A máquina de guerra em nossos ouvidos: uma leitura do movimento punk à luz das teorias de Gilles Deleuze e Félix Guattari1

May 31, 2017 | Autor: Victor Marques | Categoria: Communication, Gilles Deleuze and Felix Guattari
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Este trabalho é apresentado com apoio do Centro nacional de pesquisa e desenvolvimento.
Mestrando do Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e semiótica pela PUC-SP, contato: [email protected].
O termo máquina desejante aparece já em sua primeira produção conjunta: O anti-Édipo, de 1972. No entanto, é em Mil platôs, publicado em 1980, que os autores ampliaram a conceitualização do termo máquina.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. "Devir-intenso, devir-animal, devir imperceptível...", pág. 19. In. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2 (vol. 4). São Paulo, Ed. 34, 2012. Tradução de Sueli Rolnik.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. "Postulado de linguística" págs. 55-6. In. Ibid. cit. (vol. 2). Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. O grifo é nosso.
Empregamos, aqui, o termo aparelho para nos aproximarmos da terminologia empregada pelos autores, apontaremos qualquer mudança de acordo com as teorias empregadas.
In: "Introdução: rizoma". Op. Cit. (vol. 1). Tradução de Aurélio Guerra Neto.
ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze (pág. 31). Rio de Janeiro, Synergia, 2004. Tradução de André Telles. Disponível online em: http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/wp-content/uploads/2010/05/deleuze-vocabulario-francoiscx -zourabichvili1.pdf (consultado em 28/10/2014 às 10:20).
Empregamos, aqui, o termo dispositivo no sentido que Agamben emprega: "[O dispositivo] é um conjunto heterogêneo, linguísticos e não linguísticos, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discurso, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelecem entre esses elementos" (pág. 25). AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? & O Amigo. Chapecó, Argos, 2014. Tradução de Vinícius Honesko.
É muito rara, por exemplo, a presença de fotos dos integrantes das bandas em seus discos, ou seja, uma maneira de refutar o alinhamento da própria imagem a um produto.
CRASS. The feeding of the 5000 (faixa 5). Londres, Crass records, 1978.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. Ibid. Cit. (vol. 5, págs. 36-7).Tradução de Peter Pál Pelbart.
A predileção por exemplos ingleses são justificados por dois motivos: primeiramente pela pesquisa que vem sendo desenvolvida por nós e para verificarmos mecanismos de recusa em sociedades que são mais calcadas na ordem.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir (págs. 142-3). Rio de Janeiro, Vozes, 1997. Tradução de Raquel Ramalhete.
AGAMBEN, G. Op. Cit. pág. 41.
AGAMBEN, G. Op. Cit. Pág. 48.
O termo sociedade civilizada pode ser lido de acordo com as considerações de Pierre Clastres, sobretudo em dois artigos contidos em A sociedade contra o Estado, o que nomeia o livro e "Copérnico e os selvagens".
DELEUZE, G., GUATTARI, F. Op. Cit., (vol. 3, pág. 101-2). Tradução de Suely Rolnik.



A máquina de guerra em nossos ouvidos: uma leitura do movimento punk à luz das teorias de Gilles Deleuze e Félix Guattari
Victor Otávio Carvalho Marques

