da declaração «independentemente da interpretação que se adopte relativamente ao artigo 282º, nº 3, da Constituição – e nomeadamente quanto à sua extensão, quer ao caso decidido administrativo, quer aos casos julgados, atentatórios de direitos fundamentais, fundados em normas inconstitucionais»124. No Acórdão nº 96/2000, o Tribunal referiu de novo que a limitação de efeitos decidida «é efectuada de sorte cautelar, justamente porque desde logo se poderia sustentar que a ressalva dos casos julgados a que se reporta o nº 3 daquele artigo também abarca os denominados ‘casos resolvidos’ e, assim, não seria porventura necessário proceder a tal limitação»125. Nestes casos o Tribunal Constitucional resistiu em tomar posição sobre esta matéria preferindo ressalvar os efeitos que pudessem reconduzir-se a “caso decidido” (no sentido de acto administrativo inimpugnável judicialmente). Já existiram situações em que o Tribunal Constitucional parece ter afirmado que a ressalva dos actos administrativos decididos decorria do artigo 282º, nº 3, de forma compaginável à da ressalva dos casos julgados126 – tal ocorreu, por exemplo, nos Acórdãos nº 786/96127 e 32/2002128/129. No entanto, trata-se

Cfr. o Acórdão nº 368/92, nº III.2. Cfr., no mesmo sentido, por exemplo, o Acórdão nº 394/93, nº 10. 123 Cfr. o Acórdão nº 231/94, nº 2 e 7. 124 Cfr. o Acórdão nº nº 869/96, nº 9. 125 Cfr. o Acórdão nº 96/2000, nº 6. 126 Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 226 ss. 127 Relativamente aos actos administrativos consolidados porque inimpugnáveis, o Tribunal Constitucional refere que «tal consolidação, mesmo não constituindo caso julgado em sentido estrito, por não proceder de decisão judicial, há-de, no entanto, a ele ser equiparada para efeito do disposto no artigo 282º, nº 3, da Constituição» (cfr. Acórdão nº 786/96, nº 11). Trata-se de um caso em que o Tribunal não conheceu do objecto do pedido por inutilidade. O Acórdão cita a este propósito, como precedente, o Acórdão nº 804/93. No entanto, neste aresto, o Tribunal Constitucional admite que se pudessem suscitar «dúvidas a propósito de uma tal equiparação», defendendo, também neste caso, a inutilidade do pedido porque «não poderia deixar o Tribunal de limitar, por razões segurança jurídica, os efeitos da eventual declaração de inconstitucionalidade, de modo a deixar incólumes os actos administrativos praticados (…) não impugnados contenciosamente ou que já não sejam susceptíveis de impugnação contenciosa» (cfr. Acórdão nº 804/93, nº 8). Do precendente invocado não resultava, portanto, a certeza da inclusão dos actos administrativos decididos na ressalva do artigo 282º, nº 3, da Constituição. 121

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/ . No entanto, trata-se de arestos no contexto da linha jurisprudencial já analisada, que defende a inutilidade do conhecimento do objecto do pedido de fiscalização quando o Tribunal Constitucional entende que iria, de qualquer forma, limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Nesse sentido, são casos em que o Tribunal Constitucional não estava, de facto, confrontado com a necessidade de restringir os efeitos da inconstitucionalidade – mas sim a fundamentar porque entendia não ser necessário conhecer da questão de fundo. Nesse sentido, esta orientação não parece ser decisiva para a determinação da posição do Tribunal sobre esta matéria. Diga-se, aliás, que em Acórdãos posteriores130, voltou a ocorrer restrição de efeitos neste âmbito, o que comprova este entendimento. Assim, parece ser de entender que o Tribunal Constitucional ainda não tomou uma posição sobre esta matéria, justificando-se a limitação de efeitos por causa das dúvidas que aqui se podem suscitar. 128 129

