A Masa Gadu Konde: Morte, Espíritos e Rituais Funerários em uma Aldeia Saamaka Cristã

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

A Mása Gádu Koondë: Morte, Espíritos e Rituais Funerários em uma Aldeia Saamaka Cristã

Rogério Brittes W. Pires

2015

A Mása Gádu Koondë: Morte, Espíritos e Rituais Funerários em uma Aldeia Saamaka Cristã Rogério Brittes W. Pires

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Orientadora: Olívia Maria Gomes da Cunha Coorientador: Márcio Goldman

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

CIP - Catalogação na Publicação

P667m

Pires, Rogério Brittes Wanderley A Masa Gadu Konde: Morte, Espíritos e Rituais Funerários em uma Aldeia Saamaka Cristã / Rogério Brittes Wanderley Pires. -- Rio de Janeiro, 2015. 479 f. Orientadora: Olívia Maria Gomes da Cunha. Coorientador: Márcio Goldman. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, 2015. 1. Saamaka. 2. Morte. 3. Rituais funerários. 4. Cristianismo. 5. Maroons. I. Cunha, Olívia Maria Gomes da, orient. II. Goldman, Márcio, coorient. III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

i

Resumo A Mása Gádu Koondë: Morte, Espíritos e Rituais Funerários em uma Aldeia Saamaka Cristã Esta tese é uma etnografia sobre os saamaka, descendentes de escravos fugitivos estabelecidos no Alto Suriname desde o século XVIII. Mais especificamente, sobre Botopási, uma aldeia cristã, filiada à Igreja Moraviana desde sua fundação há cerca de 120 anos. No núcleo do trabalho está uma análise das práticas funerárias locais: trocas cerimoniais; rituais que visam agradar o morto e proteger os vivos; formas de controlar a ação e a distância dos espíritos; e atividades para trazer alegria aos que perderam um ente querido. Ao longo dos capítulos, a tese trata dos diversos modi operandi dos mortos, que aparecem como fantasmas,

espíritos

vingativos,

antepassados,

padrinhos

espirituais. As formas políticas saamaka e as mudanças derivadas do cristianismo ajudam a pensar as variações nas práticas e crenças acerca da morte e outros temas. Assim poderemos entender como, em Botopási, as pessoas encaram diversos tipos de transformações nas relações espalhadas pelo espaço-tempo: tanto as trazidas por evento de uma morte quanto as trazidas pela conversão ou outros engajamentos com vivos, mortos, espíritos, deuses, saamaka e estrangeiros.

Palavras-Chave: Saamaka, Morte, Rituais funerários, Cristianismo, Maroons

ii

Abstract A Mása Gádu Koondë: Death, Spirits and Funerary Rituals in a Christian Saamaka Village The present thesis is an ethnography of the Saamaka maroons, descendants of runaway slaves established in Upper Suriname in the 18th century. In particular, it is about Botopási, a Christian village, affiliated with the Moravian Church ever since its foundation 120 years ago. Local funerary practices are analyzed at the core of the work: ceremonial exchanges, rituals that strive to please the dead and safeguard the living, means of controlling the distance and the agency of the spirits, and efforts that bring back joy to those who lost a loved one. Throughout the chapters, the thesis addresses several modi operandi of the dead, which may appear as ghosts, avenging spirits, ancestors, supernatural genitors. Both Saamaka political forms and the changes brought about by Christianity help us to reflect on variations in practices and beliefs surrounding death and other subjects. We may then be able to understand how people in Botopási face different types of transformations in their relationships dispersed through spacetime: those brought about by an event of death as well as those brought about by conversion or other engagements with the living, the dead, spirits, gods, Saamakas, and outsiders.

Keywords: Saamaka, Death, Funerary Rituals, Christianity, Maroons.

iii

Para todos que se foram, no Brasil e em Botopási Para o sábio Uriah Para o amigo Keisi Para a querida Regina Para o saudoso Rodrigo

iv

Agradecimentos Dediquei grande parte dos últimos cinco anos à produção desta tese. Todas as pessoas que foram parte significativa da minha vida neste tempo mereceriam agradecimentos aqui. Peço desculpas adiantadas por eventuais esquecimentos – escrevo essas linhas na exaustão dos últimos momentos de trabalho. Meu sustento durante esse período foi possibilitado por quatro anos de bolsa de doutorado CNPq, e mais um ano de bolsa PNAP-doutorando, na Biblioteca Nacional. As idas a campo foram financiadas por editais internos de auxílio à pesquisa do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / UFRJ. Agradeço a essas instituições, em especial o PPGAS, onde os excelentes colegas, professores, funcionários da secretaria, da biblioteca e todos mais ajudaram muito para que o trabalho pudesse ser concluído. Agradeço imensamente a minha orientadora, Olívia Cunha, pelo profundo interesse e empolgação com minha pesquisa, pelas leituras atentas, pelos caminhos abertos e indicados. A Márcio Goldman, agradeço por todos os conselhos, leituras e incentivos, por topar a estranha posição de coorientador e pela inspiração intelectual. Aos membros titulares e suplentes da banca, Eduardo Viveiros de Castro, Federico Neigburg, Flávio dos Santos Gomes e José Jorge de Carvalho, Julia Sauma e Luiza Elvira Belaunde pela oportunidade da ouvir seus comentários. À força-tarefa que ajudou a revisar a tese: Pedro Kalil, Davis Diniz, Raquel Freire, Carol Macedo, Theo Duarte, Marina França, Kleyton Rattes. A Marina Lacerda e Ricardo Napoleão pelo auxílio na “nota linguística”. Aos colegas do PPGAS, LAH, NAnSi e da antropologia, pela troca de ideias, pelas cervejas e conversas: Alline Torres, Ana Carneiro, André Dumans Guedes, Bruno Sotto Mayor, Camila de Caux, Claudia Bongianino, Clémence Léobal, Eric Macedo, Indira Caballero, Janaina Lobo, João Lagüéns, Kleyton Rattes, Leonor de Oliveira, Luana Almeida, Luisa Girardi, Luiz Felipe Benitez, Luiza Flores, Magdalena Toledo, Marcela Franzen, Márcia Nobrega, Marcos Carvalho, Marília Lourenço, Orlando Calheiros, Patrick Arley, Pedro Braum, Rafael Barbi, Raphael Bispo, Simone Silva, Suzane Vieira, Virna Plastino. A Eduardo Viana Vargas agradeço pela primeira base de minha formação antropológica. Por leituras atentas de trechos desta tese e ou ideias que me ajudaram muito, agradeço especialmente a Bruno Marques, Carlos Gomes de Castro, Edgar Barbosa Neto, Flávia Dalmasso, Gabriel Banaggia, Joseph Handerson, Julia Sauma, Mariana Renou.

v Marcelo Moura Mello e Thiago Niemeyer Loureiro, além de amigos e colegas com quem dialoguei constantemente, abriram-me as portas de seus campos. Thiago me apresentou Paramaribo e Marcelo, a Guiana e o templo de Blairmont. Ainda espero um dia, em troca, levá-los a Botopási. Felipe Evangelista e Guilherme Heurich, obrigado por todas as presenças, conversas e pelo companheirismo. Stuart Strange, além de amigo, foi um dos principais interlocutores ao longo de toda a tese. Muitas das ideias aqui contidas surgiram ou foram desenvolvidas em conversas com ele. Richard e Sally Price mostraram-se muito abertos em ajudar sempre que precisei. Obrigado pela generosidade. No Suriname, agradeço a Jurn Kolader, a Pieter van Maele, a John Willems, a Julian Vadas, a Marina da Costa, a todo o pessoal do Albergo Alberga e aos membros do Peace Corps: Lenny Teh, Amber Tris Ray, Michelle Chaffee (que fez companhia em Botopási) e Dale Batistolli (que nosso diálogo continue). Em 2014 tive muito prazer em conhecer Menno Marrenga, que apresentou-me novas perspectivas sobre o Alto Suriname e sobre os saamaka. Amor e gratidão a toda minha família. Em especial ao meu irmão Davi, coisa mais linda do mundo. Ao meu irmão mais velho João Francisco, minha mãe Juçara, meu pai Rogério, minha tia Jurema, meus primos Elisa e Ramiro e meu padrinho Francisco. Aos amigos do Rio, Belo Horizonte e alhures, que me perdoem pelas ausências nos últimos tempos e obrigado por todos os bons momentos: Amanda Meirinho, Ana Paula Carvalho, Beatriz Filgueiras, Bruna Gisi, Bruno Corrêa, Bruno Paes, Carol Macedo, Davis Diniz, Fernando Pacheco, Frederico Abraham, Geovana Bittencourt, Ismar Tirelli Neto, Larissa Selhorst, Luisa Marques, Júlia Cabo, Maria Isabel Lamim, Marina França, Paula Terra, Paulo Scarpa, Viviane Maroca. Durante alguns desses últimos anos morei com Orlando Scarpa. Foi muito divertido. Obrigado pelos bons drinks, boas piadas, boas conversas, e por toda força. A Ruth Beirigo, obrigado pelos anos que passamos juntos. Pedro Kalil Auad e Theo Duarte, pela amizade de tanto tempo e para tudo. Raquel Freire deu luz e suporte incondicional ao último ano, que seja só o início. Taxi e Cuíca, beijos e afagos.

vi Com especial carinho e gratidão agradeço a todos os saamaka que me ensinaram muito além do que cabe num livro. Meu obrigado especial à família Eduards e afins, que me hospedaram e acolheram, fazendo com que me sentisse em casa: Kabiteni Ronald, Juliana Wens, Justus, Remfrei, Suzette Seedo, Trifena, Sonja, Milthon, Min, Wella, Ian, Yasser, Obinadap, Basia Gustaav e Demai. A Albertin Seedo pelos primeiros contatos que levaram-me a Botopási. Aos capitães da aldeia: Ronald Eduards, Bernhard Akiemboto e Ruel Wens. Aos meus amigos Daro (Reimi), Apodo Wojo (Imro) e Bernard pelos ensinamentos e bons momentos. A Milthon por tudo isso e por ainda ajudar a sanar minhas últimas dúvidas, via telefone ou Facebook. Agradeço ainda a Basia Belfon Manuels, Basia Harry Wens, Laleith, Ferdie, Balisi, Amuduju, Arno, Elsje Apatoe, Maijin, Voona, Lona, Yeye. Às crianças, pela alegria: Jealeasma, Migesa, Ofienda, Dofilio, Jamelfi, Ditsha, Usha, Kimani, Imra Rotoio, Precious, Jennely, Jovanildo. E aos hoje não tão mais crianças Denilson e Bede. Híi saamáka sëmbë, gaántangí, tangí, tangí.

vii

Sumário Nota Linguística ................................................................................................... 1 Introdução ............................................................................................................ 3 Botopási ................................................................................................................. 4 Histórias ................................................................................................................. 9 Padrões .................................................................................................................. 18 Populações ............................................................................................................. 20 Línguas .................................................................................................................. 23 Incertezas da localização etnográfica ..................................................................... 25 Cristianismo, morte e comparação ......................................................................... 32 Usos da literatura ................................................................................................... 37 Estrutura da Tese ................................................................................................... 43 Capítulo 1: Funerais, regras e autoridade ........................................................ 49 Ouvindo um morto ................................................................................................ 49 O ciclo funerário numa aldeia cristã ..................................................................... 53 Comparações e colaborações ................................................................................ 61 Um universo de regras ........................................................................................... 68 Um morto no ano novo, uma morta na cidade ...................................................... 75 Cargos políticos e o conselho da aldeia ................................................................. 83 Decisões e retóricas dos kuútu ............................................................................... 92 Mudanças e debates ................................................................................................ 97 Capítulo 2: Variações sobre os mortos .............................................................. 107 Um debate sobre o conceito de alma ..................................................................... 107 Gente fria ............................................................................................................... 114 Fantasmas, ancestrais, assombrações .................................................................... 115 Terra dos mortos .................................................................................................... 124 Uma conversa sobre taku deodë .............................................................................. 128 Morte feia e boa morte ........................................................................................... 130 Capítulo 3: Rituais de cuidado e separação ...................................................... 135 Lavando um cadáver ............................................................................................. 136 Agradar ao morto .................................................................................................. 139 A cova .................................................................................................................... 143 Contágio, agência e perigo .................................................................................... 149 O caixão ................................................................................................................. 152 O cemitério ............................................................................................................ 155

viii Clivagens antes e depois da morte ........................................................................ 159 Separar mortos e vivos .......................................................................................... 163 Removendo tabus .................................................................................................. 167 Limpar os cabelos, controlar a putrefação ............................................................ 169 Luto ....................................................................................................................... 173 Tempo-espaço da morte ........................................................................................ 175 Capitulo 4: Amarrar ventres .............................................................................. 179 O trabalho de um deodë basiá ................................................................................. 179 Tecidos e alimentos ............................................................................................... 187 As trocas funerárias ............................................................................................... 192 Reciprocidade ........................................................................................................ 197 Dinheiro ................................................................................................................. 203 Amarrando e (re)fazendo pessoas e grupos ........................................................... 208 União e alegria ....................................................................................................... 213 Herança .................................................................................................................. 222 A casa do morto como centro dos vivos ................................................................ 226 Capítulo 5: Espíritos vingativos e padrinhos espirituais ................................. 233 Seis casos de kúnu ................................................................................................. 235 Origens dos espíritos vingativos ............................................................................ 240 Kúnu de animais e outros espíritos ........................................................................ 242 Ações e reações ..................................................................................................... 246 Catástrofes ............................................................................................................. 252 O kúnu como instrumental moral .......................................................................... 254 Vulnerabilidades compartilhadas …...................................................................... 258 A linhagem do pai ................................................................................................. 263 Padrinhos espirituais ............................................................................................. 268 Pessoas, grupos e vulnerabilidades ....................................................................... 273 Capítulo 6: Cristianismos saamaka ................................................................... 277 Paulus Anake e os moravianos .............................................................................. 277 Três aldeias, três religiões ..................................................................................... 290 O funcionamento da igreja em Botopási ............................................................... 292 Os cultos dominicais ............................................................................................. 296 Outras kulturu, outras religiões e outras denominações ........................................ 300 Os pentecostais ...................................................................................................... 305 Paganismo ............................................................................................................. 314

ix Desenvolvimento ................................................................................................... 319 Ser originalmente saamaka .................................................................................... 325 Visibilidade ............................................................................................................ 331 Capítulo 7: Magias, divindades, Deus e outras crenças ................................... 339 Óbia ....................................................................................................................... 339 Gádu ...................................................................................................................... 345 Deus à frente .......................................................................................................... 352 Bíblia, palavras e experiências .............................................................................. 358 Pecados, maniqueísmos e demônios ..................................................................... 365 Conversão e alianças ............................................................................................. 371 Crenças .................................................................................................................. 374 Conclusão: Tempo, espaço e fuga ....................................................................... 381 Antropologia e Tanatologia …............................................................................... 382 Efeitos temporais do controle ritual ...................................................................... 385 Vida e ancestralidade ............................................................................................. 391 Fissões e durações de linhagens ............................................................................ 396 Tempo de vingança ................................................................................................ 400 Espaço-tempo da fuga ........................................................................................... 404 Estética e ética da fuga .......................................................................................... 408 Um Estado dentro de um Estado? ......................................................................... 410 Resistências e incorporações ................................................................................. 415 Alianças com igrejas ............................................................................................. 418 Conversão e transformação ................................................................................... 427 In memoriam .......................................................................................................... 431 Referências ........................................................................................................... 433 Glossário ............................................................................................................... 447 Termos de parentesco .......................................................................................... 456 Mapas ................................................................................................................... 457 Fotografias ........................................................................................................... 465

x

1

Nota linguística Utilizo a grafia holandesa do dicionário Prisma , sranan e saamaka do Summer Institute of Linguistics . A seguinte formatação é usada para termos estrangeiros: itálico sublinhado para saamákatoongö (saamaka); itálico duplo sublinhado para sranan tongo (sranan ou surinamês); negrito itálico para nederlands (holandês); negrito simples para títulos de obras; itálico simples para ênfase ou para palavras em outras línguas, incluindo, quando necessário diferenciá-las, as outras línguas maroons do Suriname. No caso das últimas, mantive a grafia utilizada pelos autores em que me apoio. Mantenho nomes de pessoas e locais sem formatação. Quadro da fonologia básica saamaka com símbolos ortográficos e fonéticos entre colchetes quanto diferentes do esperado. Labial Oclusivas não vozeadas

Alveolar Palatal

k

d [d~ɗ]

tj [tʃt ] dj [dtʒ]

Lab-vel t kp [kp~kw]

g

gb [gb~gw]

nd [nd]

ndj [nɟ]

ng [ŋg]

nj [ɲ]

p

t

b [b~ɓ]

Oclusivas prenazalizadas mb [mb]

Oclusivas vozeadas Oclusivas nasais

m

n

Fricativas não vozeadas

f

s

Fricativas vozeadas

v

z

Aproximantes

l

Velar

Glotal

h [h] j [j]

w [w~hw]

Tabela 1: consoantes saamaka (adaptada de Good & McWhoter 2012: 1).

Anterior

Central

Posterior

Fechada

i

u

Fechada longa

ii [i:]

uu [u:]

Semifechada

e [e]

o [o]

Semifechada longa

ee [e:]

oo [o:]

Semiaberta

ë [ɛ]

ö [ɔ]

Semiaberta longa

ëë [ɛ:]

öö [ɔ:]

Aberta

a

Aberta longa

aa [a:] Tabela 2: qualidades vocálicas básicas saamaka (adaptada de Good & McWhoter 2012: 2).

2 As vogais em saamaka podem ser longas [ɛ:] ou curtas, como em këeo [kɛ:] (chorar) e keo [kɛ] (querer). As vogais curtas podem ser orais ou nasalizadas, como em dá [da] (dar) e dán [dã] (corredeiras). Na ortografia adotada, vogais longas são representadas por duas letras, como em heépi [he:pi] (ajudar); vogais nasais são seguidas de , zöndu [zɔɔ du] (pecado); a trema marca a abertura da vogal, o acento agudo marca o tom. Para uma análise do uso de tons em saamaka, cf. Good 2006. Em saamaka o plural é marcado por modificadores nominais (artigos, números etc.) ou pronomes, não por sufixos. Nesta tese, palavras saamaka não são pluralizadas. Adoto a etnonímia “saamaka” [sa:ˈmaka] ao invés de “saramaka”, pois não existem róticos na língua saamaka. É uma paroxítona. Para auxiliar na pronúncia de alguns fones: d – como em didíbi (diabo) – soa como d no português “dama” (articulação alveolar); dj – como em djéi (parecer) – soa como j no inglês “jazz” (incluindo articulação alveolar); g – como em geébi (cemitério) – soa como g no português “garfo”; h – como em hógi (perigoso) – soa como r no português “rato”; j – como em jejé (espírito) – soa como y no inglês “yes”; k – como em koondë (aldeia) – soa como c no português “casa”; nj – como em nján (comer) – soa como nh no português “canhão”; s – como em sëmbë (pessoa) – soa como s no português “sapo”; t – como em tíngi (fedor) – soa como t no português “taco” (articulação alveolar); tj – como em tjína (tabu) – soa como ch no inglês “change” (inclui articulação alveolar); w – como em wísi (feitiço) – soa como w no inglês “wall” z – como em zoondu (pecado) – soa como z no português “zebra”. e – como em kési (caixão) – soa como ê no português “você”; ë – como em së (lado) – soa como é no português “pé”; o – como em vodú (jiboia) – soa como o no português “comer”; ö – como em dooö (porta) – soa como ó no português “só”. Um glossário segue nos anexos, para auxiliar a leitura.

