A margem da vida, à margem da vida: figurações da morte/figurações de si na prosa de Santiago Nazarian (2015)

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RAMOS, Wellington Furtado. A margem da vida, à margem da vida: figurações da morte/ figurações de si na prosa de Santiago Nazarian. In.: PEREIRA, Danglei de Castro; SANTOS, Rosana Cristina Zanelatto (orgs.). Olhares sobre o marginal. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2015, p. 85-98.

A MARGEM DA VIDA, À MARGEM DA VIDA: FIGURAÇÕES DA MORTE/FIGURAÇÕES DE SI NA PROSA DE SANTIAGO NAZARIAN

RAMOS, Wellington Furtado1

Hoje, na Revista da Folha, tem um perfil grande comigo. Achei ok, mas meio “missing the point”. Abre dizendo “como Nazarian deixou de lado os escândalos e virou um escritor pop”, sendo que uma coisa não invalida a outra (pelo contrário, nada mais pop que o escândalo). E “se eu deixei de lado os escândalos”, por que a matéria insiste em focar exatamente esses lados pitorescos da minha biografia que já foram tão e tão discutidos e que hoje, convenhamos, já não chocam mais ninguém? Mas enfim, era um perfil, então natural que se concentrasse mais na minha biografia do que nos meus livros. Talvez eu apenas deva deixar de fazer perfis. E só responder a perguntas por e-mail (para garantir a fidelidade ao que eu digo). (...) Acho que estou é cansado da minha biografia... (NAZARIAN, blog, 08/01/2009)

p. 85

Aos olhos de Santiago Nazarian, escritor paulistano nascido em 1977, o foco sobre sua biografia parece estar perdido ou deturpado. Ao se ler como personagem de sua própria (?) obra (vida) – vida-obra/vida-e-obra – como se lê na epígrafe apresentada, o clima tétrico de jogo de identidades se apresenta no discurso do escritor assim como se materializa em sua literatura. Observemos como isso se dá no texto de seu primeiro romance publicado (mas não o primeiro escrito), intitulado Olívio (2003), nome do personagem principal da narrativa:

Thomas Schimidt. Thomas Schimidt. 1

Mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS/Campo Grande. Pesquisador do NEHMS/FUNDECT. Doutorando em Letras (Estudos Literários)/UFMS/Três Lagoas.

Thomas Schimidt. Aquele nome passeava por sua mente e por seus olhos. Por sua mente. Por seus olhos. Onde vira escrito? Olívio concentrou-se à sua frente. Thomas Schimidt. Onde vira escrito? Passeou por seus olhos por um segundo, de onde? Thomas Schimidt estava escrito em algum lugar, passeando por sua mente. À sua frente, uma estante com livros de Olavo. Cinco prateleiras. Títulos em português, inglês, espanhol. Um nome escrito entre eles. Olívio procurou. Thomas. Thomas, Thomas Nazarian, Thomas Schimidt. Lá estava ele, na última prateleira, de baixo para cima. Thomas Schimidt e seu romance: “A morte sem nome” (NAZARIAN, 2003, p. 101).

Assim, como uma conduta vertiginosa, mise-en-abyme, lê-se no primeiro romance publicado o personagem Thomas Schimidt, autor de A morte sem nome. O jogo de imagens especulares tem início justamente na confusão gerada pela informação dada. O leitor que buscar fora da realidade do texto do romance citado descobrirá que A morte sem nome (2004) é o segundo romance publicado pelo escritor paulistano, tendo sido lançado apenas depois do início de sua carreira ao receber o Prêmio Conrado Wessel de Literatura, com o romance p. 86

Olívio. Essa conduta, em primeira mão, já se configura como um ato performático definido por uma questão ética, e estética (LOPES, 2007, p. 23), que seria o modo de Nazarian intervir no mundo por meio de sua escrita. Talvez o questionamento dessa própria conduta seja o estopim para o cansaço de Nazarian diante de sua biografia, colocada em cena pelo perfil publicado em revista. Assim, ao inserir-se na narrativa por um ato de reelaboração da própria obra enquanto memória de si mesma,

o ato de narrar implica um uso afetivo, num contexto indissociado do mercado, mas não deixa os fluxos aprisionados no lugar-comum e no clichê, joga com esses elementos para uma elaboração com uma pluralidade semântica em jogo com o público transformado em autor (LOPES, 2007, p. 29).