e.3) Afastamento do efeito repristinatório da declaração de inconstitucio­ nalidade 29. A operação de restrição do efeito repristinatório da decisão de provimento exige ao Tribunal Constitucional que determine, prima facie, que os requisitos para que se verifique efeito repristinatório estão preenchidos131. Posteriormente, o Tribunal deve averiguar qual a norma repristinanda. Após esta análise, cabe ao Tribunal o estudo da validade ou eficácia da norma e dos efeitos jurídicos e consequências da sua revivescência – quer em relação às situações já ocorridas que ficariam sujeitas à sua regulamentação, quer em relação à sua aplicação in futuro. A regra geral é a da existência de efeito repristinatório, se estiverem verificados os requisitos para tal, pelo que a decisão de restrição de efeitos terá sempre consequentemente um carácter excepcional132. No entanto, se o Tribunal concluir que a repristinação conduz a situações de violação dos princípios da segurança jurídica, da equidade ou de algum interesse público de especial relevo, deve balancear esses efeitos, de acordo com o princípio da proporcionalidade, face ao princípio fundador da constitucionalidade. É este último que justifica a sanção da nulidade para os actos que o violem Neste aresto o Tribunal Constitucional citou o precedente do Acórdão nº 786/96, para concluir que «aqueles casos em que não foi oportunamente interposto recurso contencioso constituem agora caso administrativo resolvido e se encontram já consolidados, pelo que nunca operaria, quanto a eles, qualquer efeito uma eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral» (cfr. Acórdão nº 32/2002, nº 6). 129 Cfr. também o Acórdão nº 269/2001, nº 5.2. 130 Cfr. o Acórdão nº 81/2003, nº 9. 131 Cfr. R. T. Lanceiro, “O efeito repristinatório”, pp. 592 ss. 132 Cfr. R. Medeiros, A decisão, p. 731. V. Canas, Introdução às Decisões de Provimento, pp. 197 ss.. 128

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e a reconstituição, dentro do possível da situação que existia antes da aprovação da norma inconstitucional, bem como a eliminação de situações jurídicas criadas ao seu abrigo. Quando o Tribunal conclui que o efeito repristinatório da declaração deve ser restringido, deve aferir se os interesses em causa podem ser salvaguardados sem o afastamento total do efeito repristinatório. De facto, o artigo 282º, nº 4, ao admitir o afastamento total da revivescência do direito revogado, consagra implicitamente a possibilidade de restrição apenas parcial do efeito repristinatório133. Esta repristinação parcial pode ocorrer em diversos casos, nomeadamente quando o complexo normativo repristinando englobar duas ou mais normas e o Tribunal decidir afastar a revivescência de apenas uma delas ou quando o efeito repristinatório for restringido em razão do tempo – i.e., a norma revivesce, mas durante um período de tempo restrito. 30. É neste contexto que se coloca o problema da eventual inconstitucionalidade da norma repristinanda. Não é admissível que, controlando o Tribunal Constitucional a validade da norma repristinanda, a declare inconstitucional com força obrigatória geral, por força do princípio do pedido, expresso no artigo 51º, nº 5, da Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional134/135, que impede o Tribunal Constitucional de apreciar oficiosamente a validade de normas não impugnadas no pedido de fiscalização formulado136. Só assim não será se o autor do processo de fiscalização tiver pedido a fiscalização da norma repristinanda a título subsidiário ou cumulativo137/138. O Tribunal Constitucional não é competente para declarar inconstitucional a norma repristinanda, tal como é incompetente para o fazer oficiosamente em relação à validade de normas não impugnadas – trata-se da aplicação correcta do princípio do pedido. No entanto, o Tribunal é competente para conhecer e examinar, a título prévio, através de um juízo de antecipação, a inconstituC. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, pp. 316-317. Trata-se da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei nº 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro. 135 Cfr. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. II, 4ª ed., Coimbra Editora, 2010, pp. 979-980. 136 Cfr. C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, p. 316; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 1017. 137 O que já ocorreu: cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 103/87, nº 4 c) e 38, e nº 452/95, nº 1 138 Cfr. A. Sousa Pinheiro, “Repristinação”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. VII, 1996, p. 237; R. Medeiros, A decisão, p. 667; C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, p. 316. 133

