A MARGINALIZAÇÃO DE FABIANO EM VIDAS SECAS: O USO DA LINGUAGEM NAS RELAÇÕES DE PODER

July 21, 2017 | Autor: Isabela Vitória | Categoria: Literatura brasileira
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A MARGINALIZAÇÃO DE FABIANO EM VIDAS SECAS: O USO DA LINGUAGEM NAS RELAÇÕES DE PODER

Isabela Vitória de Oliveira dos Santos Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Departamento de Letras Anglo-Germânicas Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil [email protected] http://lattes.cnpq.br/5163415915865836/

RESUMO: Dispondo como cenário o sertão brasileiro, Vidas secas problematiza não apenas as relações que os indivíduos estabelecem com o espaço regional, mas inclusive com as pessoas que compõem este lócus. Nesse sentido, o mundo árido construído ao longo da narrativa remete à seca em sentidos múltiplos: a condição natural do campo brasileiro é articulada à carência de perspectiva social das personagens, de modo que aspectos externos e internos a essas vidas entrelaçamse. Sendo assim, parece ser interessante analisar como a linguagem de Vidas secas explora as relações regionais e sociais, mais especificamente de poder, no sertão nordestino. Considerando, portanto, a dimensão social da obra, o intento deste trabalho é discutir a marginalização de Fabiano, inclusive no que se refere às relações de poder entre ele – que simboliza o oprimido – e seus opressores representados pelo patrão e pelo soldado amarelo. Para isso, foram analisados excertos de Vidas secas que contribuem para a representação animalística de Fabiano. Percebe-se nas análises iniciais que o processo marginalizante de Fabiano acontece por meio do (não) uso da linguagem, que o papel desta não é apenas defender a posição de si mesmo, mas também a do outro e, principalmente, que Fabiano tem consciência do seu caráter animal, mas resiste a ir de encontro à sua sorte. PALAVRAS-CHAVE: Vidas secas; Fabiano; linguagem; poder. ABSTRACT: Utilizing the Brazilian hinterland as the stage, Vidas secas problematizes not only the relationships that individuals establish with the regional space, but also with the people who constitute this locus. In this sense, the arid world built throughout the narrative refers to the drought in various aspects. In this sense, the natural condition of the Brazilian countryside is articulated to the lack of a social perspective of the characters, so that the external and internal aspects of these lives are intertwined. Thus, it seems interesting to analyze how the language of Vidas secas explores the regional and social relationships. More specifically, the relationships between power and struggles in the Northeastern hinterland. Therefore, considering the social dimension of the book, the intention of this paper is to discuss the marginalization of Fabiano, mainly that regarding power relations among him – who symbolizes the oppressed – and his oppressors – represented by the boss and the yellow soldier. For such reason, there were analyzed extracts of Vidas secas that contribute to Fabiano’s animalistic representation. It can be seen by the initial analysis that the marginalizing process of the character happens through the (non) use of language, that the role of language is not only to defend one's own position, but also the position other individuals occupy and, primarily, Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 23, 2015. ISSN: 1806-2555.

that Fabiano is aware of his animalistic character, but resists going against his fate. KEYWORDS: Vidas secas; Fabiano; language; power

Introdução

As vozes não são produzidas ou compreendidas em um vácuo. (...) a cada voz corresponde um personagem, um agente social; a voz expressa o modo como está organizada a posição do personagem na sociedade. Os personagens sociais, juntos, fazem o tecido da sociedade, e o texto societal é o resultado mais ou menos bem sucedido da representação do entendimento do personagem acerca dessa organização societal. (MEY, 2001, p. 80 apud MORAES, 2001, p. 776)

Uma produção literária é, em geral, legitimada quase exclusivamente pelo seu

caráter 1

intencional,

estético. este

De

fato,

geralmente

o

conhecimento latente

permeado

por

e o

concepções

conhecimento

éticas,

políticas,

ideológicas e sociais, atingem o receptor de maneira mais efetiva, pois o diálogo com uma palavra - no sentido macro - “tangível à realidade do espírito ou do mundo” permite que tenhamos uma experiência linguística singular e significativa. No entanto, o conhecimento não é senão um “par indissolúvel” constituído de conteúdo e forma (CANDIDO, 1995, p. 179). Nesse sentido, o objeto literário representa mais do que um código em si mesmo; é um evento linguístico complexo cujo arranjo articula forma e significado. A organização de palavras em um texto é igualmente relevante à sua expressão artística, uma vez que a ordem obedecida reflete a intenção de um autor de comunicar algo a quem a mensagem recebe (CANDIDO, 1995). Sendo assim, as vozes referidas por Mey (2001) representam mais que uma mera expressão artística; são uma construção histórica de estrutura e sentidos. Posto isso, iniciamos nossa discussão com uma breve contextualização de Vidas secas, enquanto construção linguístico-literária. Comecemos pelo título. Considerando a escassez de adjetivos ao longo da obra, é interessante pensar de que forma “secas” contribui para a construção de um todo poético. O sertão nordestino é caracterizado por uma realidade hostil, implacável, marcado pelos “galhos pelados da catinga rala”, “ossadas” e “vôo negro dos urubus [...] em redor de bichos moribundos” (RAMOS, 1980, p. 9-10). Outro aspecto inerente ao romance diz respeito à disposição dos capítulos: a ciclicidade da obra retrata a inconstância da vida sertaneja. “Mudança” e “Fuga” são, na verdade, o início de um mesmo fim ou o fim de um mesmo início. Ou seja,

Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 23, 2015. ISSN: 1806-2555.

a seca é uma constante tão imperativa nessas vidas, que há um andar paralelo a um retorno perpétuo ao longo da narrativa. Ainda sobre os capítulos, sua autonomia indica a dificuldade de comunicação das personagens, que são pouco desenvolvidos linguística e sentimentalmente. Mesmo relevantes, questões como estas não significam por si sós. Na verdade, elas funcionam como pano de fundo para uma problematização de maior complexidade: as relações de poder no sertão nordestino. Sendo assim, a seca à qual anteriormente nos referimos transcende o âmbito natural; representa a indiferença político-ideológica inerente à realidade agrária daquele meio. Da mesma forma, a ciclicidade e autonomia dos capítulos reforçam a necessidade de “ir para diante, alcançar uma terra desconhecida” (RAMOS, 1980, p. 126), onde sonhos e expectativas pudessem ser (re)construídos. Portanto, o uso da linguagem na construção de um discurso opressor é o ponto central da obra graciliana: de um lado, aquele que não tem voz; do outro, aquele que dita as regras. Cabe, agora, discutir o delineamento desse processo marginalizante e, consequentemente, animalizante.

“Você é um bicho, Fabiano”

Todos nós exercitamos a linguagem de muitos e variados modos em toda a nossa vida, de tal modo que o nosso mundo é aquilo que ela nos permite dizer, isto é, a matéria constitutiva do mundo é, antes de mais nada, a linguagem que o expressa. (COSSON, 2012, p.15)

Fabiano é uma personagem que, mesmo subjugada, tem a capacidade de refletir sobre sua existência social, sobre sua ignorância. Principalmente, tem consciência dos problemas que o não-domínio da linguagem provoca na sua convivência cotidiana. Neste caso, entende-se como um “bicho” é reflexo da ideia com a qual introduzimos essa análise: o mundo de Fabiano é aquilo que seu repertório linguístico possibilita que seja dito. Ele “admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão”, pois não tinha o direito de saber (RAMOS, 1980, p. 20-21). Iniciemos, então, nossa análise pela frase que dá título a esta seção: “- Você é um bicho, Fabiano”. Esta sentença, pronunciada pelo próprio Fabiano, funciona em contraste com outra dita momentos antes na narrativa: “Fabiano, você é um Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 23, 2015. ISSN: 1806-2555.

homem”. Comparando ambas, percebe-se que nos dois momentos Fabiano refere a si mesmo em terceira pessoa. Ou seja, seu poder discursivo é tão limitado que ele não se sente digno de expressar-se em primeira pessoa, de apropriar-se do seu “eu”. É interessante, também, a autocorreção de Fabiano. Se antes seu nome estava tematizado - ou seja, em destaque - e existia certeza de humanidade, agora o nome se desloca para o fim da oração e acontece um processo de animalização. O progresso pelo qual a família estava passando era, certamente, um momento de orgulho para este homem, enquanto pai, esposo, gente. O problema é que suas conquistas são fruto de bens alheios. Na verdade, eles nada tinham senão as suas vidas.

E é essa situação de (não) ter que causa este conflito identitário. Dessa

forma, essa era sua posição, pela sociedade imposta e por ele legitimada. “- Seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros.” Fabiano não precisava de papel. Não precisava de livros. Precisava ter “pés duros que quebrassem espinhos e que não sentissem a quentura da terra” (RAMOS, 1980, p. 19). Isso porque sua sobrevivência dependia, quase exclusivamente, da sua resistência física, e não intelectual. Nesse sentido, sentia-se satisfeito pois sabia que “[as palavras] eram inúteis e talvez perigosas” (RAMOS, 1980, p. 20). O saber, por outro lado, transcendia a noção de necessidade. Era um capricho, para poucos: “Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo” (RAMOS, 1980, p. 22). Desde o nascimento até a morte, possivelmente, direitos e deveres eram determinados. Novamente, portanto, a habilidade linguística simboliza um bem que não depende de uma escolha individual, mas de uma imposição social.

O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. [...] o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono.

