A Marinha e a Paz Armada. Planos Navais 1897-1916

July 22, 2017 | Autor: F. David e Silva | Categoria: Naval History
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A MARINHA E A “PAZ ARMADA” - PLANOS NAVAIS 1897-1916

F. David e Silva CALM (Ref) [email protected]

RESUMO – As duas décadas anteriores à I Guerra Mundial, frequentemente referidas como um período de “paz armada” foram, para as potências europeias, os EUA e o Japão um tempo de rearmamento naval, no qual é necessário realçar a crescente rivalidade entre a Inglaterra e a Alemanha. A análise desta dinâmica impõe a consideração de diversos factores, entre os quais avultam as inovações técnicas e no pensamento naval. Estas inovações foram acompanhadas em Portugal e integradas nos debates sobre a reconhecida necessidade de renovação dos meios navais. Este texto pretende contribuir para melhorar o conhecimento sobre as propostas que foram sendo apresentadas, formal ou individualmente, entre o plano “Jacinto Cândido” e o ano de entrada de Portugal na “guerra europeia”.

ABSTRACT – The two decades before World War I, frequently cited as a period of “armed peace”, were for the European powers, the USA and Japan a time of naval rearmament, within the framework of the growing rivalry between England and Germany. The investigation of the involved dynamics appeals to the consideration of a number of different issues, with special attention to the technical innovations as well as to the recent contributions to naval strategic thinking. These new fields of knowledge quickly travelled to Portugal and were soon made part of the debates over the long recognized needs for the fleet renewal. This paper aims to contribute to the understanding of the naval plans put forward during the period between 1897 and 1916, both inside the Navy department and proposed by individual naval officers.

INTRODUÇÃO Quando em 9 de Março de 1916 a Alemanha se considerou em estado de guerra com Portugal, era segura a incapacidade da marinha para colaborar nas operações navais dos Aliados. Os navios de que dispunha não lhe permitiam essa ambição: no início de 1916, a Esquadra era constituída por quatro cruzadores (dos quais apenas um era merecedor dessa classificação), um aviso, três contratorpedeiros, três torpedeiros da década de 1880 e cerca de duas dezenas de canhoneiras do serviço colonial. Eram unidades de baixo valor militar, insuficientes em quantidade e capacidade para constituir a espinha dorsal da Marinha, navios demasiado pequenos e lentos, que acusavam veterania e cuja artilharia tendia para a obsolescência. Em 15 de Dezembro de 1911, o ministro da Marinha 1 Celestino de Almeida2 discursou na Câmara dos Deputados para defender a proposta de lei na qual o governo apresentava uma “reorganização” da Armada, fez um relato do estado de penúria de meios navais que em que o País se encontrava: “O “Almirante Reis”, o nosso primeiro barco de guerra, o navio de maior importância na nossa esquadra, está há meses fazendo largas reparações […] Temos depois o “S. Gabriel” […] que carece de demorado fabrico […] Temos o “Adamastor”; este navio carece de largo fabrico […] que deverá ser feito em Itália, em Livorno, na fábrica onde foi construído […] Temos o “República […] com três peças de artilharia de armamento principal com avarias […] Temos o “Vasco da Gama”, que é o antigo couraçado guardacostas […] de valor militar quási nulo, sem velocidade […] o “5 de Outubro”, cujo valor militar é nulo, e que apenas pode servir para trabalhos e explorações hidrográficas. A seguir, uma porção de canhoneiras, sem nenhum valor […] nenhuma das nossas unidades navais se encontra actualmente em condições de perfeição relativa […] o mal de que enferma a nossa marinha [fica a dever-se] ao abandôno a que a votou o extinto regime.”

O Ministério da Marinha tinha sido separado das Colónias por lei aprovada na Assembleia Nacional Constituinte em 23 de Agosto de 1911. A apresentação da proposta foi feita à Assembleia pelo deputado António Ladislau Parreira (sendo primeiro-tenente, tinha sido promovido ao novo posto por distinção capitão-de-mar-e-guerra, em Novembro de 1910), que defendeu a autonomização da Marinha argumentando que “Os assuntos das colonias absorvem o tempo a qualquer Ministro […] D´ahi o ficar a Marinha sempre em ultimo logar […] Hoje só Portugal tem o Ministerio da Marinha sujeito ao mesmo titular de outra pasta”. Ver Diário da Assembleia Nacional Constituinte, nº 28 de 23 de Agosto de 1911, pp. 21 e 22. 2 Celestino Germano Pais de Almeida (1964-1922) Ocupou a pasta da Marinha entre 12 de Novembro de 1911 e 16 de Junho de 1912, no ministério de Augusto César Vasconcelos Correia. Era licenciado em medicina e desenvolveu actividade política no campo republicano desde os anos finais do séc. XIX. Militou no Partido Republicano Português, no efêmero “Bloco” (que juntou, em 1911, António José de Almeida, Manuel de Brito Camacho e António Machado Santos, na primeira ruptura interna do PRP), no Partido Evolucionista e depois no Partido Liberal. Foi deputado e senador em diversas legislaturas da república. Foi ainda ministro da Marinha uma segunda vez (21 de Janeiro de a 8 de Março de 1820) e das Colónias em três ocasiões (1911, 1916-1917 e 1921). 1

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Políticos e militares convergiam na convicção que vinha da década anterior de que a Marinha carecia de uma profunda renovação. Neste texto abordaremos as propostas individuais e os planos navais institucionais que ganharam mais notoriedade, referidos ao período que decorreu entre o plano “Jacinto Cândido” e a entrada de Portugal na “guerra europeia”, restringindo o seu âmbito aos navios de maior capacidade militar, que integravam o que podemos designar por “esquadra metropolitana”3. Até ao final do século XIX só podemos falar em planos navais depois de 1851, na vigência do que se usou chamara o regime da Regeneração, dado que a primeira metade do século foi um período de quase permanente agitação política e violência civil e militar. Nestes termos, começaremos por uma breve referência aos planos que foram entrando na História da Marinha como os nomes dos ministros que detinham a pasta ao tempo da sua concepção e concretização. Estes planos foram sendo propostos e debatidos num contexto de grande dinâmica da geopolítica europeia, em que o equilíbrio estabelecido no Congresso de Viena de 1815 foi decisivamente alterado com a guerra franco-prussiana (1870-1871) e a unificação da Alemanha em 1871. A Europa adquiriu assim um novo actor, influente na sua posição geográfica, na sua população e capacidade económica. Ao mesmo tempo que os poderes europeus se adaptavam à nova estrutura geopolítica, a inovação científica e técnica entrava numa nova fase, frequentemente referida como a da Segunda Revolução Industrial, marcada pelo desenvolvimento da indústria química, da produção de aço e do uso da electricidade. O novo contexto político e económico deu lugar a novos olhares europeus sobre África, de que foi espelho o movimento de exploração geográfica no qual Portugal participou, à escala das suas capacidades económicas, a partir da década de 1870. O “princípio da ocupação efectiva” definido na Conferência de Berlim (1884-1885), esteve na origem da redefinição da geografia colonial africana e da entrada em jogo, como novos actores no teatro africano, da Bélgica e da Alemanha, que ocuparam posições em concorrência com Inglaterra, França e Portugal e, mais perifericamente, Itália e Espanha. O Ultimato de 1890 teve um impacto profundo não apenas sobre a evolução da questão africana, mas também no plano político. Pelo meio das manifestações públicas contra a prepotência do velho aliado, a relação de dependência à Inglaterra ficou inalterada, a sua

Alguns destes navios também prestaram alguns períodos de serviço em África, mas deixamos para outra oportunidade o quanto se refere às unidades especialmente destinadas ao serviço colonial. 3

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permanência continuou a constituir um vector da política portuguesa. Quanto ao país vizinho, acentuou-se a sua condição de “inimigo natural”, em particular a partir do abandono do tradicional isolacionismo espanhol e da sua aproximação à Inglaterra definida, por razões de cooperação naval tendo em vista a presença britânica no Mediterrâneo, a partir da ascensão de Afonso XIII ao trono em 1886 4. Finalmente, importa não deixar sem referência o impacto da política expansionista alemã, adoptada pelo imperador Guilherme II a partir da sua ascensão à chefia do Reich em 1888. Alguns dos territórios africanos nos quais se estabeleceu a Alemanha faziam fronteira com Angola e Moçambique e viriam a estar na origem dos conflitos desencadeados com Portugal a partir de 1914, teatro que seria independente do europeu, onde Portugal apenas seria beligerante a partir de 1916. A década final do século XIX também ficou marcada pelo que podemos classificar como uma ruptura no pensamento naval. O livro do então capitão-de-mar-e-guerra Alfred Mahan, editado nos EUA em 1890, depressa atravessou o Atlântico para polarizar os debates sobre a arquitectura das Marinhas que urgia repensar em face da nova situação geopolítica e das alterações técnicas que estavam em pleno desenvolvimento. Todas estas rupturas e alterações de conjunturas tiveram impacto em Portugal e todas elas aconselhavam que o País prestasse mais atenção à renovação de uma Marinha que, pelo início da década de 1890, acentuava o sua obsolescência e via drasticamente reduzida a sua capacidade de influenciar a posição portuguesa tanto no teatro europeu como africano. Sobre os planos navais do período de estudo é necessário dizer que as fontes de arquivo a que acedemos não se mostraram até agora muito generosas, o não significa que as consideremos esgotadas. Este condicionalismo levou-nos a concentrar a nossa pesquisa nas fontes impressas, entre as quais é preciso relevar o Diário do Governo, o Diário da Câmara dos Deputados, os Anais do Clube Militar Naval e as publicações editadas com a chancela da Liga Naval Portuguesa. Foram estas fontes que nos permitiram propor aqui uma revisão dos planos navais do período que decorreu entre a década final da Monarquia Constitucional e o início da Primeira Guerra Mundial, a “Guerra Europeia” como foi então frequentemente designada. De facto a atenção sobre esta questão tem sido mais dirigida para o que (de certo modo abusivamente, em nossa opinião) foi ficando designado como o “plano Pereira da Silva” (1912), deixando na sombra muitas das iniciativas anteriores, designadamente as que tinham anteriormente defendido os mesmos princípios estratégicos e uma semelhante composição do eixo combatente Nuno Severiano Teixeira (Coordenação), “Portugal no Mundo”, A Crise do Liberalismo (1890-1930), Coordenação de Nuno Severiano Teixeira, Fundação MAPFRE, Lisboa, 2014, pp. 93-94. 4

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de uma Marinha renovada. É com este propósito que, depois de uma breve revisão dos planos da segunda metade do séc. XIX, faremos referência às iniciativas de renovação dos meios navais da última década da Monarquia Constitucional e dos anos iniciais da República. Um futuro trabalho adicional sobre as fontes, tanto de arquivo como publicadas, permitirá caminhar no sentido da identificação e análise de outras iniciativas que não nos foi possível acolher neste texto. A aproximação escolhida foi cronológica, que permite uma visão diacrónica sobre as correntes de pensamento naval que, foram debatidas em Portugal. Com a abordagem, ainda que sumária, das conjunturas nacional e internacional, procuramos fornecer elementos para a compreensão dos fundamentos das iniciativas de renovação dos meios navais. Nos casos em que as fontes nos proporcionaram esses factores, fazemos referência aos racionais que estiveram na base do conteúdo das propostas. Mas casos houve em que o silêncio das fontes não permitiu, de momento, ir além de hipóteses, cuja plausibilidade e verosimilhança procuramos todavia garantir. Procuramos assim oferecer um contributo para um melhor conhecimento da Marinha na transição da Monarquia para a República e nas vésperas da “Guerra Europeia”. OS PLANOS NAVAIS DO SÉC. XIX Durante a segunda metade do séc. XIX a Marinha foi objecto de alguns planos de renovação. A sua realização, como quase sempre aconteceu, foi ficando aquém das intenções iniciais, sobretudo em consequência de factores financeiros. Ao mesmo tempo que estes obstáculos se confirmavam como um elemento estrutural, a tecnologia naval evoluiu em duas vagas, provocadas pelas primeira e segunda revolução industrial. As inovações mais notórias deramse nos domínios da estrutura do navio (da madeira para os cascos compósitos e finalmente para os inteiramente metálicos); da propulsão (transição da vela para o vapor e da roda de pás para o hélice); da artilharia (dos projécteis maciços aos explosivos, das peças de carregar pela boca usando pólvoras físicas às peças de carregamento pela culatra usando pólvoras químicas 5, dos canos lisos aos canos estriados e do desenvolvimentos de sistemas de direcção de tiro); dos combustíveis (do carvão para os combustíveis líquidos, mais eficientes, mais seguros e logisticamente mais disponíveis) e, finalmente, do uso da electricidade (na iluminação e na As novas pólvoras químicas, compostos de azoto e celulose, na sua versão mais simples, revelaram-se muito mais eficazes do que as pólvoras “negras”, misturas mecânicas de nitrato de potássio, enxofre e carvão vegetal. A queima das pólvoras nitrocelulósicas (“sem fumo”) passou a proporcionar a produção de um maior volume de gases e temperaturas mais altas que favoreciam a sua expansão, logo de uma muito maior energia. A sua combustão mais lenta e a maior energia libertada permitiram aumentar o comprimento do cano das armas, proporcionando maiores alcance a precisão do tiro. Ver Ferreira Neto e Sara Almada, Glossário de Termos de Armamento, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1997, pp. 303-307. 5