A máquina de guerra

A discussão da máquina sempre foi algo recorrente na obra de Deleuze e Guattari, seja em sua produção individual, seja em conjunto. Em verdade, muitos autores se valeram de termos que, até então, eram de domínio exclusivo de um universo meramente técnico e que foram transmitidos para designar relações sociais imateriais: Althusser fala de aparelhos ideológicos do Estado, Foucault fala de dispositivos de poder (conceito este que será retomado por Agamben), Deleuze e Guattari trazem o termo máquina para abordar uma gama de conceitos existentes em sua obra.
Esta profusão de termos que aproximam as relações sociais com palavras de um universo técnico mostra, de certa maneira, que a organização de nossas relações sociopolíticas não podem mais ser vistas simplesmente como orgânicas, mas que passam por regulações arregimentadas pelo emprego de novos termos para a definição de certas relações estabelecidas entre ser e ser-no-mundo. Tal mudança não está ligada exclusivamente a uma releitura de termos, mas sim numa mudança semântica da maneira de vermos determinadas instituições as quais estamos submetidos ou que somos, nós mesmos, operadores.
Retomando o termo máquina na obra de Deleuze e Guattari, veremos que este é recorrente e se reparte em diversos usos, os autores falam de máquinas abstratas, máquinas desejantes, máquinas de guerra, agenciamentos maquínico, phylum maquínico e etc., o que torna a própria ideia de máquina um tanto quanto difusa em relação a sua definição estrita, uma vez que ela não mais será vista como algo que está além da relação entre sujeito e objeto, mas como um processo dos quais não podemos mais nos dissociar, a máquina não é apenas um objeto técnico, mas uma operação cognitiva.
Por mais que ambos tragam o termo à sua obra recorrentemente, a discussão toma maior corpo quando da escritura de Mil Platôs, obra seminal que sintetiza muitas das ideias dos autores, e no qual é desenvolvido o "Tratado de nomadologia: a máquina de guerra". O longo capítulo aborda questões que tangem a relação desta máquina de guerra e que devem ser tratados com cuidado, uma vez que não se trata da guerra como objetivo, mas sim de uma desestabilização, ou melhor, um devir desestabilizador. O conceito de máquina de guerra não pode ser dissociado de outras duas ideias centrais para que possamos dar continuidade ao relato aqui apresentado: a ideia de devir e a de minoria, já que ambos permeiam o devir-minoritário da máquina de guerra.
Com a finalidade de desambiguação, devemos ressaltar uma questão de incompatibilidade semântica do termo devir em sua oposição ao verbo tornar; em francês, o verbo tourner está muito mais ligado ao movimento, enquanto devenir se aproxima mais do vir-a-ser almejado semanticamente pelos autores, pois não se trata de uma troca de posição do que se é para o que se devém, o devir não é um propósito de passar a ser, não é uma troca de condições, nas palavras dos autores:

Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem da aliança. Se a evolução comporta verdadeiros devires, é no vasto domínio das simbioses que coloca em jogo seres de escalas e reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível. Há um bloco de devir que toma a vespa e a orquídea, mas do qual nenhuma vespa-orquídea pode descender.

Os devires nunca são, portanto, uma troca permanente de condição de existência individual, não se trata de se tornar outro, o devir está muito mais próximo do instante do que de uma condição permanente predeterminada: o homem não se transforma em mulher em seu devir-mulher, da mesma maneira que a orquídea não vira vespa, eles devém algo.
Outro ponto crucial para adentrarmos na máquina de guerra é o conceito de minoria. Os autores afirmam que todo devir parte de uma minoria, não sendo possível ser visto de maneira maioritária. No entanto, a própria noção de maioria pode ser vista de diversas maneiras, uma vez que o critério matemático de nada nos vale para definir maiorias e minorias para os pensamentos aqui elencados. Eles escrevem que:

A noção de maioria, com suas remissões musicais, literárias, linguísticas, mas também jurídicas, políticas, é bastante complexa. Minoria e maioria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada. Suponhamos a constante ou metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer (O Ulysses de Joyce ou de Ezra Pound). É evidente que "o homem" tem a maioria, mesmo se é menos numeroso que os mosquitos, as crianças, as mulheres, os negros os camponeses, os homossexuais... etc. É porque ele aparece duas vezes, uma vez na constante, uma vez na variável de onde se extrai a constante. A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o contrário. Supõe o mesmo padrão e não o contrário. [...] Uma outra determinação diferente da constante seria então considerada como minoritária, por natureza e qualquer que seja seu número, isto é, como um subsistema ou como fora do sistema. Isso pode ser visto em todas as operações eleitorais ou não, onde se dá o poder de escolha, com a condição de que a escolha permaneça conforme aos limites da constante [...]. Pois a maioria, na medida em que é analiticamente compreendida no padrão abstrato, não é nunca alguém, é sempre Ninguém – Ulisses –, ao passo que a maioria é o devir de todo mundo, seu devir potencial por desviar do modelo. [...] Não existe devir majoritário, maioria não é nunca um devir. Só existe devir minoritário.