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cionalidade da norma repristinanda, dentro do âmbito da aplicação do artigo 282º, nº 4, para efeitos de afastar a sua repristinação139/140, desde logo porque o princípio da constitucionalidade pode ser considerado interesse público de especial relevo. Se o Tribunal concluir que a norma repristinanda é inconstitucional, encontra-se, então, vinculado a decidir no sentido do afastamento do efeito repristinatório da decisão de inconstitucionalidade141. f ) Os limites da manipulação dos efeitos 31. O poder do Tribunal Constitucional de manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ao abrigo do artigo 282º, nº 4, no entanto, não é ilimitado. As situações que são tradicionalmente apontadas como limites à restrição de efeitos são as seguintes142: a) A restrição de efeitos de declaração de inconstitucionalidade de norma violadora de direito “absolutos” – os referidos no artigo 19º, nº 6, da Constituição – uma vez que, alegadamente, estes nunca podem ser suspensos; b) A violação do princípio da igualdade, por tratamento discriminatório de situações ou pessoas que deviam ser tratadas da mesma forma (cfr. artigo 13º, nº 1, da Constituição); c) A limitação de efeitos em razão do território de norma constante de convenção internacional e de lei reservada aos órgãos de soberania143, por violação do princípio da estrutura unitária do Estado e da igualdade; d) O diferimento para o futuro da produção de efeitos, por violação do princípio da constitucionalidade144; e) A limitação dos efeitos quanto a actos normativos inexistentes ou a decisões transitadas em julgado. 32. O limite enumerado em primeiro lugar levanta sérias reservas, pelo menos se formulado de uma forma tão geral, desde logo por falta de suporte Cfr. Acórdão nº 56/84. Cfr. também C. Blanco de Morais, Justiça constitucional, II, p. 317. L. Nunes de Almeida, “O Tribunal Constitucional português”, p. 138; J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, II, pp. 978-979; A. Araújo /J. P. Cardoso da Costa, Relatório português, in III Conferência da Justiça Constitucional da Ibero-América, Portugal e Espanha, Guatemala, Novembro de 1999, pp. 56 ss.. 141 Cfr. R. T. Lanceiro, “O efeito repristinatório”, pp. 636 ss. 142 Cfr. J. Miranda, Manual, VI, pp. 357-359. 143 Cfr. J. Miranda refere-se a «lei do Estado», o que parece ser excessivo à luz da reformulação dos poderes legislativos regionais operada pela revisão constitucional de 2004. A salvaguarda da unidade territorial é obtida por referência à categoria de «lei reservada aos órgãos de soberania», contante do artigo 227º, nº 1, alínea a). 144 Cfr. também M. Rebelo de Sousa, O valor jurídico do acto inconstitucional, I, s. n., 1988, pp. 261-262. 139