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produção de força e com o início da revolução das comunicações). Em consequência e progressivamente, os navios aumentaram de tamanho, velocidade, autonomia e poder de fogo, tornando-se também muito mais caros quer a construir, quer a operar. Acompanhar a marcha das inovações no plano do conhecimento era uma coisa que estava ao alcance da Marinha, mas já não era possível actualizar os navios existentes nem construir novos navios de acordo com as inovações técnicas que, sobretudo no último quartel do século, fizeram a sua aparição a ritmo muito elevado. Os objectivos e a concepção dos planos navais que, ainda que numa escala limitada, procuraram modernizar o poder naval português entre os meados do séc. XIX e a Primeira Guerra Mundial foram resultado das reflexões e propostas provenientes de diversas origens: comissões nomeadas pela hierarquia, por vezes pelos ministros, e oficiais da Armada que, em grupo ou individualmente, usaram como plataforma o Clube Militar Naval (a partir da sua fundação em 1866) e as páginas dos seus Anais a partir de 1871, a Liga Naval Portuguesa a partir da sua fundação em 1901. A denominação dos sucessivos planos foi consagrada em textos do séc. XX, normalmente associando o plano ao ministro da Marinha que tinha nomeado a comissão para o estudar ou que tinha sido responsável pelo impulso político de que resultou a sua concretização. O plano naval levado a cabo nas décadas de 1850-1860 (consagrado com o nome “Sá da Bandeira-Mendes Leal”) foi o resultado de estudos profundos e demorados, alargados a todas as áreas da Marinha, levados a cabo por uma comissão nomeada pela Câmara dos Deputados entre 1853 e 18566. As propostas da Comissão foram parcialmente concretizadas, levando ao aumento ao efectivo entre 1858 e 1864 de sete corvetas de propulsão mista, as primeiras enquanto conjunto de navios com uma certa coerência tecnológica, pensadas sobretudo para o serviço nos domínios ultramarinos. Foi o último plano baseado nas tecnologias da primeira revolução industrial. As alterações geopolíticas verificadas na Europa como resultado da guerra franco-prussiana, da unificação da Alemanha e da intensificação da “corrida a África”, influenciaram a definição de uma nova aquisição de meios navais. Entre 1871 e 1877, reinava D. Luís I, esteve em funções o mais longo governo da monarquia constitucional. Foi chefiado por António Fontes Pereira de Melo e teve João de Andrade Corvo como ministro da Marinha e Ultramar (1872 a 1877). Do

Para desenvolvimento, ver Fernando David e Silva, O Fim das Naus e a Marinha da transição. Um Inquérito da Câmara dos Deputados (1853-1856), Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2014. 6

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plano que recebeu o seu nome resultou a construção em Inglaterra da corveta-couraçada “Vasco da Gama”. O navio foi pensado no contexto da defesa costeira, do porto de Lisboa em particular e incorporou algumas das inovações da época, pois foi o primeiro navio da Armada Real, de grandes dimensões (tinha cerca de 60 m de comprimento e deslocava cerca de 2.400 toneladas) construído em ferro, dispondo ainda de protecção couraçada na zona da casa das máquinas e de um esporão de proa, uma arma ofensiva relativamente popular no tempo, mas que teve uma vida curta. A sua artilharia – duas peças Krupp de 260 mm e duas de 150 mm – eram de carregar pela culatra, tinha canos estriados e usavam pólvoras físicas. Ainda a coberto do programa “Andrade Corvo” foram aumentadas ao efectivo duas corvetas, três canhoneiras e um navio de transporte. A corveta “Vasco da Gama”, o navio com o mais longo período de vida até hoje (1875-1936), foi sujeita a alterações entre 1901 e 1903, que envolveram o aumento de 11 m no comprimento e de 5 nós (de 10 para 15) na velocidade máxima e a substituição da artilharia. Foi então reclassificado como cruzador.

Corveta-couraçada “Vasco a Gama” (1875-1936). Foi objecto de alterações em 1901903 e reclassificada como cruzador. Está aqui representada com a configuração original (Secção fotográfica do Arquivo Histórico da Marinha, caixa 308, nº 9) O último plano naval concretizado na vigência da monarquia recebeu o nome do ministro Jacinto Cândido da Silva7, que se ocupou da Marinha no governo regenerador de Hintze Ribeiro, Jacinto Cândido da Silva (1857-1926) era jurista e fez uma carreira política próxima dos Regeneradores até que deles se afastou, em 1902, para formar o Partido Nacionalista, de inspiração social cristã (dissolvido em 1910). 7

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no curto intervalo entre Novembro de 1895 a Fevereiro de 1897. Tratou-se, mais uma vez, de um programa limitado mas que procurava resolver o problema de Portugal não dispor então de qualquer navio com capacidade para se envolver numa acção oceânica. Foram assim encomendados quatro cruzadores8 , que se iam adicionar ao “Vasco da Gama” (1886) e ao “Adamastor”, que estava em construção num estaleiro italiano, pago com a subscrição nacional que se seguiu ao Ultimato. Apesar de representarem uma contribuição de algum peso para a capacidade naval portuguesa, os navios mandados construir representavam um conjunto dissonante e desequilibrado. Como assinalou António José Telo, não se compreende qual o pensamento estratégico onde Jacinto Cândido se insere, até porque os cruzadores não satisfaziam por inteiro às missões metropolitanas nem às missões coloniais 9. Os quatro novos navios depressa se tornaram obsoletos, vencidos pela marcha vertiginosa da evolução tecnológica. Os países marítimos continuaram a construir cruzadores, mas de maiores dimensões, com melhores armamento e protecção couraçada e com maiores velocidade e autonomia.

Foi magistrado e funcionário do ministério da Marinha e Ultramar. Com a implantação da República afastou-se da vida pública. 8 Lei de 21 de Maio de 1896. Foram mandados construir em França os cruzadores “S. Gabriel” e “S. Rafael” (que tinham inicialmente destinados os nomes de “D. João de Castro” e “Infante D. Henrique”), o “Rainha D. Amélia” no Arsenal de Marinha e o “D. Carlos I” em Inglaterra. 9 António José Telo, Homens Doutrina e Organização 1824-1974 (Tomo I), História da Marinha Portuguesa, Lisboa, Academia de Marinha, 1999, p. 176.

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Cruzador “D. Carlos I” depois “Almirante Reis” (1898-1925) em fotografia anterior a 1910 (Secção fotográfica do Arquivo Histórico da Marinha, caixa 308, nº 3)

MODELOS ESTRATÉGICOS: “COMMAND OF THE SEA” VS. “JEUNE ÉCOLE” O debate sobre as Marinhas de grandes e pequenos poderes ganhou novo impulso com as contribuições teóricas originadas na publicação em 1889 da obra maior do americano capitãode-mar-e-guerra Alfred Mahan (1840-1914), The Influence of Seapower upon History, secundada dois anos mais tarde pelo livro do almirante inglês Philip Colomb (1831-1899), Naval Warfare: its Ruling Principles and Practice Historically treated. Ambos apoiaram a defesa dos seus princípios em factores de carácter histórico: Mahan recuou à Antiguidade Clássica, à História de Roma de Theodor Mommsen 10 , para reflectir sobre a decisiva importância do poder naval no destino dos Estados, enquanto Colomb retrocedeu ao séc. XVI e à consolidação da Inglaterra como uma potência marítima, condição essencial para a construção e defesa do seu império Isto equivale a dizer que ambos defendiam a existência de uma dinâmica entre a prática anterior, parcialmente deduzida da análise histórica, e a evolução da tecnologia que, no princípio da década de 1890 tinha, como já referimos, incorporado enormes avanços nos domínios da construção estrutural dos navios, propulsão, artilharia, do uso da electricidade e da hidráulica. As ideias em que ambos em grande parte concorriam, sobre a importância do “domínio do mar”, rápida e largamente divulgadas, contribuíram muito consideravelmente para o impulso na construção de couraçados e para usar o número destes navios como uma medida do poder dos Estados 11 . As reflexões de Mahan foram lidas em Portugal 12 e serviram de âncora para os que defendiam que o País devia, em termos de capacidade oceânica, regressar à posição que tinha ocupado no último quartel do séc. XVIII.

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“In its library [Lima, Peru, onde estacionava o navio em que Mahan estava embarcado] was Mommsen’s History of Rome, which I gave myself to reading, especially the Hannibalic episode. It suddenly struck me, whether by some chance phrase of the author I do not know, how different things might have been could Hannibal have invaded Italy by sea, as the Romans often had Africa, instead of by the long land route; or could he, after arrival, have been in free communication with Carthage by water. This clew, once laid hold of, I followed up in the particular instance. It and the general theory already conceived threw on each other reciprocal illustration; and between the two my plan was formed by the time I reached home, in September, 1885. I would investigate coincidently the general history and naval history of the past two centuries, with a view to demonstrating the influence of the events of the one upon the other”. Alfred Thayer Mahan, From Sail to Steam: Recollections of Naval Life, Gloucester, Dodo Press, 1906, p. 225. 11 Jeremy Black, Naval Power, Houndmills/ New York, 2009, p. 141. 12 Para uma análise crítica da obra e do pensamento de Alfred Mahan, bem como da sua repercussão em Portugal ver António Silva Ribeiro, “Mahan e as Marinhas como instrumento político”, Revista Militar, Maio de 2010, pp. 465-483. Ver também, com uma aproximação inovadora, Nuno Sardinha Monteiro, “Mahan em 3 Atos”, Anais do Clube Militar Naval, Vol. CXLIV, Janeiro-Junho 2014, pp. 13-64.

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As novas propostas vieram opor-se aos adeptos da “Jeune École”, corrente francesa com raízes na década de 1820, principalmente nos textos do coronel Henri-Joseph Paixhans, que readquiriu algum fulgor meados de 1870 quando, depois da derrota na guerra com a Prússia e perante os desenvolvimentos da tecnologia naval, preconizava uma Marinha virada para o corso, assente em cruzadores e torpedeiros. Uma força naval com esta espinha dorsal, a que alguns autores atribuíram a desdenhosa designação de “marinha dos fracos”, rejeitava os “navios de linha”, protegidos com espessas couraças (precursores dos grandes couraçados do início do séc. XX) e artilharia de grosso calibre. A influência desta escola atingiu o auge quando o seu fundador, o almirante Théophile Aube, serviu como ministro da Marinha francesa em 1886 13, qualidade em que se apressou a cancelar a encomenda de couraçados, substituindo-os por uma larga quantidade de torpedeiros (para além dos que estavam já em serviço) e pelo “Gymnote”, o primeiro submarino francês. Esta alteração de estratégia tornou-o impopular e encurtou a sua estadia no gabinete governamental. A baixa da popularidade atingiu também a “Jeune École”, com a configuração que tinha até então, e os seus adeptos passaram a apostar nos submersíveis como arma do futuro. Em Portugal, num texto editado em 1902 pela recém-criada Liga Naval Portuguesa, o primeiro-tenente João Baptista Ferreira 14 , manifestava-se da seguinte forma contra os couraçados e a favor dos torpedeiros: “O couraçado de esquadra não julgamos navio que possa entrar na constituição da nossa armada. Um couraçado não poderá ter hoje, menos de 8000 toneladas e o seu custo minimo será de 600.000 libras15 [...] A principal missão destes navios é o ataque, o bloqueio, a manifestação de força, a melhor maneira de lhe inutilisar os seus esforços […] é, sem duvida, a esquadrilha de torpedeiros. Estes tem sobre aquelles, para os paizes pobres, as vantagens de serem baratos, o seu custeio [despesas de operação e manutenção] pequeno, e limitadissimo o seu pessoal. O torpedeiro de 1ª classe poderá custar 30.000 libras”.

Para Baptista Ferreira, a primazia que dava aos torpedeiros explicava-se pelas prioridades segundo as quais ordenava as missões da Marinha: “A primeira missão da nossa marinha será a defeza onde terá um dos principais papeis; a seguir a manutenção da neutralidade, depois a defesa das colónias, a protecção do commercio, a

Lawrence Sondhaus, Navies of Europe 1815-2002, Harlow, 2002, p. 85. João Baptista Ferreira, Couraçados e Torpedeiros, Lisboa, Typographia La Bécarre, 1902. 15 Equivaliam a 2.700 contos. O orçamento de despesas da Marinha para o ano 1903-1904 era cerca de 3.200 contos. A despesa total do estado era de 57.000 contos, dos quais 21.000 eram destinados ao serviço da dívida pública. 13 14

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representação nacional, incluindo a diplomacia”.