3

Introdução Diante de uma morte, como proceder? Em Botopási, aldeia saamaka cristã no Alto Suriname, há muito a ser feito, sempre que alguém perde a vida: são muitos os preparativos para toda uma série de rituais funerários que se estendem por semanas e meses depois de uma morte. Muitos trabalhos, celebrações e trocas serão feitas em homenagem ao falecido e a sua família, toda a aldeia é envolvida. A morte é perigosa, o morto é perigoso e, portanto, é preciso extremo cuidado para que a vida possa seguir sem demasiados percalços após a perda de um membro da comunidade. Procedimentos acerca de como levar a cabo gestos rituais que afastam as ameaças, agradam o falecido e trazem de volta alegria e união para a aldeia seguem uma ordem. Ao longo do volume que se abre, buscarei compreender ideias e práticas que cercam a morte e os mortos na aldeia de Botopási; como os saamaka de Botopási interagem com os humanos fantasmas, ancestrais e outros espíritos que habitam um mundo paralelo e um tanto misterioso, a terra dos mortos; como o espaço-tempo em que vivem os saamaka é marcado pelos antepassados, outros espíritos e poderes; como as biografias e os corpos carregam relações com falecidos, projetando as existências para o passado e para o futuro; como as pessoas restabelecem a normalidade das relações que compõem grupos e corpos após a fratura provocada pela passagem de um parente ou amigo do mundo dos vivos para o além; como os modos de viver e de morrer de hoje e de ontem guiam as pessoas em seus cotidianos e ideais. Os procedimentos dos rituais funerários são regulados pelos costumes, seguem a maneira que as pessoas estão acostumadas a fazer as coisas, o modo seguro e conhecido de lavar, amortalhar, enterrar, homenagear, controlar um morto. Entretanto, todo o ciclo funerário é marcado por debates intensos sobre cada passo dos rituais. Há padrões estabelecidos, há maneiras corretas de agir, mas os detalhes estão abertos a discussões e em muitos sentidos dependem delas. Precisar a data de um rito, o tamanho justo da cova, os momentos exatos de chorar e rezar, a quantidade de presentes que serão doados e para quem – tudo isso demanda um consenso entre os envolvidos que se desenha por argumentos que têm, também, hora e formato certos para aparecerem. Tratando-se de uma aldeia maroon cristã, os costumes levam em conta não apenas os modos de fazer as coisas dos antigos, mas também aqueles indicados pela Bíblia e pela igreja. Assim, as discussões são também acerca de como conjugar a tradição cristã que está

4 sedimentada em Botopási há mais de cem anos com aquela legada pelos antepassados. Os engajamentos com forças naturais, sociais e sobrenaturais – que certamente nunca estão apartadas – são pesados e manejados a todo tempo, tornando-se particularmente relevantes quando de uma morte. Mudanças derivadas da conversão e do desenvolvimento econômico – tampouco apartadas – ganham mais atenção quando tangem práticas funerárias. Os saamaka aceitam alianças com aspectos dos modos de vida estrangeiros, dos brancos, mas constroem as transformações em suas vidas e mortes a partir de suas definições acerca daquilo com que relacionam-se. O que jamais deixa de incluir, em sua constituição, as perspectivas dos vivos, dos mortos, de Deus e das divindades. Para entender tudo isso, comecemos dando uma volta pela aldeia.

Botopási Numa placa já um pouco apagada está escrito o nome da aldeia: Botopási. O local é o Alto Suriname, rio que corta o centro do país em meio à floresta amazônica no planalto das Guianas. No ancoradouro chamado Patáka Pási (“caminho da traíra”), entrada principal da aldeia, é comum ver mulheres e crianças se banharem, lavarem roupas e panelas, pescarem. Homens também sentam por ali, talvez para beber cerveja e se refrescar nas pedras, no calor do período de seca; talvez para consertar motores de popa ou canoas; talvez para esperar alguém que chegará na aldeia de barco.1 O chão de concreto do ancoradouro, onde as mulheres esfregam as roupas, foi uma obra pública financiada há alguns anos pelo Ministério de Desenvolvimento Regional (Ministerie van Regionale Ontwikkeling). De pé sobre ele, enxergamos uma paisagem rica. À leste, na margem oposta do rio, a mata é exuberante, mas não cresce tão alta, revelando que a área adjacente há muito vem sendo usada na agricultura de coivara. Sobe alto uma kankantíí2, a maior espécie de árvore da floresta, cuja derrubada é tabu, pois nela habitam espíritos da floresta. A mata é interrompida pelo gramado bem jardinado do Hotel Botopasi, que desde 2007 recebe turistas, sobretudo holandeses, em uma espaçosa casa de dois andares ou em pequenas cabanas de madeira em estilo tradicional adaptadas ao gosto europeu. Ao sul, desponta uma torre de celular da multinacional das telecomunicações Digicel, erguida há menos de uma década no alto de um morro. Para o norte, em direção à costa, corre o Rio Suriname, que tem naquela altura um de seus pontos de difícil navegação devido à abundância 1 2

O mapa 1, nos anexos, pode acompanhar o leitor na descrição. Ceiba Pentandra. Conhecida no brasil como mafumeira. Minha referência principal para identificação de vegetais é Andel & Ruysschaert 2011; para a de animais, Moonen 2006.

5 de rochas – para passar por ali é preciso conhecer bem o rio, na vazante é comum barqueiros inexperientes chocarem-se contra as pedras. A oeste fica a aldeia propriamente dita. Diretamente na beira do rio há poucas casas, o que se compreende ao subir alguns metros e ler uma placa que marca o nível máximo ao qual chegou o rio, numa cheia que teve seu ápice em 6 de maio de 2006. Ainda assim, de Patáka Pási é possível ver algumas casas de alvenaria, moradias dos professores da escola local, algumas casas menores de madeira, um antigo depósito de gasolina e uma pequena loja (weonkë), onde se pode sentar e se esconder da chuva. O visitante que pegou uma van em Saramaccastraat, rua de intenso comércio no centro de Paramaribo, seguiu a estrada até seu fim em Atjooni, principal porto do rio Suriname, e ali entrou num barco a motor para Botopási, pode notar que em Patáka Pási não há um arco de palhas de inajá3, o chamado azan, que marca entrada da maioria das aldeias pelas quais passou no caminho. Os azan protegem as aldeias saamaka contra a entrada de maus espíritos, mas Botopási dispensa o portal, pois é, desde sua fundação, uma aldeia cristã vinculada à Evangelische Broedergemeente in Suriname (doravante EBGS).4 A igreja não fica longe e é uma das maiores edificações locais, pintada de branco e verde para a grande festa de aniversário de 115 anos da aldeia, comemorada no feriado de páscoa de 2011. Fora isso, à primeira vista Botopási não difere muito das outras mais de 50 aldeias saamaka do Alto Suriname. Ainda nas proximidades do rio há um grande estrutura coberta, sem paredes , em cuja entrada lê-se Krutu Oso (“casa de reuniões”, em sranan), referido em geral como Zal (salão, em holandês); uma casinha para o moinho de arroz mecânico, obra do partido político maroon ABOP; e outra pequena casa com um grande gerador de onde partem os postes que distribuem eletricidade durante três ou quatro horas por noite – quando o gerador fornecido e mantido pelo governo nacional não está com defeito e quando não falta diesel. Isso tudo é comum em outras aldeias.5 O caminho principal que se inicia em Patáka Pási cruza a aldeia, passando por pontos importantes: uma outra construção, menor, referida como kuútu gangása (galpão de reuniões), que leva o nome de um importante líder do século XX, kabiténi Jonathan Ritfeld (Logopai). Ao seu lado, uma enorme mangueira dá sombra a um gramado adornado em seu centro por um mastro, onde, nas datas relevantes (como feriados nacionais) hasteiam a bandeira 3 4 5

Attalea maripa, palmeira chamada em saamaka de maipá, cujas frutas são muito consumidas e as folhas usadas também para fazer tetos de palha. Em tradução literal do holandês, “Irmandade Evangélica do Suriname”. Também conhecida como Igreja Moraviana do Suriname, denominação presente desde 1735 no país e desde 1765 no Alto Suriname. ABOP –  Algemene Bevrijdings­ en Ontwikkelings Partij  (Partido da Libertação e do Desenvolvimento Geral), de maioria maroon.

6 surinamesa. Do lado oposto encontramos uma casa que se destaca pela qualidade de sua construção e decorações, e por uma placa que indica ali ser o Beleids- en Bestuurcentrum (Centro Político-Administrativo), usada para reuniões do conselho da aldeia. Poucos metros a frente, propagandas da mais popular cerveja do Suriname, Parbo, marcam a entrada outro dos cinco weonkë (lojas) da aldeia, que servem como bares, mercearias e pontos de encontro. Para chegar ao complexo de prédios que sedia a escola primária (vinculada à EBGS) seria preciso fazer um pequeno desvio e passar por uma pequena ponte de concreto sobre o que resta de um pântano aterrado. Para ver a entrada do cemitério o caminho é outro e este poderia facilmente ser confundido com uma trilha para o mato, o que não seria um erro tão grande posto que o local se encontra em meio à sombra das árvores, crescendo em direção à floresta. Seguindo pelo caminho principal, na outra ponta da aldeia fica a pista de pouso de aviões, servida por companhias locais, principalmente para trazer turistas, transportar doentes entre a cidade e a policlínica vizinha, Debikeo e para autoridades em visitas oficiais. Ao lado da pista, mais uma loja/bar e um campo de futebol ladeado por algumas construções e máquinas antigas, abandonadas em meio ao lixo plástico de embalagens descartas. Próxima, fica uma grande casa de alvenaria denominada Vrouwencentrum (Centro das Mulheres), que já funcionou como creche mantida pelas mulheres da aldeia e como local de ensaio da banda local de kaseko (ritmo musical surinamês). Cruzando a pista de pouso, já não estamos mais no caminho principal. Podemos seguir por gaán bákasë pási, o “grande caminho da mata”. Será preciso atravessar um igarapé (kiíki) por um tronco de madeira que serve como ponte. Quando não está seco, ali mais crianças brincam, banham-se, mais mulheres lavam seus pertences. Do outro lado, na área da aldeia de construção mais recente, as casas vão aos poucos tornando-se mais espaçadas entre si, há mais árvores de pé e já não há construções coletivas públicas. Vão tornando-se mais raros alguns barulhos, como rádios ligadas na estação Maifei (que transmite desde Bëndëkoondë, no sul do território saamaka), de conversas, televisões, músicas, motocicletas, plainas elétricas, galinhas. Ouve-se cada vez mais pássaros e insetos. Dependerá da hora do dia e da época do ano a quantidade de atividade humana que se encontrará por ali. Se não houver chuva, talvez uma serra elétrica na distância ou o som de um machado cortando lenha. Pois ao longo do caminho saímos de gandá (a aldeia propriamente dita), onde as pessoas vivem a maior parte de seu tempo, e penetramos em bákasë, o “lado de trás”, a floresta, onde por veredas alcançamos os locais de caça e as roças das pessoas.6 Como na aldeia, cada caminho, cada 6

Em saamaka, gandá é o centro da aldeia, é o local onde as pessoas vivem, onde estão suas casas, o local onde a aldeia foi fundada, onde fica o principal ancoradouro, a principal entrada da aldeia. A palavra revela

7 área, cada corpo d'água tem nome, mas as referências aqui já não são mais a casa de Fulano, uma loja, a pista de pouso, e sim um grande cedro, uma concentração de palmeiras frutíferas, a antiga plantação de alguém. A área de roças ativas estende-se por vários quilômetros, pelas trilhas tortuosas atinge-se a última delas em três ou quatro horas de caminhada. A área utilizada para caça e coleta vai muito além, no limite oeste chega até o território dos matawai, a tribo maroon que habita o rio Saramacca7. À leste, atravessando o rio, muitas pessoas têm roças e utilizam uma área igualmente extensa para caça e coleta. Voltando à aldeia, as casas não são distribuídas homogeneamente. Um ou dois galpões (gangása) são utilizados por moradores de talvez quatro ou cinco casas em seu redor como cozinha externa e depósito. Uma área assim, com casa, construções, árvores frutíferas e pequenas hortas, grosso modo, configura o espaço de um matrissegmento (wósu déndu). Mas isto é algo que leva um tempo para perceber. Sendo a construção e a reforma de habitações uma das atividades às quais mais devotam tempo, o desenho da aldeia muda com frequência. De um ano para outro, onde havia um caminho agora há uma construção, uma casa deixa de ser utilizada, um galpão em uma roça foi reformado para tornar-se a habitação fixa de alguém, um pedaço da mata foi derrubado, enquanto em outro ponto a floresta retoma uma roça desativada. Casamentos, desquites, a chegada da idade adulta, problemas com vizinhos, mortes, o desgaste natural de uma casa antiga ou o acúmulo suficiente de dinheiro para uma nova... Vários são os motivos para as mudanças, além da sazonalidade da agricultura. Como muitos habitantes da aldeia passam grandes períodos em outras aldeias, no garimpo, na cidade, ou mesmo no estrangeiro, mas ainda assim fazem questão de manterem casas por ali, uma porção de construções permanecem boa parte do tempo desabitadas. O que não quer dizer que a aldeia esteja esvaziada. Todos os dias, após o trabalho, os moradores ficam nas portas de suas casas, trabalhando, descansando, conversando, ou comendo. O cheiro de peixe frito, arroz, frutas diversas, perfumes e óleos que passam no corpo enchem o ambiente de manhã cedo até a madrugada. Boa parte das casas é pequena, de madeira, mas, como a distribuição, tampouco a aparência é padronizada. Feitas em carpintaria caprichada, por vezes de madeiras variadas

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importantes aspectos da espacialidade saamaka que serão tratados mais a frente. Por hora, basta frisar que ela é oposta a bákasë, “o lado de trás”, o mato, onde estão as roças, as trilhas, a caça e o cemitério. Esta é uma fonte de confusão comum: muitos dos ancestrais dos saamaka fugiram pelo Rio Saramacca, que lhes deu o nome pelo qual o grupo ficou conhecido até hoje, mas se estabeleceram no rio Suriname. Os matawai, que possuem relações históricas e genealógicas complexas com os saamaka, estabeleceram-se no rio Saramacca. Na língua saamaka, o Alto Suriname é chamado de Saamáka Lío, “rio (dos) saamaka”, incluindo seus tributários Gaán Lío e Pikí Lío. Evito usar tal designação para não confundir. Porém, como os saamaka, ao referir-se ao território tradicional da tribo em geral, uso o termo saamaka, como na frase “ir para saamaka”, que significa ir para a região do Alto Suriname, ao sul do lago de Brokopondo.

8 criando padrões de cores, muitas possuem em suas portas entalhes decorativos em madeira, os teombë8, arte pela qual os maroons têm boa fama na região. Algumas são suspensas, algumas possuem varandas ou bancos fixos em seu entorno, para sentar, conversar, fazer tarefas domésticas. Os telhados podem ser de tipos diferentes de palhas trançadas, mas o uso de chapas de zinco, conjugadas ou não com palha, tem tornado-se regra. Paredes de palha, chamadas de mumúu, apesar de durarem décadas, são muito trabalhosas e por isto hoje em dia são pouco usuais. Essas casas menores costumam ter apenas um cômodo, dividido em dois por um lençol pendurado no teto, separando uma área de dormir, com cama e/ou rede e muitas sacolas com as posses das pessoas; e uma área com mesa, fogão, televisão, DVD, freezer etc. São habitações de apenas um homem, ou de uma mulher com ou sem crianças, chamadas de saamáka wósu (casas saamaka). Com elas contrastam casas maiores, de madeira ou tijolos, piso de cerâmica ou concreto, divididas em vários cômodos, capazes de abrigar uma família inteira. Essas são chamadas de bakáa wósu (casas de branco). Para deixar a aldeia, há trilhas que levam ao mato, aos ancoradouros (cinco são usados com frequência) e mais dois caminhos importantes. Ambos são largos e bem cuidados pelos funcionários saamaka do Ministério de Desenvolvimento Regional. Tratores, motos e pessoas carregando objetos em suas cabeças ou em carrinhos de mão circulam constantemente. Ambos são ladeados por mata secundária e roças, mas ali nem todas são de habitantes de Botopási: há divisões conhecidas por aqueles que dominam a geografia histórica do local sobre qual área pertence a qual clã ou matrilinhagem. Para o sul, em direção à líbasë (montante), trinta minutos de caminhada levam a Kambalúwa e Köönooö, aldeias geminadas do clã Nasí. Para o norte, em direção à báusë (jusante), em quinze minutos chega-se a Debikeo, posto médico da Medische Zending (Missão Médica), estabelecido na década de 1960, onde trabalham médicos cubanos ou holandeses e enfermeiros e funcionários surinameses. Pouco à frente, chega-se a Futunaákaba, aldeia do mesmo clã de Botopási, Dómbi. Aldeia pequena, com cerca de cem habitantes, que há décadas converteu-se ao pentecostalismo do Volle Evangelie (Evangelho Pleno, doravante VE). Dali é preciso andar 40 minutos para chegar a Pikísééi, grande aldeia de mais de mil habitantes, também Dómbi, que não adota o cristianismo. Durante o dia, em uma semana comum, boa parte das pessoas está ausente da aldeia. Vão trabalhar na roça; vão ao mato caçar, coletar frutos ou cortar madeira; vão ao rio pescar, transportar passageiros, lavar roupas ou louças; vão a outras aldeias trabalhar fazendo pedras, 8

Teombë é um termo mais geral que serve para vários tipos de artes decorativas, desde o bordado até desenhos nas superfícies dos beijus. A arte masculina do entalhe em madeira é a forma prototípica do teombë, à qual a palavra refere quando usada sem qualificadores (cf. S. Price 1993 [1984, Price & Price 2005 [1999]).

