A manipulação do animal de rebanho ao trabalho excessivo

May 31, 2017 | Autor: Bell Lopes | Categoria: Friedrich Nietzsche, Neoliberalism, Vilem Flusser, Maurizio Lazzarato, Ficção
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A MANIPULAÇÃO DO ANIMAL DE REBANHO AO TRABALHO EXCESSIVO Isabel Vieira Lopes1 Resumo: O trabalho está inserido em lógicas imperativas do sucesso e da performance que são construídas pelas máquinas sociais de modo afetivo. Tornando-se animais de rebanho, os sujeitos não conseguem sair dessa narrativa ficcional e se submetem a uma auto exploração que vem aumentando o número de patologias relacionadas ao labor. Buscando realizar uma reflexão crítica sobre os limites dessa manipulação, analisaremos a construção dos imperativos no setor publicitário pela mídia especializada e a sua reprodução pelos próprios publicitários no Facebook. Serão usados autores como Nietzsche, Lazzarato, Flusser e Freire Filho. Palavras-chave: Trabalho imaterial. Ficção da realidade. Máquinas de expressão. Introdução – A captura de corpos A produção de riquezas no capitalismo neoliberal depende da intersecção de dois dispositivos de poder. O primeiro deles é a sujeição social, que nos equipa com uma subjetividade individual que produz e distribui papeis sociais dos quais não podemos (ao menos ainda) escapar. Falamos aqui do estabelecimento, por exemplo, de uma nacionalidade, um sexo, uma identidade etc. O segundo dispositivo é a servidão maquínica, em que o sujeito é considerado uma engrenagem, um componente do agenciamento entre empresa, Estado e sistema financeiro. Esse dispositivo é importante porque, segundo Lazzarato, “a história do neoliberalismo é marcada por uma servidão generalizada que constitui a megamáquina contemporânea” (2014, p.34). Para operar de modo confiável e eficiente no dia a dia, a máquina depende também de um outro fator: a produção de subjetividades que assegurem a captura dos corpos no cotidiano do trabalho, já que o sujeito é construído através de semiologias significantes que produzem 1

Mestranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Email: [email protected]

os discursos que legitimam o papel desse trabalhador na opinião pública. Como explica Lazzarato, Narrativas e discursos que falam do homo economicus, da liberdade do empreendedor, do poder de autorregulação dos mercados e assim por diante [...] são signos-máquinas que produzem uma mercadoria específica e fundamental: o sujeito individuado. A ‘força ideológica’ das semiologias significantes não reside no fato de que ela nos impede de pensar ou da mera manipulação que ela exerce (embora possa fazer ambas as coisas), mas, antes, em sua habilidade de efetuar uma mutação na subjetividade. Os ritornelos do neoliberalismo (seja produtivo, seja um empreendedor de si, fique rico etc.) estão lá exatamente para empreender essa mutação (Lazzarato, 2014, p.89).

Desse modo, o que parece estar em jogo é o regime de manipulação que os aparelhos midiáticos neoliberais criam e sustentam para efetuar essa mutação na subjetividade dos indivíduos. É por isso que, ademais da busca do sujeito por dinheiro para sobreviver no capitalismo, esses aparelhos de Estado sistematizam, criam e disseminam as narrativas imperativas da felicidade, do sucesso, do propósito de vida e da performance no trabalho. Como complementa o autor, [...] a imposição de condutas e a sujeição dos corpos não são explicáveis simplesmente por arrochos monetários ou por imperativos econômicos. Os regimes de signos, as máquinas de expressão, os agenciamentos coletivos de enunciação [...] agem como engrenagens dessas maquinações, da mesma forma que os agenciamentos maquínicos (Lazzarato, 2006, p.64)

Essas engrenagens ganharam força com o advento do trabalho imaterial, que promoveu a valorização do capital humano e colocou o sujeito pós-fordista no centro do seu próprio desenvolvimento, já que o trabalhador agora é reconhecido pelo sua principal força produtiva: o conhecimento, composto também por todo o conjunto de habilidades sociais, expressivas e imaginativas que são adquiridas fora do ambiente de trabalho (Gorz, 2005). Este é o caso de publicitários que criam obras de arte, dão palestras, escrevem livros etc. com a finalidade da produção de si.

