A MANTEIGA - AS CULTURAS DO TRABALHO NO BARROSO

June 13, 2017 | Autor: Dina Fernandes | Categoria: Ethnography, Traditional Crafts, Documentary Photography
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Descrição do Produto

A manteiga As culturas do trabalho no Barroso

1| As culturas do trabalho

no Barroso

FICHA TÉCNICA

Projeto de investigação para intervenção museológica As culturas do trabalho no Barroso ENTIDADE RESPONSÁVEL PELO ESTUDO Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento

Coordenação geral e científica de Xerardo Pereiro Textos e fotografias de Daniela Araújo Design de Dina Fernandes e Paulo Reis Santos PARCEIROS DO PROJETO — CÂMARA MUNICIPAL DE MONTALEGRE E ECOMUSEU DE BARROSO

FINANCIAMENTO — ON2, CCDR-N E CÂMARA MUNICIPAL DE MONTALEGRE

Montalegre 2012

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no Barroso

O Ecomuseu de Barroso A faculdade da memória é a mais valiosa herança com que Deus dotou o ser humano. Será possível imaginarmonos a viver sem ela? Como seria viver sem lembranças? O que aconteceria? Toda a nossa força intrínseca, toda a nossa vida consciente deixaria de existir; perdíamos parte da dimensão humana, ou seja, milhões de anos de experiência feita. Aqui se alicerça o conceito de património, na sua dimensão agregadora e de responsabilidade de preservação e valorização. Como se diz em Barroso: “O que recebemos, temos obrigação de deixar igual ou melhor…” Neste sentido, foi criado o Ecomuseu de Barroso que se caracteriza como um espaço aberto, um espaço da povoação, do ordenamento do território, da identidade da população, tendo em atenção os valores do presente, do passado e do futuro. Neste espaço, o visitante convertese em ator-participante. O Ecomuseu situa objetos no seu contexto, preserva conhecimentos técnicos e saberes locais, consciencializa e educa acerca dos valores do património cultural. Implica interpretar os diferentes espaços que compõem uma paisagem; permite desenvolver programas de participação popular e contribui para o desenvolvimento da comunidade. Este projeto de desenvolvimento sustentável tem dado continuidade ao trabalho de pesquisa sistemática, tarefa que permite inventariar a globalidade de património construído do território de Montalegre e Boticas, tendo em

vista a posterior salvaguarda e valorização dos espécimes selecionados pelo seu particular interesse patrimonial e divulgados nos pólos de Salto, Pitões, Tourém, Paredes do Rio e Vilar de Perdizes. A análise das construções associadas à conservação e à transformação dos produtos tem permitido um melhor conhecimento da arquitetura popular da região, nomeadamente dos canastros, dos moinhos, dos fornos, das fontes, dos pisões e dos lagares, entre outros edifícios de produção agrícola que contribuirão para o reencontro com a identidade cultural local. O Ecomuseu de Barroso é um espaço de memória vocacionado para o desenvolvimento, dando particular destaque ao Património Imaterial de que é prova este trabalho. Nenhum desenvolvimento poderá ser sustentável, num concelho com mais de oitocentos quilómetros quadrados, se a população local não reconhecer as riquezas do local onde vive, e se não começar a ter dividendos da valorização desses sítios a que alguns chamam património, enquanto outros apenas aí vêem “patrimonos”. Esta nova visão terá implicação no modo de vida da população e na sua forma de encarar o futuro. David Teixeira, Director do Ecomuseu de Barroso.

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O projeto de investigação para intervenção museológica As culturas do trabalho no Barroso, foi desenvolvido pelo Ecomuseu de Barroso em colaboração com a UTAD, através do CETRAD (www.cetrad.info), o Pólo da UTAD em Chaves e a antropóloga Daniela Araújo. A investigação, que se iniciou no mês de junho de 2011 e se prolongou até ao final do mês de março de 2012, teve a orientação científica do antropólogo Xerardo Pereiro – investigador efetivo do CETRAD e docente da UTAD em Chaves. Os objetivos da investigação centraram-se na análise das culturas do trabalho sobre o Barroso, articulando-se com as linhas de actuação do Ecomuseu de Barroso, uma instituição que tem contribuído, decisivamente, não apenas para “colocar o Barroso no mapa”, mas também para reverter, simbolicamente, a imagem e a realidade desta região “raiana” do Norte de Portugal. Mais importante, ainda, tem sido o papel do Ecomuseu de Barroso na reorganização e articulação das comunidades afirmando a sua cultura como um capital sociocultural importante e útil para viver e criar planos de vida nestas terras do interior. Entendemos por culturas de trabalho as que se geram nos diferentes processos de trabalho, nomeadamente aquelas que resultam da ocupação de diferentes posições nas relações sociais de produção. E o trabalho de Daniela Araújo tem sido minucioso, rigoroso e extremamente reflexivo e cuidado, fruto não de recolhas, mas de uma etnografia reflexiva de um intenso conviver humano com os seus protagonistas, nos seus quotidianos vivenciais