9 numa pousada para turistas, ou vão visitar parentes. Sobretudo o trabalho na roça, fortemente sazonal por depender do regime de chuvas e os trabalhos remunerados alhures deixam as pessoas ausentes, longe de suas casas por semanas a fio. A morte muda tudo. Todos devem parar suas atividades, quaisquer que sejam, quando os sinos da igreja dobram, anunciando a morte de alguém de Botopási ou que tem relações fortes com a aldeia. Os ritmos e movimentos alteram-se. Gandá, a aldeia, vira polo de atração. Residentes, ex-residentes e visitantes devem vir o mais rápido possível. Com os empregos na cidade, isso nem sempre ocorre, mas o ideal é que, havendo um morto em Botopási, estejam todos ali presentes, desde a vigília que antecede o enterro e durante os próximos sete dias, distribuindo e recebendo presentes, comida e bebida, jogando jogos e cantando músicas para alegrar a família do morto. Por outro lado, os serviços que devem ser feitos para o ritual são levados a cabo com agilidade. Em parte pela necessidade de união na hora da morte, há enorme dispêndio de tempo e recursos para os funerais. Nada pode ser postergado, não é tempo para economizar bens, dinheiro ou esforço.

Histórias Antes de falar sobre morte, algumas informações básicas para localizar o leitor. O Alto Suriname é o território tradicional dos maroons saamaka, povo descendente de escravos fugidos das plantations da região costeira do Suriname.9 As principais fugas ocorreram, de acordo com R. Price (2002 [1983]), aproximadamente entre 1690 e 1750. Em geral, conjuntos de fugitivos aldeados agruparam-se em loo (clãs) e adotaram o nome da plantation da qual escaparam ou de seu dono. Os clãs foram reorganizando-se a partir de 9

O termo maroon é derivado do espanhol cimarrón palavra originalmente usada para referir a cavalos fugidos, depois a escravos fugidos (R. Price 1996 [1973]). No inglês, a categoria que inclui os palenqueros e cimarrónes da América hispânica, os quilombolas e mocambeiros do Brasil, os maroons no Caribe britânico, os nègres marrons do Caribe francófono, os grupos do Suriname e da Guiana Francesa, etc. Opto por não traduzi-lo pelo termo quilombola, seguindo o uso da literatura em que me baseio. Em holandês, o termo mais comum para referir às seis tribos maroons das Guianas – saamaka, kwiti, matawai, ndyuka (ou aukaner), pamaka e aluku (ou boni) – era bosnegers, literalmente “negros do mato” (em inglês bush negroes). O termo hoje é visto na academia, na imprensa e outras instâncias locais como politicamente incorreto. Nos anos 1960, o NPS, partido político afrosurinamês, chegou a cunhar o termo boslandcreool, (creoles do mato) na tentativa de aproximá-los dos creole da costa, mas os marrons nunca aderiram ao seu uso (cf. Bilby 1990: 525-6). O termo maroon ou marron têm sido adotado na academia e em outras instâncias oficiais. Na fala cotidiana, surinameses da Costa e não-maroons continuam usando a expressão mais antiga ou o termo djuka para se referir a todos os grupos. A última opção é vista como preconceituosa pelos saamaka, que fazem questão de afirmar diferenças – linguísticas, culturais, comportamentais, históricas – com os ndyuka. Apesar da estranheza que causa hoje o termo bush negro, suas versões em saamaka (busineongë) ou sranan (busnengre) não são em geral vistas como problemáticas pelos próprios. Diferentemente de negro em inglês, a palavra neongë não tem conotação negativa, de fato funciona quase como sinônimo para sëmbë, “pessoa” ou “gente”: botopásisëmbë (“gente de Botopási”) é o mesmo que botopásineongë (“negro de Botopási”).

10 casamentos, alianças, raptos e trocas com escravos, outros maroons e indígenas da região. Os fundadores do clã Dómbi fugiram por volta de 1710 das fazendas Surimombo e Palmenribo, no Baixo Suriname, perto de Jodensavanne (Savana dos Judeus), antigo centro de colonos judaicos, hoje em ruínas. Eram propriedades do dominee (reverendo) calvinista Johannes Basseliers, daí seu nome, Dómbi ou domineongë (lit. “negros do dominee”). Dali escapou, entre outros, Momóimítji, a ancestral apical do clã, cujas filhas e netas fundaram linhagens hoje existentes (ibidem: 108-111). Andaram pelo rio Suriname, estabelecendo aldeias em vários pontos, amiúde acompanhados por outros clãs, até fixarem-se em Sofibuka, nas proximidades de Botopási, que seria palco de um importante evento.10 O período até os anos 1760 foi marcado por conflitos com o poder colonial holandês: violentas expedições em busca dos escravos fugidos; saques dos maroons a plantations com fins de libertar mais escravos ou furtar bens necessários à sua sobrevivência; diversos conflitos armados. Foi uma época de guerra quase constante que forçava os primeiros saamaka a um seminomadismo. Tiveram de recorrer a grandes óbia – poderes mágicos trazidos da África ou descobertos no Novo Mundo em encontros com divindades nas matas – que auxiliaram nas batalhas e fugas, na exploração e domesticação do território. Para os colonistas, os conflitos constantes geravam enormes gastos econômicos e um medo constante dos “negros do mato”. Em 1762, após muitas batalhas e longas negociações, os saamaka conseguiram a paz, um século antes da abolição da escravatura, que viria em 1863. Um tratado foi estabelecido entre o governo surinamês e os saamaka, garantindo aos últimos o território em torno do Alto Suriname, além de tributos em bens importados e o reconhecendo das lideranças locais. Em contrapartida, ao menos no papel, deixaram de saquear plantations, acolher novos fugitivos e viajar para a costa sem autorização, além de permitirem a presença em suas terras de um funcionário do governo (o posthouder). Já em 1765, chegam os primeiros missionários moravianos nas terras saamaka (idem 1990). Na virada do século XVIII para o XIX, as missões tiveram sucesso restrito, mas conseguiram converter um homem chamado Alabi, o primeiro saamaka batizado, que viria a tornar-se gaamá (líder supremo da tribo) e precedente para os saamaka cristãos que o seguiram. O impacto do cristianismo no Alto Suriname foi forte, ainda que, para os Dómbi, a conversão só tenha ocorrido na última década do séc. XIX. Por volta de 1895, em Sofibuka, durante um ritual funerário, Anake, um dos homens que carregava o caixão (usado como oráculo para se comunicar com o morto) foi possuído por 10 Os Dómbi costumavam dividir aldeias, desde o século XVIII, com os clãs Awaná e Nasí. Meus informantes citam Wánganían, Kuútubúnu e Waafu. R. Price (1990), cita ainda aldeias chamadas Kumako e Sentea.

11 um “espírito da igreja” (kéíki jejé) que o fez destruir altares de divindades e objetos de culto da aldeia a fim de instituir um novo culto cristão (cf. Thoden van Velzen & van Wetering 1988). Tratarei em detalhes desta história no capítulo 6. Aqui, o importante é entender que o episódio de Anake foi um marco na história do clã, ainda que nem todos os habitantes de Sofibuka tenham colocado sua fé no messianismo e iconoclastia daquele espírito e de seu médium. Após longos dilemas e discussões, decidiram partir a aldeia: Pikísééi foi fundada por aqueles que não queriam associar-se ao cristianismo nem abrir mão de divindades e óbia; Futunaákaba por Anake, parte de seus familiares e seus seguidores; Botopási pelos que escolheram aderir ao cristianismo sem seguir a liderança daquele, tornando-se uma igreja vinculada à EBGS; Abénásítónu foi fundada por outro grupo que aproximou-se da igreja moraviana, mas que, por divergências com Anake, decidiu estabelecer-se mais distante, à jusante. Futuná, nos anos 1960, após a morte do líder espiritual, converteu-se ao pentecostalismo do Volle Evangelie. Com exceção de Abéna, as outras três aldeias são próximas, quase todos os habitantes delas têm parentes e relações pelas demais, o trânsito de pessoas, bens, serviços e espíritos é intenso. Participam e ajudam em rituais umas das outras. Paralelamente às lutas e fugas saamaka, outros grupos maroons estabeleceram-se no Suriname e na fronteira com a Guiana Francesa. Dois conseguiram tratados de paz semelhantes: os ndyuka (ou aukaner) nos rios Cottica, Tapanahoni e Marowijne; e os matawai no rio Saramacca. Outros três conseguiram manter sua sobrevivência relativamente independente ao longo de processos históricos distintos: os aluku (ou boni) no rio Lawa; os paamaka no Marrowijne; e os kwinti no Coppename (cf. Lenoir 1973; R. Price 1976; Beet & Sterman 1981; de Groot 2009; Hoogbergen 1989, 1992; Bilby 1990).11 Outros grupos maroons foram destruídos ou sobreviveram nas margens das plantations, tendo sido depois da abolição absorvidos à população creole, e hoje não são vistos (e nem se veem) como um povo distinto, ao contrário destas seis tribos, que se dizem busineongë, “negros do mato”, em oposição aos fótoneongë, “negros da cidade” (os creole, ou krioro12). A relação dos maroons com o mundo da costa é complexa. Dentre os diversos povos que habitam o país – creoles, javaneses, indianos, chineses – os “povos do mato”, (maroons e ameríndios) aparecem como aqueles que sofrem mais preconceitos. São discriminados pelos seus modos de vida, suas línguas, seu comportamento, têm maiores dificuldades em conseguir 11 O Mapa 2, nos anexos, localiza os principais estabelecimentos maroons nas Guianas. 12 Para referir aos afrosurinameses urbanos ou não maroon em geral, uso a expressão “creole” evitando as conotações negativas do termo “crioulo” em português. Exceto quando em referência às línguas crioulas, pois este uso já é mais estabilizado na academia.

12 bons empregos, acesso a serviços públicos de qualidade e postos de destaque no governo. Por outro lado, a retórica nacionalista festeja sua imagem de “guerreiros da liberdade” que lutaram bravamente contra a opressão escravista e colonialista. Por toda Afro-América, comunidades de fugitivos que rebelaram-se contra a escravidão são louvadas como exemplos heroicos de resistência. Os marrons das Guianas ocupam um lugar de destaque no imaginário acerca da experiência afro-americana pela maneira como suas lutas vitoriosas são amiúde contadas e por serem frequentemente vistos como mais isolados, tendo retido mais conhecimentos e práticas africanas (cf. Scott 1991). 13 Quanto à África, meus interlocutores em Botopási pronunciavam-se pouco. Quanto ao passado na América, parecem orgulhar-se ao saber que eles e seus antepassados são vistos com admiração e respeito por outros negros. Sigo-os nos dois pontos. Não vejo problema em pintar os saamaka como exemplos de resistência, desde que se atente para dois possíveis problemas. Primeiro, é preciso entender a ambiguidade com a qual são tratados nos países onde vivem: ao mesmo tempo que sua imagem é erguida como bandeira da resistência heroica, sofrem de imenso preconceito, sendo tratados como primitivos, inferiores, violentos, perigosos. Ademais, entre os creole surinameses, rebelião e resistência não deixam de ser temas manifestos (van Wetering 1995: 221). O que nos leva ao segundo possível problema: tomar os maroons das Guianas como parâmetros valorativos a partir dos quais outras experiências nas Américas são comparadas em termos gradativos: não faz sentido colocá-los num topo de uma escala a partir da qual outras populações negras seriam “mais aculturadas”, “menos africanas”, “menos heroicas”, “mais passivas” ou qualquer coisa do tipo. É preciso ter em mente que a imagem romântica de um povo isolado nas matas, vivendo a “África nas Américas” não ajuda a compreender os saamaka e os outros povos maroons, e também que suas lutas não se limitam àquelas travadas no tempo dos ancestrais. Apesar da relativa distância da sociedade colonial, ao longo do séc. XIX os maroons foram paulatinamente se aproximando do mundo da costa. Em 1835 e 1856 reformulações nos tratados de paz garantiram mais liberdade aos maroons fora de seu território, aprofundada com a abolição da escravatura em 1863. Mas demorou para que fossem de fato integrados na 13 André Pakosie (1996), antropólogo ndyuka, cita como uma das fontes desta imagem no Suriname a narrativa de John Gabriel Stedman (1992 [1796]), que desde o século XVIII firmou-se como um dos mais contundentes relatos a denunciar a violência do sistema escravista. Pakosie observa também no fundamental texto da luta anticolonialista surinamesa, Nós, Escravos do Suriname, de Anton de Kom (1981 [1934]), um exemplo da retórica que exalta líderes maroons. Mais recentemente, um exemplo desta visão aparece na versão romantizada de dois afro-americanos dos EUA acerca dos maroons do Suriname (Counter & Evans 1981). Toledo (2014) dá exemplos da imagem do nègre marron como personagem central no imaginário martinicano. Bilby (2006: 23ss) fala sobre o importante papel das imagens do passado dos maroons na identidade nacional jamaicana.

13 economia de mercado. Após a emancipação, os maroons, como a maioria dos creoles, recusaram os trabalhos assalariados que lhes foram oferecidos nas plantações de açúcar, café, tabaco, índigo e arroz que sustentavam a economia colonial. A solução do governo foi importar trabalhadores de contrato (indentured labor), trazendo levas de chineses, indianos e javaneses (a partir de 1858, 1873 e 1890 respectivamente). Muitos permaneceram na colônia após o fim de seus contratos e hoje formam populações numerosas no país (cf. Hoefte 1987; van Lier 2005 [1949]: 257-8). Os maroons estavam aproximando-se. Aldeias foram fundadas mais ao norte do território, próximas da cidade, e homens foram sendo absorvidos como mão de obra nas indústrias da madeira, da borracha e do ouro, participando principalmente como barqueiros nos ciclos econômicos coloniais. Tais atividades geraram alguma afluência que ajudou a reformular não apenas a vinculação com a costa, mas também relações econômicas, políticas e religiosas internas aos grupos, o que teve influência definitiva – na interpretação de Thoden van Veltzen & van Wetering (1983) – na emergência de novas formas religiosas, como o culto ndyuka a Gaan Tata e o episódio messiânico de Anake. Ao longo dos anos, administrações coloniais fizeram uma série de tentativas pontuais de transformar os maroons em “membros úteis da sociedade” (cf. de Groot 2009: 163-173). Numa colônia com histórico de baixa densidade populacional, marcada por uma série de projetos frustrados de importação de trabalhadores europeus, os ensaios de aproximação parecem ser decorrência do problema crônico de mão de obra. Na segunda metade do séc. XX este longevo desejo dos governos em Paramaribo começa a realizar-se, paralelamente ao processo de independência do país. Em 1954 a colônia passa a se autogovernar, deixa de ser Guiana Holandesa e torna-se oficialmente Suriname (Dew 1996). Em 1975, após anos de negociações com a Holanda, o país ganha independência. Nessas décadas de transição, o governo e os partidos políticos começam a se aproximar dos maroons, a migração dos últimos para a costa intensifica-se e diversificam-se os ramos profissionais em que atuam. Em 1964 a França começa a construção do Centre Spatial Guyanais (Centro Espacial Guianense) em Kourou, empregando largamente mão de obra aluku e saamaka (cf. Bilby 1990: 394ss; R. Price 2011: 41ss). Muitos saamaka habitam a Guiana Francesa desde então. 14 Hoje em dia, ir 14 A migração maroon para o território francês teve seu início antes, no séc. XVIII. Como decorrência da guerra contra as forças coloniais e os ndyuka, os aluku fizeram do Lawa e seus afluentes seus territórios sagrados, tendo estabelecido contatos com o governo francês que, de certa forma, permanecem guiando suas relações com os brancos (Bilby 1989). Entre os saamaka, a migração, na virada do séc. XIX para o XX para a Guiana Francesa esteve associada à economia do ouro. Grupos de homens instalaram-se em Tempaki e afluentes de rios próximos, estendendo-se a áreas ao norte do território brasileiro do Amapá (Price 2007).

14 para o “lado francês” é, entre meus interlocutores, um trajeto comum, para visitar seus parentes ou para buscar de emprego. Em 1964, uma hidrelétrica é inaugurada no Rio Suriname (ibid.: 32-40). Os saamaka não foram consultados, apenas alertados. A fim de gerar energia principalmente para a ALCOA (Aluminum Company of America), 25 aldeias saamaka do norte de seu território e seis aldeias ndyuka da região de Sara Kreek foram inundadas, somando cinco mil refugiados, na contagem oficial. Os saamaka falam em 43 aldeias e sete mil refugiados (a contagem oficial teria excluído crianças pequenas).15 O impacto foi enorme, grande porção do território tradicional saamaka foi para debaixo d'água, junto com antigos altares de divindades e antepassados, espaços sagrados, locais históricos. Cada afetado recebeu como “compensação” à época ƒ3 ou ƒ4 (florins), de acordo com uma testemunha “o suficiente para comprar uma panela de metal” (Fonkie 2007: 5). Cerca de um terço dos saamaka desalojados rumaram para o sul e criaram, com ajuda do governo, as chamadas folóísi koondë (aldeias de transmigração). Os demais mudaram-se para oeste do lago em cerca de treze aldeias no distrito de Brokopondo, ao longo de Afobakaweg, a estrada que sai da capital e leva até o porto de Atjooni, passando por grandes mineradoras e pela refinaria de alumínio da SURALCO 16. Em Botopási, costumam referir-se a toda esta região pelo nome de sua mais conhecida aldeia – Bronsweg (Boónswéki) – e aos seus habitantes como ganzeoneongë, “negros de Ganzeo”, em referência a uma das mais populosas aldeias que ficaram submersas, Ganzeo, então sede da missão moraviana na região. A estrada foi sendo asfaltada ao longo de meu trabalho de campo, e da última vez que lá estive, em 2014, estava pronta. Diariamente, dezenas de caminhões cruzavam escoando madeira. Às margens da estrada, o cenário é cada vez mais marcado por grandes buracos no mato, máquinas trabalhando sem parar. O porto de Atjooni tornou-se um centro do Alto Suriname, com escola secundária, supermercados chineses, restaurantes, postos de gasolina. Há agora postos policiais em Afobakaweg e também ao longo do rio. Por toda a região afetada pelo lago, conflitos de território são frequentes, posto que a realocação exigiu uma nova ordenação da posse de terra. Além disso, esta porção do território é hoje a mais ameaçada pela atividade aurífera e madeireira (legais e ilegais) que, movidas pelo capital internacional, avançam com rapidez em direção ao sul do país. 15 O lago da hidrelétrica de Afobaka, conhecido como stuwmeer (represa) tem uma superfície de 160.000 hectares e, segundo um estudo do Banco Mundial, a pior razão registrada no mundo entre superfície alagada e geração de energia (apenas 30 megawatts instalados, 5.333H/MW). Quer sigamos a estatística oficial ou a saamaka, a represa também está entre as piores do mundo em termos de pessoas desalojadas por energia gerada (166,7 ou 233,3 pessoas por megawatt) (Ledec & Quintero 2003). 16 Suriname Aluminum Company (Companhia de Alumínio do Suriname), subsidiaria que substitui nominalmente a ALCOA hoje no país.