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Assim, o sujeito, que é forçado a se tornar uma empresa, precisa continuamente ampliar, modernizar, valorizar e divulgar seu capital fixo de modo a se manter competitivo no mercado, uma vez que “desenvolvemos o crônico medo de sermos deixados para trás [e] de sermos excluídos” (Bauman, 2008, p.29). Neste momento, portanto, entramos em conjunção tanto com a sujeição social, que nos dá uma profissão com a qual mais ou menos nos identificamos e temos prazer em exercer, quanto com a servidão maquínica que nos impele a, dentre outros fatores, continuar a fomentar a movimentação dessas engrenagens capitalistas através do contínuo aperfeiçoamento de si como profissional e, portanto, como produtor. Gorz vai além ao sugerir que, com o auto empreendimento, a vida pode ser reduzida ao trabalho. Isso porque, com a disponibilidade 24/7 que surgiu como consequência da globalização neoliberal, a vida humana se inscreve em uma duração sem descanso, definida por um princípio de funcionamento contínuo. “Um ambiente 24/7 parece um mundo social, mas é na verdade um modelo não social de desempenho maquínico e uma interrupção da vida que não revela o custo humano exigido para sustentar sua eficácia” (Crary, 2013, p.24). É desse modo, portanto, que as fronteiras entre o que se passa dentro e fora do trabalho se apagam, já que tudo pode se tornar negócio e já que o trabalhador pode sempre ser chamado ao trabalho, mesmo aos finais de semana, feriados e férias. Como vimos, as máquinas sociais sustentam e disseminam a narrativa da felicidade e do sucesso no trabalho como mecanismo de captura dos corpos. De fato, como explica Freire Filho (2010), essa técnica funciona porque desde o século XX há uma expansão das capacidades e possibilidades de ser feliz. Como o autor explica, “a felicidade é decantada, em mensagens publicitárias, pesquisas acadêmicas e projetos políticos, como o ‘alfa e o ômega da existência’ – a mola propulsora de todas as ações humanas, a obrigação e o direito primordial de cada um de nós” (Freire Filho, 2010, p.14). Ainda, como vimos, não é unicamente o retorno financeiro que está em jogo e sim o sentimento de pertencimento a um grupo, um senso de identidade cultural, com linguagem, jargões e comportamentos próprios, que evidenciam a importância do trabalho para o indivíduo (Oliveira, 2015).

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Mas a felicidade não é o resultado de um árduo esforço coletivo ou atrelada à sorte e ao destino. Ela se mostra, pelo contrário, como um projeto de engenharia individual semelhante à necessidade do desenvolvimento do capital fixo profissional dos sujeitos. É uma busca solitária, longa, “um projeto para toda a vida” (Bauman, 2009). No trabalho, essa felicidade é configurada no sucesso. O reconhecimento dos colegas, a promoção adquirida, a entrevista concedida, o prêmio conquistado, o rosto estampado nos jornais do setor. São muitas as maneiras de ser bem sucedido, mas trilhar esse caminho não é tão fácil quanto parece. No setor publicitário, como evidenciam Casaqui (2011) e Rocha (1985), os profissionais criam e disseminam um imaginário social da profissão, que envolve quase sempre um indivíduo rico, com alto poder de consumo e padrão de vida, que frequenta eventos exclusivos, ganha prêmios, conhece sobre vários assuntos, dá entrevistas, se torna celebridade, etc. Essa glamourização é importante para o fazer publicitário, pois seus profissionais usam uma genealogia heroica tanto para legitimar o que fazem perante a sociedade como para impingir uma aura de sofisticação ao setor. Em uma pesquisa realizada por Oliveira (2015) com 28 publicitários brasileiros, destacaram-se alguns aspectos importantes da cultura e do trabalho em grandes agências do país, como a cultura da “viração”. Estimulando valores heroicos associados à superação pessoal, os profissionais chegam a fazer mais de dois turnos de trabalho seguidos e são julgados por colegas, através de olhares de reprovação, se saírem antes das 19h da agência. Essa característica é facilmente superada por quatro fatores: o orgulho do trabalho que fazem e querem ver na rua, a ambição individual e coletiva de se tornar um herói publicitário e ter sua imagem estampada nas paredes, o ambiente absurdamente informal que permite um diálogo aberto, vestimentas casuais, personalização das mesas de trabalho etc., e a citada glamourização da profissão, um recurso que compensa as duras rotinas da agência ao fazer seus funcionários frequentarem lugares sofisticados, almoçar gratuitamente em restaurantes caros e serem recebidos em agências elegantes, com obras de arte de artistas famosos, recepcionistas bonitas e bem vestidas, e espaços lúdicos e modernamente decorados. 12⁰ Interprogramas de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero http://www.casperlibero.edu.br | [email protected]