A discussão acerca do devir e da minoria se aproximam daquela apresentada no "Tratado de nomadologia" pois, como os próprios autores evidenciam, o nômade integra essa minoria, e não se trata apenas de ser nômade, mas de devir. Como podemos ler no texto citado acima, a minoria se excetua do Estado, qual a máquina de guerra, e esta, por sua vez, não apenas se exclui do Estado, mas usa de estratégias para ir contra ele, é composta de bandos, de pessoas exteriores à máquina estatal, ou seja, de minorias.
A máquina de guerra, portanto, não pode ser vista nos termos de um aparelho do Estado, ela vai de encontro a seus interesses, uma vez que este prega a ordem e aquela, a desordem, ela sequer pode ser vista nos mesmos termos empregados: não pode ser um aparelho (tampouco um dispositivo, se pensarmos em sua aproximação com a terminologia agambeniana, que nos parece mais abrangente), a máquina de guerra não se vale de estruturas arbóreas, mas rizomáticas, ela se desliga do Estado por não poder abarcar a sua organização e, quando o faz, transforma-se em forças armadas, ou seja, aparelhos reguladores. É por isso que sua conceptualização está no "Tratado de nomadologia", ela não possui Estado.
No entanto, os autores em momento nenhum definem o que é essa máquina de guerra, apenas a colocam como uma "exterioridade ao aparelho do Estado" (2012: 15) e, para tal edificação, cruzam pensamentos da mitografia (Dumézil), antropologia (Clastres), da filosofia (Simondon) e de outros pensamentos que permeiam toda sua obra (as mesmas inquietações vêm desde as discussões de Anti-Édipo), o que nos indica que não se trata exclusivamente de uma inquietação de ambos, mas de uma relação sintomática que, por vezes, mina o próprio aparelho estatal.
Desta maneira, há uma dificuldade em revelarmos exatamente o que são essas máquinas. Como define François Zourabichvili em O vocabulário de Deleuze:

O conceito de máquina de guerra responde à questão da ambiguidade da "linha de fuga" (que consiste menos em fugir de uma situação do que em "fazê-la fugir", em explorar as pontas de desterritorialização): sua capacidade de se converter em linha de abolição.

E acrescenta:

[...] o leitor deve compreender em que sentido a máquina de guerra "não tem a guerra por objeto". A ambiguidade de onde a máquina de guerra extrai seu nome advém de que ela só deixa vestígios negativos na história (D, 171). Atesta isso o destino de toda resistência, o fato de ser em primeiro lugar qualificada como terrorismo ou desestabilização, depois triunfar amargamente, quando triunfa, passando à forma do Estado: é que ela deriva do devir, do "devir-revolucionário", e não se inscreve na história.

A explanação de François Zourabichvili acerca das escolhas vocabulares de Deleuze e Guattari dá maior materialidade àquilo que buscamos primeiramente nas palavras dos próprios autores; a máquina de guerra é tudo aquilo que, à sua maneira, vai contra os anseios do Estado, não se encaixa em suas instituições e por isso representa uma exterioridade. É exterior ao aparelho do Estado pois não pode ser compreendido em seus termos organizacionais, excetua-se dele, é o devir-revolucionário que pode ou não se transformar em aparelho estatal (como grande exemplo, podemos citar a Revolução Francesa e a liderança napoleônica, um homem de Estado).
Após o breve panorama teórico apresentado, nos resta uma questão: a música, em especial o punk rock, pode ser lida nos termos de uma máquina de guerra?

Ir contra...