Esse gesto pop, enquanto manifestação estética, mostra-se comprometido com um projeto sério “da redundância informativa, do descartável e que coloca no mesmo lugar o que antes chamávamos de popular e erudito; experimentalismo e cultura de massa” (LOPES, 2007, p. 20), fazendo do escândalo (da escritura) a memória performática impregnada, em Santiago, de sangue e horror, uma memória da morte. Pensar a possibilidade de uma memória da morte, nesse caso, significa colocar a

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escrita e a escritura como campo do deslize dos significados que se movimentam mais pela falta, em termos lacanianos, do que pela presença que o conteúdo da literatura de Nazarian evoca.

“...Olhando para uma folha em branco. Pensando em vermelho. Tentando engolir sua própria vergonha...” (NAZARIAN, 2003, p. 48) talvez o personagem Olívio, bem como o próprio sujeito social Nazarian, seus espectros literários Thomas Nazarian e Thomas Schimidt encarem a morte como ato de inscrição de si por vias desse deslocamento (que é de nomes, de informações biográficas embaralhadas); a morte, que escorre pelos textos como o sangue, tem seu lugar na repetição enquanto tema no romance A morte sem nome (2004), bem como estrutura no modus operandi do escândalo da escrita (tanto em A morte sem nome como em Olívio, como nota-se no trecho acima apresentado). A redundância informativa se faz diferença no sujeito que se lê no perfil da revista como no protagonista de Feriado de mim mesmo (2005) que se embate com o “invasor” de p. 87

seu apartamento: Olhou para si mesmo e notou um sorriso diferente. Olhava para si mesmo e notava um sorriso que não deveria estar lá. Cínico. Como seu próprio eu desafiando-o para um duelo. Não poderia ser. Não poderia ser tudo uma alucinação. Não poderia ser ele mesmo o invasor de seu cotidiano. Ele tinha um nome, Thomas Schimidt. Thomas Schimidt era o nome de seu invasor (NAZARIAN, 2005, p. 94).

Desse modo, nesse sujeito cindido, que mais parece estar observando a imagem infinita de um espelho colocado em frente a outro, as inúmeras referências ao autor e ao personagem de si, na esteira de uma estética da comunicação, ainda com Lopes (2007), percebe-se que as fronteiras entre a arte erudita, popular e massiva, e o dualismo experimental e comercial se diluem e

faz[em] dialogar objetos de valor estético como produtos culturais, não para considera-los apenas como mercadoria dentro de uma indústria cultural, mas como coisas dentro de uma cultura material, mas que tem uma vida social (LOPES, 2007, p. 24).

Como ato de inscrição e diluição do dualismo, do sujeito que se vê infinitamente p. 88

refletido entre dois espelhos (dois personagens, três romances), a própria materialidade dos romances de Nazarian evoca o gesto pop, o escândalo de si enquanto escritura desde a capa de Feriado de mim mesmo (2005), na qual a mão do a(u)tor sangra estampada como se vê abaixo:

Figura 1. Capa do romance Feriado de mim mesmo. Fonte: NAZARIAN, Santiago. Feriado de mim mesmo. São Paulo: Planeta, 2005.

p. 88

Figura 2. Foto da contracapa do romance Feriado de mim mesmo. Fonte: NAZARIAN, Santiago. Feriado de mim mesmo. São Paulo: Planeta, 2005.