mais familiares. É na observação dos e com os outros que Daniela Araújo tem construído teorias antropológicas vividas pelos agentes sociais do Barroso. Desta forma, a investigação e os seus resultados ajudam-nos a a construir novos olhares sobre as novas ruralidades . Longe de ser um exercício de exotização ou primitivização, o trabalho de Daniela Araújo mostra o velho e o novo, as permanências e as transformações, as tradições e as inovações, as localidades e as globalidades, as pluriatividades e as especializações nas formas de trabalhar e produzir no Barroso. Aí reside a sua mais-valia, isto é, a rejeição de um ruralismo exoticista para posicionar-se na compreensão das lógicas, conhecimentos e saberes nativos, e o seu valor universalista e global. Pensamos que, com esta investigação e as suas aplicações, o visitante e o residente poderão criar mais facilmente quadros de referência interpretativos e de tradução intercultural que nos ajudem a compreender melhor os sentidos do viver humano. Xerardo Pereiro, Coordenação geral e científica.

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A manteiga A boa manteiga faz-se com o leite das vacas alinheiras. O leite de alinheiro é o primeiro leite que a vaca dá depois de lhe serem retirados os vitelos. E, na aldeia da Reboreda, a manteiga fazia-se com o leite das vacas barrosãs, um leite mais espesso, capaz de dar uma manteiga mais saborosa (figura 1). D. Rosinha aprendeu a fazer manteiga com a mãe. Lá em casa havia quinze vacas, o suficiente para se fazer manteiga para a família e para oferecer e vender a outras casas. A mãe fazia, a irmã mais velha também fazia, mas D. Rosinha, em casa da mãe, nunca chegou a preparar manteiga. Apenas via fazer. Mas foi o suficiente para, após o casamento, decidir começar a fazer manteiga em casa da sogra. 9| As culturas do trabalho

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figura 1

Para mungir as vacas, havia que as sossegar primeiro. Um cesto de erva fresca no verão, ou de feno no inverno, permitia um nível de distração suficiente para lhes extrair o leite. Depois, havia que as afagar: A gente encostava a cabeça à vaca. Elas gostam muito. Começava a esfregá-las primeiro na anca, para as habituar e depois no úbere, para as amansar. (Rosinha, 19-8-2011) Antes de mungir as vacas, havia que lhes lavar os úberes com o auxílio de panelos de barro cheios de água. E, depois, era necessário saber gerir a gestualidade necessária para extrair o leite com os ataques das moscas que picavam nos animais e nas pessoas e o rabo das vacas que batia na cara de quem ordenhava: Ai, eu apanhei assim muitas batedelas. (Rosinha, 19-8-2011) A gestualidade para mungir as vacas treinavase desde a infância, na partilha dos trabalhos caseiros entre as mulheres da casa. O truque para extrair todo o leite dos úberes das vacas está na pressão crescente que se faz com o

dedo mindinho no fim do movimento descendente exercido na teta. Em cada ordenha, o primeiro leite retirado é mais aguado e o último mais rocinho, mais rico e espesso. Os úberes tinham que ser mungidos de forma a extrair todo o leite existente, caso contrário, a vaca assocava, isto é, ganhava mamites. Aliás, quando os vitelos não mamavam, as mulheres da casa tinham de ir tirar os restos do leite às vacas mesmo que esse leite não fosse depois usado para consumo da unidade doméstica. Nos primeiros dias após terem as crias, as vacas produziam um leite amarelo que não se aproveitava e se deitava aos porcos. Preferiu sempre a D. Rosinha usar o leite do gado barrosão para fazer manteiga: O leite é muito melhor. Dão menos. Mas é muito melhor a manteiga. Experimentei vacas turinas, fazem o úbere muito grande, dão mais leite, mas muito mais fininho, nem a manteiga tem tão bom paladar, nem o leite tem tão bom paladar. (Rosinha, 19-8-2011) Hoje, o cenário da ordenha manual das vacas barrosãs constitui uma memória cada vez mais vaga e cada vez mais estranha às gerações mais novas: 13| As culturas do trabalho