Quando utilizado a título de exemplificação, o exército nunca é tido como uma máquina de guerra, pois a guerra é uma maneira de desestabilização do Estado, e quando este assimila o exército, ele próprio se torna mais um dispositivo do aparelho estatal, torna-se regularizado. Todavia, as máquinas de guerra coexistem com o aparelho estatal, como é colocado pelos autores, os grupos de banditismo, representam, à sua maneira, essa resistência ante o aparelho.
Esta separação da máquina ao aparelho se dá a partir do estabelecimento da linha de fuga já citada pelas palavras de Zourabichvili, há uma necessidade de excluir-se das linhas ordeiras impostas pelo Estado, desterritorializar-se, mas também é necessário o desejo de não-alinhamento com as linhas estatais, por isso o punk rock nos pode servir de exemplo neste momento.
Por mais que possamos ver exemplos de desenvolvimento arbóreo, vamos nos concentrar, neste momento, em exemplos que viram e desejaram as maneiras rizomáticas para afirmar suas linhas de fuga, indo de encontro a questões centrais do aparelho estatal, sobretudo num período de dez anos entre o fim da década de 1970 e 1980, quando bandos (ainda nos termos dos autores) resolveram montar bandas, pequenas gravadoras, ocupações de espaços abandonados, edições de fanzines e etc., e que, à sua maneira, visualizavam e desejaram a exterioridade.
Talvez um dos mais polêmico exemplo que possamos dar é o da banda Crass, que já visualizava essa repartição entre desenvolvimento arbóreo e de bandos, da criação da imagem da figura pública agenciada pela máquina estatal, vejamos um exemplo:

Yes that's right, punk is dead,
It's just another cheap product for the consumers head.
Bubblegum rock on plastic transistors,
Schoolboy sedition backed by big time promoters.
CBS promote the Clash,
But it ain't for revolution, it's just for cash.
Punk became a fashion just like hippy used to be
And it ain't got a thing to do with you or me.

A revolução reaparece como crítica àqueles que a abandonaram para aderir a propostas mercadológicas, uma vez que estas não caberiam à ideia do "devir-revolucionário", ou seja, alinham-se a dispositivos que fazem parte do aparelho estatal. Desta maneira, criam-se contramecanismos responsáveis pela criação de linhas de fuga, de bandos que se afastem de maneira mais radical aos supostos encaixes em linhas reterritorializadas, como fica evidente, também, no exemplo do movimento hippie citado pela própria banda, o intercâmbio entre linhas de fuga de reterritorialização são constantemente alternados para a composição de, ora uma máquina de guerra, ora um dispositivo do Estado.
Podemos utilizar outro exemplo gráfico:

Com os dizeres: "Cuidado, sua majestade governamental pode seriamente danar sua saúde", a banda Discharge ilustra uma de suas capas com Margareth Thatcher, então primeira ministra inglesa, empunhando um cutelo, de maneira que nenhuma grande gravadora (como a CBS, citada anteriormente), pudesse dar vazão a um produto como este e, consequentemente, de sair das linhas já territorializadas e grandes esquemas comerciais; ao mesmo tempo em que se opõe ao aparelho estatal, usa dos mesmos mecanismos para criar oposições com dispositivos que, à sua maneira, também estavam reterritorializados na própria figura do Estado.
Ao tratarem das relações de trabalho, os filósofos franceses situam o intelectual em meio a esta, afirmando que:

O revide do Estado é gerir os canteiros, introduzir em todas as divisões do trabalho a distinção suprema do intelectual e do manual, do teórico e o prático, copiada da diferença "governantes-governados". [...] O Estado não confere um poder aos intelectuais ou aos conceptores; ao contrário, converte-os num órgão estreitamente dependente, cuja autonomia é ilusória, mas suficiente, contudo, para retirar toda potência àqueles que não fazem mais do que reproduzir ou executar. O que não impede que o Estado encontre dificuldades com esse corpo de intelectuais que ele mesmo engendrou, e que no entanto, esgrime novas pretensões nomádicas e políticas.