Diferentemente de seu Tomás, que pedia, o patrão de Fabiano mandava. Sim, eram brancos diferentes, com poderes diferentes. Se aquele tinha a sabedoria enquanto instrumento de poder, este possuía terras, gado. O interessante quando pensamos nesses dois homens é, no entanto, a contradição entre suas posturas e a percepção da sociedade perante elas: se, por um lado, a cortesia de seu Tomás era tida como “esquisitice” e digna de censura, por outro as descomposturas do patrão Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 23, 2015. ISSN: 1806-2555.

eram “naturais”. Dessa forma, espera-se, nas relações no campo, que haja alguém que dê ordens e outro que possa cumpri-las. Neste caso específico, Fabiano se permitia ser humilhado pelo patrão pelo fato de depender daquilo, ainda que passageiramente. Ele sabia que aquela era sua sorte e que dela não se desvencilharia: “Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia” (RAMOS, 1980, p. 24). “Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia”. Sempre houve e haverá muitas coisas. Boa parte delas oculta, implícita.

Cabe a nós, animais

evoluídos, saber interpretá-las e reagir de maneira crítica a elas. Fabiano, seco em todos os sentidos possíveis, não sabia distingui-las com precisão. Para ele, era “difícil pensar. [...] Nunca vira numa escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares” (RAMOS, 1980, p. 24). Neste momento da narrativa, depois de ter sido preso pelo soldado amarelo, Fabiano pensava sobre os motivos que o levaram àquela situação. Poderíamos dizer que eles são múltiplos: tentativa, por parte do soldado, de reafirmar seu papel social enquanto autoridade; a negligência do governo com relação a esse abuso de poder; e, outra vez, o ciclo esquizofrênico de marginalização de vidas secas.

A princípio, o vaqueiro não entendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento, deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para outro.

Neste momento, a animalização de Fabiano é intensamente delineada: tal como um animal selvagem, cujo instinto detecta um perigo em potencial na natureza,

Fabiano

sente

no

soldado

amarelo

um

teor

de

ameaça.

Este,

provavelmente, como um reflexo da experiência em “Cadeia”. Com relação ao soldado amarelo, “aquilo”, “homem” e “uma autoridade” mostram a progressão identitária pela qual o sujeito passa na percepção de Fabiano. É por meio desta gradação literária que o sertanejo toma consciência não apenas de sua condição enquanto ser inferior, mas inclusive da posição do outro como alguém de quem não é permitido vingar-se.

Conclusão

A linguagem não é apenas um local, mas também um suporte na luta de classes, e aqueles que exercem o poder através da linguagem devem estar

Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 23, 2015. ISSN: 1806-2555.

constantemente envolvidos em luta com outros para defender (ou perder) sua posição.2 (FAIRCLOUGH, 1989, p. 35)

Considerando as discussões levadas ao longo do trabalho, cabe aqui ratificar a relevância de Vidas Secas enquanto instrumento de crítica às relações de poder no sertão nordestino. No caso de Fabiano, seu processo de marginalização desencadeia outro: o de animalização. Em outras palavras, ele não consegue se insurgir contra sua condição animalizante porque as forças marginalizantes que o dominam atuam na subtração de instrumentos e condições para que isso aconteça. Precisamos considerar que o mecanismo dos dispositivos de poder mantémse por meio de uma relação que promove e fortalece suas próprias bases de sustentação:

ao

mesmo

tempo

em

que

são

eliminadas

as

condições

de

deslocamento dos dominados, são criadas condições para que estes dominados sobrevivam. Isso corrobora para uma sociedade um tanto esquizofrênica, uma vez que os privilégios só podem ser mantidos com retiradas de uns para outros, e com a manutenção das camadas dos que perdem. Por outro lado, é importante considerar que relações de poder sempre terão seu espaço na sociedade – o que não significa que sempre possuam vieses negativos. O que o presente trabalho busca problematizar é a marginalização, bem como a animalização de uma vida; o uso de discursos embebidos de poder para uma mera subtração da significação humana, não apenas pela sua classe social, como também pela raça, credo, sexualidade e tantos outros motivos. Nesse sentido, acredito que cada um de nós pode, em algum momento de nossas vidas, ser um fabiano.

Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 23, 2015. ISSN: 1806-2555.

Referências CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995. COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012. p. 14-74. FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. London: Longman, 1989. MORAES, Fabiana Rosa. Inter-relações entre a literatura e a linguística: o ato perlocucionário em Senhora, de José de Alencar. UEG em Revista (Cessou em 2007). Cont. ISSN 1983-8824. História em Revista (Quirinópolis), v. 1, p. 9-232, 2007. RAMOS, Glaciliano. Vidas Secas. 46. ed. Rio, São Paulo, Record. 1980. 1

Segundo Candido, o conhecimento latente diz respeito à “organização das emoções e da visão de mundo”, enquanto os níveis de conhecimento intencional são “planejados pelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor” (p. 180). 2 Texto original: “Language is both a site of and a stake in class struggle, and those who exercise power through language must constantly be involved in struggle with others to defend (or lose) their position”.

Data de envio: 21 de janeiro de 2015

Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 23, 2015. ISSN: 1806-2555.

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