15 A construção da hidrelétrica foi um trauma para os saamaka. Explicitou sua posição marginal na escala etnicossocial do Suriname, sobretudo nos processos decisórios, justamente no momento de descolonização, quando novas elites não brancas apropriavam-se do poder político. Os holandeses, adversários históricos dos maroons, com quem haviam guerreado e assinado a paz, saíam do poder e abandonavam a colônia. O ciclo de dependência não se encerrava, mas o opressor externo, branco, não dominaria o nascente país. A violenta inundação do território saamaka, naquele momento que poderia ser de esperança e renovação nacionalista, veio para confirmar sua histórica desconfiança em relação a estrangeiros de qualquer etnia.17 Ao mesmo tempo, serve como prova de que a distância da costa não os protegeria de ameaças externas. Era preciso engajar-se mais diretamente no mundo não saamaka para poder continuar vivendo como saamaka. A guerra civil que eclodiu em 1986 é um trauma ainda mais recente e, para os moradores de Botopási, mais contundente. Muitos autores leem a guerra civil como uma reação maroon à sua posição desprivilegiada na hierarquia etnicoclassista do Suriname (Bilby 1990: 505ss; Bourgarel 1990: 45; Singh 2007: 86; Paris 2011: 199-200). A motivação inicial do conflito pode ter sido outra, mais mesquinha, mas a adesão de um grande número de maroons à guerrilha certamente foi influenciada por estas questões. Em 25 de fevereiro de 1980, apenas cinco anos após a independência, o presidente Henck Arron (NPS) sofre um golpe orquestrado por um grupo de 16 oficiais não comissionados do exército liderados por Désire Bouterse, que ficaria no poder até 1991 (apesar de períodos de governos civis de fachada). Ao longo da década, Bouterse usa um discurso nacionalista universalista, valendo-se de sua ascendência mista (creole e ameríndia) para pregar o fim das divisões étnicas e, ao mesmo tempo, demonizar os partidos e o sistema político que reforçavam tais divisões no campo eleitoral (até então marcados sobretudo pela disputa entre creoles e indosurinameses, maiores grupos populacionais então). A violência da ditadura alcança um ponto alto em 8 de dezembro de 1982, quando 15 opositores civis e militares do regime são executados no Fort Zeelandia, evento conhecido como “assassinatos de dezembro” (decembermoorden), que ecoa fortemente no imaginário surinamês. Essas e outras mortes e desaparecimentos, conjugadas com a acusação de envolvimento direto do ditador no tráfico internacional de drogas, levaram a Holanda a retirar o apoio econômico que 17 R. Price (2002 [1983]: 11-14) chama de ideologia de first-time a visão negativa dos estrangeiros. Tal ideologia se manteria por meio de ensinamentos transmitidos nas narrativas históricas saamaka. Sua base seria a ideia de que “aqueles tempos [de guerra] voltarão”. A desconfiança dos saamaka em relação aos creole, a população negra da costa, é ilustrada pela história da traição orquestrada pelo personagem chamado Kwasimukamba (idem 1979).

16 vinha dando a ex-colônia, fazendo-a mergulhar numa crise (cf. Singh 2007, R. Price 1995 e G. Brana-Shute 1986). Neste contexto inicia-se um conflito armado no leste do país, a “guerra do interior” (binnenlandse oorlog), travada principalmente na selva e nas aldeias, que opôs os maroons, sobretudo os ndyuka da região do Cottica, às tropas do governo ditatorial. Ouvi muito sobre a guerra em Botopási. Todos os habitantes de Botopási com idade suficiente – quem nasceu antes de 1980 – viveram de perto o conflito, o lembram em primeira mão. Disseram-me que a guerra teria começado por uma rusga pessoal entre Dési Bouterse e seu guarda-costas Ronnie Brunswijk, um ndyuka do Cottica que aparentemente servia ao ditador também como intermediário com os maroons, especialmente no que diz respeito aos óbia. Brunswijk teria desentendido-se com seu chefe a cerca de dinheiro provindo do tráfico internacional de entorpecentes. Assaltou um banco e, perseguido pela policia, refugiou-se no mato. Armou-se, fundando um grupo de guerrilheiros maroons, os Jungle Commando. Os conflitos espalharam-se pela região. Várias aldeias ndyuka ao redor de Moengo foram atacadas pelo exército governista, tendo ocorrido em algumas delas extermínios. No caso mais famoso, o de Moiwana, em 1986, há descrições de crianças de colo e mulheres grávidas mortas a tiro por soldados, e de quase todas as casas queimadas (R. Price 2011: 83-103). Milhares de ndyuka da região fugiram, refugiando-se na Guiana Francesa ou na Holanda, muitas vezes em condições precárias (Parris 2011: 201-8). Na visão de muitos envolvidos e da imprensa internacional, a guerra refletia as lutas maroons do séc. XVIII, Brunswijk seria uma espécie de Robin Hood, lutando contra a opressão (de Vries 2011). Quando foi aos outros rios, como o Saramacca e o Suriname, em busca de apoio saamaka, matawai e outros maroons, o líder valia-se desta ideia para sublinhar seu discurso antiditatorial e a necessidade de união entre os marrons. A maioria dos saamaka não se engajou diretamente no conflito, grande parte apoiou o Jungle Commando apenas moralmente, “lutaram com a boca” (féti ku búka), como dizem. Porém, algumas aldeias tiveram um número grande de jovens que pegaram em armas ao lado de Brunswijik, e Botopási foi uma delas. Alguns foram lutar no leste do país, outros ficaram em Botopási e Debikeo, principais postos Commando no Alto Suriname. Os homens jovens da aldeia que resistiam à presença da guerrilha ou diziam-se a favor do governo sofreram violências nas mãos de Commandos. Acusações de saques e torturas entre aldeões fizeram com que a simpatia para com a guerrilha diminuísse ao longo da guerra. 18 Diminuiu mais ainda o suporte aos Commandos em Botopási a notícia de que, apesar da guerra, Bouterse e Brunswijk 18 Price & Price (1992: 277-9) relatam similar retirada de apoio à guerrilha por saamaka à montante.

17 continuavam a dividir dinheiro de atividades ilegais. O que não quer dizer que houve apoio forte ao governo: se os guerrilheiros cometeram atos de violência, os soldados o fizeram em maior escala. Ouvi falar em quatro habitantes de Botopási mortos e muitos feridos. Ao menos oito casas foram queimadas pelos soldados. Capitães da época, por permitirem a presença dos guerrilheiros na aldeia, foram ameaçados e espancados, um deles teve uma arma colocada em sua boca. As clínicas e escolas ficaram fechadas, o trânsito até a cidade ficou difícil e o preconceito contra os maroons em Paramaribo cresceu. Foi um momento em que a migração para a capital e para o exterior aumentou, pois a vida no interior em meio a guerra era muito dura. Houve muita fome e pobreza. Um episódio particularmente chocante ocorreu no dia 31 de dezembro de 1987, quando, em Atjooni, vinte civis foram torturados e sete assassinados – os soldados teriam obrigado eles a cavarem suas próprias covas, o que torna o ocorrido particularmente chocante para os saamaka (ver R. Price 1995, 2011). A guerra não foi tão intensa no Alto Suriname quanto no Cottica, nada na dimensão de Moiwana ocorreu em Botopási, mas sempre dizem que aquela aldeia, junto com Pókigoon, foi a que mais sofreu consequências da guerra, em Saamaka. A escola ficou fechada, barrando para muitos a chance de uma educação formal. O conflito gerou mágoas que permanecem até hoje entre vizinhos, e desconfiança de alguns habitantes de outras aldeias que passaram a enxergar Botopási como culpada por ter trazido a guerra a saamaka. Foi fortemente abalada, sempre sublinham, a união entre as pessoas, a força da aldeia, que já fora vista como a “mais desenvolvida da região”, mas que, para muitos, parece estar se desintegrando. Além dos efeitos da guerra, novos problemas emergiram desde que um acordo de paz pôs fim ao conflito em 1992. Em meados dos anos 1990, sob as administrações dos presidentes Ronald Venetiaan (NPS, 1991-1996) e Jules Wijdenbosch (NDP, 1996-2000) 19, concessões para atividades mineradoras e madeireiras começaram a ser loteadas para grandes mineradoras multinacionais (chinesas, brasileiras, canadenses, malaias), englobando quase todo o território saamaka, matawai e ndyuka (R. Price 2011). O garimpo ilegal, dominado por empreendedores brasileiros independentes, também cresce vertiginosamente no país.20 Se isto significa por um lado oportunidades de emprego e enriquecimento para homens maroons jovens, significa por outro a perda do controle sobre o território onde habitam. Cabe sublinhar 19 NPS: Nationale Partij Suriname (Partido Nacional do Suriname), um dos mais tradicionais partidos creole. NDP: Nationale Democratische Partij (Partido Democrata Nacional), fundado em 1987 por Dési Bouterse. 20 A estimativa é que 30.000 brasileiros tenham vindo viver no Suriname desde 1997, a grande maioria trabalhando em atividades ligadas ao garimpo. 75% dos trabalhadores de garimpos no interior do Suriname seriam hoje brasileiros e os outros 25% maroons. De acordo com de Theije (2007: 76n4) os Jungle Commandos teriam incentivado a exploração do ouro no interior do país para custear a guerrilha.

18 que o Suriname é o único país das Américas que não possui qualquer tipo de legislação específica para os povos tribais, nativos e/ou tradicionais. As últimas duas décadas viram o surgimento de associações saamaka que lutam pela demarcação e reconhecimento pelo governo surinamês da propriedade coletiva do território. A VSG (Vereniging van Saramakaanse gezagsdragers, “Associação de Autoridades Saamaka”) chegou a ganhar em 2007 um caso contra o Estado surinamês frente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (ibidem). O governo, porém, não implementou o que foi determinado pela Corte e na prática a vitória histórica até hoje teve poucos efeitos para a maioria dos moradores do Alto Suriname. O que é ainda mais grave quando notamos que os dois maiores partidos maroons, ABOP e BEP 21, em 2010, após uma eleição apertada, acabaram aceitando montar um governo de coalização, de forma que compõem a situação do parlamento surinamês, com o antigo ditador Bouterse (NDP) agora eleito democraticamente presidente e seu antigo inimigo Brunswijk (ABOP) aliado a ele. Apesar da maior participação maroon na política partidária, muitas das questões de interesse direto deles, como a legislação de seus direitos coletivos, permanece andando a passos lentos. Meus interlocutores em Botopási têm uma visão bastante cética da justiça surinamesa e internacional. Observando os desenvolvimentos políticos no Suriname dos últimos anos, infelizmente, tenho de concordar com eles. No que tange o respeito às populações tradicionais naquele país, enxergo poucos avanços. O Estado e o mercado cada vez mais invadem os territórios, corrompem algumas lideranças e dão pouco em troca da riqueza que extraem do solo e das matas nas quais vivem os maroons há mais de 300 anos.

Padrões Para resumi-lo de forma rápida, os saamaka são um povo (nasí) ou tribo (stam) formado pelo agrupamento de clãs (loo) grosso modo oriundos de fugitivos de uma ou algumas plantations da mesma região. Costuma-se falar em doze clãs, mas algumas contagens chegam a dezoito (Marrenga 2014). Cada clã é dividido segmentarmente em beoë (matrilinhagens), wósu déndu (matrissegmento) e bóbi (segmento mínimo). Filhas, netas ou bisnetas de ancestrais apicais de cada clã fundaram os beoë (literalmente “ventres”) que carregam seus nomes e são as maiores unidades exogâmicas saamaka, ainda que alguns casamentos intralinhagem ocorram. No próximo nível, wósu déndu (lit. “interior de uma casa”), a 21 ABOP, ver nota 5 (supra). BEP, antigo partido maroon, chamava-se Bosnegers Eenheid Partij (Partido da União Maroon), atualmente Broederschap en Eenheid in de Politiek (Fraternidade e União na Política).

19 exogamia é mais enfatizada, mas sua definição é menos estrita, não há matrissegmentos estáticos e sim definições deíticas: o wósu déndu de uma ancestral inclui todos os seus descendentes, enquanto o “meu wósu déndu” inclui meus parentes matrilaterais mais próximos genealogicamente (em geral G+2 ou +3). Por fim, os bóbi (lit. “seio”) são a unidade coletiva mínima de parentesco, formada por uma mulher e seus filhos. Como veremos, um dos principais fatores que definem os limites dos beoë é a vulnerabilidade compartilhada aos mesmos kúnu, espíritos vingativos derivados de pessoas ou seres que morreram em decorrência de um ato deliberado ou descuidado de um membro da linhagem. Os espíritos vingativos são uma maldição eterna, jamais perdoam, e são – ao lado da feitiçaria (wísi) – as maiores causas de infortúnios para os saamaka. Mas kúnu não são tudo que faz das matrilinhagens unidades (ou grupos corporados). Os beoë, junto com o clã e o matrissegmento, definem a posse da terra. No Alto Suriname não há propriedade privada do solo, apenas direitos de uso (para cortar roças, fazer casas e explorar recursos) garantidos pelo pertencimento a um clã. Disputas intraclânicas são reguladas pela história do uso do espaço, seguindo a lógica segmentar: de modo geral tem direito privilegiado a um espaço a prole da mulher ou da irmã de um homem que o utilizava, mas qualquer pessoa matrissegmento pode reivindicá-lo e, na ausência de um candidato mais próximo, qualquer pessoa da matrilinhagem. Boa parte dos cargos políticos são transmitidos matrilateralmente. Os principais são o gaamá (lit. “grande pessoa”), líder supremo de toda tribo; os kabiténi (capitães), líderes de uma aldeia; e os basiá, ajudantes dos kabiténi. Há também fisikái (fiscais), membros do gabinete do gaamá; hédi kabiténi (capitães “cabeça”), responsáveis por um clã e/ou trecho do rio; e hédi basiá, ajudantes mais próximos do gaamá ou dos hédi kabiténi. São todos cargos vitalícios cujos ocupantes têm por função servirem de “guias” (tíima) dos grupos; a autoridade reside sobretudo na retórica e na capacidade de arbitrar disputas. A instância em que a atuação destes líderes aparece com mais clareza são os kuútu, assembleias ou reuniões nas quais problemas são apresentados e resoluções comunicadas. Neles também fica claro que os anciões (gaánwómi, lit. “grandes homens”) de cada linhagem são as autoridades relevantes no que se refere aos grupos de parentesco – há certa gerontocracia e patriarcado no sistema político saamaka. Kabiténi, basiá e anciões formam o conselho da aldeia (lánti ou dorp bestuur), espécie de comitê que trata dos assuntos de interesse geral – isto é, aqueles que não dizem respeito às famílias (famíi). Como princípio, para assuntos familiares, a voz mais autoritativa é a do homem mais velho do matrissegmento ou matrilinhagem, mas as decisões,

20 como veremos, nunca são autoritárias e figuras com menos autoridade oficial (mulheres e jovens) também têm influência marcante nas questões. O padrão de residência varia bastante (cf. Price 1975), mas de maneira geral pode-se dizer que a preferência é autolocal, isto é, homens morarem em suas casas e cada uma de suas esposas em uma casa separada, cada um no território de sua matrilinhagem. Como não há endogamia nem no nível da aldeia nem no da tribo, isso significa frequentemente que homens ou mulheres passem temporadas ou estabeleçam moradia definitiva fora de suas aldeias. Há poliginia em saamaka. Muitos homens têm duas esposas e alguns, com mais reputação e meios, chegam a ter quatro. A relação entre coesposas (kambósa) é tensa e uma das principais justificativas para a preferência pela autolocalidade. Além disso, dizem que é bom que cada pessoa tenha sua casa e seus bens, pois, no evento de uma separação – nada incomum, mesmo nos casos raros de pessoas casadas na igreja – surgem menos problemas. A crescente prática de construir “casas de branco”, porém, faz com que mais famílias dividam um lar, afinal, uma casa de alvenaria pode ser cara e nem todos têm recursos para construir mais de uma – mas coesposas nunca dividem uma residência.

Populações Não é fácil estimar a população dos maroons das guianas. Os Estados surinamês e francês adotam políticas de tom universalista que dificultam que dados baseados em etnia sejam agregados em levantamentos oficiais. Dados específicos para as populações tribais são inexistentes ou espalhados em estatísticas mais amplas, na busca de representar a situação nacional (Kambel 2006). R. Price faz a seguinte estimativa acerca da população maroon: Maroons

Saamaka

Interior do Suriname

60.400 (28,7%)

28.500 (31,7%)

Paramaribo e arredores

66.250 (31,5%)

29.000 (32,2%)

Interior da Guiana Francesa 12.200 (5,8%)

(inexpressiva)

Costa da Guiana Francesa

55.500 (26,4%)

25.000 (27,7%)

Holanda

16.150 (7,6%)

7.500 (8,3%)

TOTAL

210.000

90.000

Tabela 3: População estimada dos maroons das Guianas e dos saamaka (adaptada de R. Price 2013b: 326).

Eu mesmo não fiz censo em Botopási. Quando perguntava quantos moradores havia na aldeia, recebia respostas variadas, algumas aparentemente superestimadas, chegando a 2.000 habitantes (incluindo mulheres e crianças, frisavam). Deve-se levar em conta que é difícil

21 determinar quem “de fato” mora na aldeia, já que a mobilidade é grande. Dados do posto de saúde apontam para 750 pessoas registradas em Botopási no total e 400 morando na aldeia no início de 2011. Os números aproximam-se de um levantamento que fiz com um grupo de amigos: a meu pedido, listaram as pessoas que eles sabiam que moravam em Botopási naquele momento. Citaram todas por nome, seguros de não estarem esquecendo ninguém. Chegamos a um número próximo a 500. Se Botopási seguir o padrão estimado por Price para os saamaka (um terço morando no interior) 2.000 pessoas, incluindo toda “gente de Botopási” que mora na cidade, não é absurdo.22 A distribuição da população de Botopási e do Alto Suriname é desigual em termos de idade e gênero. Há relativamente poucos homens jovens morando nas aldeias. Em Botopási não chegam a 10% da população total. Falta emprego no interior do Suriname, a maioria dos que estão fora trabalham na cidade ou alhures. Muitas mulheres moram em suas aldeias com os filhos, distantes dos maridos. As escolas no Alto Suriname, hoje presentes em grande partes das aldeias, oferecem apenas os seis anos do curso primário, o que faz com que muitas garotas e garotos sejam mandados para a cidade no início da adolescência. A desproporção diminui na terceira idade, pois é comum retornar a aldeia no fim da vida. Já ouvi de muitos anciões que escolheram retornar, depois de uma vida inteira fora de Botopási, porque preferiam morrer e ser enterrados onde nasceram.23 A “cidade” (fóto), significa Paramaribo, aglomeração urbana ondem reside quase metade dos habitantes do país. Localidades como Paranam, longes do centro da capital, fazem parte do que os maroons chamam de cidade. Bairros distantes, alguns deles ocupações ilegais, como Pontbuiten, Sunny Point, têm grandes concentrações de maroons. 24 A maioria dos saamaka que moram na Guiana Francesa estão em bairros pobres da capital Cayenne, da cidade fronteiriça St. Laurent du Maroni ou de Kourou, onde fica o Centre Spatial Guyanais. Na Holanda, as cidades que mais concentram maroons são Amsterdam e Rotterdam, 22 Estimando por alto, Futunaákaba tem cerca de cem habitantes e Pikísééi cerca de mil. A população do trecho do rio onde fica esta aglomeração de aldeias Dómbi deve atualmente aproximar-se de 1600 moradores. 23 Há mais de um tipo de mobilidade em jogo. Muitos homens (e hoje também mulheres) passam anos trabalhando na costa ou no garimpo, criando uma alta taxa de absenteísmo, especialmente em aldeias não cristãs (R. Price 1975; Beet & Sterman 1978; S. Price 1984). Tais migrações de médio prazo ocorrem, mas, além delas, hoje há fluxos mais curtos de idas e vindas à costa, graças a melhorias no transporte. Muitos conseguem trabalhos temporários fora da aldeia, ficam algumas semanas, depois voltam. Simultaneamente, aumentou o número de saamaka com residência fixa em Paramaribo, na Guiana Francesa e na Holanda. 24 Aviankpo & Apapoe (2009: 157) citam áreas que concentram maroons na cidade: Abra Broki, Winti Wai, Menckendam, Ramgoelam Weg, Latour, Nieuw Weergevonden, Hanna's Lust, Sophia's Lust, Pontbuiten, Texas-Charlesburg, Witboiti, Sunny Point e Achter Nis. Muitos destes locais não constam nos mapas oficiais de Paramaribo, os que consegui localizar demonstram que, com exceções de alguns pontos mais próximos ao centro, os enclaves urbanos maroons desenham um semicírculo do oeste ao sul da periferia da capital. Em todas essas áreas, os maroons dividem o espaço com outros grupos étnicos.