Desta maneira, podemos ver que a máquina estatal é tomada de uma potência que dá conta de explorar até mesmo as formas como serão exploradas as relações de trabalho; o Estado vê uma separação de materialidade e imaterialidade nas relações trabalhistas. Aplicando tal lógica ao estilo musical, torna-se claro que não se trata mais exclusivamente de uma tentativa de conversão de um corpo intelectual, mas além disso, de um corpo de anônimos que este não dará conta de conter com sua ilusória autonomia, as revoltas de 1968 atestam muito bem esta impressão.
Os exemplos citados acima provêm de bandas inglesas, mas podemos verificar este processe de desterritorialização em diversas partes do mundo, o mais importante não é o território em si, mas sim que estas desestabilizações visadas pela máquina de guerra são constantemente reforçadas, um bom exemplo disto (e também mais maduro) foi o título dado ao primeiro disco da banda sueca Crude SS (Society system): The system you hate... is the system you support.
É claro que se estabelecem diferenças estéticas em cada país, mas, via de regra, os temas giram em torno do aparelho do Estado e seus dispositivos de controle. Podemos, agora, passar a considerar estes dispositivos de controle que não necessariamente possuem uma ligação direta com o Estado.
... todos.

Para pensarmos nos desdobramentos de uma sociedade ordeira, devemos olhar para a constituição de instituições (estatais ou não) capazes de promover e engendrar tal discurso de ordem em um coletivo. Para a crítica de instituições, o pensamento de Michel Foucault, altamente influente na obra de Deleuze e Guattari, pode ser bastante elucidativo:

As disciplinas, organizando as "celas", os "lugares" e as "fileiras" criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias marcam lugares e indicam valores; garantem obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais, pois regem a disposição de edifícios, de salas, de moveis, mas ideais, pois se projetam sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de "quadros vivos" que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas.

O excerto de Foucault nos mostra como o Estado se baseia em suas instituições para a criação de seu caráter organizacional. A partir de Vigiar e punir, vemos que uma espécie de estruturalidade prisional se repete em diversos setores civis; escolas, quartéis, conventos, e que não demoraria para ser apropriados por outros dispositivos de controles que não mais precisavam estar diretamente ligados ao Estado, como as instituições anteriormente citadas.
O filósofo francês, nesta obra, não se concentrou tanto em explorar essa expansão de um poder despolarizado, no entanto, um de seus críticos, Giorgio Agamben, que se debruçou sobre tais colocações em um pequeno texto ("O que é um dispositivo?") que reverberam na edificação do que tratamos anteriormente como parâmetros basilares do punk rock. Afinal de contas, por mais que a força organizacional do aparelho estatal ainda opere de maneira latente, ela não é a única passível dos 'ataques' do que aqui é considerada a máquina de guerra.
O texto do filósofo italiano tenta explicar, resumidamente, o que entendemos por dispositivo a partir das edificações contidas no conceito de governabilidade adotado outrora por Foucault e vê uma aproximação do termo a um significado militar, como "o conjunto dos meios dispostos em conformidade com um plano", ou seja, o dispositivo é uma maneira organizacional do aparelho estatal que se multiplica de maneira a engessar modelos organizacionais em setores civis: os mesmos presentes em todas as instituições citadas anteriormente, no entanto o autor reconhece que:

Não seria provavelmente errado definir a fase extrema do desenvolvimento capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos. Certamente, desde que apareceu o homo sapiens havia dispositivos, mas dir-se-ia que hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo.

Estabelece-se, assim, uma relação de dominação por parte dos dispositivos que extrapola o controle estabelecido por uma instituição tal qual o Estado, mas, além disso, um estabelecimento de relação entre o desenvolvimento técnico e humano, que se tornam intrinsecamente ligados e, desta maneira, a máquina de guerra não se torna apenas um elemento combativo de uma instituição, mas também de sua proliferação de dispositivos de controle.
Vemos, no caso do punk, que a sua aproximação ao século XXI trata muito bem desta nova forma de ação da qual a máquina de guerra deve se incumbir, não se trata apenas de um confronto de ideias com um governo, mas, como coloca Agamben parafraseando Foucault, de maneira combativa à governabilidade. Não por acaso, em lançamentos mais recentes, a banda inglesa Doom, ativa desde 1987, intitula músicas com nomes como: "Yes, they still test on dogs" (2014) acerca de laboratórios de cosméticos, ou ainda "Imobile phone" e "Home in a box" (2001), sobre o crescimento exponencial do uso de aparelhos celulares e da especulação imobiliária.