A par dos torpedeiros defendia ainda as potencialidades dos submersíveis 16 , o que mais acentuava a sua proximidade com os princípios da “Jeune École”. Em oposição a esta linha de pensamento, colocavam-se os que atribuíam um valor único aos couraçados como “navio-capital”, capaz de decidir o desfecho de combates navais. Esta corrente tinha completa noção dos custos envolvidos nos planos que traçava, mas nem sempre reconheceu que tal aspiração podia ser insuportável pelas sempre debilitadas finanças nacionais. Portugal era um pequeno poder, com a ambição de defender as suas posições coloniais, subordinado à Inglaterra na acção externa e tendo mesmo que confiar na “velha aliança” no que se referia a parte importante da defesa metropolitana e da integridade dos territórios africanos. O País era pobre e tinha dificuldades estruturais graves, mais uma vez demonstradas com a crise financeira de 1891-189217. Esta situação surgia como um factor de desencorajamento ao investimento numa Marinha que tinha que estender as suas missões desde a metrópole europeia às ilhas atlânticas e às colónias, sobretudo as africanas. A falta de dinheiro foi funcionando como argumento favorável aos que optavam por uma esquadra de pequenos torpedeiros e, quanto muito, “destroyers”, em vez de couraçados e cruzadores capazes de tornar Portugal mais autónomo da Inglaterra em termos da sua frente marítima. Mas todos, fossem adeptos das propostas de Alfred Mahan ou das práticas da “Jeune École”, pareciam de acordo em que a Marinha do programa Jacinto Cândido não resolvia as carências nacionais, e que era necessário continuar a procurar soluções para as superar. O CONTEXTO INTERNACIONAL E A CORRIDA AOS ARMAMENTOS NAVAIS: O “TWO POWER STANDARD” E A “RISIKOGEDANKE” A corrida aos armamentos navais dominou a cena político-militar europeia desde os finais da década de 1880, com manifestações paralelas nos EUA e no Japão. O tiro de partida foi dado

Referindo-se ao malogrado projecto do “submarino Fontes”, proposto pelo primeiro-tenente João Fontes Pereira de Melo em 1890, fez a defesa de um “submarino portuguez” com o argumento que “muito mais ganharia o paiz em adoptar uma invenção sua do que ir pagar uma estrangeira”. 17 Nos finais da década de 1880 foram severamente afectadas algumas das principais receitas externas de Portugal: as exportações de vinho, devido à concorrência francesa, as remessas de emigrantes, em resultado da agitação política no Brasil e, de novo, as dificuldades em contrair empréstimos no exterior, devido à falência do principal agente financeiro do Estado em Londres, a Baring Brothers. Cortou-se nos salários dos funcionários públicos, aumentaram-se os impostos, incluindo os impostos sobre os juros da dívida pública comprada por nacionais (em 1/3) e estrangeiros (em 2/3), abandonou-se o padrão-ouro e foi aumentado o proteccionismo nas alfândegas. A economia ressentiu-se da crise financeira: o PIB contraiu 6% entre 1892 e 1893 e teve um crescimento lento e irregular nos anos seguintes. Ver Álvaro Ferreira da Silva, “O processo económico”, A Crise do Liberalismo (18901930), Coordenação de Nuno Severiano Teixeira, Fundação MAPFRE, Lisboa, 2014, pp. 117-157. 16

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com a ascensão ao trono do imperador Guilherme II em 1888. O novo soberano alemão era um reconhecido entusiasta do poder que uma grande marinha conferia aos Estados e tinha, naturalmente, a Inglaterra como modelo, ao mesmo tempo que rival. O imperador estimulou a construção naval, ao mesmo tempo que o desenvolvimento de uma base industrial para a produção de armamento e de protecção couraçada. No entanto, durante a primeira década do seu reinado a evolução da Marinha alemã não seguiu um plano coerente e, nos finais do século, estava ainda longe de poder ombrear com os britânicos 18. A noção de “domínio do mar” proposta por Alfred Mahan influenciou as opiniões de Guilherme II e do almirante Alfred von Tirpitz, o responsável pelo Departamento da Marinha Imperial a partir de 1897. Até ao seu contacto com o pensamento do americano, o imperador era adepto de uma Marinha baseada em cruzadores, que seriam os navios capazes de materializar as ambições coloniais e a presença comercial alemãs; Tirpitz, por seu lado, era um advogado da “Jeune École” que, como já se referiu, colocava o acento tónico nos torpedeiros e nos cruzadores. A evolução de ambos, logo nos meados da década de 1890, foi no sentido de assumir um papel central para a Marinha do Reich e de adoptar o “navio capital” para o núcleo da sua Marinha, aderindo ao “navalismo”, um termo que os autores anglo-saxónicos propõem para definir o poder naval como base do poder do Estado. No entanto, quer o imperador quer Tirpitz, tinham consciência do enorme volume de recursos que seria necessário empregar para levar a marinha alemã ao par com a inglesa. Assim, em finais de 1899 Tirpitz divulgou a sua “Teoria do risco”, na qual defendia uma esquadra marginalmente inferior à Royal Navy, mas suficientemente forte para causar sérios problemas a Inglaterra. Tirpitz movia-se em terrenos politicamente difíceis, em especial no domínio dos altos custos envolvidos na construção da “esquadra de alto-mar” que defendia e iria representar um fardo fiscal significativo para os alemães. Guilherme II, por seu lado, abraçou as renovadas ideias do seu almirante, a quem confiou a responsabilidade de traçar um plano de expansão da esquadra alemã. A marinha alemã cresceu de vinte e um couraçados e vinte e sete cruzadores em 1895, para vinte e nove couraçados e trinta e cinco cruzadores dez anos depois19. A Inglaterra estava preparada, sobretudo a partir do “Naval Defence Act” de 188920, que Lawrence Sondhaus, The Great War at Sea. A naval history of the First World War, Cambridge, Cambridge University Press, 2014. 19 Robert Gardiner (direcção editorial), Conway´s all the World´s Fighting Ships (1860-1905), Londres, 1979, pp. 240-241. 20 A lei aprovou a construção de 70 navios para a Royal Navy, com um custo global de 21 milhões de libras (94.500 contos ao câmbio do ano). 18

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consagrou o “two power standard” como a medida da superioridade britânica no mar, estipulando que a capacidade da Royal Navy deveria corresponder, pelo menos, uma capacidade correspondente ao total das duas potências navais que se lhe seguissem, que eram então a França e a Rússia21. A lei do parlamento definiu a construção de setenta navios, com um orçamento total de 21,5 milhões de libras (137,6 mil contos, ao câmbio do ano). Ainda com uma situação estratégica relativamente indefinida no que se referia às relações entre a Inglaterra, França, Rússia e Alemanha, prosseguiram os esforços de aumento da capacidade das marinha, crescendo os navios em tonelagem, poder de fogo e elementos tecnológicos que os tornavam mais rápidos e com uma artilharia mais capaz de infligir damos ao inimigo. Este impulso iria colocar-se como ponto de partida para o marco que constituiu a entrada ao serviço de um novo tipo de navio, o “dreadnought”. Nos primeiros tempos da expansão da esquadra alemã o almirante Sir John “Jackie” Fisher, “First Sea Lord”22 entre 1904 e 1910, não tinha ficado muito impressionado: durante o último meio-século os inimigos da Inglaterra no mar tinham sido a França e a Rússia, pelo que considerou inicialmente que não pareciam existir razões suficientes para promover grandes mudanças. Nos princípios da década de 1890 Fisher, quando era o Terceiro Lorde do Almirantado, encarregado de dirigir a aquisição do material naval, tinha sido responsável pela introdução de um novo tipo de navio, o “destroyer” (inicialmente designado por “torpedo boat destroyer”), uma arma contra os torpedeiros, que conheciam então um certo apogeu na sua disseminação pelas marinhas continentais. O seu percurso de inovador e a clara percepção que foi adquirindo quanto ao problema que a expansão naval alemã representava, levou-o a promover a construção (Outubro de 1905 a Dezembro de 1906) do HMS ”Dreadnought”, que deslocava 18 mil toneladas, com turbinas que lhe imprimiam uma velocidade máxima de 21 nós e estava armado com 10 peças de 305 mm (foi o primeiro da era dos “all-big-gun”). Estes valores podem ser comparados com um dos últimos couraçados construídos com as características correntes até então: o “Lord Nelson”, lançado à água em 1905, deslocava 16 mil toneladas, atingia uma velocidade máxima de 18 nós e tinha 4 peças de 305 mm, passando a pertencer à categoria dos pré-dreadnoughts. Ao mesmo tempo que este poderoso navio fazia a sua entrada em cena, alterou-se o panorama das ameaças a Inglaterra: por um lado, a guerra russo-japonesa de 1904-1905 tinha Na verdade, o princípio tinha sido formulado em 1817, logo que instalada a ordem de Viena e fez doutrina ao longo de todo o séc. XIX. Ver Fernando David e Silva, ob. cit., pp. 97-99. 22 O “First Sea Lord” era o almirante responsável por todo o sector militar da Marinha, respondendo perante o poder político através do seu representante, o “First Lord of the Admiralty”. 21

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destruído uma grande parte da esquadra russa e, por outro, o entendimento anglo-francês de 1907, tinham como que tirado Rússia e França da rota de colisão com a Inglaterra. Restava assim a esquadra alemã como a única capaz de desafiar os britânicos no mar e, entre 1906 e 1912, assistiu-se a uma competição relativamente equilibrada (embora com vantagem inglesa) na construção de couraçados: 29 contra 17 da Alemanha à custa, naqueles seis anos, da passagem para o dobro do orçamento naval alemão e do aumento de 40% do equivalente inglês23. No início da guerra o ordenamento das marinhas de primeira ordem, avaliado pelo número de grandes navios de combate (couraçados “dreadnought” + couraçados “prédreadnought” + cruzadores de batalha) era o seguinte: Inglaterra – 37+40+12; Alemanha – 19+28+7; EUA – 17+24+20; Japão- 9+6+7; França 7+17+024. Os efeitos da corrida aos armamentos navais 25 constituíram um factor de preocupação nos meios da Marinha portuguesa, em face da repetida incapacidade do poder político em concretizar um plano naval coerente, exequível e ajustado à defesa dos interesses nacionais. Este desconforto, agravado ao longo dos anos, manifestou-se de uma forma curiosa e desalentada num curto artigo publicado nos Anais do Clube Militar Naval em 191026, intitulado “Necessidade de restrição nos armamentos navais”, no qual o autor começava por considerar “assustador o enorme aumento nas tonelagens dos navios de combate, e consequentemente augmento nos seus armamentos e complexo numero de machinismos a fazer funcionar”27. Usando como ponto de partida a entrada em serviço do HMS “Dreadnought” e dos três couraçados idênticos que se lhe seguiram, o capitão-tenente Pacheco Moreira recordou as respostas alemã, francesa, americana e a das potências que se seguiam, Itália, Rússia, Japão, Espanha, Áustria, Japão e Brasil. Todos estes países tinham grandes couraçados em construção ou planos para os construir a curto prazo: “N´este crescendo pasmoso, é certo que cada nação procura assegurar a sua existencia primacial, mantendo a paz armada, mas á custa de quantos milhões sterlinos?”. A sua principal preocupação eram os “paises pequenos, a quem não se pode negar o direito de defenderem os seus territorios [que se veriam] na necessidade de se

John H. Maurer, “The Anglo-German naval rivalry and informal arms control, 1912-1914”, Journal of Conflict Resolution, Volume 36, nº 2, Junho de 1992, p. 284. 24 Compilado de Jane´s Fighting Ships of World War I, Londres, Studio Edition, 1990 [1ª edição – Jane´s Publishing Company, 1919]. 25 Para desenvolvimento ver António José Telo, ob. cit., pp. 207-211. 26 Capitão-tenente Pacheco Moreira, “Necessidade de restrição nos armamentos navaes”, Anais do Clube Militar Naval, Vol. XLI, Fevereiro 1910, nº 2, pp. 82-86. 27 Curiosamente, Inglaterra e Alemanha desenvolveram iniciativas, a partir de 1912, para procurarem atenuar a intensidade da corrida aos armamentos navais, no quadro de uma tentativa de melhoria das relações bilaterais. Ver John H. Maurer, ob. cit., pp. 286-291. 23

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collocarem á sombra de qualquer d´essas grandes potencias […] sujeitas a todas as contingencias que uma conflagração extranha lhes possa acarretar”. A solução, adiantou, seria a restrição dos armamentos navais que se constituiria no grande nivelador do poder dos Estados no mar, aliviando o contribuinte dos custos tremendos que representava o prosseguimento da corrida à construção dos novos “navios capitaes”. Defendeu, por fim, a sua posição com o argumento que “assistimos com dôr ao conhecimento dos novos Dreadnoughts, não porque nos não admirem essas maravilhas da construcção naval, mas sim porque cada um que apparece mais minuscula e critica torna a nossa desoladora situação perante as demais nações”.

O romantismo que atravessa as passagens mais fortes do pequeno texto reflecte, enfim, o reconhecimento da incapacidade portuguesa em sair dos ciclos labirínticos dos sucessivos fracassos de propostas e planos de “reorganização da esquadra”. O CONSELHO SUPERIOR DA MARINHA E A “ESQUADRA-FORTALEZA” EM 1898 O plano “Jacinto Cândido” tinha dotado a Marinha com quatro novos cruzadores, que completaram uma força de seis quando se adicionavam à corveta-couraçada “Vasco da Gama” (então já com mais de vinte anos) e ao “Adamastor”, construído com parte da subscrição pública subsequente ao Ultimato (ainda que só tenha sido lançado ao mar em 1897). É bom, no entanto, voltar a sublinhar a heterogeneidade e fraca capacidade deste conjunto de navios, dos quais só o “D. Carlos I” viria a ser digno da classificação de cruzador. É neste contexto que, logo nos princípios de 1898, encontramos o Conselho Superior da Marinha28 a ocupar-se de uma nova proposta de composição e organização das forças navais, cuja origem não foi possível determinar, cujo relatório aprovou em Junho daquele ano 29. Desta proposta apenas conhecemos um mapa que enumera os navios e os agrupa de modo a definir o que hoje designaríamos por dispositivo naval para o continente e ilhas adjacentes (de que nos ocuparemos de seguida) e para o ultramar. O racional por detrás desta iniciativa não apresenta novidades relativamente aos planos navais anteriores. A sua natureza era defensiva30, correspondendo ao conceito de “esquadraEra constituído pelos vice-almirantes Rodrigo Teixeira Pinha, Manuel Ferreira Marques e conde de Paço d´Arcos (Carlos Eugénio Corrêa da Silva). 29 Actas do Conselho Superior da Marinha 1898-1906, Arquivo Histórico da Marinha, Núcleo 224, nº 430. Não encontramos o relatório mencionado nas actas, apenas o “Mapa demonstrativo do material preciso para a guarda e defesa do continente e ultramar”, ibid.. 30 Corresponde ao conceito de “esquadra-fortaleza”, constituída por pequenos agrupamentos navais com pequeno raio de acção e comando muito centralizado, destinados a preservar cidades, portos e acessos. Foi um conceito debatido por Alfred Mahan. Ver Alan Wetcott (editor), Mahan on Naval Warfare. Selections from the writings of 28