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Na freguesia há vacas mas não há mulheres que as queiram mungir. Aquilo dá muito trabalho. Mas agora ninguém quer. Agora esta gente nova pensa que se pegam a isso? E é uma pena. (Rosinha, 19-8-2011) No passado, o leite utilizado para fazer a manteiga era utilizado cru: Depois, comecei a ferver quando começaram a dizer que o leite tinha de ser fervido. (Rosinha, 19-8-2011). O leite fervido permitia uma maior produção de natas. O processo de obtenção das natas em quantidade suficiente para se fazer a manteiga podia durar até três dias. Tudo dependia do leite que se conseguisse ordenhar. Coado e fervido, o leite ordenhado nesse dia tinha de ser deixado em repouso até ao dia seguinte. De seguida, com o coador, retiravam-se as natas que vinham à coroa do leite. As natas iam sendo guardadas em vasilhas nos armários inferiores do escano. Por vezes, para acelerar o processo de coagulação do leite e conseguir extrair maior quantidade de natas, colocavamse as vasilhas junto do lume.

Obtida a quantidade necessária de natas, iniciava-se o processo de confeção da manteiga, que basicamente consiste em bater as natas até que a gordura se separe do soro. A temperatura ambiente e da água necessária para completar o processo era e é a variável mais difícil de controlar e aquela que mais influência tem: pode atrasar as operações ou mesmo inviabilizá-las. Na casa da mãe, a manteiga fazia-se pela fresca, de manhãzinha, na varanda. É essa a altura do dia que D. Rosinha continua a preferir para a fazer. De verão, D. Rosinha tem de bater as natas antes que o sol aqueça a cozinha, ou recorrer à água da fonte para fazer baixar a temperatura. Uma temperatura muito elevada não permite a separação do soro da gordura. Até as mãos excessivamente quentes podem inviabilizar todo o processo. No inverno, com as temperaturas excessivamente baixas e, por vezes, com o fogão e a lareira acesos, há que procurar locais específicos na cozinha para que o soro se aparte da gordura sem mais dificuldade.

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figuras 2 e 3

No passado as natas eram batidas à mão em bilhas de barro preto (figuras 2 e 3). Uma mão era colocada dentro da bilha e a outra permanecia na boca da bilha para impedir que as natas viessem para fora, como D. Rosinha gosta de mostrar, agora que usa outros equipamentos (figura 4): A minha mãe fazia numa bilha, batia com a mão, punha-se uma mão por cima, para não acertar a nata para cima. A minha mãe batia sempre à mão e eu também. (Rosinha, 19-8-2011)

figura 4

figuras 5 e 6

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Havia, também, quem usasse uma vara dentro da bilha para bater (figura 3), ou um batedor manual (figuras 5 e 6) mas em casa da família de D. Rosinha nunca se utilizaram estes equipamentos. Bater as natas à mão, até que se procedesse à separação do soro da gordura, podia demorar mais de uma hora. Dependia do jeito de quem batia as natas, assim como da temperatura ambiente: De inverno tenho alturas em que me vejo para a fazer. Tenho de procurar os locais mais próprios porque ela tem uma certa temperatura. De inverno tenho de a meter dentro de uma bacia. Em vez de a pôr no balcão, que o balcão também é frio, e às vezes estou ali três horas e não a bato, aqueço a água e ponho-a à temperatura de nos lavarmos e meto a bacia com as natas dentro da água e está pronta a juntar, depois tiro a bacia para fora, e depois tem de se bater até apartar a manteiga. (Rosinha, 198-2011) Atualmente, D. Rosinha utiliza o batedor elétrico para fazer a manteiga, e a bilha de barro foi substituída por um alguidar de plástico (figura 7): figura 7

É mais limpo bater com o batedor. É mais fácil mas como a bilha é de barro não convém porque desfaz, então arranjei uma bacia mais altinha e bato-a na bacia. (Rosinha, 19-8-2011) À medida que se vão batendo as natas com a varinha mágica vão-se formando partículas sólidas de gordura, que vão ficando cada vez maiores, até se formar uma massa de manteiga que se separa do soro. Essa bola de manteiga deve, ainda dentro da bilha ou da bacia, ser depois apertada à mão, juntando-se água fria nesse processo. Prefere D. Rosinha juntar água da fonte e não da torneira por a considerar mais pura e de temperatura mais adequada. Esta operação deve ser repetida as vezes suficientes até que a água saia limpa. De seguida, ainda se bate algumas vezes a bola de manteiga dentro do alguidar, sempre regada com alguma água fresca (figuras 8, 9, 10 e 11): Batia à mão, começava a juntar, ia o leite para um lado e a manteiga para o outro. E ainda apertava, fazia assim uma bolinha, dentro do pote, apertava toda e ficava o leite massado, que era de se bater. E depois deitava-se o leite fora e deitava-se água e apertava-se, dentro da bilha. Apertava-se até deitar água branca, duas, três águas fica bem, é suficiente. Depois fica aquela figuras 8, 9, 10 e 11 19| As culturas do trabalho