Esse projeto estético segue não apenas como um palimpsesto que permite vislumbrar inúmeras facetas dos elementos da memória que o compõem. Mostra-se mais adequado pensar na figura de um mosaico, em que os diferentes elementos – diversos em origem – reagrupam-se de modo a con-figurar um novo objeto sem perder, no seio de sua materialidade, o sentido fragmentário que o possibilitou estar ali. Dessa forma, “o novo e o choque deixam de ser marcas de ruptura para se tornarem estratégias de marketing e de produção da notícia, a narrativa e o fascínio pela imagem ganham um novo interesse” (LOPES, 2007, p. 29). A imagem do escritor se constrói então de modo especular, como espectro cujo traço (distintivo) passa a ser percebido a partir das inúmeras performances que podem ser vistas na p. 89

internet ou, até mesmo, no texto literário. A memória, sob esse ponto de vista, age como ato de exumação da experiência, ou melhor, da transmissão dessa experiência, considerando que

se trata de memória construída na e pela linguagem. Não seria demais dizer que, nA morte sem nome, a personagem-principal Lorena escreve uma Poética da Exumação de suas mortes, sendo a memória da morte o objeto de re-elaboração, não mais como evento traumático (o trauma não é mais o ponto nodal da narrativa, ele foi/está sendo resolvido pelo ato – analítico p. 89

- da escrita enquanto processo), mas como a transmissão da experiência (essa sim, traumática par excellence) em toda a sua (im)possibilidade e potencialidade. Sob esse ponto de vista, é possível ler o romance A morte sem nome como um relato de memória de ordem testemunhal, pois, ao efetuar o deslocamento da experiência para a sua transmissão, admite-se a possibilidade de a escrita ser o terceiro elemento que o termo testemunho carrega e exige em sua etimologia2. A testemunha deixa de ser ocular e passa a ser especular (espectral), em termos derridianos. Do ponto de vista do crítico, esse gesto insere-se muito mais numa estética do zapping (SOUZA, 2002, p. 22) ao tornar comum, no nível do texto, a experiência, um movimento do campo da possibilidade, ou da impossibilidademesma, cuja tensão se trava ao evocar o termo experiência com a ideia de comunicação (SOUZA, 2002, p. 30). O teor testemunhal de que se trata seria a própria transmissão da experiência cujo modus operandi na escrita funciona como um olhar sobre/para o Outro, em relação

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contrapositiva ao Eu, bem como ao Grande Outro da linguagem, em termos lacanianos. O lugar do autor é revisto e a escrita é vista como

o exercício da memória alheia [que], ao ser incorporado à experiência literária, desloca e condensa lugares antes reservados ao autor, à medida em que se dilui a concepção de texto original e de autenticidade criativa. A escrita retoma a atividade tradutória, o exilar-se de si para criar, assim como relê a tradição cultural como um arquivo que se revitaliza a todo momento. Ao proceder a dramatização da fala pessoal através da experiência do outro, 2

p. 89

“O termo ‘testemunho’ tem raiz no indo-europeu trei (três) que produziu no latim três e no grego e sânscrito, tri. A combinação do indo-europeu tri+sti produziu o sentido de terceira pessoa ao lado, a testemunha. Daí encontramos testis em latim, raiz do termo português, significando aquele que assiste a algo, a testemunha; entretanto, encontrar também em latim o termo superstes que indica o terceiro colocado acima, no sentido de superação. Podemos então recuperar dois sentidos para o termo em nossa língua: depoimento de um terceiro em um processo e aquele que atravessou uma provação, o sobrevivente. O que desejo destacar com esse pequeno exercício etimológico é que o uso do termo ‘testemunho’ em nossa língua remete tanto ao plano do relato do vivido, quando ao da transmissão de uma experiência de superação. Uma possibilidade de tentarmos distinguir esses dois planos poderia se assentar em uma especificação do que entendemos por experiência, indicando que não todo o vivido constitui experiência, termo que circunscreve, segundo uma preciosa indicação de Lacan, ‘aquilo que não se imagina’ (apontando para o estatuto do real inassimilável [o real da morte] quer à imagem quer à palavra). O que fica assim sugerida é a diferença de implicação subjetiva presente nos dois sentidos do termo ‘testemunho’” (LEITE, Nina Virgínia de Araújo. Escrita e transmissão da experiência. In. MARIANI, Bethania (Org.). A escrita e os escritos: reflexões em análise do discurso e psicanálise. São Carlos: Claraluz, 2006.

a narrativa elabora, contudo, procedimentos ligados a uma autobiografia esquiva do autor (SOUZA, 2002, p. 123).