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fortaleza”, constituída por pequenos agrupamentos navais com pequeno raio de acção e comando muito centralizado, destinados a preservar cidades, portos e acessos. Previa, em primeiro lugar, a “defesa da barra de Lisboa”, que seria assegurada por dois couraçados guardacostas (um dos quais o existente “Vasco da Gama”), um contratorpedeiro de 350 toneladas e quatro pequenos torpedeiros de 66 toneladas. Estes “couraçados” eram assim os “monitores” do seu tempo, navios bem armados, destinados a passar grande parte do tempo fundeados. Ao contratorpedeiro e aos torpedeiros, deduzimos, competiriam a patrulha das aproximações a Lisboa e o primeiro ataque a qualquer ameaça que se aproximasse. Como força de “reserva” deveriam existir dois cruzadores ”tipo S. Gabriel” (idênticos aos que estavam em construção e entrariam ao serviço em 1900), um cruzador do tipo “Katoomba” 31 , duas corvetas do tipo “Afonso de Albuquerque” 32 e diversos torpedeiros e canhoneiras. Ao segundo agrupamento caberiam as missões de “Divisão de defesa do continente e ilhas adjacentes”. A sua composição reflecte as necessidades de patrulha, reconhecimentos e protecção das linhas de comunicação com Açores e Madeira, a garantir com os cruzadores “D. Carlos” (já existente) e “D. Amélia” (em construção no Arsenal), outros dois do tipo “Katoomba”, um aviso quatro contratorpedeiros. Para operação e comunicações no ultramar, que referimos muito sumariamente, a proposta incluía mais de seis dezenas de canhoneiras e lanchas-canhoneiras33. AS PROPOSTAS DE ANTÓNIO PEREIRA DE MATTOS Em 1897, num seu extenso estudo sobre a Marinha de Guerra, o jovem segundo-tenente Pereira de Mattos34 propôs um racional de missões repartido por “Defesa do reino”, “Defesa das ilhas adjacentes”, “Defesa das colonias” e “Corso”, que pretendia preencher com um total de 224 navios, entre os quais 19 couraçados (entre 2.300 e 7.000 toneladas), 34 cruzadores protegidos, 143 torpedeiros e 30 canhoneiras. “Chegamos a um numero enorme”, escreveu o autor que, no entanto, considerou justificável perante a extensão das costas portuguesas e “o

Rear Admiral Alfred Thayer Mahan, Boston, Little Brown and Company, 1918, pp. 258-275. 31 Refere-se ao HMS “Katoomba”, um cruzador da classe “Pearl”, construído em 1888-1889, com cerca de 2.800 toneladas, dotado de 8 peças de 120 mm. Ver Robert Gardiner (direcção editorial), Conway´s all the World´s Fighting Ships (1860-1905), Londres, 1979, p. 82. 32 Uma corveta mista (1884-1909) que deslocava 1.100 toneladas e tinha 2 peças de 150 mm e cinco de 120 mm. 33 Ver António José Telo, ob. cit., pp. 224-225. 34 A. Pereira de Mattos, A Marinha de Guerra. Estudo, Porto, Magalhães e Moniz Editores, 1897. António Alves Pereira de Mattos Júnior nasceu em 1874, passando à reforma em finais de 1915 no posto de capitão-tenente. Morreu em 1930.

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papel preponderante que deve ter a marinha no desenvolvimento da nação”. Acrescentava depois uma previsão dos custos com a aquisição de uma tão poderosa esquadra: 63.500 contos, valor que pode ser aferido com os 52.000 contos da receita executada no orçamento de 18971898 35 . A par desta visão grandiosa, o jovem António Pereira de Mattos não descurava a importância dos torpedeiros enquanto instrumento defensivo, o que é claramente visível na quantidade deste tipo de navios que fazem parte da sua proposta, escrevendo, a propósito: “O augmento da nossa flotilha de torpedeiros, reduzida actualmnte a quatro barcos de modelos já antiquados, impõe-se d´um modo imperioso como necessario à defeza de Lisboa”36

António Pereira de Mattos foi um autor fecundo, com alguns textos de grande extensão sobre a reorganização e a renovação dos meios navais. Tinha para a Marinha uma visão de centralidade no poder nacional, visão que transportou para a Liga Naval Portuguesa, que ajudou a criar em 190137 e de que foi secretário-perpétuo, pelo menos até à sua passagem à reforma em Dezembro de 1915. Em 1897, quando escreveu o seu livro, encontramo-lo alinhado com a posição que em 1898 seria adoptada pelo Conselho Superior da Marinha, que abordamos na passagem anterior. A conclusão do seu livro de 1897 coincidiu com a concretização do “plano Jacinto Cândido”, pelo que foi ainda a tempo de redigir um apêndice com essa referência, que lhe permitiu terminá-lo em tom de optimismo: “nos ultimos meses [tem-se] trabalhado com afan para o rejuvenescimento da armada, o que registamos com verdadeiro jubilo. Mal imaginavamos ao escrever as ultimas paginas que precedem este appendice, que pouco depois se operaria de subito nas coisas da marinha, o importante movimento que rapidamente descrevemos […] não podemos deixar de saudar, com enthusiasmo, os bellos dias em que a marinha começa a levantar-se”38.

Nuno Valério (coordenador), Os orçamentos no parlamento português, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2006, p. 249. 36 Id., ibid., p. 578. 37 Os estatutos fundadores da Liga foram publicados em decreto de 17 de Janeiro de 1901, dando continuidade à iniciativa tomada por um pequeno grupo de sócios do Clube Militar Naval em 27 de Abril de 1900. A Liga Naval tinha como fins “promover por todos os meios possiveis, sob a alta protecção de Sua Majestade El-Rei, seu presidente, o ressurgimento e progresso da marinha mercante e militar portuguesa”. 38 A. Pereira de Mattos, A Marinha de Guerra […], p. 579. 35

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António Alves Pereira de Mattos Júnior (1874-1930) em fotografia de 1916. Foi “secretário-geral perpétuo” da Liga Naval Portuguesa entre a sua criação em 1901 e a passagem à reforma em 1916 (Arquivo Histórico da Marinha, álbum 8, nº 1514) Cerca de uma década mais tarde, em 1908, primeiro-tenente e já com um largo acervo de textos publicados sobre a Armada, a marinha mercante, as pescas e a problemática colonial, deu à estampa, desta vez com chancela da Liga Naval, uma nova obra de grande fôlego intitulada O problema naval portuguez39. Neste seu regresso à reflexão sobre questões de estratégia naval, reforçou a sua oposição ao que chamou a “mania do torpedeiro” e, invocando o seu insucesso na guerra russo-japonesa de 1904-1905, chegou a classificar os que ainda defendiam este tipo de navio, como estando vinculados às “Pueris illusões da jeune école!”. As propostas de Pereira de Mattos em 1910 não abandonam as intenções de aquisição de novos e poderosos navios, que já tinham marcado o seu primeiro grande estudo de treze anos antes. No entanto foi agora um pouco mais moderado, e no programa que propôs em O problema naval […] englobou, no que se refere ao núcleo combatente da Armada, a “Esquadra do Atlântico”, três divisões de 4 couraçados, 1 “explorador” e 4 “destroyers” cada uma. Tal como no seu estudo inicial, reconheceu que se tratava de um plano “grandioso”, considerando desta vez, anos passados sobre o seu entusiasmo de 1897, que a sua concretização, ainda que faseada “demanda uma energia pouco adaptavel ao feitio nacional [da terceira parte do programa] quasi

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A. Pereira de Mattos, O problema naval portuguez, 2 volumes., Porto, Typographia Pereira, 1908.

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não é bom fallar! Poderia realisal-a uma forte vontade collectiva […] Uma energia de aço, como a dos anglo-saxões, ou uma segura e methodica tenacidade, como a dos allemães”.

O PLANO DE MANUEL RAFAEL GORJÃO PARA A “RECONSTITUIÇÃO DA ARMADA” O general-de-brigada Manuel Rafael Gorjão Henriques, um experimentado administrador colonial, foi ministro da Marinha e Ultramar entre Fevereiro de 1903 e Outubro de 1904, no governo de Hintze Ribeiro. No seu segundo ano no cargo, nomeou uma comissão de onze membros para “formular um plano de reconstituição da marinha de guerra [… que] assegure tanto quanto possivel a defesa maritima da metropole e attenda aos serviços de policia nos rios e mares das nossas colonias [...]”40.

A comissão, que tinha à cabeça os contra-almirantes Cipriano de Andrade, Francisco Ferreira do Amaral e Luís Moraes e Sousa, apresentou as suas conclusões a tempo de, logo em Julho seguinte, ter sido determinada a audição do Conselho Superior da Marinha para se pronunciar sobre a proposta. Curiosamente dois dos membros deste órgão tinham também sido membros da comissão designada pelo ministro, os almirantes Lopes de Andrade e Ferreira do Amaral. Ainda que concordando que o núcleo combatente da Esquadra deveria ser composto por couraçados, o tipo de navio mais favorecido no debate travado nos anos anteriores, o Conselho não conseguiu chegar a um parecer unânime quanto à dimensão desses “navios capitaes”41. O contra-almirante Guilherme Brito Capelo alegou que, por um lado, Portugal não podia aspirar ao “domínio dos mares” e que, por outro, os 16 mil contos atribuídos ao programa 42 não seriam suficientes para os dois couraçados propostos pela comissão. Não abandonando a opção por aquele tipo de navio, que uma larga maioria considerava indispensáveis, acabou por vingar a objecção de Capelo. Com o seu voto, o almirante Ferreira do Amaral fez maioria no Conselho para uma opção final por dois couraçados de 9.600 toneladas, ainda que com armamento inferior ao que tinha recomendado a comissão, e seis destroyers.

Três contra-almirantes e dois membros de cada um dos postos até primeiro-tenente. Ver Diário do Governo, nº 105 de 13 de Maio de 1904, p. 1710. 41 Actas do Conselho Superior da Marinha 1898-1906, Acta nº 23 de 21 de Julho de 1905, Arquivo Histórico da Marinha, Núcleo 224, nº 430, 42 O orçamento para o ano económico 1905-1906 previa receitas totais do Estado de pouco mais de 61 mil contos. 40

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A substituição em Outubro de 1904 do general Rafael Gorjão na pasta da Marinha 43, na sequência da rotação do ministério para a chefia do progressista José Luciano de Castro e as eleições de Fevereiro de 1905 devem ter arrefecido o entusiasmo pelo novo plano naval que, também ele, não passou do papel. AYRES D´ORNELLAS E A PRIORIDADE AFRICANA Em 1909 Ayres d´Ornellas publicou O problema naval portuguez44. O oficial do Exército e político, que no ano anterior tinha abandonado a pasta da Marinha, recuperava para o seu livro as propostas que tinha apresentado à Câmara dos Deputados em 5 de Fevereiro de 1907, nas quais preconizava uma Marinha separada em duas componentes. Uma componente destinavase à defesa das colónias, dependente dos governadores provinciais e coloniais 45, contando com cerca de 400 efectivos em “navios adaptados ás condições do clima, e, portanto, muito mais hygienicos”. Esta Marinha Colonial46 deveria ser composta por canhoneiras a construir e por três dos cruzadores existentes: o “S. Rafael” (1900-1911), o “São Gabriel” (1900-1925) e o “Adamastor” (1897-1932) “mais economicos no consumo de combustivel, ficariam destinados ao serviço de representação nacional no ultramar, por meio de cruzeiros de fórma que estivessem sempre fóra dos mares continentaes”47.

A proposta não foi bem recebida na Câmara, admitimos que mais por razões políticas do que técnicas. Com efeito, o que mais perturbou alguns deputados terá sido a proposta de criação de uma Marinha exclusiva do serviço colonial, a par de uma outra dedicada à defesa metropolitana. As acusações foram pois as de que o ministro pretenderia criar duas marinhas. No entanto o tempo passou e foi a República que, em 1912, acabou por criar a Marinha Colonial, que iria sobreviver organicamente até 192648.