22 sobretudo em bairros ou subúrbios mais afastados (R. Price 2002: 84). Já conheci saamaka que habitaram ou habitam na França metropolitana (Paris), os EUA (Baltimore) e o Brasil (Macapá). Price (ibid.: 82) afirma haver alguns maroons espalhados pelos EUA em Los Angeles, Nova York, Miami e Boston. O território tradicional saamaka engloba, grosso modo, todo o resort Boven Suriname (Alto Suriname), no distrito Sipaliwini e a maior parte do distrito Brokopondo. São algo entre 70 e 80 comunidades na região. Em Brokopondo fica o lago da hidrelétrica e boa parte das aldeias construídas pelo governo em seu entorno após a inundação das antigas que ali estavam. Também em Brokopondo fica Sara Kreek, onde há aldeias ndyuka com forte presença saamaka. Santigoon é a aldeia maroon mais próxima de Paramaribo. Fica às margens do rio Saramacca, e sua população mistura matawai, saamaka e outros maroons. Os habitantes de Botopási enxergam maiores semelhanças com as aldeias no Alto Suriname propriamente dito, isto é, ao sul do lago da hidrelétrica. Grosso modo, cada aldeia (koondë) pertence a um clã e cada clã pode ter mais de uma aldeia. Elas são relativamente autônomas, têm seu corpo político, formado por kabiténi, basiá e anciões do conselho (lánti); têm suas próprias divindades e poderes (gádu e óbia); são capazes de determinar suas próprias unidades, regras e costumes, sem porém serem independentes. Toda aldeia está conectada a outras por relações de parentesco, afinidade, amizade, trabalho. Aprofundarei este tema no primeiro capítulo. As aldeias com as quais Botopási possui maior comunicação são as mais próximas, especialmente as acessíveis por terra: Futunaákaba e Pikísééi (clã Dómbi) e Kambalúwa e Köönooö (Nasí).25 Mas há outras aldeias importantes, às quais se ouve muitas referências em Botopási. A começar, no norte, por Pókigoon (clã Awaná), onde fica Atjooni, porto onde se troca o transporte terrestre por fluvial, parada obrigatória nas idas à cidade que não são por via área. Mais ao sul fica Abénásítónu, aldeia Dombí cristã, também fruto da fissão de Sofibuka. Tutubúka, também conhecida como Nieuw Aurora (clã Awaná), aldeia dos descendentes do primeiro saamaka cristão, Alabi, tem também fortes contatos com Botopási. À montante fica Gujába (Awaná), a maior aldeia do rio em termos de população, uma referência importante. Passando por Botopási, ainda próximas estão Dán e Páda, do clã Nasí, onde há um campo turístico, Dánpaatí no qual vários habitantes de Botopási trabalham. Bem mais à montante fica Daumeo, de um ramo afastado do clã Dombí, onde um importante óbia impede a presença de brancos, envolvendo o local em certo mistério. Dizem que no passado a entrada de Daumeo era 25 Ver mapa 3, nos anexos.

23 invisível aos brancos que passassem por ali de barco. Em seguida há um aglomerado de aldeias, nas proximidades do encontro dos dois afluentes do rio Suriname, Pikí Lío e Gaán Lío. Ali fica Soolán, (clã Agbó), que possui uma relação histórica com o clã Dombí, seus membros têm direitos sobre uma área no território desta aldeia.26 Também ali fica Djuumú, o maior posto médico do rio, e logo depois Asindó Opo, a aldeia onde morava o gaamá, líder dos saamaka, até falecer em 2014, por isso também conhecida como Gaamákoondë (aldeia do gaamá). Centro político saamaka, as visitas a Asindó Opo são frequentes, principalmente para aqueles que possuem cargos oficiais. Em termos gerais, costuma-se pensar nas aldeias mais à montante (líbasë) como mais “tradicionais”, e aquelas mais à jusante (báusë) como mais “desenvolvidas”. Mas há outros elementos que influenciam na permeabilidade às ideias bakáa (de brancos, estrangeiros). O principal talvez seja a adoção do cristianismo. Hoje são seis aldeias saamaka afiliadas ao moravianismo, pentecostalismo ou catolicismo. Além disso, a proximidade de um posto médico, a existência mais antiga de uma escola e a presença mais forte do turismo também contam no nível de desenvolvimento (ontwikkeling). Botopási está há 61km da aldeia mais próxima da nascente do Gaán Lío, e há 64km da mais ao norte dentro do Alto Suriname, portanto no centro deste mapa. Porém, é amplamente vista como uma das primeiras aldeias a abrir suas portas para o progresso.

Línguas A conjuntura linguística no Suriname é bastante complexa. A língua oficial do país é o holandês, usada em jornais, escolas, repartições públicas e contextos em que se julga requerer polidez, dependendo da perspectiva, da classe social e da etnia: trabalho, estabelecimentos comerciais de alto padrão, interações de gênero cruzado etc. A grande maioria dos moradores de Paramaribo e boa parte dos moradores do interior dominam o holandês, com exceção de pessoas de baixa escolaridade e mais idosas. Falar bem o holandês é um marcador de educação formal e de classe, daí que parte da elite orgulhe-se de falar holandês também em casa.27 Cada uma das principais populações que habitam o país tem sua língua: surinameses 26 O afastamento entre as aldeias Dómbi de jusante e Daum eo ocorreu faz séculos (R. Price 2001: 122-3, 147). Hoje o povo de Daumeo tem relativamente poucos contatos com o de Botopási. Sobre o segmento Dómbi em Soolán, cf. idem 1990: 247. Há pessoas e famílias Dómbi espalhadas pelo rio, vivendo como “visitantes” em territórios e aldeias de outros clãs, graças a laços de filiação e casamento pessoais. Os clãs Dómbi, Awaná e Nasí viveram juntos por muito tempo. Quando resolveram separar-se, dizem meus informantes, combinaram que suas aldeias deveriam ficar próximas umas das outras, de modo que se alguém saísse de canoa de manhã, poderia chegar nas outras aldeias antes do meio-dia. 27 Para exemplos dos usos de línguas em Paramaribo, ver Loureiro 2013: 8ss.

24 de origem javanesa falam javanês; de origem indiana falam sarnami (variante local do hindi); os chineses, mandarim, cantonês ou outras; os brasileiros português; os ameríndios trio, wayana, arawak (lokono) ou carib (kali'na), entre outras; os maroons auccaner (okanisi ou ndyukatongo), aluku, kwinti, matawai, paamaka e saamaka; os creole sranan tongo. As fronteiras e o consumo da indústria do entretenimento fazem também com que inglês, francês, espanhol e português sejam terceiras, quartas ou quintas línguas para muitas pessoas. Algumas ainda aprendem línguas de outros grupos. É muito comum encontrar poliglotas no Suriname, mesmo entre aqueles de pouca educação formal. O sranan – que pode ser chamada de surinamês – é um crioulo que tem o inglês por base lexical, já foi chamado de “inglês negro” (neger engels), mas tem muitos aportes do holandês, de línguas da África Ocidental e outras fontes. Apesar de ser a “língua dos creole” é considerada língua franca no país, falada em contextos interétnicos, sobretudo informais. É boa para contar piadas, mas não para cortejar uma mulher ou para o local de trabalho, dizem. Sranan é falado por quase todos surinameses, aqueles grupos étnicos que têm mais resistência ou dificuldade em aprendê-lo (sobretudo brasileiros e chineses recém imigrados) são vistos como pouco integrados à sociedade surinamesa. A variação constante entre as línguas é registro usual no discurso cotidiano urbano. Frases que misturam holandês, sranan e outras línguas não são nada incomuns. Cada grupo maroon considera ter sua própria língua. Linguistas, porém, as dividem em dois grupos: aluku, ndyuka e paamaka formariam o creole maroon oriental (Eastern Maroon Creole); matawai e saamaka, o creole maroon ocidental (Western Maroon Creole); estando o kwinti entre os dois. Dentro de cada grupo, as línguas são mutuamente inteligíveis, mas a comunicação é fácil também entre os grupos. As orientais são mais próximas do sranan, já o grupo que inclui o saamaka tem uma influência maior de outras línguas, sobretudo do português, por via do djutongo, um (proto)crioulo falado pelos escravos das plantations de judeus portugueses (Smith 2001). Há polêmicas acerca da definição do saamaka e do matawai enquanto crioulos do inglês, do português ou de ambas. 28 A influência do holandês também é fortemente sentida no léxico, bem como a influência das línguas ameríndias e africanas. Do ponto de vista saamaka, que mais interessa, sua língua chama-se saamáka toongö. Apesar de enxergarem proximidades, é uma língua distinta do sranan (que chamam de neongë toongö, “língua dos negros [da cidade]”) e das demais línguas maroons, inclusive do matawai. 28 Migge (2004) apresenta uma hipótese sobre a formação dos crioulos surinameses: teriam derivado de um crioulo do inglês estabilizado entre 1680-1720, a partir dos quais cada variante foi destacando-se. Matawai e saamaka teriam sido as primeiras a separar-se, por volta de 1680.

25 É a língua falada por todos na aldeia, na maioria das situações. Se não todos, quase todos falam fluentemente o sranan, que é vista em Botopási como língua da igreja e da interação com outros povos do Suriname. O holandês é hoje dominado por boa parte dos adultos, ainda que muitos hesitem em falá-lo, temendo cometer erros – há preconceito no Suriname contra o sotaque maroon e sua suposta ignorância da língua europeia. Para meus informantes, o holandês é e deve ser a língua da escola, pois ajuda a conseguir empregos e a lidar com o mundo “desenvolvido”. Há na aldeia também quem fale inglês, francês, espanhol, português em variados níveis de proficiência. A facilidade e o entusiasmo para aprender línguas é grande. O efeito é que, mesmo quando comunicam-se entre si em saamaka, salpicam a fala de termos estrangeiros, especialmente do surinamês e do holandês. As influências que trazem de outras línguas, brincando com palavras e expressões, levam alguns a dizer que em Botopási e outras aldeias “desenvolvidas” não se fala um “saamaka puro” (puur saamáka), mas “saamaka misturado” (mookísi saamáka), a língua original estaria mais preservada nas aldeias mais “tradicionais” à montante. Em Botopási, alguns termos (os dias da semana, por exemplo) são desconhecidos por crianças e adolescentes. Que não se entenda a “pureza”, porém, muito literalmente: é difícil considerar a língua seja “pura” em qualquer lugar, ainda que influências externas certamente sejam mais pronunciadas em certos locais e situações. Eu fui capaz de aprender o saamaka e falá-lo com fluência. Inicialmente com a ajuda de Remfrei Eduards, saamaka que fala ótimo inglês, e de Michelle Chafee, voluntária Peace Corps então residente na aldeia, que emprestou-me uma apostila dessa organização na língua saamaka (Peace Corps 2011). Logo muitos outros dedicaram-se a ensinar-me a língua. Não cheguei a dominar expressões esotéricas, ideofones ou modalidades de fala mais formais, que tornam o saamaka uma língua fácil de aprender, mas difícil de dominar por completo (tampouco aprendi línguas esotéricas, mas isto é outro assunto). Quanto ao sranan, compreendo-o mas tenho dificuldade de falá-lo. Meu holandês é básico, consigo ler apenas textos curtos e acompanhar diálogos ou monólogos muito claros.29

Incertezas da localização etnográfica O gaamá saamaka é enterrado num enorme caixão, em formato de casa. É fácil entender que o ataúde daquele que ocupa o mais alto cargo oficial na hierarquia política seja o maior de todos. Tudo nas exéquias do principal “guia” deste povo deve ser particularmente 29 Este é um problema em minha relação com a bibliografia. Fui obrigado a deixar de lado toda uma vasta literatura sobre o Suriname. Li apenas textos curtos em holandês e trechos de trabalhos mais longos, aos quais, portanto, refiro apenas pontualmente (como de Groot 1974 e van der Pijl 2007).

26 grandioso, desde o tempo que demoram para enterrá-lo até a quantidade de convidados, comida e bebida que circula. O formato indica uma forma a mais de respeito: dizem que o líder descansa não num “caixão” (kési), mas numa “casa” (wósu); que ele não está “morto” (deodë), mas “dormindo” (duumí); que não será “enterrado” (béi), mas “levado para a Holanda” ou “para a África” (tjá gó a bakáa koondë / tjá gó na Afiikán). Negar o falecimento do grande líder é afirmar sua importância, mesmo depois da morte, para seu povo. Em 2014, acompanhei o funeral do gaamá Belfon Aboikoni. Um ancião, há décadas morador de Botopási, mas que tem sua aldeia natal à montante, contou-me que um dos motivos do caixão de um gaamá ser tão grande é que ele será posto ali dentro sentado, num banco, com sua bengala e chapéu. Enquanto permanecer sentado o líder falecido continuará guiando (tíi) o povo saamaka, continuará falando em reuniões (kuútu) dos mortos. Quando o cadáver desfizer-se e cair do banco é porque perdeu sua força (kaakíti). A fim de confirmar a afirmação, saber se era difundida, repetia-a dias depois para um grupo de mulheres com quem conversava sobre Belfon. Elas perguntaram onde ouvi aquilo e, ao saberem da fonte, puseram-se a rir. O homem que me contara aquilo, disseram, era “cheio de lábia” (politíki), eu não deveria acreditar naquilo, e principalmente não deveria escrever em meu livro! O que acontece, a mais velha delas explicou, é que o gaamá depois da morte fica três dias sentado num banco, em sua casa, vestido com seu chapéu (cujo nome especial é aböneo) e sua bengala, as pessoas o cumprimentam como se ainda estivesse vivo, saudando-o em tom respeitoso (lesipéki toongö): “kumáa oo gaamá” ou “ódi oo koondë mása”. Mais uma cortesia em simular que o líder não morreu. A ideia do gaamá enterrado sentado era ridícula para aquelas mulheres: ele vai deitado como todos os outros mortos. Elas falaram para eu insistir com o ancião sobre o assunto, o que fiz depois, o deixando um pouco constrangido: disse que não viu aquilo com os próprios olhos, mas que duas mulheres lhe contaram, uma mais nova e uma mais velha. Não tinha certeza se era verdade, mas achava que sim. Não tenho intenção de determinar quem teria razão. Independente da prática narrada pelo ancião ser factual ou não, ela casa bem com ideias saamaka acerca da posição post mortem de um líder e acerca do apodrecimento dos cadáveres. Em conjunto com outras afirmações e observações, ajuda-me a compreender como meus interlocutores pensam liderança e morte, tempo e corpo. Mais que isso, o episódio ilustra questões metodológicas com as quais tive de haver-me durante o trabalho de campo e a escrita. Veja bem: se outra pessoa tivesse afirmado aquilo, talvez não fosse tão absurdo para aquelas mulheres. Do ponto de vista delas, uma pessoa que “sabe dessas coisas” não teria dito tamanho disparate. Interessa

27 aos saamaka, quando falam de práticas, saber qual a maneira correta de fazer as coisas. Quando falam de história, saber o que realmente se passou. Entretanto, compreendem também que cada narrador terá sua perspectiva sobre o passado, bem como cada agente em uma atividade terá sua ideia acerca do modo apropriado de proceder. A questão passa a ser saber quem tem autoridade para determinar um fato ou um procedimento. “Ver com seus próprios olhos” (“sí ku i ëigí wójo”) tem peso. Daí que uma das principais marcas de autoridade e sabedoria é a experiência (ervaring), o que significa que os mais velhos, que “viram mais sóis” (sí mooön sónu) são referências para muitas questões. Conhecimento, em saamaka como alhures, é exercício da política, e como os mais velhos são mais autorizados a darem palavras finais sobre um assunto, há gerontocracia e secretismo, principalmente em assuntos como história, magia, vocabulário esotérico.30 Apenas em situações específicas compartilham genealogias que têm na memória, fórmulas para óbia que conhecem, histórias de fósuten (passado ancestral) que ouviram, nomes menos comuns de animais, plantas, locais e objetos. Saber mais que os outros é ter argumentos na manga em uma discussão – digamos, sobre qual clã tem direito a determinado território, graças à sua precedência histórica; ou sobre quem pode postular um cargo político oficial; é ter alternativas de remédio, proteção ou ataque, em casos de feitiçaria ou agressão por forças sobrenaturais; é ser requisitado – e frequentemente pago – por serviços e saberes. O episódio acima demonstra que idade nem sempre é igual autoridade. Alguém com mais anos deve ser tratado com mais respeito – de um irmão mais velho ao ancião de uma matrilinhagem –, mas não necessariamente sabe mais acerca de tudo. Um idoso pode nunca ter se interessado por “coisas de igreja”, ou por “coisas de óbia” e nesses quesitos não será autoridade. Quem não teve filhos, por mais velho que seja, jamais será uma referência acerca de crianças. Os saberes estão espalhados. Há especialistas conhecidos acerca de um assunto ou outro, porém não há fonte última para nenhum. Mesmo saberes especializados não formam um corpus fechado, dominado por uma elite erudita. Cada pessoa sabe os nomes e aplicações de certas plantas, um conjunto de fórmulas mágicas, fragmentos narrativos e genealógicos da história do clã e da tribo – que podem, eventualmente, contradizerem-se. Além disso, os mais novos nunca estão totalmente no escuro, nem no que diz respeito a esoterismos. Há homens 30 Sobre o modo de transmissão oral do conhecimento histórico, ver R. Price (2002 [1983]: 9ss). Parris (2011: 86-113) foca na política do conhecimento para os ndyuka. R. Price (2008: 309-390) fala sobre as linguagens esotéricas dominadas por especialistas rituais – apintií, apukú, papá, wénti, komantí e outras. Marrenga & Paulus (2011: 88-9) e Price & Price (2005 [1999]: 182-5) também abordam as linguagens secretas. Para além dessas línguas, há um acervo de provérbios (woodu) e um vocabulário esotérico interno à língua saamaka que marcam sabedoria – nomes alternativos de animais ou plantas, toponímias, etimologias.