Fica fácil entender, desse modo, como os sujeitos entram, praticamente sem perceber, em conjunção com a sujeição social e a servidão maquínica do seu trabalho. No momento seguinte desse artigo, buscaremos compreender como essas figuras do sucesso são construídas nos discursos do portal Meio&Mensagem e são reproduzidas pelos próprios funcionários em páginas do Facebook que sustentam e disseminam o simulacro da profissão.

A construção da máquina de expressão

Meio&Mensagem Criado em 1976, o grupo Meio&Mensagem (M&M) se descreve como possuindo um “conteúdo obrigatório para os profissionais de todos os segmentos da comunicação”2. Ele é responsável por gerar, editar e difundir informações do mercado de comunicação brasileiro, buscando se engajar no crescimento da indústria da propaganda e do marketing. O grupo tem como carro-chefe o jornal Meio&Mensagem, que possui tiragens mensais de 7.000 unidades, e conteúdo replicado nas redes sociais e na internet, onde possuem 280 mil seguidores no Facebook e um site que está no ar desde 2000 e teve média de 235 mil visualizações entre Junho e Novembro de 2013 (dado mais atualizado fornecido publicamente pelo grupo). Lido por anunciantes, agências, veículos e fornecedores, o grupo ainda realiza uma série de estudos, análises e coberturas de eventos que auxiliam e informam o mercado publicitário. A construção das narrativas de sucesso parte de um enunciador jornalístico que se dirige a enunciatários múltiplos (agências, veículos e fornecedores), buscando fazer com que estes entrem em conjunção com novidades do setor que reforçam também o simulacro da profissão publicitária recheada de glamour, conhecimento multisetorial, criatividade e diversão. A voz oficial do enunciador-jornal possui uma forma objetiva de informar e fornecer as competências do dever-saber com o uso de verbos na terceira pessoa, riqueza e pluralidade de dados e informações de mercado, e a ancoragem de celebridades do meio que reforçam a credibilidade ao enunciatário, fazendo com que ele estabeleça um contrato 2

Disponível em https://www.facebook.com/meioemensagem/info/?tab=page_info. Acesso em 13/05/2016.