Conclusão

Agamben coloca, em seu penúltimo capítulo que:

O que define os dispositivos com os quais temos de lidar na fase atual do capitalismo é que estes não agem mais tanto pela produção de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação. Um momento dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de subjetivação, e o Eu penitencial se constituía, havíamos visto, somente por meio da própria negação; mas o que acontece agora é que o processo de subjetivação e o processo de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer, espectral.

E acrescenta:
Aqui se mostra a futilidade daqueles discursos bem-intencionados sobre a tecnologia, que afirmam que o problema dos dispositivos se reduz àquele de uso correto. Esses discursos parecem ignorar que, se a todo dispositivo corresponde um determinado processo de subjetivação (ou, nesse caso, de dessubjetivação), é totalmente impossível que o sujeito do dispositivo o use de "modo correto" .

A obra de Deleuze e Guattari está separada da de Agamben por vinte e seis anos, no entanto, este mostra a urgência de lermos aquele, uma vez que as questões do devir, sobretudo do devir-revolucionário nunca se mostrou tão importante para o estabelecimento de uma força contrária aos dispositivos de controle de que nos fala o autor italiano. Podemos encara este processo de dessubjetivação como uma rejeição do próprio devir.
A máquina de guerra não mais pode ser vista como uma exterioridade completa, uma vez que esta não pode existir nas chamadas sociedades civilizadas uma vez que os dispositivos estão, em maior ou menor grau, em contato constante com o indivíduo. Para nos mantermos na terminologia escolhida pelos autores dos Mil platôs, trata-se muito mais de resistir aos agenciamentos molares e trazer ao molecular as questões do devir, como dito anteriormente, o devir é sempre minoritário, enquanto que os agenciamentos podem variar entre molares e moleculares. O punk rock representa um agenciamento num nível molecular, indo de encontro a agenciamentos tanto molares quanto moleculares, não se trata, pois, de se colocar em uma relação tensiva entre o indivíduo e o Estado, mas também de ir contra esta dessubjetivação, estes dispositivos de controle que, à sua maneira, estão engendrados em nossas vidas.
Há um fragmento de "Micropolítica e segmentaridade" que explica sintetiza todos os pensamentos aqui elencados no que tange as representações molares e moleculares:

[...] as massas não suportam passivamente o poder; elas tampouco "querem" ser reprimidas, numa espécie de histeria masoquista e tampouco estão enganadas por um engodo ideológico. Mas o desejo nunca é separável de agenciamentos complexos que passam necessariamente por níveis moleculares, microformações que moldam de antemão as posturas, as atitudes, as percepções, as antecipações, as semióticas, etc. O desejo nunca é uma energia pulsional indiferenciada, mas resulta ele próprio de uma monta elaborada, de um engineering de alta interação: toda uma segmentaridade flexível que trata de energias moleculares e determina o desejo de já ser fascista. As organizações de esquerda não são as últimas a secretar o seu microfascismo. É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos como moléculas pessoais e coletivas.

A passagem citada acima sintetiza, sobretudo, a urgência do devir, da conscientização de que, em nível molecular, todos devêm minorias ante estes dispositivos, sejam eles estatais ou não.



Bibliografia e discografia
AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? & O amigo. Chapecó, Ed. Argos, 2014.
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1987.
CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. São Paulo, Cosac Naify, 2003.
CRASS. The feeding of 5000. Londres, Crass Records, 1978.
CRUDE SS. The system you hate... is that system you support. Lançamento independente, 1992.
DELEUZE, F., GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. (vols. 1, 2, 3 e 5). São Paulo, Ed. 34, 2011.
DISCHARGE. Warning. Clay Records, Stroke-on-trent, 1981.
DOOM. World of shit. Tóquio, Discipline records, 2001.
_________. Corrupt fucking system. Londres, Black cloud records, 2014.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 2013.

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