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constitucional. Não existe um suporte na letra da Constituição que justifique esta limitação da competência do Tribunal Constitucional atribuída pelo artigo 282º, nº 4, da Constituição. Os limites enunciados nas alíneas b) e c) não são contestáveis, embora decorram de exigências genéricas da ordem constitucional a que o Tribunal Constitucional se encontra vinculado. A manipulação de efeitos nunca pode legitimar a introdução de situações de violação do princípio da igualdade ou do princípio do carácter unitário da República Portuguesa. O limite expresso na alínea e) também é de aceitar, embora diga respeito não tanto a limites do poder do Tribunal Constitucional, mas mais a situações em que não é possível a ressalva de efeitos. 33. A possibilidade de diferimento para o futuro assumiu, nos últimos tempos, uma dimensão relativamente mais polémica, tendo em conta a limitação de efeitos constante do Acórdão nº 353/2012. A posição doutrinária maioritária é de que nunca poderia existir uma restrição temporal dos efeitos para além da publicação do respectivo Acórdão em Diário da República, uma vez que seria contraditória com a própria noção de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral145. Uma coisa é ressalvar efeitos já produzidos na ordem jurídica antes da declaração, outra, bem diferente, seria a manutenção da norma declarada inconstitucional a produzir efeitos após essa declaração. Um outro argumento está relacionado com a letra do artigo 282º, nº 4, que autoriza o Tribunal Constitucional a fixar os efeitos da declaração com «alcance mais restrito do que o previsto nos nº 1 e 2». Não constando destes preceitos a destruição da norma para o futuro, mas apenas a eficácia retroactiva e repristinatória, não se poderia considerar que a sua manutenção em vigência caberia dentro dos poderes do Tribunal Constitucional146. Defendendo a possibilidade de manipulação dos efeitos para o futuro, foi referido que a letra do artigo 282º, nº 4, podia ser interpretada no sentido de aí ainda caber o poder de diferimento para o futuro e de que pode ocorrer que a única forma de socorrer as finalidades de segurança jurídica, equidade ou interesse público de especial relevo, à luz do princípio da proporcionalidade, pode ser uma limitação in futuro, caso em que esta deveria ser admissível147. A questão foi reaberta, como referido, pelo Acórdão nº 353/2012. Neste aresto, onde se declarou a inconstitucionalidade da suspensão do pagamento de subsídios de férias e de Natal ou equivalentes determinada no Orçamento Cfr. J.J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição, II, p. 979; C. Blanco de Morais, “As mutações constitucionais implícitas e os seus limites jurídicos: autópsia de um Acórdão controverso”, in Jurismat Revista Jurídica, nº 3, 2013, pp. 59 ss. 146 Cfr. C. Blanco de Morais, “As mutações constitucionais implícitas”, pp. 59-60. 147 Cfr. R. Medeiros, A decisão, pp. 729 ss. 145

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de Estado desse ano, o Tribunal Constitucional, tendo em conta que «a exe­cução orçamental de 2012 [se encontrava] já em curso avançado», reconheceu que «as consequências da declaração de inconstitucionalidade acima anunciada, sem mais, poderiam determinar, inevitavelmente» o incumprimento de limites de endividamento público estabelecidos nos memorandos que condicionavam a concretização dos empréstimos acordados com a UE e com o Fundo Monetário Internacional, «pondo em perigo a manutenção do financiamento acordado e a consequente solvabilidade do Estado». Por isso, decidiu que se verificava «uma situação em que um interesse público de excepcional relevo» de onde resultava o dever de restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 282º, nº 4, da Constituição, «não os aplicando à suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes aos 13º e, ou, 14º meses, relativos ao ano de 2012»148. Esta decisão de restrição dos efeitos mereceu discordância de três declarações de voto149. Ora, uma restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade que se limitasse aos efeitos já produzidos teria como limite a data de 5 de Julho de 2012 (data do Acórdão) ou de 26 de Junho de 2012 (data da publicação do Acórdão em Diário da República). Isto significa que abrangeria os subsídios que, devendo ter sido pagos, não o houvessem sido nessas data (o subsídio de férias de 2012, ou equivalente), mas não a suspensão do pagamento dos subsídios de Natal de 2012 (ou equivalente). Nesse sentido, a manipulação de efeitos assim operada tem uma projecção no futuro que não tem precedente – uma fez que até este momento apenas se tinha ressalvado eventuais efeitos futuros de actos ou factos passados ocorridos ou praticados à luz de norma inconstitucional150. Neste caso, Cfr. o Acordão nº 353/2012, nº 6. Da Conselheira Catarina Sarmento e Castro [considerando por demonstrar que a «adoção atempada de outras medidas universais alternativas» estivesse inviabilizado e que «não havendo o Acórdão atendido (…) ao argumento do excecional interesse público da execução das medidas tendentes à redução do défice, para justificar (…) a concreta solução em análise» este fosse agora aceite, «admitir-se-ia, quando muito, que, como vinha acontecendo noutras situações, o Tribunal Constitucional pudesse restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de modo a evitar situações que implicassem o pagamento (retroativo) dos subsídios que tivessem já ficado por pagar (férias 2012 ou equivalente), fazendo coincidir o início da produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com o momento da decisão»], do Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira [«o Tribunal não pode afirmar – com a segurança e o rigor que lhe são exigidos – que há razões de excecional interesse público» uma vez que o Governo tinha «o dever de invocar, se as houvesse, as razões de excecional interesse público que, em seu entender, imporiam uma restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade» e não o fez], e do Conselheiro Cunha Barbosa [por entender que «a restrição temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade deveria verificar-se tão só até à sua publicitação»]. 150 Foi o que ocorreu, por exemplo, no Acórdão nº 866/96, quando foram ressalvados os efeitos da declaração de inconstitucionalidade «relativamente às zonas de caça turísticas, tais terrenos se mantenham nelas integrados até ao termo do prazo da respectiva concessão», o que implica uma projecção para o futuro, mas de factos ocorridos durante a vigência da norma inconstitucional (cfr. Acórdão nº 866/96, 148 149