28 de 20 e poucos anos que já conhecem suficientes óbia (magias) para serem considerados óbiama, referências para curas e proteções. Há histórias do passado mais difundidas, não tratadas como secretas, espécies de histórias “coloquiais” ou vulgatas que circulam pelo Alto Suriname, mais ou menos contestáveis por especialistas 31. Além disso, há todo um leque de conhecimentos, mais relacionados à educação formal, à escola, saberes “dos brancos”, que são muito mais propriedade dos jovens do que dos anciões, que dizem respeito à tecnologia e medicina ocidentais, ao dinheiro e às relações com o mundo estrangeiro, da costa. As afirmações que ouvi em campo traziam diferentes graus de certeza. Várias eram especulações ou deduções lógicas a partir de princípios compartilhados, outras eram postas como verdades quase inflexíveis, fossem de domínio público ou envolvessem algum segredo. Havendo atenção à veracidade e aos detalhes, senti por parte de meus interlocutores certa ansiedade em não permitir que informações incorretas ou incompletas fossem transmitidas para mim. Meu livro não deveria ter mentiras, diziam. Sabendo ser impossível não cometer erros e eventualmente fiar-me em incompreensões e mal-entendidos, o caminho que me parece melhor para sanar a insegurança é explicitar não apenas as condições de possibilidade de minha pesquisa, mas também os diferentes modos de obtenção de conhecimento e os diferentes níveis de segurança que acompanham. Passei cerca de quatorze meses no Suriname, entre março de 2011 e outubro de 2014, dos quais cerca de doze no Alto Suriname, a maior parte deste tempo em Botopási. Morei o tempo todo no território de uma das matrilinhagens mais influentes da aldeia, Jaja beoë, que então tinham um kabiténi, um hédi basiá e vários basiá na aldeia, mas fiz amigos em outras famílias. Fiz muitas viagens por outras aldeias, quase sempre acompanhado por gente de Botopási.32 Conversei com muitas pessoas, em diferentes posições de autoridade, de diferentes idades e gêneros, mas a maior parte deste tempo passei acompanhado de homens com idades entre 30 e 60 anos, todos autodenominados cristãos, mas guardando diferentes posturas em relação às igrejas. Meus principais interlocutores caíam na categoria de kijóo (“jovens”), homens em idade adulta, sem posição política oficial, sem o status de líder de suas matrilinhagens, que não recebem as reverências e o respeito devido àqueles de idade mais avançada. Kabiténi tornaram-se amigos; aproximei-me de algumas mulheres, que abriram-me 31 Livros hoje disponíveis – de antropologia, história, etnobotânica etc. – ajudam a espalhar este tipo de informação, mas certamente não são as principais fontes de conhecimento. 32 Mais especificamente, minhas viagens ao Suriname foram entre fevereiro e maio de 2011, setembro de 2011 e março de 2012, março e maio de 2013 e setembro e outubro de 2014. Dentre as aldeias que visitei estão Kaájapati, Köönooö, Pikísééi, Futunaákaba, Kambalúwa, Dán, Páda, Malobí, Masíákííki, Soolán, Gódo, Bëndëkoondë, Akísíamáun, Asindó Opo. Em algumas passei apenas algumas horas, em outras vários dias.

29 pontos de vista femininos; um grupo de pentecostais garantiu-me mais perspectivas acerca do cristianismo; dialoguei muito com pessoas de outras aldeias, que explicavam-me a visão não cristã acerca de muitas questões; alguns idosos (a quem me indicavam procurar quando eu fazia alguma pergunta que os jovens não sabiam responder) também tornaram-se amigos e referências de sábios na aldeia; fui cercado o tempo todo por crianças e adolescentes, que me ensinaram muito. E, claro, acompanhei muitas conversas e afazeres entre as pessoas. Ainda assim, se for necessário resumir muito minhas condições de pesquisa, eu diria que baseio minha etnografia no ponto de vista dos kijóo, foi com eles que mais convivi, criei laços mais próximos de amizade, sentia-me confortável para fazer as perguntas estranhas que etnógrafos fazem e conseguia tocar com mais desenvoltura em assuntos delicados como feitiçaria, relações conjugais, espíritos vingativos, fofocas e intrigas políticas. Com eles fui caçar, pescar, passei tardes bebendo e especulando sobre os mais variados assuntos, do destino da alma após a morte à política internacional, da origem dos relâmpagos a preferências sexuais. Esta é uma marca importante de minha pesquisa. Além da questão da juventude, pensemos também em gênero. Em uma aldeia nem sempre é possível para um homem estrangeiro estar próximo de mulheres, os ambientes de sociabilidade e trabalho são um tanto separados. Além de esposas de amigos mais íntimos, as mulheres de quem mais me aproximei eram as mais velhas, sobretudo as da família que me hospedou. Com elas pude ir à roça, fazer beiju, sentar para conversar mais livremente. Para além das vicissitudes do campo, um livro que trata de ofícios femininos – como Co-Wives and Calabashes, de Sally Price, que foca na arte produzida pelas mulheres e nas relações de troca, parentesco e conjugalidade – é lido como versando sobre gênero; um que trata de assuntos primordialmente masculinos – como First-Time, de Richard Price, que trata de histórias do passado narradas por homens saamaka – não costuma ser. Dentro da divisão sexual do trabalho acadêmico, quase tudo associado ao feminino tende a ser encaixado na chamada esfera da “domesticidade”, vista como inferior hierarquicamente (em termos de poder e de dignidade para a atenção dos etnógrafos) às atividades masculinas que colocam na “esfera pública” – guerra, ritual, política oficial etc. Assim, muitos temas clássicos e debates centrais da disciplina dizem respeito ao “masculino”, enquanto o “feminino” forma um subconjunto de temas de interesse de um subgrupo de estudiosos (em geral feministas). O resultado são reificações das “nossas” divisões de gênero que turvam as do grupo estudado, muitas vezes impedindo a compreensão de aspectos importantes da vida desses povos (cf. Strathern 2006 [1989]). Posso dizer que, neste sentido, minha tese também é sobre gênero,

30 ainda que não se debruce sobre as construções de masculinidade e feminilidade do povo que estudo. O tema central, a morte, é obviamente relevante tanto para homens quanto para mulheres. As últimas fazem parte dos rituais (mas não em todas as funções), das trocas cerimoniais. Funerais são ambientes de sociabilidade de gênero misto e mulheres parecem compartilhar das visões e preocupações cosmopolíticas das quais trato ao longo do livro. Porém, em termos quantitativos e qualitativos, meu contato com mulheres foi menor do que com os homens. Acredito que muito do que está escrito nas páginas que seguem serve para expressar as ações e pensamentos das mulheres de Botopási tão bem quanto os dos homens, mas isto é em alguma medida uma projeção. Esta tese é tanto sobre “os saamaka em geral” (para além de Botopási) quanto é sobre “as pessoas de Botopási” (para além dos homens jovens da aldeia). Tive conversas fundamentais com muitos habitantes de outras aldeias, com crianças, velhos, mulheres de várias idades. Busco polifonia em meu texto, mas devo ser explícito sobre quais vozes ouvi com mais frequência. Quando me dou a abstrações do tipo “os saamaka dizem que” o referente primordial é um homem jovem de Botopási. O que não quer dizer que uma mulher idosa de Köönooö não diria o mesmo.33 Quando julgo ser necessário dizer que um homem saamaka diria algo (e talvez não uma mulher) friso-o no trecho. Isto é particularmente relevante em questões que tratam de ideais masculinos de agência, de liderança e de bem viver.34 Raça e nacionalidade também podem ser questões. Numa pesquisa realizada décadas atrás, uma pessoa branca como eu em Saamaka causaria muita estranheza e desconfiança. Era preciso autorização do gaamá para um estrangeiro adentrar no Alto Suriname. Nas últimas décadas, entretanto, o aumento do turismo, de projetos de cooperação internacional, dentre outras atividades, tornaram comum a circulação de não negros pelo Alto Suriname. Por polidez, logo que cheguei fui logo cumprimentar todos os kabiténi da aldeia, e os anciões da família entre a qual me hospedei (que certamente já sabiam da minha vinda, arranjada por Remfrei, um jovem da aldeia que conheci em Paramaribo), mas além disso, nada mais me foi exigido. Fui bem recebido, as pessoas em Botopási rapidamente compreenderam que meus 33 Aliás, pessoas de quem aproximei-me nos últimos meses de campo foram Demai, uma senhora de Köön ooö e seu marido, basiá Kusi, um ancião respeitado. Devo muito a ambos. 34 Já que estamos no assunto: a “norma culta” do português exige que substantivos sejam marcados por gênero, e quando se tratarem de generalizações, utilizar a flexão masculina. Optei por seguir a norma, mesmo sabendo de suas implicações machistas, principalmente porque a maioria de meus interlocutores eram homens. Em certos trechos, como aquele acerca da viuvez (cap. 3) a flexão por gênero aparece com mais relevo e a flexão por número ainda traz mais um problema, pois homens podem ser políginos. Como nem sempre é possível encontrar um sinônimo de gênero e/ou número neutro, fiz uma opção por causar estranheza: falarei de “o viúvo e seu esposo” – mesmo não tendo notícia de uniões de pessoas do mesmo gênero em saamaka. Busco enfatizar, assim, a artificialidade das regras gramaticais de gênero. Quando surgem questões específicas para homens ou mulheres, marco o gênero conforme a norma vigente.

31 interesses ali não eram como os dos turistas e profissionais que viam passar por ali rapidamente, sem conhecer a língua ou cultura locais. Minha profissão era frequentemente comparada com a dos voluntários estadunidenses do Peace Corps (no Suriname entre 1995 e 2013, com forte presença em comunidades maroons). O principal empecilho em ser branco atualmente é que alguns óbia possuem tabu de bakáa, de forma que alguém como eu, mesmo não sendo europeu, não poderia circular em áreas dominadas por certos espíritos. Em Botopási não há nenhuma proscrição do tipo, pude frequentar o cemitério, conhecer espaços históricos, banhar-me com óbia, observar possessões e cerimônias políticas. O máximo que acontecia era meus amigos terem de perguntar para especialistas se eu poderia participar de cerimônias quando ia acompanhá-los em alguma outra aldeia. Apenas em uma situação – a entrada no cemitério no enterro do gaamá – minha presença foi impedida por conta da cor de minha pele. Ser brasileiro no Suriname hoje em dia é quase sinônimo de ser garimpeiro, o que na cidade em geral significa algum preconceito. No interior as reações são mais neutras, em Botopási a maioria das pessoas dizia ter boas relações com os garimpeiros e brasileiros em geral. As pessoas não demoraram a perceber as marcas de tipo físico e classe social que me diferenciam dos garimpeiros (a maioria vinda das regiões norte e nordeste) e logo concluíram que eu era um brasileiro “da cidade”, enquanto os outros que eles conheciam eram “do interior” ou “do mato”. Ao fim de meu campo, consultei alguns amigos mais próximos, os que mais me explicaram coisas por ali e perguntei como gostariam de ser citados em minha tese. Entre as opções de ter seu apenas nome na parte de agradecimentos e a de ser citado nominalmente durante o livro a cada informação colhida diretamente deles, apenas um disse que preferia a segunda, mas que a escolha era minha. 35 Todos os outros disseram preferir não ter seus nomes vinculados a afirmações específicas. O problema não estava nas histórias delicadas que ouvi, fofocas, acusações de feitiçaria. Era que, em casos de enganos deles ou incompreensões minhas, não queriam ser vistos como fontes de erros. Escolhi criar pseudônimos quando a escrita requirisse nomes próprios. Na maioria da tese optei deliberadamente por imprecisões: “uma mulher contou”, “disseram-me”, “ouvi de um ancião” e frases do tipo. Quando julgo necessário marcar determinada perspectiva, busquei precisar minimamente a fonte, marcando tratar-se de “uma pessoa de tal clã”, “uma idosa”, “um pentecostal convertido há muitos anos”, “um amigo” ou “um jovem que mora na cidade”.36 35 A Reimi Eduards, peço desculpas por citá-lo apenas nesta nota. Qualquer pessoa de Botopási sabe que você foi um dos meus principais professores e amigos, sem o qual esta tese teria sido muito mais cheia de falhas.

32 A tais imprecisões deliberadas, somam-se outras, acerca do grau de segurança e generalidade que vislumbro em cada afirmação. “Ouvi dizer” aparece em alguns momentos; em outros, o “saamaka afirmam que”; em outros ainda, “aparentemente”; e muitas vezes também o discurso indireto, quando avalio tratar-se de algo suficientemente geral. Dúvidas, polêmicas, especulações foram correntes em meus diálogos. Meus interlocutores por vezes asseveravam com toda certeza que “todos os saamaka fazem tal coisa”, mas por outras diziam que “pensavam que era assim” ou que “foi assim que me disse tal pessoa”. Busquei transmitir ao leitor as variações de registro em cada frase, o que por vezes pode passar a falsa impressão de generalizações. Que fique claro, portanto, que as frases mais assertivas só o são com relação a outras nas quais há mais hesitação (minha e/ou das pessoas com quem conversei). Ao longo da maioria do texto, esforcei-me para manter um grau baixo de abstração, colado ao caderno de campo, com muito casos e ilustrações. Quis deixar o mais claro possível ao leitor quais foram as instanciações que me levaram a entender os saamaka como entendi. Quando arrisco alguns saltos mais teóricos, procuro deixar evidentes minhas inspirações bibliográficas e comparativas, daí a relativa abundância de citações em alguns trechos. É importante marcar que, quando dou exemplos, eles também variam: alguns acompanhei; outros ouvi de terceiros (amiúde de diversas perspectivas); outros ainda são casos hipotéticos. Quanto aos últimos, utilizo-os porque era assim que meus interlocutores explicavam muitas coisas: “digamos que você foi enfeitiçado...” (“bóo táa de wísi i...”) ou “se você morrer jovem...” (“ée i deodë njoonku....”). Muitos exemplos, portanto, são como experimentos de pensamentos nativos, que reproduzo à minha maneira. Com tudo isso quero apenas sublinhar algo um tanto óbvio, mas que deve ser tornado o mais explícito possível: procuro fazer das incertezas e seguranças dos meus informantes minhas próprias incertezas e seguranças. Falo ancorado em uma localização etnográfica, partindo de meus interlocutores, o que não quer dizer que as afirmações sejam validas tão somente para eles. Pois os saamaka – sabendo das variações e discordâncias entre eles – tampouco deixam de generalizar.

Cristianismo, morte e comparação O principal eixo que guia minhas descrições é a morte: rituais funerários, espíritos, ancestrais, o além. Esta não era minha intenção quando decidi estudar os povos maroons das 36 Exceções são personagens históricos como Anake, Momóimítji e os gaamá, nomes particularmente relevantes para a literatura com a qual me engajo.

33 Guianas. Eu queria, a princípio, dar continuidade a meu estudo do mestrado que tratou do conceito de fetichismo religioso nas religiões africanas e afro-americanas (Pires 2009, 2011a, 2011b, 2014a). Ao entrar em contato com a literatura antropológica sobre as Guianas – lendo Richard Price, Sally Price, Thoden van Velzen e van Wetering – entendi que os óbia (objetos e receitas mágicas utilizados pelos povos maroons) ajudariam a pensar etnograficamente o tipo de relação entre matéria e espírito que encontrei nos objetos que foram, desde o séc. XVII, chamados de fetiches37. Meus contatos iniciais em Paramaribo levaram-me a uma aldeia cristã, onde usam óbia, mas quase sempre em segredo, atrás de suas casas ou em suas roças. O uso de oráculos (fíi) também é feito com discrição, ou em aldeias vizinhas. Ali é raro ver possessões por kúnu (espíritos vingativos), fantasmas (joóka) e gádu (divindades) como os komatí (espíritos relacionados aos jaguares), papagádu (relacionados às jiboias) e apukú (espíritos da floresta) – e nunca há rituais em homenagens aos mesmos, com oblações, libações, danças e tambores. As pessoas em Botopási não duvidam da existência destes seres e poderes, de fato se relacionam bastante com eles, apenas não o fazem publicamente. A religião pública é o moravianismo e, mesmo que não houvesse durante minha estadia nenhum reverendo (dominee) residente, a postura pública das lideranças tende a ser defender as “regras da igreja” (kéíki weoti), isto é, as regras do cristianismo local, que tornam mais privadas atividades como óbia, possessões e oferendas – mas são extremamente difundidas, uma espécie de segredo de polichinelo. As pessoas têm relações variadas com o cristianismo: algumas ocupam posições de liderança na congregação (dienaars, “servos” e aannemers, “obreiros); muitas leem a Bíblia com frequência e vão à igreja todos os domingos; outros rezam apenas em casa e participam de atividades cristãs apenas em datas especiais como a páscoa e o natal. Mas a visão geral é de que todas as pessoas de Botopási são cristãos, por serem batizados e criados numa aldeia cristã, por seguirem regras e tradições moravianas sedimentadas na aldeia há mais de cem anos. Mesmo que rezem para antepassados, espíritos e divindades, colocam também sua fé em Jesus e no Deus criador (Mása Gadu) que – na versão mais simples de algo bastante complexo – é o mesmo criador no qual creem também os saamaka não cristãos. Inicialmente, certo purismo romântico fazia-me querer passar a outra aldeia, nas quais eu encontrasse pelas ruas estátuas de divindades, garrafas cheias de ingredientes mágicos, 37 O termo “fetiche” foi usado na literatura contemporânea sobre os maroons para falar de pequenos demônios chamados bakúlu, por Thoden van Velzen (1990), seguindo Taussig, Marx e Freud; e para tratar da história da apropriação de objetos maroons de óbia por museus europeus (Legêne 1997). A abordagem que eu pretendia empreender diferiria de ambas.

