A Mão Portuguesa de Deus

July 22, 2017 | Autor: Paulo Martins | Categoria: Literatura Portuguesa, Padre Antonio Vieira
Share Embed


Descrição do Produto

A Mão Portuguesa de Deus A mão portuguesa de Deus. Revista Bravo!, São Paulo, , v. 41, p. 114 - 117, 01 fev. 2001 Por Paulo Martins Pe. Antonio Vieira (1608-1697) é certamente um dos maiores escritores da língua portuguesa. Tanto que, academicamente, é pleiteado ora pela Literatura Portuguesa ora pela Brasileira, dessa forma pode ser considerado o primeiro caso de transnacionalidade nas literaturas de nossa língua. Parte de sua vida jesuítica no século 17 foi dedicada à colônia como costumava ocorrer com os pregadores jesuítas que tinham como missão a catequização dos povos (Bahia, Olinda e São Luís). Por outro lado, dado a seu grande talento, galgou importantes investiduras na corte e no mundo, ocupou missões diplomáticas em Paris, Haia e Roma e convicto de certas posições, foi processado pela Inquisição por defender os cristãos-novos. Hoje, contudo, longe das estantes das bibliotecas, estava muito difícil ter acesso a ele. Apenas, excertos didáticos expurgados eram encontráveis. Ou ainda, espalhados pelos sebos e alfarrábios das grandes cidades, edições da década de 50 em quinze volumes, cujo preso está bem longe do razoável. Mas, acaba de chegar às livrarias o primeiro volume de uma coletânea em quatro, organizada por Alcir Pécora. A coleção, que terá seu segundo volume editado em abril e os demais até o fim do ano, é composta de dois volumes dedicados aos Sermões, um, às obras proféticas (História do futuro e Defesa perante o Santo Ofício) e o último, às Cartas. Como não poderia deixar de ser, textos acerca de Vieira avolumam-se. Sistematicamente, o mercado editorial e as prateleiras das universidades são assolados por elucubrações sobre obra deste jesuíta. Não é de outra forma que o encontramos matizado de forma vária. Grande parte da crítica o descontextualiza, atribuindo-lhe perfis inverossímeis, costurando-lhe máscaras imprecisas e pregando-lhe etiquetas incompatíveis. Contudo, pouco se fazia para torná-lo mais acessível. Se é certo que não devemos nos esquecer da afirmação de Italo Calvino de que "os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa", é certo, também, que o próprio Calvino nos diz que "um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente os repele para longe". Assim, a despeito de todo e qualquer juízo crítico ou de valor que se faça acerca da obra de Vieira, é mais conveniente refletir sobre a pertinência de sua leitura hoje. Pode-se dizer que há pelo menos três razões que o tornam indispensável. A primeira diz respeito ao retrato da correlação de forças observadas à época que emana de seus textos. Uma outra que parte da delimitação de preceitos técnicos que determinam a elaboração de textos no século 17. E, por último, a aferição de um estilo preciso e difícil que deleita, ensina, convence, intriga e nos faz pensar sobre sua recepção. A obra de Vieira é pragmática, longe de qualquer fruição romântica, ela é determinada pelo binômio poder eclesiástico e poder político. Assim, suas letras são mundanas, práticas, efetivas e obturam a intenção da Companhia de Jesus naquilo que há de mais característico em sua ação: a expansão da fé como simulacro do poder político. O