Foi substituído por Manuel António Moreira Júnior, o “Moreirinha”, político progressista. Ayres d´Ornellas, O problema naval portuguez – alguns elementos para a sua resolução, Lisboa, Typ. do Anuário Commercial, 1909. Ayres d´Ornellas e Vasconcelos (1866-1930) foi ministro da Marinha e Ultramar (Maio de 1906 – Fevereiro de 1908) no ministério regenerador-liberal de João Franco. Foi oficial do Exército (era tenentecoronel quando tutelou a Marinha) e publicista; participou nas campanhas em Moçambique na década de 1890, sendo depois governador daquela colónia. Abandonou o Exército na sequência do regicídio, foi lugar-tenente de D. Manuel II no exílio e liderou em Lisboa a revolta de apoio à “Monarquia do Norte” (1919). 45 “Não há necessidade de outro commando em chefe da marinha colonial além d´aquelle que é conferido aos governadores das possessões ultramarinas”. Id., ibid., p. 23. 46 A constituição de uma Marinha Colonial já tinha sido proposta, designadamente pelo segundo-tenente Pereira de Matos, no Congresso Marítimo de 1902, promovido pela recém- constituída Liga Naval Portuguesa: A Marinha Colonial, Lisboa, Typ. da Companhia Nacional, 1902. 47 Ayres d´Ornellas, ob. cit., p. 40. Deixava para o serviço metropolitano o cruzador “Vasco da Gama”, para fins de defesa costeira, e o “D. Carlos”, o único cruzador ainda digno dessa classificação. 48 Decreto de 10 de Julho do ministério das Colónias. Caberia à Ditadura extingui-la, através do decerto nº 12694, de 19 de Novembro de 1926, argumentando que ”a experiência anterior demonstrou nenhumas vantagens práticas 43 44

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Por outro lado, a Marinha que deveria assegurar a defesa metropolitana, que devia ser dotada de dois contratorpedeiros de 300 toneladas, seis torpedeiros de 150 toneladas e dois submersíveis do tipo “Holland”49, todos a mandar construir 50. Os cruzadores “D. Carlos” (18991925, depois “Almirante Reis”), “Vasco da Gama” (1876-1936) e “D. Amélia” (1899-1915, depois “República”) constituiriam uma Divisão Naval de Instrução, que deveria estar em situação de armamento completo pelo período mínimo de seis meses em cada ano. O plano também envolvia como elemento de importância fundamental (o que não era uma novidade), a construção de uma base para as operações da Marinha na margem sul do Tejo e de um novo Arsenal na zona da Margueira 51. Do ponto de vista do racional estratégico, ainda que não abandonando a hipótese de Portugal vir a dispor de uma “esquadra de mar”, a proposta de Ayres de Ornelas pode ser basicamente inscrita na “Jeune École”, corrente que na altura já tinha perdido qualquer tipo de fulgor, perante as novas tendências do rearmamento naval. Percebe-se que Ayres d´Ornellas tinha o objectivo de organizar uma Marinha equilibrada mas separada nas suas frentes metropolitana e colonial, integral nas suas componentes operacional e de apoio, com grandes preocupações de natureza económica. Tratava-se, no entanto, de um plano naval modesto em termos de unidades navais, que se apoiava sobretudo nos navios já existentes que, ao tempo, acusavam já o peso dos anos, sobretudo em termos de desfasamento tecnológico. As propostas de Ayres d´Ornellas foram, deste modo, objecto de juízo negativo por parte dos adeptos de uma Marinha com capacidade ofensiva. O primeiro-tenente Fernando Pereira da Silva52 fez-se eco daquelas críticas, nas páginas dos Anais do Clube Militar Naval numa recensão da obra publicada em 1909 pelo antigo ministro da Marinha. As discordâncias centravam-se na opção de Ornellas por uma esquadra sem couraçados: “Deixemo-nos pois de utopias […] Sem couraçados não há esquadras, e sem espirito offensivo não há tactica nem estrategia que prestem.” Pereira da Silva aproveitava o mesmo texto para lançar a maior parcela

terem resultado, tanto para a metrópole como para as colónias, da existência de uma marinha colonial”. 49 O submersível inicialmente saído do risco do anglo-americano John Philip Holland em 1876 conheceu sucessivos aperfeiçoamentos até que o projecto foi adquirido pelo governo americano. Foi a primeira classe de submarinos ingleses. O “Holland”, construído em 1901. Tinha 21 m de comprimento, 6 nós de velocidade máxima em imersão (7 nós à superfície) e um tubo lança-torpedos de 460 mm. 50 Estimava para cada contratorpedeiro um custo de 220 contos, para cada torpedeiro 110 contos e para cada submarino 200 contos. As dez novas unidades navais do seu plano teriam pois um custo total de 1.500 contos, valor que, segundo a sua proposta de lei, poderia ser total ou parcialmente obtido através de um empréstimo a dezoito anos, com um juro máximo de 4,5%. 51 A ideia desta transferência também já não era nova, podendo ser remetida aos primeiros anos da década de 1870. A inauguração do novo estaleiro da Armada, o Arsenal do Alfeite, apenas se concretizou em 1938. 52 Fernando Augusto Pereira da Silva (1871-1943).

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das culpas pelo “estado precario em que a armada actualmente se encontra” sobre os “homens publicos [que dissertavam] sobre a “marinha de guerra nacional [quase sempre com] falsas concepções […] tão erroneos os objectivos fixados, que é deveras para lastimar [...]”.

Em 1910, numa tese apresentada ao Congresso Marítimo Nacional53, realizado em Junho sob os auspícios da Liga Naval Portuguesa, o mesmo Pereira da Silva voltou a exprimir o seu pensamento com clareza, reafirmando que Portugal não tinha capacidade para começar a reconstruir a sua Marinha pelos couraçados, escrevendo mesmo “não podemos manter o senhorio do mar, problema que compete á esquadra britannica, e é escusado desenvolver, só nos resta a cooperação com ella. E já não é pouco.”

Os tempos corriam de feição ao abandono das esquadras baseadas em pequenos navios, como era o caso dos torpedeiros e mesmo dos cruzadores de tipologia mais modesta, aptos para uma guerra de corso, mas não para o “domínio do mar” que Mahan tinha preconizado como o fim último dos Estados marítimos que pretendiam ter uma palavra a dizer na que se revelaria a última etapa do período da “Paz armada”54. No entanto começava também a fazer-se sentir o peso do factor financeiro como grande delimitador das ambições navais. O PRIMEIRO-TENENTE NUNES RIBEIRO E A QUESTÃO ORÇAMENTAL As propostas do então segundo-tenente Nunes Ribeiro 55 para a reorganização e renovação da Marinha foram já objecto de um bem documentado estudo anterior56, que dispensa que aqui nos alonguemos para além das referências que consideramos indispensáveis e sem as quais ficaria uma significativa lacuna por preencher. Nunes Ribeiro, que seria membro da “grande comissão” nomeada pela República logo em Outubro de 1910, apresentou a sua visão sobre a desejável evolução da Marinha numa conferência que proferiu em 2 de Junho de 1908 na sede da Liga Naval Portuguesa57, da qual nos vamos também aqui ocupar, ainda que com brevidade. Não tendo sido o único texto da época a centrar as suas preocupações na questão do Ayres d´Ornellas, Política Marítima Nacional, Conferência realizada na sede da Liga Naval Portuguesa, Lisboa, Centro Typographico Colonial, 1910, pp. 57-58. 54 Expressão usada por alguns autores para caracterizar o período que decorreu ente a guerra franco-prussiana (1870-1871) e a Primeira Guerra Mundial. 55 Álvaro Augusto Manuel Nunes Ribeiro (1878-1933) 56 Carlos Valentim, “O plano naval do comandante Álvaro Nunes Ribeiro”, XIII Colóquio Portugal Militar. Da Regeneração à Paz de Versailles. Actas, Lisboa, 10 a 12 de Novembro de 2003, pp. 159-198 57 Álvaro A. N. Ribeiro, “A marinha de guerra e orçamento”, Conferência realisada na séde da Liga Naval Portuguesa em 2 de Junho de 1908, Lisboa, Typographia do Annuario Commercial, 1908. 53

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financiamento da aquisição de novos meios navais, até na medida em que muitas das propostas individuais então lançadas para o debate incluíam previsões de custos, formas de financiamento e prazos de realização, o jovem Nunes Ribeiro – tinha então trinta anos – apresentou argumentos em favor da viabilidade orçamental de um investimento significativo na renovação da Esquadra. Começando por apontar a Inglaterra e a Alemanha como exemplo positivo de países onde “o sentimento marítimo suplanta qualquer outro sentimento nacional, constituindo a sua maior energia” referiu, ao contrário, que a “Hespanha [...] depois de derrotada em 1898 pelos EstadosUnidos, lamentou a sua derrota e verberou o seu exercito e a sua marinha, porque até ao ultimo momento esteve convencida da sua superioridade sobre os americanos”58. Nunes Ribeiro invocou, de seguida, a autoridade do marechal prussiano e estrategista von der Goltz59, para defender o primado da “política” na orientação da “organização das forças militares e maritimas” e, por fim, para defender o investimento na Armada, recordando que a Espanha, o “inimigo natural” de Portugal, tinha acabado de votar um valor superior a 35 mil contos para renovação do seu material naval. Relativamente à questão central da sua conferência, o orçamento da Marinha, argumentou que “em vez de 6% da receita geral, fosse augmentado em mais 3,8% d´essa receita, ficavamos com percentagem igual á da Hollanda (e o nosso orçamento passaria a ser de 6.497:400$000 réis, dos quais 2.398:400$000 réis permittiriam realisar o programma naval de que carecemos”.

O desenvolvimento do seu raciocínio foi feito de forma minuciosa e cuidadosamente justificada quanto às diferentes parcelas dos custos de aquisição das novas unidades e aos seus custos de operação, segundo uma linha semelhante à que será adoptada por Pereira da Silva um ano mais tarde em O Nosso Plano Naval. Com base no que entendia ser um racional financeiro exequível para a composição da Esquadra, a proposta do segundo-tenente Álvaro Nunes Ribeiro apontou para três couraçados de 15 mil toneladas, nove destroyers e vinte e quatro torpedeiros, considerando ainda a permanência em serviço dos cinco cruzadores existentes. O PRIMEIRO-TENENTE PEREIRA DA SILVA E O SEU COMBATE PELA RENOVAÇÃO DA MARINHA Muito já foi escrito sobre o pensamento naval de Fernando Augusto Pereira da Silva, fazendo justiça a uma carreira devotada à importância e consequente papel de relevo que o Isentando de responsabilidades “os technicos, tendo a sua frente o almirante Cervera” que advertiu os políticos de que a guerra “conduzia a Hespanha a um desastre certo, e a uma paz humilhante”. Ver id., ibid., p. 13. 59 Colmar Freiherr von der Goltz (1843-1916), foi também escritor e historiador militar. 58

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poder naval deveria preencher na estratégia nacional. Esta circunstância torna pois dispensável regressar a dados biográficos e de carreira que nada acrescentariam ao que tem sido publicado. Apesar disso, um texto desta natureza ficaria de todo incompleto sem algumas indispensáveis, ainda que muito sumárias referências, ao papel que o futuro almirante Pereira da Silva desempenhou na defesa da importância do poder naval para Portugal e na sua materialização numa esquadra de capacidade adequada. Coerente na sua forma de transpor para a realidade portuguesa a evolução que se observava nas esquadras dos principais países europeus (bem como dos EUA e do Japão) na fase da “paz armada” que precedeu a I Guerra Mundial, no que foi acompanhado por muitos outros jovens oficiais, não encontrou então condições estruturais, perante a fragilidade económica e financeira do País, nem tampouco condições políticas para ver vingar as suas propostas.

Fernando Augusto Pereira da Silva (1871-1943), futuro contra-almirante (1935) aqui representado no posto de segundo-tenente, c. 1903 (Arquivo Histórico da Marinha, álbum 2, nº 125) Em 1909, fazendo parte da colecção “Bibliotheca da Liga Naval Portugueza”, o jovem primeiro-tenente Fernando Pereira da Silva publicou um volume no qual condensou o seu pensamento. O Nosso Plano Naval foi um texto da cariz declaradamente “mahanista”, no qual defendeu, em muito breve resenha, o valor essencial das marinhas com capacidade ofensiva, que considerava as únicas eficazes “quer para as nações que pretendam conquistar o dominio do mar, para invadir o paiz inimigo pela sua fronteira do litoral, ou aniquilar o commercio -24-

maritimo adverso; quer para as que desejem manter esse dominio, para evitar aquellas agressões”. Foi com base neste princípio que então deduziu a composição e organização das forças navais que teriam couraçados como núcleo, complementado por cruzadores, contratorpedeiros e submersíveis. Depois de 1909 e até à entrada de Portugal na Guerra, Pereira da Silva continuou a publicar, reflectindo consistentemente o mesmo pensamento: para ser autónomo na sua defesa, mas sem que tal significasse abandonar as ligações da Aliança luso-britânica, para se afirmar na cena internacional e assim defender os seus interesses domésticos e coloniais, Portugal precisava de uma Marinha forte, ainda que ajustada às dimensões e às capacidades financeiras nacionais. Como veremos e é aliás bem conhecido, Pereira da Silva iria participar na derradeira tentativa de dotar Portugal de uma Marinha capaz de preparar o País para a “Guerra Europeia” que era já inevitável. JOÃO DE AZEVEDO COUTINHO E O ÚLTIMO PLANO DA MONARQUIA Já no último ano da Monarquia, o ministro da Marinha capitão-de-fragata João de Azevedo Coutinho60, apresentou à Câmara dos Deputados na sua sessão de 8 de Junho de 191061, um plano muito completo de reformas a realizar na Marinha 62 . O plano abrangia uma nova organização para a Secretaria dos Negócios da Marinha, a construção de um novo Arsenal de Marinha, a criação de um Fundo de Defesa Marítima, a reorganização da Escola Naval, dos órgãos de instrução e de pessoal, bem como um programa de aquisições de material naval.

João António de Azevedo Coutinho Fragoso de Sequeira (1860-1944) foi admitido na Escola Naval em 1882 e promovido a guarda-marinha dois anos depois. Fez comissões em Moçambique (onde prestou serviço ao longo de 17 anos) e na Índia. Foi ministro da Marinha entre 22 de Dezembro de 1909 e 26 de Junho de 1910, no governo presidido por Francisco da Veiga Beirão. Passou à reforma em 1910, com a implantação da República em 1910, no posto de capitão-de-fragata. Foi promovido a vice-almirante honorário em 1942. 61 O ministério Reformista presidido por Francisco da Veiga Beirão, no qual o comandante João de Azevedo Coutinho ocupava a pasta da Marinha, caiu em 26 de Junho de 1910. No mesmo dia o rei D. Manuel decidiu entregar o governo ao Regenerador António Teixeira de Sousa, para o que foi o último ministério da Monarquia. A Câmara apenas reuniu uma vez depois da sessão de 8 de Junho, já que as quatro sessões seguintes não tiveram quorum. 62 “Relatório acerca da reorganização dos principaes serviços da marinha de guerra”, Acta da Câmara dos Deputados, Sessão nº 28 de 8 de Junho de 1910, pp. 19-24. 60

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João António de Azevedo Coutinho Fragoso de Sequeira (1860-1944), oficial de Marinha e penúltimo ministro da Marinha e Ultramar da Monarquia Constitucional, em fotografia de c. 1908 (Secção fotográfica do Arquivo Histórico da Marinha, nº 581C) A proposta de lei que se ocupava em especial da aquisição de navios 63 invocava como suas bases racionais “[os] elementos de caracter dominante, os quaes se encontram no plano geral da politica marítima de um determinado país […] por sua ordem logica, o objectivo incumbido á força naval, a situação estrategica, os recursos disponiveis para constituir o poderio maritimo e a situação intyernacional relativa do pais.”