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a administração pública actuou ex nuovo ao abrigo de efeitos de norma inconstitucional ressalvados pela decisão do Tribunal Constitucional. Nessa medida, já foi defendido que o Tribunal Constitucional procedeu a uma restrição de efeitos para o futuro, mantendo a norma inconstitucional efectivamente em vigor até ao termo da sua vigência – sem que exista habilitação constitucional expressa desse poder151. Note-se, no entanto, que o argumento apresentado pelo Tribunal foi o de que «a execução orçamental de 2012» já se encontrava «em curso avançado», pelo que «dificilmente seria possível, no período que resta até ao final do ano, projetar e executar medidas alternativas que produzissem efeitos ainda em 2012, de modo a poder alcançar-se a meta orçamental fixada». O Tribunal não se referiu ao facto de as medidas já terem ou não sido tomadas, que se encontrava a projectar os efeitos da norma inconstitucional para o futuro, nem de qualquer forma indiciou uma alteração na sua posição. O Tribunal Constitucional parece ter adoptado a perspectiva de que, neste caso, ainda se encontrava da projecção futura de factos passados. Trata-se de uma perspectiva incorrecta (e de uma decisão criticável nesse sentido) mas, se assim entendida, não corresponde a um desejo de o Tribunal de passar a exercer uma competência de manipulação de efeitos para o futuro. g) Conclusões 34. A limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral é um meio de atenuar os riscos (nomeadamente de incerteza e insegurança) que, de forma paradoxal, acabam por decorrer, por vezes, da declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica. Permite-se, assim, ao Tribunal ponderar, para além da prossecução do princípio da constitucionalidade e do uso de decisões ablativas “simples”, os diversos princípios constitucionais relevantes e manipular os efeitos dessas mesmas decisões. Desta forma, permite-se ao Tribunal Constitucional, com uma maior liberdade, exercer as suas competências de fiscalização, pois é possível, num momento posterior, manipular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, se estes se revelarem desproporcionais à luz da segurança jurídica, da equidade e de um outro qualquer interesse jurídico de especial relevo.

nº V, 4., e alínea c) da decisão). Um exemplo de precedente mais complexo, embora no âmbito da declaração de ilegalidade, pode ser encontrado no Acórdão nº 532/2000, que declarou ilegais normas do Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2000, ressalvando os «empréstimos já contraídos, bem como os necessários para assegurar compromissos já assumidos» (nº 20). Aí parece ocorrer uma nítida projecção para o futuro da ressalva. 151 Cfr. C. Blanco de Morais, “As mutações constitucionais implícitas”, pp. 58-60. 525