papel da Igreja, regulado pelo padroado real, que determinava a subserviência de Roma em relação à Lisboa, consistia na manutenção dos interesses econômicos e políticos da coroa. A Igreja mantinha o monopólio da fé nas terras "descobertas" enquanto o Estado detinha o direito de recolher o tributo devido pelos fiéis, criar dioceses e nomear bispos. Logo, Vieira devia zelar pelo Estado Colonial Português e, para tanto, construiu e proferiu diversos Sermões entre os quais se destaca o famoso Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda (1640). Sua intenção era dupla: barrar o avanço dos hereges reformistas holandeses e garantir a máquina mercantil portuguesa, usando para tanto uma argumentação de fundo teológico. Assim, argumenta que Deus não pode ser conivente com as mazelas heréticas e deve posicionar-se de forma que a justiça divina abençoe os portugueses: "(...)Vossa mão [Senhor] foi que venceu, e sujeitou tantas nações bárbaras, belicosas e indômitas, e as despojou do domínio de suas próprias terras, para nelas os plantar, como plantou com tão bem fundadas raízes; e para nelas os dilatar, como dilatou, e estendeu em todas as partes do mundo, na África, na Ásia, na América.(...)" Portanto, a mão de Deus só poderia ser portuguesa. Apesar de sua intenção, não parece que em qualquer momento histórico, algum texto tenha tido poder suficientemente abrangente para conseguir atingir objetivo semelhante. Por outro lado, o monopólio jesuíta da fé não era hegemônico, outra ordem, a dos dominicanos emulava com a primeira. Não só pela possibilidade expansionista, mas também, pela capacidade de ser o instrumento verbal de Deus. Enquanto os primeiros diziam-se donos do estilo preciso, direto e eficiente para conservação e conquista de novos fiéis; os segundos praticavam o verbum, aproximando-se de uma organização discursiva sublime e engenhosa cuja complexidade, senão semelhante, estava, para eles, muito próxima da complexidade divina - uma engenhosidade celeste enigmática e culta. Dessa forma, a querela estilística, que extemporaneamente foi proposta como dicotomia cultismo versus conceptismo, trazia à tona a luta de dois modelos eclesiásticos, o primeiro dado às cameratas da corte e o segundo interessado na conversão dos gentios. Como adversário contumaz da elocução e da "ideologia" dominicana, Vieira constrói o Sermão da Sexagésima, que nada mais é do que a chave "metalingüística" de seus Sermões, aguda e prudentemente construída com vistas à posição hegemônica dos jesuítas diante da catequese, ou melhor, diante daquele poder político, associado a questões econômicas e eclesiásticas, obviamente, defendidas pelos "filhos" de Santo Inácio de Loyola ("E esta maravilha fez Deus em Santo Inácio. O livro foi a flor, ele o fruto; um fruto que contém em si todos os sabores; um Santo que sabe a tudo o que cada um deseja e há mister" - Sermão da terceira dominga da quaresma - 1655). Assim, existe uma função intrínseca para os sermões. Eles não podem se efetivar apartados do reconhecimento de suas máximas, de seus preceitos; devem, portanto, efetivamente significar, atingir o público, isto é, devem ser concebidos de acordo com adequação, instância retórica que prevê decoro entre linguagem e público. Fato que, do ponto de vista de Vieira, não era observado pelos dominicanos: "Sim, Padre; porém esse estilo de pregar, não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos Portugueses, e havemos de ouvir um pregador em português, e não havemos de entender o que diz?" (Sermão da Sexagésima - 1655) Ao lermos Vieira hoje, porém, outro fato é intrigante. Será que oralmente seus textos eram efetivamente entendidos? Uma coisa é lê-lo, podendo-se fazer o percurso das

linhas com olhos num vai-e-vem constante, para daí termos certeza de sua mensagem; outra é ouvirmos sem a possibilidade de retornar, de rever a trajetória da argumentação, que tanto nos apraz. Facilmente, chega-se a conclusão que seria quase impossível a compreensão completa da mensagem dos Sermões, quando ouvidos, dada sua construção complexa e imbricada. Logo, tanto jesuítas como dominicanos estariam longe da missão primeira que, segundo o próprio Vieira, seria a disseminação da palavra de Deus (uerbum semen Dei - a palavra de Deus é a semente). Dentro dessa mesma perspectiva, em 1657, ele elabora o Sermão do Espírito Santo, cujo argumento principal é a importância do aprendizado da língua portuguesa pelos gentios. Mas, este aprendizado, segura e intencionalmente, deveria ir além do ABC, caso contrário, o efeito dos seus sermões seria o mesmo que o dos dominicanos, isto é, nenhum. Ou seja, absortos ou não na palavra de Vieira, ou melhor, na de Deus, nobres ou índios podiam ou não entender os Sermões (não saberemos jamais), no entanto ainda hoje constituem-se como registros significativos da história e das letras do século 17. Contudo, ainda hoje, modernamente, é freqüente a recuperação de sua elocução. Os jornais, as revistas e, até mesmo, as universidades são devedores de suas construções, de suas imagens, de suas metáforas agudas e prudentes e, mais, de sua excelência. Isto é, apesar de sua ínfima circulação, Vieira ainda encontra epígonos, que por si não valem muito, porém por conta de sua filiação estilística e técnica devem ser observados com cautela e atenção. Assim, por estas razões, é obrigatório se ler Vieira. Entretanto, o Vieira, absolutamente, distante da crítica que o media. O Vieira que, por si, é representante do que há de melhor em língua portuguesa. Resta agora apenas a efetivação de um maior empenho editorial para termos todo Vieira: a publicação da famigerada Clavis Prophetarum (A Chave das Profecias), obra, ainda inédita, em português - foi escrita em latim. Mesmo assim já podemos bradar: temos algum Vieira!

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.