Esse esquivar-se se manifesta no cansaço de Nazarian diante de sua biografia, como se p. 90

lê na epígrafe desse texto, torna-se a própria região limítrofe que ocupa o espaço litigioso entre a ficção como escrita de si e a inscrição de si no texto, no modo performático como já visto. Nessa escrita, que age como inventário de mortes – e que não são mais da ordem da morte do autor mas, paradoxalmente, do seu retorno, a possiblidade da memória serve de ferramenta para ludibriar o leitor, na perspectiva do jogo, para um além da ficção que Lejeune (2008) não estava preparado para ler, e cujo efeito de real, não mais o barthesiano, lido na narrativa realista, conspira muito mais para a dúvida da verossimilhança, da verdade e da identidade do que para seu estabelecimento em forma de pacto. Como produto da lógica da cultura de massas, cada vez mais o autor é percebido e atua como sujeito midiático (KLINGER, 2007, p. 35), atua no sentido performático e retorna à cena da escritura. Em Nazarian, o sangue do autor-ator-performer-estudante-de-arte que se mutila em plena Avenida Paulista para um trabalho de faculdade escorre figurativamente em seu texto, nas frases curtas do sujeito-social tradutor de língua inglesa, nos temas darks, dos zumbis, jacarés e suicidas em seus apartamentos, inclinados, fazendo de toda ficção sua biografia, sua autobiografia, nos termos da autoficção, que não é nem romance nem biografia propriamente dita. Melhor dizendo, como se arrolou até agora, esse sujeito constrói sua ficção mais como

p. 91

uma autotanatografia, ao escrever e inscrever a morte do outro como memória mas, além disso, a sua própria morte, de sujeito fragmentado, que a cada parágrafo se mata, retorna ao estado inicial, levado pela pulsão de morte que o conduz ao eterno retorno e que o movimenta a continuar escrevendo, pelo caminho da diferença e do desarquivamento. A pulsão de morte se configura nesses textos como uma pulsão de escrita, ela gera o movimento sublimatório da tensão traumática da experiência (e, da possibilidade da morte). Ao colocar o texto em primeira pessoa, Nazarian instaura o jogo performático da escrita da morte e questiona a própria identidade de modo “que toda experiência que o autor pode narrar se aproxima do ‘invivível’, ‘que requer um máximo de intensidade e ao mesmo tempo de impossibilidade’” (KLINGER< 2007, o. 38). Essa autoficção tanatográfica “surge em sintonia com o narcisismo da sociedade midiática contemporânea mas, ao mesmo tempo, produz uma reflexão sobre ele” (KLINGER, 2007, p. 44). A performance da morte aparece, então, como desempenho e atuação no próprio ato da escrita, como a personagem Lorena que

p. 91

atua a morte da escrita, cujo autor-Nazarian atua de modo que tamanha desnaturalização conduza

à

estranheza

de

sua

autobiografia.

Isso

não

significa

reduzir

essa

autotanatoficciografia à ficção, à morte, à biografia ou à escrita de si, mas gerar um termo complexo, um indecidível, que comporte e possibilite a leitura do sujeito e da obra como um espaço da escrita, e a escrita como um espaço da morte. Como a personagem Lorena que, em uma de suas mortes, se arremessa pela janela do apartamento, como as facas que tomavam seu corpo, o gozo do estuprador que mata e fere o percurso mortífero de uma mulher ruiva, cujo cabelo escorre no chão do banheiro, como o sangue que flui de seus pulsos, pulsa no veio dessa escrita a transgressão do pacto ficcional, transgressão que determina essa própria ficção tornando-a instigante jogo tétrico e gótico do fazer a(u)toral que problematiza, nos romances de Nazarian, a ideia de referência com vistas a superar binarismos e dicotomias. Pensar a possibilidade da suicida que narra e inventaria suas mortes significa, então, pensar o significado da morte e da narração em termos teóricos. O estado zumbi de Lorena, p. 92