Defendia depois o ministro que a Marinha “tem […] que incluir na sua composição, unidades capitaes, cruzadores, destroyers e submersíveis”, explicitando que as “unidades capitaes” constituiriam a primeira linha de defesa, os cruzadores se destinavam a assegurar a manutenção das relações da primeira linha de defesa com o inimigo e “os seus portos de baseamento”, os destroyers dariam apoio às unidades dos outros tipos e os submersíveis teriam missões de completar a acção dos destroyers, no apoio à primeira linha de defesa e de estabelecimento do “traço de união entre a defesa maritima e a territorial”. Ainda que contemplando a incorporação de dois couraçados (as “unidades capitaes”), o programa deixava para mais tarde a definição das suas características principais, ao contrário do que fazia com os

63

Proposta de lei nº 12-X, de 8 de Junho de 1910, ibid., pp. 62-66.

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restantes tipos de navios. O custo global do plano foi estimado em 30 mil contos64. Em Abril de 1910, começando por escrever que dele conhecia “apenas alguns extractos publicados na imprensa diaria”, o então primeiro-tenente Fernando Pereira da Silva criticou nas páginas dos Anais do Clube Militar Naval65 o programa que estava a ser preparado pelo ministro Azevedo Coutinho. As suas primeiras palavras foram para apoiar a proposta, dado que “O programma naval, conscientemente elaborado, é a essencia de qualquer marinha de guerra; representa o fim e a justificação da sua existencia; e constitue a ultima expressão concreta e precisa da politica maritima, traçada em obediencia aos interesses nacionais”

Procurava assim, claramente, chamar a atenção para a realidade de que uma Marinha não se podia improvisar, muito menos rearmar apressadamente em caso de iminência de conflito. A primeira crítica de Pereira da Silva incidiu sobre o facto de o programa não contemplar a configuração básica dos couraçados, o que o parece fazer desconfiar dos verdadeiros propósitos do governo 66. Depois de defender a indispensabilidade da aquisição dos “navios capitaes”, baseando-se na necessidade de não fazer aquisições avulsas, que conduziria o Pais a uma “ficção cára”, ironizava com amargura: “Os couraçados são caros, nada há de preciso sobre as suas qualidades, nem sobre o momento da sua aquisição ou deixam-se para o ultimo periodo de construcções, bastante remoto ainda; e por consequencia ousâmos affirmar que taes unidades […] nunca se construirão. Pelo contrario, os cruzadores e os contra-torpedeiros custam muito menos, o paiz pode adquiril-os sem grande esforço […] A nação exultará então de prazer! Ouvirá falar de esquadras portuguezas manobrando no Oceano, commandadas por almirantes; serão frequentes as revistas navaes, e constantes os elogios aos nossos marinheiros – os melhores do mundo, como é de uso dizer-se […] e ninguem será capaz de se convencer […] que esta esquadra é apenas apparente, que lhe faltam os elementos capitaes de combate, e que nada pode fazer no momento critico. […] A acquisição inicial de cruzadores e contra-torpedeiros, sem os elementos capitaes, é pois um erro de estrategia””

Apesar deste confronto de ideias, é necessário notar que acabou por existir um paralelo (que,

De acordo com a proposta do seu autor, o plano seria concretizado em 3 “secções”: a primeira e a segunda seriam iguais e incluíam 3 cruzadores, 8 contratorpedeiros e 3 submersíveis (8 mil contos cada um); a terceira seria constituída pelas 2 “unidades capitaes” (14 mil contos cada um). 65 Pereira da Silva, Anais do Clube Militar Naval, Vol. XLI, Abril de 1910, nº 4, pp. 233-242. 66 A apresentação do plano Azevedo Coutinho foi feita já se anunciavam os “primeiros alvores” da República. O ambiente político era tenso, as críticas ao governo, mesmo em matérias que apelavam ao rigor, assumiam um forte cariz político. A verdade é que a proposta do ministro de D. Manuel II não contemplava as características dos couraçados uma vez que os remetia, como já referimos, para uma terceira “secção” de execução do plano e, nesse contexto deixava-as expressamente para estudo posterior, “[…] em harmonia com a evolução deste typo de navios e com as necessidades impostas pelas nossas circunstancias particulares sob os pontos de vista politico e estratégico”. 64

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parece-nos, não tem merecido a atenção devida) entre as propostas do ministro Azevedo Coutinho, apresentadas à Câmara dos Deputados em 8 de Junho de 1910 e o plano que, em 1912 seria aprovado pelo Congresso da República, dando seguimento aos trabalhos da “grande Comissão” nomeada em Outubro de 1910. A acção do comandante Azevedo Coutinho durante o curto período em que se ocupou da pasta da Marinha ficou ainda marcada com a encomenda do primeiro submersível da Armada e de um contratorpedeiro, também uma novidade em termos de tipo de navio. Encomendado pela Monarquia, a construção contratorpedeiro “Douro” foi iniciada no Arsenal de Marinha já na República, em Fevereiro de 1911, vindo a entrar em serviço em 1913. As suas características finais 67, segundo um projecto inglês da casa Yarrow, coincidiam com as da proposta do ministro João Coutinho defendida na Câmara dos Deputados em 8 de Junho de 1910, a que já fizemos referência. Ainda que dispondo de um boa velocidade máxima, proporcionada pelos 11.000 cavalos das três turbinas, as suas pequenas dimensões não lhe favoreciam a autonomia. Apesar destas limitações e na impossibilidade de maiores ambições, o “Douro” viria a ter um gémeo, o “Guadiana”, que começou a ser construído no Arsenal em 1913, quando a carreira foi deixada livre pelo primeiro navio e foi aumentado ao efectivo em 1915. O contrato para a construção do “Espadarte”, um pequeno navio de cerca de 250 toneladas de deslocamento à superfície, foi assinado em Junho de 1910 com os estaleiros Orlando, de Livorno. Depois de aumentado ao efectivo, em Abril de 1913, foi utilizado em treino e demonstração de capacidades. O “Espadarte” esteve integrado na Divisão Naval durante um curto período, o tempo suficiente, no entanto, para convencer quem ainda desconfiava da sua utilidade como arma ofensiva. AS “ASPIRAÇÕES DA ARMADA REPUBLICANA”: O PLANO DE 1912 A República apressou-se a tentar “satisfazer as legítimas aspirações da armada republicana, que sempre foram, é justo dizê-lo, as da alma nacional”68, nomeando logo em 25 de Outubro de 191069, uma comissão para apresentar uma proposta de reorganização da Marinha, incluindo a renovação da Esquadra, cuja composição estava reconhecidamente desajustada dos desafios

670 toneladas, 27 nós de velocidade máxima, 1 peça de 100 mm e 1 de 76 mm e 4 tubos lança-torpedos de 450 mm. 68 Decreto de 25 de Outubro de 1910. 69 Era presidente Teófilo Braga, António José de Almeida presidente do Governo Provisório e o capitão-de-mar-eguerra Amaro de Azevedo Gomes o ministro da Marinha e Colónias. 67

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e ameaças que o ambiente internacional colocava ao País tanto na metrópole como nas colónias. Foram nomeados para a “grande comissão”, assim ficou conhecida, quarenta e quatro oficiais da Armada e dois civis70. Presidida pelo vice-almirante Domingos Tasso de Figueiredo, agregou oficiais de Marinha, engenheiros navais, médicos, maquinistas, comissários e um farmacêutico naval, bem como João de Meneses 71 e o chefe da 6ª Repartição da Contabilidade Pública 72 . No extenso rol dos seus membros encontramos nomes de vulto da Marinha da Primeira República, entre os quais os do capitão-tenente Alfredo Rodrigues Gaspar, dos primeiros-tenentes Fernando Pereira da Silva e Manuel dos Santos Fradique, dos segundostenentes Álvaro Nunes Ribeiro, Gama Ochoa, José Carlos da Maia e Tito de Morais, e ainda do médico naval Alexandre Vasconcelos e Sá. O trabalho desta comissão culminou na publicação de uma lei do Congresso, em 26 de Julho de 191273, que autorizava o governo a proceder “à organização das fôrças navais que deverão constituir a marinha de guerra nacional [e que] deverá ter o material para constituir uma esquadra de operações, defesa do pôrto de armamento, os navios para serviços de fiscalização e auxiliares, e serviço de soberania nas colónias”.

Estavam assim definidas as três grandes componentes que eram desejadas para a Marinha: a capacidade de levar a cabo operações oceânicas, a defesa dos portos e as missões nas colónias. Os navios a adquirir, bem como “as transformações e melhoramentos indicados, [deviam] ser adquiridos e efectuados no prazo máximo de três anos” sendo, para o efeito, o governo autorizado a despender até 38 mil contos74. Deste valor, 840 contos ficavam reservados para duas “escolas de preparação”, adaptações nas escolas de torpedos, artilharia e máquinas e no

Quarenta foram nomeados pelo decreto de criação da comissão, juntando-se-lhe seis, designados por decreto de 4 de Novembro de 1910. A comissão foi objecto de posteriores ajustamentos pontuais. 71 João Duarte de Meneses (22 de Abril de 1868 – 8 de Abril de 1818) foi advogado e jornalista. Figura importante do Partido Republicano, foi deputado durante a monarquia (eleito pelo Funchal, serviu na 39ª legislatura, entre 29 de Setembro de 1906 e 27 de Fevereiro de 1908). Foi membro da Maçonaria, na loja Simpatia com o nome simbólico de Oberdank, evocativo do mártir da unificação italiana. Foi deputado à Assembleia Constituinte (1911), sendo eleito para a comissão encarregue de elaborar o projecto da Constituição. Foi ministro da Marinha entre 13 de Setembro e 12 de Novembro de 1911. 72 Repartição que funcionava no Ministério da Marinha, encarregada da contabilidade e fiscalização da respectiva despesa. Funcionavam repartições semelhantes nos restantes ministérios. 73 Diário do Governo, nº 175, de 27 de Julho de 1912, p. 2665. Não foi ainda possível localizar actas ou relatório da comissão. Não se alterou assim a situação também constatada por António José Telo, ob. cit., p. 233 n. 31. Sabemos, no entanto e por fonte indirecta (Parecer da Comissão de Estudo dos Serviços do Estado Maior, Abril de 1914, Arquivo Histórico da Marinha, Núcleo 224, nº 430), que “o projecto de organização das forças navais foi elaborado em Janeiro de 2011”. Isto significa que a comissão nomeada em 25 de Outubro de 1910 produziu o seu relatório em pouco mais de dois meses, para o que se terá decerto baseado nos estudos anteriores, designadamente no plano proposto pelo ministro João de Azevedo Coutinho em Junho de 1910. 74 Para aferir este valor: as despesas totais do ministério da Marinha para o ano económico 1913-1914 ascendiam a cerca de 4.400 contos e o total orçamentado para as despesas do Estado era de 264 mil contos. 70

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“serviço de hospitalização”. Quanto à “esquadra de operações” previa-se a aquisição de 3 couraçados de 21.500 toneladas (21 nós de velocidade máxima, 8 peças de 343 mm, 12 de 150 mm e 12 de 100 mm; custo previsto de 9,353 contos cada um), 3 exploradores (cruzadores protegidos, com um custo unitário previsto em 1,52 mil contos) e 3 contratorpedeiros (cada um custando 672 contos). O mesmo decreto estabelecia ainda que deveriam existir mais 6 contratorpedeiros e 6 submersíveis “para defesa da base de operações”75. Os couraçados eram, de facto, os navios mais importantes propostos pela Grande Comissão, numa linha de pensamento mahanista que representava uma continuidade com alguns dos planos anteriores, que parecia ter definitivamente triunfado no debate relativo à composição da Esquadra, ainda que se viesse a revelar de todo inexequível. Mas quanto às principais características operacionais, os navios propostos correspondiam às mais recentes referências da Royal Navy76 Ainda antes da publicação do decreto que aprovou a nova “organização das forças navais”, um diploma de 30 de Junho tinha autorizado o governo a despender até 5.830 contos com a aquisição de “6 Destroyers de cerca de 800 toneladas, 3 Submergíveis de cerca de 245/300 toneladas, 1 Navio apoio de submergíveis de cerca de 800 toneladas [e] 2 Cruzadores de cerca de 2:500 toneladas”77. Estes navios deveriam ser em parte financiados com saldos do Fundo de Defesa Naval (que seria extinto em Julho de 1913) e adquiridos em menos de dois anos. Interessa assim procurar compreender as razões por trás da divisão do plano de renovação dos meios navais em dois decretos, separados por apenas três semanas. Na ausência de prova, podemos presumir que, para além do já referido recurso ao saldo do Fundo de Defesa Naval (que pouco terá passado do papel) terá prevalecido a vontade de distinguir quanto se referia à “esquadra de operações”, que se destinava a recuperar capacidade de intervenção oceânica (couraçados, cruzadores e alguns contratorpedeiros), dos meios que ficariam afectos a tarefas de natureza defensiva (alguns “destroyers” e cruzadores, além dos submarinos).