34 pessoas fazendo rituais, oráculos e possessões por espíritos. As pessoas de Botopási, com intermináveis simpatia e paciência, logo fizeram-me perceber que ali aconteciam coisas tão fascinantes quanto tudo que se passava nas aldeias vizinhas. Logo entendi que a morte e ressurreição de Cristo, performadas na páscoa, podiam ser tão interessantes quanto oblações para ancestrais; as especulações acerca da causa mortis de alguém tão instrutivas quanto sua decisão por meio de oráculos; a glossolalia tão intrigante quanto línguas esotéricas; que gestos rituais feitos em relativo segredo poderiam ensinar-me tanto quanto atos públicos. Ademais, faltava na bibliografia um relato etnográfico do cristianismo saamaka: o estudo de R. Price sobre o tema, Alabi's World, é histórico; há descrições de práticas cristãs atuais de outros povos maroons (quais Köbben 1968 para os ndyuka; Lenoir 1973 para os paamaka; de Beet & Sterman 1981 e Green 1978 para os Matawai), mas não dos saamaka. Aprendi muito sobre óbia, dentro e fora de Botopási, mas ao longo de minha estadia no Alto Suriname, outro tema foi surgindo como mais relevante: a morte. Dezenas de pessoas faleceram enquanto estive na aldeia e, a cada vez, todo o ritmo da vida alterava-se. Durante uma semana, eu seguia meus amigos em deixar as atividades cotidianas – trabalho, pesca, caça, agricultura ou mesmo ócio – e passava os dias embaixo de uma tenda de zinco construída em frente à casa da pessoa que morrera, a jogar, beber, conversar, cantar, rezar, presentear, trabalhar para o falecido e sua família. Volta e meia, viajava à noite, com amigos, para participar de vigílias em outras aldeias ou para prestar solidariedade, atenção e ajuda a diversos ritos fúnebres pelo rio ou na cidade. No cotidiano, ouvia muitas conversas sobre mortos antigos e recentes, sobre espíritos vingativos (kúnu), padrinhos espirituais (neoséki), antepassados, fantasmas, assombrações. Aqueles locais, práticas e as discussões que ocorriam sob a tenda vieram a ser locus de muito do que aprendi sobre saamaka. Quando decidi pelo tema da morte, meu amigo Milthon Eduards disse que eu havia escolhido “uma das coisas mais importantes”, dando-me segurança para seguir tratando do tema que pode ser por vezes incômodo para o autor, para os leitores e para os personagens.38 Evitei tratar de mortes muito violentas, pois meus informantes diziam que meramente mencioná-las poderia ser perigoso – abordo-as quando necessário, evitando entrar em muitos detalhes ou dar nomes. Os rituais funerários não foram deixados de lado pela literatura acerca dos povos maroons das Guianas. Especialmente o oráculo que serve para consultar o morto: dois carregadores transportam ou o caixão ou uma canoa monóxila partida (o bungulá) nas quais estão ou o defunto, ou um pacote com unhas e cabelos que o substituem. A divinação do 38 Não quero dizer que a morte é mais importante para os saamaka do que para qualquer outro povo, apenas que foi particularmente saliente em minha experiência etnográfica.

35 cadáver permite que acesso à perspectiva do morto acerca das circunstâncias e causas de sua morte, de seus desejos de herança e outros temas. As transformações desta prática, trazidas por novos cultos, movimentos religiosos e reações a eles marcaram a história dos ndyuka, de modo que o tema foi bastante aprofundado na bibliografia acerca desta tribo (de Beet & Thoden van Velzen 1977; Thoden van Velzen 1978, 1995; Thoden van Velzen & van Wetering 1982, 1983, 1988, 2004; Parris 2011). Herskovits & Herskovits (1971 [1934]), Donicie (1948), R. Price (1990) e Price & Price (1991) falam da prática para os saamaka, além de tratarem de outros aspectos dos rituais funerários. Por ser uma aldeia cristã, em Botopási é vedada a divinação de cadáver ou de caixão, que indicaria o veredito público acerca da culpabilidade e das causas de uma morte. Tampouco possessões por espíritos de mortos e outros oráculos ocorrem publicamente. Assim, tais questões ficam em aberto por muito tempo, até que seja estabelecido, em conversas extraoficiais, certo consenso sobre o assunto. Certas ausências – provocadas pelo cristianismo principalmente – levaram-me a tratar de aspectos do ritual funerário menos evidentes na bibliografia. Ali não tocam tambores, não dançam, não contam mitos durante as vigílias. O que a literatura diz sobre outras tribos, aldeias e tempos ajudou-me a pensar Botopási e, reciprocamente, o que vi na aldeia cristã ajudou-me a entender o que se passava alhures. A ausência de oráculos, por exemplo, fez com que eu me questionasse acerca da ideia de consenso, acerca de como autoridades e verdades são estabelecidas em uma aldeia – assim a política surgiu como terceiro elemento do tripé temático que compõe a tese, junto com morte e cristianismo. O modelo de ciclo funerário que construí é o de uma aldeia saamaka cristã. A maioria dos exemplos vêm de Botopási, mas paralelos são constantes. Mesmo porque comparações de diferentes escalas e modalidades eram feitas a todo tempo pelos meus informantes. Como as coisas funcionam em aldeias pentecostais ou que não adotam o cristianismo; como funcionam em aldeias de outros clãs, sejam as supostamente mais “tradicionais” à montante do rio, ou nas mais “desenvolvidas” à jusante; como os saamaka fazem as coisas quando estão na cidade, na Holanda ou na Guiana Francesa; como agem outros povos maroons das Guianas e outras etnias do Suriname; como os bakáa (brancos, europeus) pensam sobre tal assunto; como eram as regras em Botopási, em diferentes momentos do passado. Sobretudo comparações entre saamaka cristãos e não cristãos eram frequentes e fundamentais para entender como as pessoas em Botopási refletem sobre o que fazem, sentem e pensam. Estar em Botopási, aldeia moraviana, tão próximo de Futunaákaba, pentecostal, e de Pikísééi, não cristã foi, neste sentido, um privilégio. Abriu-me todo um campo de comparações,

36 complementaridades e polêmicas entre três modalidades saamaka de relacionar-se com vivos, mortos, divindades e Deus39. A maioria das leituras do cristianismo maroon aponta para a cristianização como um aspecto de uma lamentável perda de tradições, de um processo de aculturação. Algo no tom do que Clifford (1998 [1988]) chamou de “pastoral etnográfica”. Entretanto, estava eu em uma aldeia saamaka há 120 anos moraviana onde as pessoas se diziam totalmente saamaka – e não haveria porque dizer que não são, mesmo com as diferenças com relação aos não cristãos. A literatura antropológica abunda de exemplos nos quais missões foram de fato foi corrosiva, mas aquele não parecia ser o caso. Percebi (e isso é de extrema importância para o argumento da tese) que a imagem romântica pintada acerca dos maroons das Guianas, que descrevi acima, era por vezes um fardo também para os próprios saamaka. Cristãos eram vistos como “menos maroons” que os demais. Isso vale, aliás, não apenas para o cristianismo, mas também para a adoção de outras práticas estrangeiras, sejam artísticas, econômicas, de vestuário etc. A ausência de certos signos de alteridade leva amiúde a ideia – frequentemente com objetivos políticos escusos – de que um povo ao converter-se ao cristianismo perde suas especificidades, torna-se menos digno de investigação antropológica, e menos legitimas suas reivindicações por distintividade étnica, territórios tradicionais, e tudo mais que acompanha. É preciso esquivar-se de um modelo abstrato de aldeia saamaka, de uma tradição supostamente inflexível. O cristianismo é visto como uma adição dos últimos dois séculos a um modo de vida saamaka previamente existente. Falam de uma maior “pureza” das aldeias à montante. Mas os modos de vida saamaka estão em constante mutação por toda parte. O cristianismo ou o desenvolvimento em direção à economia de mercado e à modernidade não são vistos como impróprios, não necessariamente indicam “perda da tradição”, mesmo que amiúde impliquem conflitos, dilemas e realocações de costumes. Cada aldeia tem suas regras (weoti), as de Botopási incluem também aquelas de seu cristianismo, legadas desde a reação ao episódio de Anake. Estas regras, porém, não são “menos saamaka” do que aquelas de aldeias que não se converteram. Mesmo porque, como veremos, uma das características marcantes das weoti saamaka é o fato de serem debatidas com frequência.

39 Escrevo Deus com maiúscula quando refiro ao criador (cristão e/ou não cristão) para diferenciar das divindades (gádu), que também podem ser chamadas de deuses.

37 Usos da literatura É necessário explicitar como engajei-me com a literatura ao longo da tese e portanto, apresentar ao leitor alguns dos traços mais relevantes da mesma. Acompanhará meu texto a bibliografia sobre os povos maroons das Guianas, e também alguma sobre os creole, afrosurinameses da costa (como Herskovits & Herskovits 1936; Wooding 1972, 1981; Voorhoeve 1983). Maroons e creole entendem-se como distintos, mas em determinados aspectos

se

aproximam.

Nos

estudos

linguísticos

e

antropológicos

acerca

dos

afrosurinameses, há uma clara divisão de tarefas entre obras sobre maroons e creole, ainda que variem as posições acerca das aproximações e afastamentos entre as populações. Por outro lado, quando tratou-se das tribos maroons, a literatura os tratou frequentemente como um conjunto um tanto homogêneo, sem problematizar as comparações. Apresento algumas ideias acerca deste tema na conclusão. Nesta altura, enfatizo que meu uso mais intenso foi mesmo da bibliografia sobre os maroons. Além da divinação do cadáver, alguns outros tópicos concentraram a atenção dos estudiosos que trabalharam com as populações maroons das Guianas. Temas clássicos como parentesco (Köbben 1967), noção de pessoa (Vernon 1992), demografia (de Beet & Sterman 1978), economia (Green 1976), gênero (S. Price 1993 [1984]) e política (Pakosie 1996) atravessam a literatura antropológica. Alguns dos debates mais interessantes surgiram a cerca da arte, tratada por diversos autores que buscaram compreender se haveria simbolismo por trás das figuras aparentemente abstratas entalhadas nas madeiras e cabaças; como a divisão sexual do trabalho e as trocas conjugais atravessam as práticas artísticas; qual seria o legado africano na estética maroon; e como ela interage com os mercados de arte e de artefatos turísticos (ver, dentre outros, Dark 1951, 1952, 1954; M. Herskovits 1951; Hurault 1970; Muntslag 1971; S. Price 1993 [1984], 2000 [1991]; Price & Price 1992, 1994, 2005 [1999]). Não focarei este ponto ao longo da tese. Outro tema recorrente foram os kúnu. Chamaram a atenção dos antropólogos por sua centralidade no discurso nativo e por serem uma característica singular das cosmologias maroons, que as diferencia até mesmo da dos afrosurinameses da costa. Espíritos vingativos foram descritos na literatura como “defensores da ordem moral” (Köbben 1967: 18, para os ndyuka do Cottica); símbolo central e carta social para a solidariedade da matrilinhagem (R. Price 1973: 96); aquilo que estabelece a identidade corporada e a responsabilidade das linhagens, bem como a relação ritual entre elas (Lenoir 1973: 108, para os paamaka); um idioma para expressar a responsabilidade coletiva e “mecanismos de controle social” que são

38 base da estabilidade da sociedade (Green 1977b: 139; Green 1978: 271, para os matawai); “corporificação ideológica da natureza corporada do clã localizado” (Bilby 1990: 147, para os aluku) – apenas para citar um exemplo de cada grupo. 40 Quando foram tomados como tema central, serviram para explicar o funcionamento do sistema de linhagens (Green 1977b, R. Price 1973) e a forma de adaptação ao cristianismo (Green 1978). Estes três últimos estudos, os mais detidos sobre o assunto, o abordam numa chave estrutural-funcionalista. Proponho uma interpretação alternativa. Sem deixar de lado a capacidade agregadora e definidora dos grupos sociais que meus interlocutores mesmo percebem nos kúnu, procuro uma abordagem mais simétrica, que esquive de explicações dos espíritos como símbolos de uma estrutura subjacente. E que não parta do princípio que os kúnu não existem tal como os saamaka os concebem. Quando percebo aproximações entre certos conceitos antropológicos (do estrutural-funcionalismo, de seus críticos e outros) coloco-os em função das teorias nativas; uso-os para compreender este mundo em que existem espíritos de mortos que se vingam das matrilinhagens e obrigam-nas a trabalhar em conjunto para detê-los. Os kúnu serão importantes também em meu texto porque levantam uma questão interessante para o cristianismo saamaka: os espíritos vingativos jamais perdoam os atos cometidos por uma matrilinhagem contra eles, enquanto a promessa de salvação pela fé em Cristo redimiria toda pessoa de todos os seus pecados. Veremos como os cristãos saamaka conjugam estas duas ideias de diferentes maneiras. A maioria dos tratamentos dados na literatura ao cristianismo maroon (e dos movimentos proféticos) preocupam-se com a mudança social, a aculturação trazida a estes povos pelo contato com a economia, política e religião ocidentais, dos brancos e da costa do Suriname. Renselaar & Voorhoeve (1962), Köbben (1968), Lenoir (1973, 1975), de Beet & Thoden van Velzen (1977), Green (1978), de Beet & Sterman (1981), R. Price (1990) abordam – de formas distintas, veremos – a relação dos maroons com o moravianismo, o catolicismo e o pentecostalismo nesta chave. Mudança é um tema amplo, percorre também estudos que não tratam do cristianismo, como os de Bilby (1990), de Groot (1969, 2009), Thoden van Velzen & van Wetering (1982. 1983, 1988, 2004). A influência da entrada dos maroons nos ciclos econômicos, do uso do dinheiro, da aproximação com a política estatal foi tema fértil na literatura. Também trato desta questão. Minha abordagem segue a crítica que ouvi de Justus Eduards, um de meus principais interlocutores em Botopási. Professor, leitor de textos acadêmicos, Justus disse-me 40 Não há monografia extensa sobre os kwinti, mas van der Elst (1975: 113-122) também menciona a importância dos kúnu entre eles.

39 que o problema da antropologia cultural era querer que as pessoas estudadas permanecessem para sempre como foram no passado. Dou ouvidos à sua objeção, tento pensar nas transformações diacrônicas dos modos de vida maroon não como um problema de abandono do passado, mas como uma questão de engajamento sobre a qual refletem, discutem e calculam os próprios saamaka. A ideia de um povo isolado na selva, vivendo numa “civilização africana”, conforme imaginou Herskovits (1941), era fictícia já na década de 1920, quando este esteve lá. Os maroons não estão aculturando-se nos últimos 50 anos, ainda que o contato com a costa tenha se intensificado desde então. Eles estão estabelecendo novas alianças, partindo de seus próprios objetivos e ideais políticos, sem perder a conexão com seus ancestrais e seus territórios. Elaborarei esta ideia, especialmente no que toca a conversão para o cristianismo, ao longo de todo o meu trabalho. Um ponto relacionado é a história dos maroons. Alguns dos textos antropológicos mais conhecidos acerca destes povos tratam de seu passado (Price 2002 [1983], 1990, 1983; Hoogbergen & Thoden van Velzen 2011; Thoden van Velzen & van Wetering 1988, 2004, 2013), além dos trabalhos de historiadores (como Hoogbergen 1990; de Groot 2009; Moumou 2004, 2013 – este último um acadêmico aluku). A documentação acerca do período formador das sociedades maroons é vasta, graças às guerras que travaram contra o poder colonial e aos tratados de paz que os colocaram em um contato oficial com o governo holandês. Além disso, narrativas históricas transmitidas oralmente são fontes ricas para entender como os maroons elaboram sobre acontecimentos dos tempos dos ancestrais. Minha abordagem do passado difere dos trabalhos citados porque não fui aos arquivos nem concentrei meu campo nas autoridades saamaka que detêm os conhecimentos históricos mais profundos e secretos. Meu trabalho não é sistematicamente histórico. Ao tratar dos eventos que envolveram Anake, por exemplo, minhas referências principais são as versões mais “coloquiais” do que se passou, mais difundidas pela aldeia, sobre as quais discutem as pessoas em contextos públicos. As histórias dos maroons (e dos saamaka em particular) têm grande peso no campo de estudos afro-americanos. Como colocou Scott, “Os saamaka, em suma, são uma espécie de metonímia antropológica; devem ser entendidos como fornecendo a arena exemplar na qual discutir certas alegações antropológicas acerca de um domínio discursivo chamado AfroAmérica” (1991: 269). Certamente ajudou a tornar os saamaka um caso icônico no discurso acerca da diáspora africana na América o fato de terem sido etnografados por Melville Herskovits (1929a, 1929b, 1929/1930, 1932, 1941, 1951; Herskovits & Herskovits 1971 [1934]), formulador do “problema do negro no Novo Mundo” (1930, 1941) e Richard Price

40 (1975, 1990, 1996 [1973], 2002 [1983], 2008, 2011), um dos criadores da teoria antropológica da “crioulização” (2001, 2008: 287-308; Mintz & Price 2003 [1992]). Scott apresenta a questão da seguinte maneira: […] na economia discursiva ou narrativa desta problemática antropológica, escravidão e “África” funcionam como termos virtualmente intercambiáveis, ou, para colocar de outro modo, a escravidão realiza na obra de Price a mesma operação retórica-conceitual que a África na obra de Herskovits. Ambos recorrem a uma tentativa característica de colocar as “culturas” do ex-africano/ex-escravo em relação com o que podemos chamar de um passado autêntico, isto é, um passado identificável antropologicamente, etnologicamente recuperável, textualmente representável. E o que é particularmente revelador é que tanto Price quanto Herskovits procuram exemplificar seus argumentos sobre os passados e culturas de pessoas de ascendência africana no Novo Mundo baseados no estudo de um mesmo povo do Novo Mundo, os saamaka do Suriname (Scott 1991: 263).41

De um lado temos Herskovits buscando traços e padrões africanos nos povos negros da América, a fim de acompanhar sua assimilação, difusão e mudança cultural frente ao contato com a cultura euroamericana em novos ambientes físicos e sociais. Do outro, Price pensando o nascimento de uma cultura impulsionada por um sincretismo inter-africano conjugado com a criatividade, uma crioulização rápida a partir do momento de captura na África e mais enfaticamente a partir da vida nas plantations. Cada um apresenta uma teoria e uma metodologia para pensar presentes e passados afro-americanos, nas quais os maroons das Guianas são exemplos centrais. Para Herskovits, seu isolamento rápido na floresta possibilitaria a discriminação de características de etnias africanas: Nos negros dos matos temos um povo que – conquistando sua liberdade antes que a influência da civilização europeia pudesse apagar seus costumes africanos e favorecidos por um ambiente suficientemente familiar ao que conheciam na África para ser de assistência material em sua luta por independência – constitui o melhor material disponível no qual basear conclusões sobre as origens de toda a população negra do Novo Mundo (Herskovits 1929: 25).

Para este autor, ainda que os afrosurinameses da costa fossem menos aculturados que outros povos negros das Américas (em segundo lugar, atrás apenas dos maroons, na escala esboçada em 1930), a função principal de seu estudo seria de “grupo de controle” a ser comparado com os afrosurinameses das matas (1929). Inversamente, para Mintz & Price (2003 [1992]), apesar da maioria dos ancestrais maroons terem passado pouco tempo nas plantations, afrosurinameses da costa e das matas compartilham o núcleo de suas práticas linguísticas, religiosas e outras, o que seria prova de que uma espécie de protocultura crioula afrosurinamesa desenvolveu-se muito rapidamente, partindo de princípios africanos subjacentes. Além disso, ao retomar o debate, Price (2008) afirma que a localização dos saamaka na selva, distantes da costa, impossibilitou um diálogo mais contínuo com o outro lado do Atlântico Negro, o que afastaria o caso maroon daqueles descritos por Matory (2005), e faria dos saamaka um exemplo perfeito de um processo rápido e intenso de crioulização. 41 Todas as citações cuja referência não está em português na bibliografia foram traduzidas por mim.