que morre e continua a narrar, não trata apenas do entre-lugar3, mesmo que possa com ele se relacionar, mas se localiza no próprio estado espectral do sujeito contemporâneo, cuja identidade se constitui muito mais plasmática e maleável que estática e definitiva. Afinal, de que seria feito o espectro senão de linguagem, esse grande Outro fantasmagórico, da ordem do desejo. Não se trata, no entanto, de optar pela transformação que o Bildingsroman possibilitava, no âmbito da autobiografia (KLINGER, 2007, p. 19). Muito provavelmente, cansar-se diante de sua biografia está, em Nazarian, muito mais para a interrogação que para a transformação. A atuação de Nazarian diante de sua própria figura constitui-se como heteroreconhecimento de si nas marcas que se inscrevem no texto, como traços próprios do sujeitoautor que se espetaculariza, que aparece, que (está) encena. Assim, ao estender a noção de autoficção para o campo da escrita autotanatográfica, admite-se aqui o estabelecimento do mito, por ter deixado de lado a questão da verdade no texto e, mesmo, na vida do sujeito autor:

A autoficção [e por que não dizer a autotanatoficciografia] é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens que relatam as vivências do narrador, quanto naquele momento da narrativa em que o autor introduz no relato uma referência à própria escrita, ou seja, à pergunta pelo lugar da fala (O que é ser escritor? Como é o processo de escrita? Quem

p. 93

3

SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

diz eu?). (...) O mito, diz Barthes, ‘não é uma mentira, não tem a verdade como sanção’. A autoficção participa da criação do mito do escritor (...) A noção do relato como criação da subjetividade (...) permite pensar (...) a autoficção como uma performance do autor (KLINGER, 2007, p. 51, grifo da autora).

Todos esses termos configuram-se como a criação e ratificação daquele espaço da memória tratado anteriormente, o que corrobora a relação da morte com a memória como aqui considerado: a morte em si não é memória, mas aquilo que a cerca o é. Narrar a morte (de si) implica uma perspectiva política na medida em que a opção pelo registro e ato de inventariar a múltipla possibilidade na morte pela diferença se torna gesto de oscilação entre relembrar e esquecer. Inventariar, nesse caso, diz respeito a listar, enumerar, mesmo que de modo caótico, p. 93

num realismo mágico falacioso – e, não por isso, menos verdadeiro ou propriamente realista, a própria morte como que a escrever-se a própria lápide e gravar, na dureza do mármore e na perenidade da página, toda a malemolência de uma existência duvidosa e deslocada. Lorena pode inventariar, e mais ainda, inventar, as próprias mortes ao saber estar inscrevendo sua história da História pelos coágulos seus que ficam pelo chão, pela escolha do registro em livro.

p. 94

Só com o sangue derramado foi que percebi o quanto o chão estava sujo. Restos de insetos boiando nos coágulos, coágulos penetrando entre os tacos, tacos encardidos de poeira. Deixaria sequelas para sempre, no meu apartamento, coitado, tão humilde e desprezado. Por anos e anos, ratos mendigos e mosquitos preguiçosos viriam se alimentar dos meus restos. Entre as frestas, se eu esfregasse com vontade, abriria um buraco negro no meio do nada, meu apartamento. Coitado, tão humilde e desprezado. Talvez pudesse pentear meus cabelos então, no chão, penetrando entre os tacos. Ou talvez fossem apenas antenas das baratas... Talvez sim, fosse hora de começar uma faxina. No meu apartamento, coitado, só sobrara eu. Sozinha, mas inteira, ainda. Que derramada pelo chão era apenas mais uma tentativa a ser esfregada. Ajoelhada, eu pensava o quanto valia a pena continuar. Esfregando, eu pensava o quanto valia a pena continuar. Vivendo ainda, eu sofria as consequências da minha última tentativa. De não ter conseguido, eu não reclamava, estava acostumada. A esfregar não. Por isso o chão. Tão encardido estava meu apartamento. Faltava-me força para devolver-lhe o branco. Faltava-me sangue para pintá-lo de vermelho. Como fui viver assim? Nunca fui realmente, apenas me deixei levar. Não fui eu que escolhi a decoração, para combinar com o branco. Talvez tenha sido, que acumulei a sujeira. Para combinar com o vermelho, funciona. Mas não fiz coisa alguma. Minha decoração é um excesso de ausências. Ajoelhada, esfreguei o sangue e comecei a pensar no livro. Meu último romance terminava quando eu começava este. Meu primeiro, um verso escrito assim. Com a ponta da unha, movimentando os leucócitos, eu fiz o título. Me esqueci do nome. Um dia morro de amor. No outro esfrego o chão (NAZARIAN, 2004, p. 7-8).