O mapa anexo ao decreto, que inclui as características principais que os novos navios devem ter, reproduzido no anexo 2, inclui os 3 couraçados e os 3 exploradores mencionados no corpo do decreto, mas não descrimina a quantidade de contratorpedeiros (no mapa, “destroyers”) 76 A Royal Navy tinha lançado à água em 1909 e 1910 quatro “dreadnoughts” da classe “Orion”, que tinham 22.500 toneladas de deslocamento, 22 nós de velocidade máxima e estavam armados com 10 peças de 343mm e 10 de 250 mm. 77 Diário do Governo, nº 155, de 4 de Julho de 1912, p. 2382. 75

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Cartaz de divulgação do plano naval de 1912 editado pela Liga Naval Portuguesa (cópia do Museu de Marinha)78 Como sabemos, repetindo ciclos do passado, o essencial e mais importante da Esquadra ambicionada pela jovem República não iria passar do papel. Como bem assinalou António José Telo79, o volume de recursos financeiros envolvidos era enorme e iria, além do mais, sacrificar durante anos qualquer possibilidade de investimento no Exército. A eclosão da “guerra europeia”, em Julho de 1914, ainda que Portugal se tenha mantido não-beligerante até Março de 1916, pôs termo definitivo às expectativas criadas com o plano naval de 1912. NAS VÉSPERAS DA GUERRA: DO “FUNDO DE DEFESA NAVAL” AO NAUFRÁGIO NO ORÇAMENTO O impulso que nos seus primeiros tempos de vida a República pretendeu dar à Armada, procurou algum sustentáculo financeiro no Fundo de Defesa Naval, criado por decreto de 13 de Janeiro de 191180, para substituir o Fundo de Defesa Marítima anteriormente proposto pelo ministro Azevedo Coutinho 81. Tratava-se de um Original (136x90 cm) impresso em Lisboa, na Tipographia A Photolito. António José Telo, ob. cit., p. 235. 80 Diário do Governo, nº 12, de 16 de Janeiro de 1911. Substituiu o efêmero Fundo de Reconstituição do Material Naval, criado por decreto de 9 de Novembro de 1910. 81 O conjunto legislativo proposto pelo ministro João de Azevedo Coutinho contemplava criação de um Fundo de Defesa Marítima. Ver Diário da Câmara dos Deputados, Sessão nº 28 de 8 de Junho de 1910, p. 61. 78 79

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“fundo especial [destinado] á aquisição de material naval, construcção de um arsenal na margem sul do Tejo e estabelecimento de bases navaes nos pontos julgados mais convenientes”.

De acordo com o seu decreto fundador, o Fundo deveria ser dotado com verbas de diversas proveniências, a começar por valores para o efeito inscritos no orçamento anual da Marinha, até às “receitas de futuras leis que o Governo entenda promulgar, destinadas em todo, ou em parte, a reforçar o mesmo fundo”, passando pela renda das “aguas sulfureas do Arsenal da Marinha”. O Fundo de Defesa Naval teve, no entanto, uma existência curta, já que foi extinto em 191382, sacrificado pelas iniciativas governamentais de redução da despesa 83. Em Janeiro daquele ano ficou formado o que seria o mais longo governo da 1ª República: presidido por Afonso Costa, foi um ministério partidariamente homogéneo que iria durar treze meses. Um dos principais objectivos do chefe do Partido Republicano, que também ocupou a pasta das Finanças, foi procurar o equilíbrio das contas do Estado. Foi bem sucedido na tarefa, até que se impuseram as despesas que foi necessário realizar com a eclosão, em meados do ano, dos conflitos com a Alemanha em Angola e Moçambique. Em 15 de Março de 1913 o governo publicou a “lei-travão”, que impedia que a Câmara dos Deputados votasse aumentos de despesas ou diminuição de receitas. Este novo quadro de restrições foi um dos factores que contribuíram para o bloqueio quase absoluto do primeiro plano naval da República. O orçamento de 1913-1914 ainda apresentou um superavit de cerca de 600 contos e a sua maior parte (559 contos) foi, segundo uma lei de 14 de Novembro de 1913, destinada à “reconstrução da marinha de guerra”. De acordo com a sua formulação, esta lei contava mesmo com a prévia anuência do poder legislativo: “podendo já supor-se, pelo que ao Govêrno consta, que a commissão parlamentar não proporá a derrogação ou substituição da lei, antes pedirá que ela entre em imediata execução, vista a urgência de se prover à defesa nacional e o estado animador das finanças públicas”. A lei, assinada por Afonso Costa e pelo ministro da Marinha, comandante José Freitas Ribeiro, traduzia várias facetas da realidade: em primeiro lugar, em função do valor atribuído, deveriam considerar-se postas de lado as ambições de quantos ainda pensavam que Portugal podia ter a sua Esquadra baseada em couraçados, navios poderosos mas Lei nº 8, de 5 de Julho de 2013. A extinção do Fundo de Defesa Naval foi discutida na Câmara dos Deputados, durante o debate sobre o orçamento para 1913-1914. O ministro, capitão-de-fragata José de Freitas Ribeiro, argumentou que “com pouca verba não vale a pena […] em geral fundos especiais não são boa administração”, tendo contado com a oposição de diversos oficiais de Marinha que eram deputados, como Carvalho de Araújo, Vasconcelos e Sá, Machado Santos e Carlos da Maia. Ver Ana Bela Nunes, “Os debates orçamentais durante a Primeira República”, Os orçamentos no parlamento português, Nuno Valério (coordenador), Lisboa, Publicações D. Quixote, 2006, p. 133, nota 1. 82 83

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caros em dinheiro e em pessoal para as guarnições; depois e apesar deste primeiro efeito, o governo do Partido Democrático 84 dava um sinal da importância que atribuía à Marinha para a defesa nacional e, naturalmente, para a defesa do regime republicano. A promessa de irrevogabilidade destas intenções governamentais foi reiterada em Agosto de 1914, quando era já Bernardino Machado quem chefiava o ministério e o vice-almirante Eduardo Neuparth detinha a pasta da Marinha. Assim, um outro decreto do governo 85 determinou que os 559 contos acima referidos fossem destinados à construção, no Arsenal de Marinha, de dois contratorpedeiros do tipo “Douro”. É ainda curioso notar que o decreto em causa invocava a legitimidade da decisão numa dupla argumentação: por um lado, a “conveniência de constituir uma flotilha de contra-torpedeiros, composta de quatro unidades homogéneas das quais já existem duas86 [e a] necessidade de conservar em laboração a fábrica do Arsenal da Marinha; atendendo à urgência de evitar a crise do operariado metalúrgico”, isto num momento em que se agravava a situação social, em particular em Lisboa. O orçamento para o ano económico 1914-1915, que também previa um excedente, ainda atribuiu 2.000 contos à aquisição de novos navios para a Armada, que foram empregues na aquisição dos três submersíveis (“Foca”, “Hidra” e “Golfinho”). Encomendados em 1916, chegaram a Lisboa em 10 de Fevereiro de 1918. A eclosão da guerra, no entanto, demonstrou que a determinação política vertida em letra de forma no Diário do Governo apenas tinha a força que as decisões financeiras lhe quisessem ou pudessem atribuir. Nestas circunstâncias nenhum contratorpedeiro foi adicionado aos já existentes. “Douro” e “Guadiana” acabaram como limitadíssimo resultado do programa defendido ainda na Monarquia pelo ministro João Coutinho.

Designação pela qual ficou conhecida, depois de Setembro de 1911, na sequência da ruptura entre os diversos sectores do partido o Partido Republicano, a facção política maioritária chefiada por Afonso Costa. Ainda em resultado daquela cisão surgiram, em Fevereiro de 1912, o Partido Republicano Evolucionista, chefiado por António José de Almeida e a União Republicana, de Manuel Brito Camacho. Estas duas últimas formações prolongaram a sua existência política até 1919. 85 Decreto nº 773, de 20 de Agosto de 1914. 86 O texto referia-se aos contratorpedeiros “Douro” (1913-1927) e “Guadiana (1915-1936), ambos construídos no Arsenal de Marinha. Os outros dois navios deste tipo que, ao tempo, fizeram parte do efectivo da Marinha, “Liz” e “Tejo”, ficaram marcados por circunstâncias muito específicas. O “Liz” estava em construção nos estaleiros Ansaldo, em Génova. Prestou serviço na Marinha portuguesa no curtíssimo período de Dezembro de 1914 a Maio de 1915, dado que tinha sido encomendado já com destino à Royal Navy, porque a Itália era então um país neutral, enquanto Portugal era não-beligerante. O “Tejo” era uma antiga canhoneira que tinha sido construída em 1904 no Arsenal de Marinha. Depois de ter encalhado em 1910 foi objecto de uma remodelação, que só ficou concluída em Junho de 1916. Era um navio de baixo valor militar o que limitou as missões que realizou durante a guerra. 84

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Contratorpedeiro “Douro” (1913-1927) Apesar do bloqueio financeiro que fez com a esquadra da “grande comissão” não tivesse passado do papel, a Marinha continuou a desenvolver esforços para renovar os meios navais, ainda que com menos unidades e navios mais baratos do que os preconizados pela comissão nomeada pela República em 1910. Foi assim que ao longo do ano de 1916, antes e já depois da entrada de Portugal na guerra, ao mesmo tempo que se procurava encontrar recursos para adquirir os dois contratorpedeiros que completassem uma esquadrilha de quatro, a Comissão Permanente de Aquisição de Material Naval trabalhou num concurso para aquisição de quatro “cruzadores rápidos”. Seriam navios com deslocamento de 4.800 toneladas e uma velocidade máxima de 27 nós, proporcionada por turbinas a vapor produzido por caldeiras que queimavam combustível líquido, com 6 peças de 152 mm, 4 de 76 mm e 4 tubos lança-torpedos de 533 mm87, características muito próximas das que tinham sido preconizadas no plano de 191288 e idênticas aos “cruzadores ligeiros” que a Royal Navy construía na época. Estes cruzadores, que tinham sido pensados pela “grande comissão” para emprego em conjunto com os couraçados, eram agora recuperados pelo seu valor potencial como o “Faztudo” do mar, em operações variadas como patrulha, protecção de linhas de comunicação, demonstração de soberania, minagem ou utilização em conjunto com os contratorpedeiros. O

Comissão Permanente de Aquisição de Material Naval - Correspondência expedida (1914-1916), Arquivo Histórico de Marinha, Núcleo 224, nº 446. 88 Relativamente à quantidade de cruzadores, nota-se que a “grande comissão” tinha proposto a aquisição de quatro e não das três unidades que acabaram por constar no decreto de 26 de Julho de 1912 (cf. mapa reproduzido no anexo 2). O que se fazia agora era recuperar o plano inicial. 87

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custo de cada um destes cruzadores tinha sido estimado em seis vezes menos do que cada couraçado. A Marinha procurava assim limitar danos e adaptar as ambições nacionais ao que ainda se julgava que os cofres públicos seriam capazes de suportar. Mas também esta opção não viria a passar do papel. CONCLUSÃO A sucessão de planos para a reorganização da Marinha concebidos e divulgados na última década da Monarquia Constitucional e nos anos iniciais da República, foi um sinal da insatisfação da Armada e de alguns sectores do poder político perante a realidade de uma força naval débil, incapaz de defender satisfatoriamente o País nas suas frentes metropolitana e colonial. As iniciativas que assumiram o propósito de alterar tão desfavorável conjuntura tiveram origens em diversos sectores: governo e oficiais da Marinha, estes a título individual ou com o apoio da recém-criada Liga Naval Portuguesa. A instabilidade política e a expressão financeira das vulnerabilidades estruturais do País constituíram os obstáculos de maior peso à concretização de qualquer dos referidos planos. Na década final da Monarquia a Marinha (em pasta conjunta com o Ultramar) teve treze ministros; entre a implantação da República e a entrada de Portugal na guerra, foram onze as personalidades que se ocuparam da pasta da Marinha (já separada das Colónias). A expressão social da instabilidade política também não favorecia um ambiente de reflexão serena sobre a questão que parecia colher a concordância geral: Portugal precisava de uma Marinha com capacidade para se defender na Europa (sobretudo em relação ao seu “inimigo natural”, a Espanha) e em África, para se libertar de uma total subordinação aos ditames da Inglaterra e para se fazer respeitar na cena internacional, intervindo à sua escala, ou permanecendo neutral, ou seja, escolhendo livremente o estatuto que mais conviesse aos seus interesses. No período considerado, apenas o plano proposto pelo ministro Ayres de Ornelas em 1907 não contemplava a aquisição de couraçados para o núcleo combatente da Esquadra, na medida em que as suas preocupações prioritárias estavam orientadas para as colónias africanas. As restantes propostas de programas navais, tanto as que foram apresentadas individualmente para debate, como as que foram iniciativa do governo, optavam por grandes navios, fortemente armados e protegidos, representando o estado da arte em cada momento. A este propósito é interessante notar a homogeneidade de pensamento que envolveu os quatro planos anteriores a 1916: os apresentados individualmente pelo segundo-tenente Nunes Ribeiro (1908) e pelo primeiro-tenente Pereira da Silva (1909), pelo ministro capitão-de-fragata João -35-

de Azevedo Coutinho (1910), no penúltimo governo da Monarquia e o primeiro plano da República, desenvolvido pela “grande comissão” da qual os dois jovens oficiais que acabamos de referir foram membros. A dura realidade dos valores de aquisição e de “custeio”, como então se designavam os custos de operação e manutenção, para a qual todos os idealizadores de programas navais alegavam ter solução, impôs-se à vontade de “reconstituir” a Marinha e de a preparar para o conflito que ia adquirindo foro de inevitabilidade. Depois da guerra, pouco mais de um mês decorrido sobre o armistício, o então capitão-defragata Pereira da Silva iniciou a publicação nos Anais do Clube Militar Naval de um texto que intitulou “Os ensinamentos navais da grande conflagração mundial e a nossa acção marítima”89. A crítica que ali fez à impreparação militar de Portugal para a guerra foi implacável: “Que o nosso exército e a nossa armada eram, no início da grande guerra, organica e materialmente falando, pouco mais do que ficções, é facil de comprovar […] o que era a nossa armada no inicio da grande guerra? Uma força naval representada por três velhos cruzadores, dois contra-torpedeiros e um submarino, áparte uma pequenas canhoneiras de insignificante valôr militar! Eis tudo!”.