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Analisando a jurisprudência do Tribunal Constitucional, encontram-se diversos casos de limitação de efeitos. Existe uma acentuada predominância do recurso à segurança jurídica como fundamento de restrição152 e o Tribunal Constitucional, quando confrontado com a necessidade de fazer uso desta sua competência tende a preferir a atribuição de eficácia ex nunc, embora, por vezes, modelando-a e restringindo-a. O Tribunal tem, maioritariamente, utilizado esta sua competência para salvaguardar a subsistência das situações e direitos adquiridos de boa fé153, mas também o interesse público. Nesse sentido, o Tribunal tem feito uma utilização bastante conservadora da competência atribuída pelo artigo 282º, nº 4, pois não tem recorrido a manipulações que pudessem ser consideradas mais polémicas – com a possível excepção do referido Acórdão nº 353/2012 e a manipulação de efeitos in futuro. Fazendo uma apreciação global, pode concluir-se existir alguma inconsistência no recurso a esta figura. Tal pode ser verificado no que diz respeito à manipulação de efeitos de normas inconstitucionais tributárias – em que o fundamento utilizado foi, por vezes, o da segurança jurídica154, outras, o da existência de um interesse público de especial relevo155. Da mesma forma, quando se pretende, por exemplo, ressalvar efeitos de normas inconstitucionais relativas a procedimentos administrativos ou à função pública, por vezes utilizou-se a restrição máxima de eficácia (ex nunc)156, outras vezes, um outro tipo de limitação (quando se exceptuam os casos que se encontrem pendentes de impugnação judicial ou ainda dela sejam susceptíveis)157. A fundamentação da decisão de restrição de efeitos, por vezes, pode ser considerada demasiado escassa158, não permitindo que transpareça o trabalho de ponderação efectuado pelo Tribunal Constitucional. É igualmente impressivo que o Tribunal Constitucional, num grande número de vezes159, tenha feito apelo a este preceito que lhe atribui uma competência para manipular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, precisamente para justificar não conhecer de pedidos de fiscalização. Trata-se Tal ocorreu em mais de duas dezenas de processos. Cfr. nota nº 57. Cfr. os Acórdãos nº 394/93, nº 10; nº 527/96, nº 13; nº 208/2002, nº 10; nº 81/2003, nº 9; nº 406/2003, 2.8; nº 61/2004, nº 7; e nº 295/2004, nº 13. 154 Cfr., por exemplo, o Acórdão nº 206/87, nº 47. 155 Cfr., por exemplo, o Acórdão nº 494/2009, nº 8. 156 Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 15/88, nº 2.5; nº 394/93, nº 10; nº 18/2007, nº 3; nº 551/2007, nº 10; nº 239/2008, nº 4; nº 413/2014, nº 99. 157 Cfr., por exemplo, os Acórdãos nº 254/2000, nº 6; nº 356/2001, nº 4; nº 405/2003, nº 11; nº 323/2005, nº 13; e nº 682/2005, nº 10. 158 Cfr. nota nº 52. 159 Tal ocorreu em mais de cinco dezenas processos. Cfr. nota nº 21. 152

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A MANIPULAÇÃO DE EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE ...

de uma consequência paradoxal do preceito, que pretendia atribuir ao Tribunal uma maior liberdade para actuar neste âmbito, que seja usado como justificação para não apreciar a constitucionalidade de normas. É certo que se trata de uma jurisprudência constante, no entanto, seria importante que o Tribunal pudesse repensar esta orientação, tendo em conta o tempo decorrido e as críticas feitas pela doutrina. Nota-se, igualmente, um decréscimo nos últimos anos no recurso a esta figura. Esta tendência poderia ser preocupante, se isso significasse uma menor preocupação com os efeitos das suas decisões – o que não se aceita. A razão talvez se encontre no sucesso do sistema de fiscalização da constitucionalidade das normas actuais – na medida em que existe um menor número de casos de normas inconstitucionais que permaneçam a vigorar e a produzir efeitos du­rante um período alargado de tempo, existirá uma menor necessidade de ressalvar os seus efeitos.

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