Trata-se, pois, da relação de memória e esquecimento em termos de arquivo, ao escrever e inventariar a morte, ao marca-la, rasga-la no branco da página pela letra que escorre na mancha (da pagina) como as gotas de sangue no tapete angorá da vizinha de p. 94

Lorena. Arquiva-se esse inventário e, por extensão, essa memória que só terá a vida de volta pela força geradora da palavra no ato de leitura. Esse arquivo, enquanto escrita, age na direção de seu esquecimento, como uma operação arquiviolítica (DERRIDA, 2001). Nesses termos, cabe esclarecer que essa memória escrita (da morte de si) age menos como esforço fundacional (ACHUGAR, 2006, p. 200) do futuro a partir da re-elaboração do passado que como força geradora do tempo da própria escrita e da morte, no espaço da morte. Um esforço gera angústia que “nasce da mais do que provável possibilidade de nos transformarmos de sujeitos da memória em objetos da memória, mas também de nos transformarmos de senhores da nossa memória em escravos da memória dos outros” (ACHUGAR, 2006, p. 171). Muito obviamente, ao ressaltar o aspecto angustiando do esforço que concerne à memória, Achugar estava preocupado em pensar a relação da Nação, do Monumento e da memória em relação à História e à democracia, à dúvida sobre a possiblidade de uma memória democrática, marcada pela diferença, em sua relação passadopresente-futuro. Aqui nos interessa, entretanto, a relação da memória com a História entendida pelo viés da dúvida. Ao eleger a Psicanálise como pano de fundo para se ler o objeto literário, admite-se que, para além da pretensiosa objetividade científica, toda a leitura está mediada pela subjetividade de quem a faz, assim como a escrita (quer seja da ficção, quer seja do

p. 95

ensaio) pela de quem escreve. Todo objeto cultural é visto como permeado pelas marcas subjetivas do sujeito produtor, na certeza de sua relação histórico-social, todavia em sua constituição que é heterogênea por natureza. Assim, a noção de experiência, já posta em dúvida acima, passa a ser lida no campo deslocado da insegurança.

Os fatos da experiência, ao serem interpretados como metáforas e como componentes importantes para a construção de biografias, se integram ao texto ficcional sob a forma de uma representação do vivido. Os grandes temas existenciais da literatura como a cegueira, o suicídio, a morte, o amor, guardam sua natureza ficcional e se espraiam na página aberta do espaço textual e nos interstícios criados pelo jogo ambivalente da arte e do referente biográfico. Ao se considerar a vida como texto e as suas personagens como figurantes nesse cenário de representação, o exercício da crítica biográfica irá certamente responder pela necessidade de diálogo entre a teoria literária, a crítica cultural e a literatura comparada, ressaltando o poder ficcional da teoria e a força teórica inserida em toda ficção (SOUZA, 2002, p. 113).