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fiduciário com aquele veículo. Isto pois, de acordo com Barros (2005), “[...] o sujeito da enunciação faz uma série de opções para projetar o discurso, tendo em vista os efeitos de sentido que deseja produzir” (Barros, 2005, p.54) e, tratando-se de um texto jornalístico que visa trazer ao público as informações mais relevantes e corretas, tal escolha faz-se pertinente. O site com layout limpo, fundo branco, poucos elementos, fotos e frases curtas nas chamadas para atender a um público que não tem muito tempo livre para se informar das novidades do mercado reforça as narrativas do sucesso ao dividir seu conteúdo em 8 seções: “Comunicação”, “Marketing” e “Mídia” mostram as últimas campanhas e novidades de mercado nestes setores. “Gente” divulga as movimentações internas no corpo de funcionários das principais agências de publicidade. “Opinião” abre espaço para profissionais em destaque escreverem artigos sobre seus assuntos de interesse, como dicas, tendências e análises do mercado, enquanto “TV M&M” apresenta pequenos vídeos com novidades do mercado e entrevista com celebridades e publicitários. “ProXXima”, traz notícias sobre outras marcas e novidades nas indústrias de consumo e, por fim, “Portfolios” exibe os principais trabalhos de grandes agências e veículos. As seções constituem os mapas modalizadores do conhecimento do profissional e parece expor todo o dever-saber da profissão ao leitor. Algumas isotopias importantes são formadas ao longo do discurso e são responsáveis por sustentar a todo momento as figuras do sucesso publicitário e reforçar a necessidade de servidão maquínica dos sujeitos ao fazer publicitário. Em primeiro lugar temos os valores do conhecimento, sucesso e criatividade sendo transmitidos ao longo das reportagens no site. Estes valores geram temas como as frequentes novidades e mudanças do setor, tendências e notícias do mercado de consumo, campanhas recentemente em destaque ou premiadas, e eventos que aconteceram nos últimos dias. Por sua vez, estes temas se desdobram em figuras como o perfil dos funcionários recentemente contratados pelas agências, os últimos produtos lançados pelas marcas e as fotos dos profissionais que marcaram presença nas premiações. Neste sentido, há uma clara manipulação identitária por sedução e provocação, que se configura programa de base desta narrativa, ao incitar tanto um querer-ser dos publicitários que aparecem em destaque no site por seu desempenho superior que se destacou no mercado e 12⁰ Interprogramas de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero http://www.casperlibero.edu.br | [email protected]

o fez escrever um artigo, ter seu currículo exposto ou uma foto sua recebendo um prêmio, quanto o querer-fazer das campanhas publicitárias que se destacam, uma motivação para que o publicitário volte ao trabalho e se dedique ainda mais para fazer algo inesperado, inovador e criativo suficiente para que também receba congratulações do mercado e seja visto, mesmo que momentaneamente, como uma celebridade deste mundo.

Ser publicitário é... Mas como esses valores são reproduzidos pelos próprios publicitários? Uma série de páginas no Facebook abriga reflexões críticas sobre o fazer da profissão. Uma delas é a “Ser publicitário é”, criada por jovens publicitários para mostrar as características da profissão e o perfil do profissional da área, e que possui mais de 28 mil seguidores. Os autores da página permanecem anônimos, mas parecem ser jovens publicitários recém saídos da faculdade e que trabalham em agências. O título “Ser publicitário é” brinca com o simulacro da profissão e lança uma indagação sobre o que é afinal ser parte dessa profissão, uma resposta que a página aparenta pretender trazer em suas postagens. No logotipo, além do título que destaca a palavra “ser”, que denota o pertencimento, a caracterização e definição da identidade da profissão, há a presença de 3 ícones: uma lâmpada, que aqui traz o sentido da criatividade, um leão, que nos remete ao Festival de Cannes, a premiação mais renomada do setor e um galo, símbolo da publicidade. Em 2015 foram 100 posts que se dividem nos seguintes temas isotópicos: 19 falam sobre hábitos corriqueiros da profissão fora do trabalho, 15 sobre hábitos no trabalho, 14 sobre a imagem geral da profissão e seus estereótipos, 13 sobre eventos do setor, 11 sobre excesso de trabalho, 11 sobre o orgulho sobre o fazer publicitário, 8 com depoimentos de publicitários sobre seu ofício, 4 sobre o imperativo da performance no trabalho, 3 sobre a própria página no Facebook, 1 sobre expectativas de carreira e 1 sobre críticas aos clientes. Em média há 30 comentários por postagem e 1.000 curtidas. Os comentários se dividem entre aqueles que marcam um colega de profissão e fazem alguma piada em conjunção com o que foi postado, remetendo à alguma situação vivida por eles e aqueles que 12⁰ Interprogramas de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero http://www.casperlibero.edu.br | [email protected]