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bolinha, a gente se quiser põe num recipiente. (Rosinha, 19-8-2011) A introdução do batedor elétrico e da bacia de plástico não são as únicas inovações na manteiga feita em casa. Na impossibilidade de arranjar leite de vacas barrosãs para poder colher a nata, D. Rosinha optou por usar natas compradas. Várias marcas de natas foram testadas e existe apenas um tipo que foi aprovado por mais se aproximar das natas caseiras (figura 12):

figura 12

A Agros não é tão boa e fica mais branca, não fica tão gostosa. A Mimosa não junta tão bem. A Longa Vida fica amarelinha como a das vacas, quase como a caseira e as natas são quase naturais. (Rosinha, 19-8-2011) O processo de produção caseira da manteiga não fica completo quando termina de se formar a bola dentro da bilha ou alguidar. As bicas de manteiga, assim chamadas por terem a forma de pães designados por esse nome, obtêm-se batendo a bola de manteiga num prato de madeira (hoje de vidro ou loiça) repetidas vezes: Com a bica tem a gente de a bater. A minha mãe fazia manteiga e era muito mais fácil nessa altura, sabe porquê? Porque as águas eram naturais e de inverno eram mais quentes e de verão mais frias. Agora como as águas vêm de longe, vem quente nesta altura e de inverno vem gelada. Ao outro dia estive para fazer por esta hora, duas bicas de manteiga e a primeira ainda a fiz bem porque estava fresco, mas depois começou a aquecer, a entrar-me aqui o sol, tive de ir por uma caneca de água pela fonte ali abaixo, fresca, para poder fazer a bica. A minha mãe tinha um prato como há ali na Casa do Capitão, de madeira, (figura 13) mas tenho aqui uns pratos que são maiorzinhos e quando as bicas são gran21| As culturas do trabalho

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des, até faço às vezes nestes de vidro. Deito aqui a bola e depois bato de lado, bato do outro, bato do outro. (Rosinha, 19-8-2011)

figura 13

A bica é batida com preciosismos até formar quatro lados. Depois, aguçam-se as duas pontas com os dedos e sempre com a ajuda de água fresca da fonte (figuras 14 e 15) No passado, a marcação das bicas de manteiga com as formas (também chamadas de moldes ou cornas) era obrigatória quer as bicas fossem para consumo da casa, quer para ofertar ou vender. A marcação fazia-se com as formas, também chamadas de moldes ou cornas. Esfiguras 14 e 15

tas formas, habitualmente feitas de madeira de carvalho pelos homens da casa ou adquiridas a artesãos habilidosos, eram decoradas com motivos vegetalistas e geométricos (figuras 16, 17 e 18).

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figuras 16 e 17

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figura 18 no Barroso

Marcar as bicas de manteiga com as formas tem uma gestualidade própria. A forma tem de ser molhada para que não se cole à bica.

figura 19

Também não se pode enterrar demasiado a forma na bica pois pode ficar agarrada (figuras 19, 20 e 21). D. Rosinha não possui nenhuma das duas formas das que existiam em casa da mãe. Herdou, sim, uma forma de uma irmã da sua sogra e é essa que usa para marcar as bicas de manteiga que oferece às amigas (figuras 16, 17 e 18). A sua mãe vendia e oferecia a algumas pessoas. D. Rosinha perpetuou a prática de ofertar as bicas de manteiga, agora feitas com natas compradas no supermercado, reforçando redes de amizade e de vizinhança e reatualizando o saber fazer materno: A minha falecida mãe vendia a algumas senhoras, mas eram poucas. Vendia a uma senhora que trazia umas cestinhas pequeninas e depois a minha mãe punha um paninho de linho por baixo e depois punha a bica de manteiga e depois o linho por cima. E essa senhora levava para outra senhora e eu agora ofereço à filha dela. Eu nunca fiz para vender. Só para casa e oferecia a amigos, vizinhos. (Rosinha, 19-8-2011)

figuras 20 e 21 27| As culturas do trabalho

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