Apesar da impreparação e da debilidade dos meios navais disponíveis, Pereira da Silva não deixou de salientar o enorme esforço feito pela Armada: “Não obstante, com tão fracos recursos efectuámos prolongados cruzeiros, numerosos comboios […] nunca se perdeu nenhum dos nossos transportes de tropas apesar de passarem frequentes vezes em regiões infestadas por submarinos e na proximidade de campos minados […] se considerarmos o serviço dos nossos caça-minas e patrulhas tambem não podemos deixar de os salientar”.

Os planos navais propostos por alguns governos e por alguns oficiais da Armada reflectiram as principais posições saídas dos debates que foram sendo travados e que, para além da Câmara dos Deputados tiveram expressão pública, entre outros meios, nos Anais do Clube Militar Naval, nas edições da Liga Naval Portuguesa, na imprensa em geral e na Revista Militar. Na maioria, os referidos planos traduziram a corrente de pensamento “mahaniana”, que se foi consolidando como vencedora daquelas discussões, podendo observar-se uma continuidade na transição do regime político, especialmente observável na similitude entre os planos apresentados em 1910, pelo último governo da Monarquia, e o que dois anos mais tarde foi aprovado pelo Congresso Pereira da Silva, “Os ensinamentos navais da grande conflagração mundial e a nossa acção marítima”, Anais do Clube Militar Naval, Tomo L, Janeiro a Junho-Julho 1919. 89

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da República.

Agradecimento – Agradeço ao comandante Jorge Semedo de Matos a leitura crítica de uma versão anterior deste texto. Os erros, imprecisões e omissões são, no entanto, da exclusiva responsabilidade do autor.

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BIBLIOGRAFIA Fontes Actas do Conselho Superior da Marinha 1898-1906, Arquivo Histórico da Marinha, Núcleo 224, nº 477. Collectânea de Legislação Portuguesa, Imprensa Nacional, 1897-1916. Comissão Permanente de Aquisição de Material Naval - Correspondência expedida (19141916), Arquivo Histórico da Marinha, Núcleo 224, nº 446. Comissão Permanente de Estudo do Estado Maior, Arquivo Histórico da Marinha, Núcleo 224, nº 430. Diário da Assembleia Constituinte, 1911. Diário da Câmara dos Deputados, 1897 a 1914. Diário do Governo, 1897 a 1914. FERREIRA, João Baptista, Couraçados e Torpedeiros, Lisboa, Typographia La Bécarre, 1902. Jane´s Fighting Ships of World War I, Londres, Studio Edition, 1990 [1ª edição – Jane´s Publishing Company, 1919]. MATTOS, A. Pereira de, A Marinha de Guerra. Estudo, Porto, Magalhães e Moniz Editores, 1897. MATTOS, António Pereira de, O Problema Naval Portuguez, 2 volumes, Porto, Typographia Pereira, 1908. MOREIRA, Pacheco (capitão-tenente), “Necessidade de restrição nos armamentos navaes”, Anais do Clube Militar Naval, Vol. XLI, Fevereiro 1910, nº 2, pp. 82-86. ORNELLAS, Ayres d´, O problema naval portuguez – alguns elementos para a sua resolução, Lisboa, Typ. do Anuário Commercial, 1909. ORNELLAS, Ayres d´, Política Marítima Nacional, Conferência realizada na sede da Liga Naval Portuguesa, Lisboa, Centro Typographico Colonial, 1910. RIBEIRO, Álvaro A. N., A marinha de guerra e orçamento. Conferência realisada na séde da Liga Naval Portuguesa em 2 de Junho de 1908, Lisboa, Typographia do Annuario Commercial, 1908. -38-

SILVA, Fernando A. Pereira da, O Nosso Plano Naval, Lisboa, Liga Naval Portuguesa, 1909. SILVA, Pereira da, “O nosso programma naval”, Anais do Clube Militar Naval, Vol. XLI, Abril de 1910, nº 4. SILVA, Pereira da, “Os ensinamentos navais da grande conflagração mundial e a nossa acção marítima”, Anais do Clube Militar Naval, Tomo L, Janeiro a Junho-Julho 1919. Bibliografia BLACK, Jeremy, Naval Power, Houndmills/ New York, 2009. FREIRE, João, A Marinha e o Poder Político em Portugal no Século XX, Lisboa, Edições Colibri, 2010. FREIRE, João, Portugal face à Grande Guerra em 1914-1915, Lisboa, Edições Colibri, 2014. GARDINER, Robert (direcção editorial), Conway´s all the World´s Fighting Ships (1860-1905), Londres, 1979. MAHAN, Alfred Thayer, From Sail to Steam: Recollections of Naval Life, Gloucester, Dodo Press, 1906. MATTOS, Pereira de, A Marinha Colonial, Lisboa, Typ. da Companhia Nacional, 1902. MAURER, John H., “The Anglo-German naval rivalry and informal arms control, 1912-1914”, Journal of Conflict Resolution, Volume 36, nº 2, Junho de 1992. MENDES, José Agostinho de Sousa, Setenta e Cinco no Mar, Volumes 1 e 2. Lisboa, Comissão Cultural de Marinha, 1989. MONTEIRO, Nuno Sardinha, “Mahan em 3 Atos”, Anais do Clube Militar Naval, Vol. CXLIV, Janeiro-Junho 2014, pp. 13-64. NETO, Ferreira Neto e ALMADA, Sara, Glossário de Termos de Armamento, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1997 NUNES, Ana Bela, “Os debates orçamentais durante a Primeira República”, Os orçamentos no parlamento português, Nuno Valério (coordenador), Lisboa, Publicações D. Quixote, 2006. RIBEIRO, António Silva, “Mahan e as Marinhas como instrumento político”, Revista Militar, Maio de 2010, pp. 465-483. ROSE, Lisle A., Power at Sea. The Age of Navalism, 1890-1918, Columbia/ Londres, University of Missouri Press, 2007. -39-

SILVA, Álvaro Ferreira da, “O processo económico”, A Crise do Liberalismo (1890-1930), Coordenação de Nuno Severiano Teixeira, Fundação MAPFRE, Lisboa, 2014, pp. 117-157. SILVA, Fernando David e, O Fim das Naus e a Marinha da transição. Um Inquérito da Câmara dos Deputados (1853-1856), Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2014. SONDHAUS, Lawrence, The Great War at Sea. A naval history of the First World War, Cambridge, Cambridge University Press, 2014. TELO, António José, Homens Doutrina e Organização 1824-1974 (Tomo I), História da Marinha Portuguesa, Lisboa, Academia de Marinha, 1999. VALÉRIO, Nuno (coordenador),Os orçamentos no parlamento português, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2006. VALENTIM, Carlos, “O plano naval do comandante Álvaro Nunes Ribeiro”, Actas do XIII Colóquio “Portugal Militar. Da Regeneração à Paz de Versailles, Lisboa, 10 a 12 de Novembro de 2003. WESTCOTT, Alan (editor), Mahan on Naval Warfare. Selections from the writings of Rear Admiral Alfred Thayer Mahan, Boston, Little Brown and Company, 1918.

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ANEXO 1 - PLANOS NAVAIS E PRINCIPAIS PROPOSTAS NÃO-INSTITUCIONAIS - 1897-1916

Couraçados

1897

1898

2TEN Pereira de Mattos 19 34

Cruzadores

1905

1907

1908

1909

1910 (1)

1910 (2)

1912

Conselho Superior da Marinha

Ministro Gorjão Henriques

Ministro Ayres d´Ornellas

1TEN Nunes Ribeiro

1TEN Pereira da Silva

Ministro João de Azevedo Coutinho

1TEN Pereira de Mattos

“Grande Comissão”

2

3

3

6

2

4

3

5

12

6

9

3

8

Existências 190191

47

6

5

91

92

4 2

Cruzadores auxiliares93 1

Contratorpedeiros Torpedeiros Canhoneiras lanchascanhoneiras

Existências 191690

e

6

143

9

4

30

9

36

Submersíveis

2

9

6

24

15

16

6

15

4

3

12

2

3 12

9

6

Navio-apoio para submersíveis

8

6

1

1

A coluna “Existências” apenas refere os navios principais, não estando incluídos designadamente corvetas mistas, transportes e navios auxiliares. As características de cada tipo de navio evoluíram muito substancialmente nas duas décadas entre 1897 e 1916. Todos aumentaram de dimensão, protecção, velocidade, autonomia, poder e precisão de fogo. Assim, como fomos referindo ao longo do texto, não é legítimo comparar um couraçado de 1897 com um de 1912, pelo que os números apresentados devem ser inscritos no tempo a que pertencem. 1897 – Proposta do segundo-tenente António Pereira de Mattos em A Marinha de Guerra. Estudo, 1897.

Referidas a 31 de Dezembro. Os já existentes. 92 Incluindo os 6 já existentes. 93 Navios mercantes armados. 90 91

1898 – Proposta de origem não determinada aprovada pelo Conselho Superior da Marinha. Os números referem-se apenas aos navios combatentes destinados a operar no continente e ilhas adjacentes. 1905 – Comissão nomeada por portaria de 10 de Maio de 1904 do ministro da Marinha e Colónias o general Manuel Rafael Gorjão Henriques. Era oficial mais antigo da Comissão o vice-almirante Cipriano Lopes de Andrade. 1907 – Proposta de lei apresentada à Câmara dos Deputados em Março de 1907 pelo ministro da Marinha Ayres d´Ornellas. 1908 – Proposta do primeiro-tenente Álvaro Nunes Ribeiro na conferência A Marinha de Guerra e o Orçamento, apresentada à Liga Naval Portuguesa em 2 de Junho de 1908. 1909 – Proposta do primeiro-tenente Fernando Pereira da Silva em O Nosso Plano Naval, 1909. 1910 (1) – Proposta de lei submetida à Câmara dos Deputados em 8 de Junho de 1910 pelo ministro João de Azevedo Coutinho. 1910 (2) – Proposta do primeiro-tenente António Pereira de Mattos em O Problema Naval Portuguez, 1910. 1912 – Aprovado pela lei de 26 de Junho de 1912 (plano da “grande comissão”, nomeada em 25 de Outubro de 1910).

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ANEXO 2 - PLANO DA “GRANDE COMISSÃO” - Mapa A, anexo ao decreto de 26 de Julho de 1912

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ANEXO 3 - UNIDADES NAVAIS PRINCIPAIS AO SERVIÇO ENTRE 1897 E 1916 Tipo Cruzador

Nome D. Carlos Almirante Reis100 Vasco Gama101

Período de serviço94 I/ 1898-1925

Deslocamento (ton)/ Potência da Vel. máx.98 95 96 97 Comp. (m) máquina (cv) (nós) 4.253/ 110

da 1876 (1903102)- 3.030/ 71 1936

Armamento principal99

Guarnição (oficiais/ sargentos e praças)

12.730

22

Armstrong 4 x 150 + 8 x 120 + 5 tubos 23/ 395 lança-torpedos

6.000

15

Armstrong: 2 x 200 + 1 x 150 + 1 x 76

18/ 241

Adamastor103

1896 - 1934

1757/ 74

4.000

18

Krupp 2 x 150 + 4 x 105 + 3 x tubos 20/ 190 lança-torpedos

S. Gabriel104

1898/ 1925

1838/ 75

3.000

15

Schneider-Canet 2 x 150 + 4 x 120 + 1 17/ 225 tubo lança-torpedos

S. Rafael105

1900-1911

1838/ 75

3.000

15

Schneider-Canet 2 x 150 + 4 x 120 + 1 17/ 225 tubo lança-torpedos

183/ 75

5.000

18

Schneider-Canet 4 x 150 + 2 x 100 + 2 22/273 tubos lança-torpedos

Rainha D. 1901-1915 Amélia/ República106

Data de aumento ao efectivo – data de desarmamento. É indicado o “comprimento entre perpendiculares”. 96 Potência “indicada”. 97 Cavalos. 98 “da experiência”. 99 Fabricante e quantidade de peças x calibre em mm. 100 Construído em Newcastle, Reino Unido, pelo estaleiro Armstrong. A República mudou-lhe o nome para “Almirante Reis”. 101 Construído em Livorno, Itália, no estaleiro Fratelli Orlando. 102 Foi objecto de uma grande transformação entre 1901 e 1903, no estaleiro onde foi construído. São indicadas as características com que ficou depois da transformação. 103 Construído em Livorno, Itália, estaleiro Fratelli Orlando. Foi parcialmente pago com o produto de uma subscrição nacional aberta em resposta ao Ultimato de 1890. 104 Construído no Havre, França, no estaleiro Forges et Chantiers. 105 Id. Perdeu-se por naufrágio próximo de Vila do Conde, em 21 de Outubro de 1911. 106 Foi o primeiro navio de construção metálica do Arsenal de Marinha. A República mudou-lhe o nome para “República”. A sua construção foi dirigida por Alphonse Croneau, um engenheiro francês contratado em 1897 pelo ministro Jacinto Cândido, acompanhado de um desenhador e quatro “condutores de trabalhos”. Sob a sua direcção foram ainda construídas duas canhoneiras (“Pátria” e “Tejo”). Croneau regressou a França em 1905. 94 95

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Tipo

Nome

Contratorpedeiro Douro Guadiana

Período de serviço94

Deslocamento (ton)/ Potência da Vel. máx.98 95 96 97 Comp. (m) máquina (cv) (nós)

Armamento principal99

Guarnição (oficiais/ sargentos e praças)

1913-1927

670/ 72

11.000

27

Armstrong 1 x 100 + 2 x 76 + 2 tubos 76 lança-torpedos

1915-1936

670/ 72

11.000

27

Armstrong 1 x 100 + 2 x 76 + 2 tubos 76 lança-torpedos

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