fazem um comentário concordando com o que foi postado pela página. Mas que postagens são essas? Para citarmos quase uma de cada grupo, com exceção dos eventos do setor, destacam-se “Identificar propagandas ocultas nos filmes”, “Ter noção de que a verba sempre será apertada”, “Adorar dizer para todo mundo ‘eu sou publicitário’”, “Almoçar e trabalhar ao mesmo tempo”, “Abraçar o mundo, pois ama aquilo que faz”, “Ouvir sempre que o prazo precisa ser curto para dar tempo”, “achar que vai ficar rico” e “ter que ouvir do cliente: ‘não gostei da cor, pode mudar?’”. Quanto aos depoimentos, podemos citar a campanha feita pela página sobre as mulheres na publicidade, realizada próximo ao dia da mulher. Temos como exemplo: “Diante do que estou vivendo, do que escolhi viver, tem sido incrível, uma descoberta, poderia dizer que é apaixonante, sagrado, infinito, mas respondo com um termo que gosto muito de usar: ser mulher na publicidade é EnlouCrescer”. Deste modo, temos na página “Ser Publicitário É” um enunciador publicitário que se dirige a enunciatários que são colegas de profissão (a maioria aparenta ser jovem pelas fotos em seus perfis). Através de frases curtas, porque afinal o tempo é escasso e os prazos curtíssimos, a página busca fazer-crer e fazer-saber os simulacros da profissão, isto é, seu imaginário social, através de temas e figurações que dialogam diretamente com o cotidiano destes profissionais. É claro o posicionamento humorístico da página. Até as críticas à aspectos da profissão, que ocorrem desde os seus primórdios, são apresentadas como “ossos do ofício”, ou seja, características que não parecem enxergar sinais de mudança no horizonte. Isto é visível tanto pelo tom da mensagem, que não é crítico e não se dirige às associações e sindicatos que poderiam de fato tomar alguma atitude, quanto pelo posicionamento dos próprios enunciatários, que concordam de modo passivo e riem das situações apresentadas. Algumas dessas postagens são “ter 5 funções em uma só”, “dizer sempre que hoje vai dormir mais cedo, sempre”, “almoçar e trabalhar ao mesmo tempo”, “almoçar na agência porque está com job atrasado” e “pensar na quantidade de e-mails pra responder depois das férias”. Nesse sentido, é visível a manipulação por sedução e provocação que se faz presente na página. Sedução, porque as postagens convidam os enunciatários a entrarem em conjunção 12⁰ Interprogramas de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero http://www.casperlibero.edu.br | [email protected]

com as imagens de positividade, sucesso, diversão, genialidade e criatividade que estão presentes nas postagens. Provocação, porque postagens como “estar na melhor profissão do mundo”, “ter amigos que não entendem que você não pode sair porque tem freela pra fazer”, “ser absolutamente foda”, “ser o melhor profissional para alguém se casar”, “sonhar estar entre os melhores do mundo” e “estar na melhor profissão do mundo” remetem à exclusividade da profissão, ao seu glamour e unicidade. Figura 01 – Post da página “Ser Publicitário É”

o

Analisemos neste momento o post acima. Através do regime de uso da programação, em que a página usa tanto o mesmo layout para suas mensagens quanto é submetida a toda a plataforma de interação do Facebook (tamanho da postagem, permissão para inserção de comentários, compartilhamento e curtidas, algoritmo de hierarquia de postagem na linha do tempo de quem segue a página, dentre outros exemplos), a página realiza o discurso que reforça o simulacro do publicitário e transmite valores, temas e figuras concernentes à profissão.

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O título repetido ao longo da mensagem cria um efeito de verdade e reforça a manipulação por provocação ao impor o que é ser publicitário. A mensagem é simples, com fundo colorido chapado, mensagem curta (pois há pouco tempo livre na rotina agitada da profissão), o nome da página no topo e no rodapé da página e os ícones de onde mais a página se faz presente (Instagram e Twitter), para reforçar a credibilidade da mensagem que está sendo transmitida. O tom é bem humorado, algo reforçado principalmente no comentário da própria página sobre a imagem: “Somos ninjas, vai”, o que tira o peso depreciativo da crítica do excesso da profissão. Os comentários, como vimos anteriormente, reforçam a conjunção com os objetos de valor transmitidos e ou concordam com a mensagem ou citam algum amigo e compartilham alguma situação vivida por eles. “Fiz isso hoje”, “Vida resumida num post”, “E a vontade de compartilhar? Mas acho que pegaria mal”, “Hahah verdade”, “Exatamente! Agora comecei a ter um monte de ideia pra campanha, socorro que eu preciso dormir!!!” são alguns dos exemplos de comentários realizados nas postagens. O tom, assim como o do enunciador, é cômico e tampona os excessos da profissão. O engajamento dos internautas, por sua vez, também colabora para o reforço do efeito de verdade da página, pois quanto maior o número de curtidas, compartilhamentos e comentários, mais parece que aquela mensagem de fato representa o que é ser um publicitário. Neste sentido, compreendemos que os publicitários, além de entrarem em conjunção com os valores expostos pelos aparelhos midiáticos e aceitarem inconscientemente a sujeição social e a servidão maquínica a que estão submetidos, corroboram para sua disseminação em busca de pertencimento, status e orgulho pela sua profissão, que segundo eles é a melhor possível.