Por força da ficção, o jogo de verdade que se instaura na leitura do projeto literário de Nazarian como escrit(ur)a da vida/morte se estabelece no paradoxo mesmo de uma verdade fictícia, eminentemente poética. Essa verdade não nos parece tão óbvia no campo dos estudos literários, e é a força da necessidade de escrita, e da escuta, consequentemente, que permite atar, como um laço teórico, a leitura do texto literário pelo viés psicanalítico. Para além do sentido da interpretação que tomou o senso comum, a partir das proposições teóricas de Freud, a tomada da noção de construção como tradução nos últimos textos freudianos permite a leitura do objeto literário dadas suas especificidades no âmbito das produções escritas. Por utilizar-se da linguagem, o texto literário, como o lê Barthes, se utiliza da linguagem como índice de despoder, ao desloca-la constantemente. Evita-se, nesse caso, que a leitura do texto literário seja operada de modo clínico, na busca pela patologia cujo sintoma o estruturaria. A escrit(ur)a passa a ser lida como o próprio p. 96

gesto da análise, em sua função desarquivadora. Busca-se, no inconsciente do/produzido no e pelo texto a fonte arquitetural de sua construção na linguagem. Em A morte sem nome, esse recurso anarquívico de exumação das mortes de Lorena age duplamente: primeiro, no sentido de seu registro, segundo, no sentido de sua destruição como tal. Ao escrever a morte, Lorena destrói os próprios suicídios como ato, e Nazarian arquiva o próprio fazer mortífero da escritura, que se mata ao sangrar a mancha da página, falha no seu registro e se violenta silenciosamente na leitura (a única que age em função de uma ressuscitação). Ao longo do romance, o movimento que a mote assume escandalosamente esconde a engenharia que o promove. A morte, em nível temático, ludibria o leitor desatento que a alia com a pulsão: ela [a pulsão de morte] trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também com vistas a apagar seus ‘próprios’ trações – que já não podem desde então serem chamados de ‘próprios’; é arquiviolítica (...) sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora do arquivo (DERRIDA, 2001, p. 21, grifo do autor).

Tal deslocamento é patente nA morte sem nome na estrutura sintática do início do romance, em que o objeto de uma sentença torna-se, imediatamente, sujeito da próxima, num movimento, por vezes neurótico, em que o significado escorre pelas sentença como o sangue de Lorena pelos tacos do chão do apartamento. Assim, como o movimento esquivo do p. 97

significado ao longo da cadeia significante, a figura do sujeito-escritor-performer-a(u)tor Santiago-Thomas-Nazarian-Schimidt se mantem a escorrer do domínio do leitor e do analista ao escorregar como o sangue de sua personagem, fugindo da tentação de apreensão (e aprisionamento) do significante, gerando significação nessa imagem de movimento e

transformação, uma imagem (des)arquivizante desse coágulo (de vida e de morte), uma autotanato-ficcio-grafia, dessa escrit(ur)a escandalosa da morte.

REFERÊNCIAS ACHUGAR, Hugor. Planetas sem boca – escritor efêmeros sobre arte, cultura e literatura. (Trad. Lyslei Nascimento). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. BRANCO, Lúcia Castello; BRANDÃO, Ruth Silviano. Literaterras – as bordas do corpo literário. São Paulo: Annablume, 1995. DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo – Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro:

p. 97

Editora Relume Dumará, 2001. KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro – o retorno do autor e a virada etnográfica: Bernardo Carvalho, Fernando Vallejo, Washington Cucurto, João Gilberto Noll, César Aira, Silviano Santiago. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. LEJEUNE, Phillippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. (Org. Jovita Maria Gerheim Noronha. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. LOPES, Denilson. A delicadeza: estética, experiência e paisagens. Brasília: Editora UnB, 2007. NAZARIAN,

Santiago.

Jardim

Bizarro

(Blog).

Disponível

em:

<

http://santiagonazarian.blogspot.com.br/2009/08/nao-esqueca-o-lancamento-e-nestaterca.html> Acesso em 17 de Julho de 2014. NAZARIAN, Santiago. Olívio. São Paulo: Talento, 2003. NAZARIAN, Santiago. A morte sem nome. Rio de Janeiro: Planeta do Brasil, 2004. p. 98

NAZARIAN, Santiago. Feriado de mim mesmo. Rio de Janeiro: Planeta do Brasil, 2005. NAZARIAN, Santiago. Mastigando humanos. São Paulo: Nova Fronteira, 2006. SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica – ensaios. São Paulo: Linear B; Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007. (Coleção Obras em Dobras).

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