Reflexões finais Como vimos neste artigo e vemos no dia a dia, trabalhar é muito mais do que apenas realizar atividades durante um terço ou mais de nossos dias em prol do dinheiro. Diz respeito também à constante busca por pertencimento a um grupo, auto realização e um propósito e sentido 12⁰ Interprogramas de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero http://www.casperlibero.edu.br | [email protected]

para nossas vidas. Essa luta parece justa, uma vez que temos que enfrentar uma vida que não parece ter tanto sentido assim, já que como observa Carl Sagan, a Terra e nossas vidas são um “palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica” (1997, p.10). O trabalho afetivamente construído por agenciamentos imperativos como o da felicidade e do sucesso preenche uma parte do nosso vazio existencial ao ocupar nossas mentes e corpos por boa parte de nossos dias. Ele é uma ficção, inventada e imposta para nós cotidianamente, e tomada na mesma frequência como realidade, pois como explica Flusser, “a realidade é o ponto de coincidência de ficções diferentes” (1996, p.2), ou seja, é criada de modo coletivo pelos indivíduos, pelas máquinas sociais, pelo Estado etc. Essa construção ficcional permite muitas reflexões sobre o que fazemos com nosso tempo e onde o investimos libidinalmente no dia a dia. Isso porque a liberdade do trabalhador é como um elástico. Como explica Lazzarato (2006), o indivíduo pode livremente esticar o elástico, movendo-o para onde bem entender. Uma hora, no entanto, a força de tensão será tal que ele será obrigado a retornar e prestar contas, em virtude dos prazos e das metas do trabalho. Assim, estamos em um constante devir que parece livre, mas não é. Somos uma multiplicidade de relações e de acontecimentos possíveis que, na realidade, são lapidados de modo a cristalizar somente o que convém à norma das máquinas. Nos tornamos animais de rebanho nietzschianos, cuja vontade de potência foi neutralizada e nossos corpos docilizados para “[...] impedir qualquer bifurcação, roubando dos atos, das condutas [e] dos comportamentos qualquer possibilidade de variação” (Lazzarato, 2006, p.69). Parece que não questionamos, ao menos não o suficiente, os valores que nos são submetidos. Os indivíduos, publicitários inclusos, trabalham em um excesso patológico, que lhes gera ansiedade, burnout, ataques cardíacos e infartos cada vez mais cedo. Como reflete Nietzsche sobre esse ponto, [..] vós que levais uma vida de inquietação e de trabalho furioso, não estais cansadíssimos da vida? Não estais bastante sazonados para a pregação da morte? Vós todos que amais o trabalho furioso e tudo que é rápido novo, singular, suportai-vos mal a vós mesmos: a vossa atividade é fuga e desejo de esquecerdes de vós mesmos (Nietzsche, 2005, p.72)

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É aqui que a nossa falta de liberdade grita. Achamos felicidade e sucesso no trabalho fundamentais. O portal Meio&Mensagem e os publicitários no Facebook discursam a todo instante como o trabalho, mais do que importante, parece ser fundamental, vital em nossas vidas. Mas será que com isso não estamos sendo meras vítimas da lapidação de devires possíveis às normatizações da lógica do neoliberalismo? Mais do que apenas entender a construção e disseminação dessas narrativas, como vimos brevemente neste artigo, precisamos desconstruí-las para possivelmente dar vazão à nossa verdadeira vontade de potência.

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