41 Concordo com Price (2001) que o debate muitas vezes foi simplificado exageradamente, tornado uma batalha entre aqueles pró e aqueles contra as “retenções africanas” no Novo Mundo, ambos os lados caricaturados para encaixarem-se em posições dos debates norte-americanos acerca de políticas raciais de identidade. É preciso lembrar que a preocupação de Herskovits era com a “aculturação”, e portanto com a vida na América; e que Price & Mintz não deixam de falar de princípios africanos anteriores à chegada nas Américas. Porém, não há como negar que as atenções dos dois antropólogos estavam voltadas para lados distintos do Atlântico enquanto fontes primárias das formas culturais. O debate é baseado no conceito de cultura e em sua interação com a história e parece ser sobretudo acerca do que conta para determinar a origem e as mudanças em uma cultura: traços de comportamento, de expressões de ideias e de cultura material, visivelmente identificáveis, ou eventos históricos fundadores (captura, escravidão, fuga) reorganizados criativamente por meio de orientações cognitivas anteriores. O problema é quando o estabelecimento de um e outro critério antropológico-histórico, partindo do observador externo, deixa de perguntar o que o povo estudado tem a dizer por cultura e por história. Entendo que a crítica de Scott, que foca nos discursos acerca dos eventos, vai nesse sentido. Ultrapassa a alçada desta tese examinar a polêmica em detalhes, ainda que ela informe minha escrita. Minha posição nesta altura é apenas marcar que Price parece mais afinado com as preocupações saamaka, com a maneira deste povo contar sua história. E portanto, para este caso particular, com o projeto apresentado por Scott, de questionar: […] quais são as variadas maneiras com que a África e a escravidão são empregadas por povos do Novo Mundo de ascendência africana na construção narrativa de relações entre passados, presentes e futuros? Qual, em cada caso, são os traços salientes que se inscrevem nestas figuras? Qual o trabalho retórico ou, se quiser, ideológico, que são levados a performar nas instâncias e ocasiões variadas em que são colocadas em jogo? (1991: 278).

Apesar de orgulharem-se do passado africano, meus interlocutores falavam relativamente pouco sobre a África, o que é irônico já que os maroons das Guianas foram tratados como o caso etnográfico excelente para corroborar a tese herskovitsiana – chamados, por exemplo, de “Africanos das Guianas” por Hurault (1970). A vida dura nas plantations aparece com força quando falam do passado e sobretudo o evento das fugas parece ser central em concepções históricas, genealógicas, políticas, temporais e espaciais saamaka. Os e as primeiras ancestrais que contam nas suas linhagens, aqueles tomados como grandes exemplos do passado, são aqueles que escaparam da escravidão, lutaram nas matas, encontraram ali espíritos, criaram sua prole e fundaram aldeias e modos de vida. O que não necessariamente valida a teoria da crioulização rápida, especialmente não enquanto modelo para toda a

42 América. Mas tal questão foge da alçada do presente trabalho, assim como uma análise detida dos conceitos de cultura e história em Herskovits e Price, que poderiam ser, em outro espaço, colocados ao lado das visões saamaka acerca de seus presentes e passados.42 Minha apreciação da rica bibliografia sobre os maroons das Guianas não visa contestar dados ou propor novos temas para análise. Engajo-me a ela de maneira crítica apenas quando observo nos textos um retorno a conceitos sobrecodificantes que apagam sentidos das práticas e afirmações que encontrei em campo, tentativas de resolver problemas (imaginados pelos antropólogos) por meio de noções como sociedade, cultura, história, economia – nos sentidos fortes, isto é, enquanto entidades determinantes dos fenômenos. Simplesmente porque não parece ser assim que os saamaka que conheci entendiam as questões que eu colocava. Os problemas de quaisquer antropólogos, é claro, foram imaginados pelos próprios, mas deveriam sê-lo apenas ao entrarem em contato com problemas de outrem, de modo que nossas “soluções” não partam de concepções que carregamos conosco antes de ir a campo. Neste sentido, minha tese é um esforço de simetrização antropológica, isto é, uma busca de desestabilizar o pensamento do antropólogo a partir dos discursos e práticas nativas (Latour 1994 [1991]; Goldman 2008). O que não é o mesmo que tentar reproduzir “como os saamaka realmente pensam” sobre a morte, a política, Deus ou qualquer outra coisa. Até porque não há uma forma real de pensar compartilhada por todos eles, há pensamentos diveros, mais ou menos compartilhados pelas pessoas. Meu objetivo é experimentá-las, a partir de minha inserção no campo (por isso a seção acima acerca da localização etnográfica), fazendo todo esforço possível para que meus preceitos e conceitos (adquiridos pelo senso comum ou pelo treinamento acadêmico) saiam deformados e renovados do diálogo e aprendizado com as pessoas (plenamente reflexivas) entre as quais vivi no Suriname. Assim, que fique claro, ideias como fuga ou espaço-tempo, com as quais trabalho na conclusão, não são “conceitos nativos”, pois meus interlocutores não as exporiam como faço – eles não parecem interessados em saber o que Pierre Clastres ou Alfred Gell têm a dizer sobre essas coisas – são experimentações que tentam extrair da minha relação com os saamaka o mundo deles tal qual eu o imagino (cf. Viveiros de Castro 2002). O que já deve estar claro para o leitor é que insiro-me naquilo que vem sendo chamado alternativamente, e com diferentes efeitos, de antropologia simétrica (Latour 1994 [1991]), 42 Já que o conceito de crioulização em Mintz & Price deriva da linguística, seria interessante adicionar também a perspectiva maroon acerca de suas línguas neste debate. É importante lembrar que, também na linguística os crioulos do Suriname são palco de algumas das disputas mais acirradas acerca de teses sobre a criação de novas línguas (cf. Bickerton 1983 para um dos mais conhecidos textos sobre o tema).

43 antropologia pós-social (Goldman & Viveiros de Castro 2013) ou virada ontológica (Holbraad, Pendersen & Viveiros de Castro 2012). O que significa que, por exemplo, antes de tentar resolver o problema da crença nos kúnu por meio do recurso à ideia de controle social, tento entender porque os espíritos vingativos são um problema para os saamaka, o que me leva a perguntar o que é que eles chamam de espírito e porque e como se vingam. Antes de tentar elencar fatores socioeconômicos que levam certos saamaka a adotar o cristianismo, tento entender quais as múltiplas relações sociais e econômicas (e espirituais, corporais, morais etc) que são mobilizadas quando os saamaka se engajam, de formas variadas, com o cristianismo. Daí eu não ter apresentado nesta introdução uma revisão bibliográfica extensa acerca do tratamento dos rituais funerários na antropologia: não pretendo usar os ritos que descrevo como caso-teste a ver se encaixam-se ou não em paradigmas ou escolas. Mobilizo a bibliografia antropológica (e outras) acerca da morte (e de tantos outros temas) na medida em que ela me inspira a entender melhor aquilo que de início eu não compreendia, em campo.43

Estrutura da Tese Se esta introdução pareceu desviar-se do tema com a qual iniciou, alerto ao leitor que o mesmo ocorrerá ao longo da tese. Exponho muitas ideias e reflexões sem procurar sempre resolvê-las, apenas apontando caminhos, possíveis vias de interpretação, sem explorá-los totalmente. O presente trabalho tratará de muitos assuntos, alguns apenas lateralmente, outros mais insistentemente, tomando-os como fios condutores: morte, cristianismo e política – o primeiro tema é foco dos capítulo 2 a 5, o segundo, do 6 e do 7 e o terceiro, do 1. Na conclusão, todos voltam a fim de traçar as conexões entre eles a partir do tema do tempo. No capítulo 1, apresento o ciclo funerário em Botopási, as principais atividades que tem de ser levadas a cabo desde a morte de uma pessoa até as últimas cerimônias celebradas em sua homenagem. Apresento também diferenças entre o ciclo funerário nessa e em outras aldeias. Daí surgem comparações entre elas fora de funerais e a questão de como regras e costumes variam no tempo e no espaço, dentro do território saamaka. Proponho existir um 43 Não me propus a traçar paralelos entre as populações maroons das Guianas e outras comunidades fundadas por escravos fugitivos pelas Américas, pois um bom trabalho comparativo demandaria toda uma outra tese. Abordagens comparativas de tais populações aparecem em Carvalho (1996); R. Price 1996 [1973], 2000. Este último texto de Price propõe critérios como “contrastividade cultural” e “continuidade com um passado ancestral” para avaliar povos descendentes de escravos fugidos. Mais um exemplo de problemas gerados por certas imagens românticas dos maroons, ao qual surgiram reações de estudiosos brasileiros, problematizando a visão dos saamaka como parâmetro do que seria (ou deveria ser) uma sociedade maroon ou quilombola (cf. O'Dwyer 2005; Boyer 2009; Mello 2012). Considero que o principal problema político-teórico da comparação, qual proposta por Price, é deixar de lado na elaboração de seus critérios as ideias das populações em questão acerca de história, cultura e identidade.

44 jogo de autonomia e interdependência entre as aldeias. Baseado em episódios etnográficos, exploro também mudanças ocorridas ao longo do tempo nas regras e costumes (no ciclo funerário e outros aspectos), o que me leva a pensar sobre como decisões são tomadas e algum tipo de consenso é estabelecido. Para obter uma resposta, exploro a ideia saamaka de regra (weoti), a hierarquia dos cargos políticos oficiais em saamaka e as assembleias (kuútu) nas quais questões aparecem publicamente. O ponto principal do capítulo é entender que o ciclo funerário contemporâneo em Botopási, explorado ao longo da tese, é uma atualização possível de duas tradições: saamaka e cristã, territorializadas a partir de modos locais de pensar o passado, a autoridade, a autonomia e a liberdade. Pela forma que encaram a vida em comum, as regras saamaka (sobre funerais e outras coisas), ainda que remetam às tradições dos antigos, estão sempre explicitamente abertas a debates e portanto a serem modificadas. No segundo capítulo exploro ideias acerca da morte e dos mortos, essenciais para que se compreenda o que é efetuado a cada ato do ciclo funerário. Exponho como meus interlocutores falam sobre a alma (akáa), suas relações com o corpo, com a psiquê e com outros tipos de espíritos (jejé), especialmente fantasmas (joóka), também chamados de “gente fria” (kootösëmbë). O destino dos humanos após o falecimento, para os saamaka, tem algo de misterioso, ninguém sabe muito bem o que acontece na chamada “terra dos mortos” (deodëkoondë). Para os cristãos, ideias bíblicas acerca do paraíso e do inferno possuem um peso importante nas especulações acerca do além, mas dúvidas são mais usuais que certezas. O que não quer dizer que os mortos sejam distantes: no território, nas memórias, nos objetos, nos sonhos e nas genealogias os vivos estão a todo tempo em relação com aqueles que se foram, que agem de diferentes maneiras, amaldiçoando, assombrando, ajudando, ensinando, aconselhando. A possibilidade de um morto atuar de forma benéfica ou maléfica passa pela forma como viveu sua vida e faleceu, o que nos leva a abrir uma discussão acerca das “mortes feias” (taku deodë), das ideias de bem viver e da ancestralidade. Os capítulos 3 e 4 focam em diferentes aspectos dos rituais funerários. O terceiro trata das ações que visam controlar a perigosa ação dos mortos, separando-os dos vivos, sem porém cortar as relações com eles. Lavar o cadáver, amortalhá-lo, construir o caixão, cavar e tampar a cova, manter e terminar o luto, são atividades cuidadosamente efetuada e discutidas. São técnica-, corporal-, temporal- e espacialmente controladas para criar uma boa distância entre vivos e mortos. O falecido deve ser simultaneamente agradado e afastado, a fim de diminuir sua ira, ciúmes e apego ao mundo dos vivos, enfatizando sua agência protetiva para os que ficaram.

45 O quarto capítulo trata principalmente das trocas funerárias e demais atividades efetuadas ao longo do ciclo funerário para trazer de volta a alegria e a união para a aldeia após uma morte. Serviços, tecidos e alimentos circulam na semana entre o enterro e a celebração do aitidei, uma semana depois, e com menor intensidade até o limbá uwíi, após mais cinco semanas. Seguindo uma estética apropriada, tais trocas apresentam e reconstroem relações entre as pessoas, partindo do morto tomado como centro dos intercâmbios. Em termos nativos, as trocas “amarram ventres” (tái beoë), isto é, (re)criam laços entre as linhagens e as pessoas que as compõem. Trato do que é trocado, de quem troca, do eclipsamento do dinheiro durante essas cerimônias e de como expressam ideais de reciprocidade e união que guiam a socialidade saamaka. Como no capítulo anterior, não abordo o tema sob uma ótica simbólica: cuidado, alegria, reciprocidade, proximidade e comensalidade são úteis, efetivos, para comunicar e relacionar as pessoas com Deus, com o morto e entre si. O capítulo 5 dá sequência ao anterior: nele trato de certos modi operandi dos mortos que criam relações entre vivos (e entre vivos e mortos). Detenho-me principalmente nos kúnu, espíritos vingativos que atacam as matrilinhagens. São muito temidos, um dos principais males que afetam os saamaka, uma das principais fontes de infortúnios. Da perspectiva nativa, a vulnerabilidade compartilhada aos mesmos espíritos vingativos força os membros de uma linhagem a agirem moralmente e a ajudarem uns aos outros. Coloco os kúnu ao lado dos neoséki – espécie de padrinhos espirituais que fazem uma criança se desenvolver e lhes emprestam características físicas e vulnerabilidades – a fim de argumentar que o kúnu não é uma instituição central que regule sozinha socialidade e moral. Espíritos vingativos são parte da multiplicidade relacional que compõe pessoas e grupos em saamaka, ao lado de outras relações, como essas muito íntimas de cada pessoa com seu neoséki; como aquelas incentivadas entre uma pessoa e a matrilinhagem de seu pai; como todas as outras elaboradas durante as trocas rituais. Os kúnu ainda nos ajudam a compreender a perspectiva saamaka acerca da causalidade; a linearidade do tempo; as consequências de longo prazo das ações; e a distribuição de culpas e responsabilidades pelo parentesco. Nos capítulos 6 e 7, a morte deixa de ser o foco, dando espaço ao cristianismo. Inicio pela história de Paulus Anake e de como parte do clã Dómbi aderiu ao moravianismo. Descrevo os cultos dominicais, a organização da igreja em Botopási e suas relações com outras práticas “religiosas”, sobretudo com o pentecostalismo e com o que foi taxado pelos missionários de “paganismo” e “idolatria”. Falarei brevemente do conceito de kulturu, uma versão surinamesa da ideia de cultura que inclui com destaque práticas que poderiam ser

46 chamadas de mágico-religiosas. As ligações do cristianismo com a ideia de desenvolvimento (ontwikkeling) permitirão que confrontemos uma ideia que paira por toda antropologia do cristianismo em contextos tribais: a de que a conversão significa perda da tradição. Por fim, argumento que a maneira específica de Botopási de conjugar o cristianismo com práticas não cristãs envolve tornar o primeiro mais visível, mais explícito que as tais “crenças pagãs”, sem porém obliterar as últimas. O sétimo capítulo trata de outras questões cosmopolíticas da interação entre as igrejas e práticas não cristãs, principalmente o culto às divindades (gádu) do rio, do solo e da água e o uso das magias chamadas de óbia (e seu reverso, wísi, feitiços). Veremos como convivem em saamaka imagens de um Deus criador mais e menos intervencionista, mais e menos exclusivista, que provocam diferentes engajamentos com grupos, entidades e poderes (naturais, sobrenaturais, sociais e antissociais) que habitam o mundo. Questão central na conversão ao cristianismo é a fé ou crença (biíbi), que em saamaka carrega sempre a ideia de dar crédito a algo, trabalhar em conjunto, e não exatamente de colocar a existência em cheque. É uma questão deontológica, portanto, acerca de como se relacionar com os seres do mundo, o que me leva a explorar as ideias de bem e mal (ou as versões mais próximas a elas que existem em saamaka) e de pecado (idem). Tratarei também do uso feito em Botopási da Bíblia e dos ensinamentos trazidos pela igreja. O capítulo conclusivo tem um caráter mais “teórico”, mas, como no resto da tese, encaro as “conclusões” nas quais chego ali como parciais, inacabadas. O objetivo das últimas páginas é juntar pontas que ficaram soltas, alguns caminhos que apontei, a ver como dialogam. A questão do tempo e do espaço, que traspassa toda a tese sem ser seu foco, dá unidade às últimas reflexões. Parto de uma breve discussão acerca da temporalidade do ritual e da morte na literatura antropológica, o que, em saamaka, não pode ser pensado sem conexão com o território e com os ancestrais. Vivos e mortos estão relacionados em corpos, objetos e também em espaços marcados pelos atos daqueles que foram para o além mas permanecem presentes entre os viventes. A ação temporal da vingança dos kúnu e seus efeitos nas histórias e fronteiras das matrilinhagens levam-me a uma discussão com a literatura antropológica acerca destes espíritos vingativos que serve aqui para compreendermos que a ação dos espíritos não pode ser expulsa do modelo etnográfico-teórico. Nesta chave, proponho que, dentre os modi operandi dos mortos está a capacidade dos atos dos ancestrais no passado servirem de modelos (não exclusivos) de conduta no presente. Em particular, sua fuga, ato de resistência que guia toda uma ética e uma estética saamaka de relações com o mundo

47 estrangeiro e dentro dos limites de saamaka: toda autoridade, todo comando, é contraposto a uma ideia de que, enquanto pessoas livres, cada pessoa vai onde puder e faz as coisas da maneira que avalia mais apropriada. A relação dos saamaka com a política interna e externa pode assim ser pensada como uma relação anti-Estado, ou melhor, em contraponto a Estados com os quais relacionam-se ou relacionaram-se. Isso nos ajudará a dar sentido às formas como os maroons incorporam o cristianismo em seu modo de vida, que se inserem nos modos mais amplos de engajamento com elementos estrangeiros, costeiros, brancos. Penso então a conversão como uma transformação, dentre as possíveis, que fazem de cada aldeia saamaka uma territorialização singular da tradição saamaka – sob a forma de certas regras, práticas, ideias e alianças. Pode parecer estranho que alguns temas que poderiam ser considerados estruturantes, como um tratamento mais detido da história, ou noções cosmológicas básicas como Deus, kúnu, óbia e gádu apareçam na segunda metade da tese. Optei por apresentar os tópicos assim por entender que nenhuma esfera – economia, cosmológica, histórica, religiosa ou política – é “mais determinante” que outra. O formato da tese busca a análise dos ritos funerários no seu núcleo, no meio do texto, colocando assuntos crescentemente afastados em seu entorno (fantasmas e outros espírito, política e cristianismo) como pilares que sustentam a argumentação (e não necessariamente os funerais). Começo pelas ideias que envolvem regras e consenso para melhor afirmar que os funerais que descrevo são um modo possível de exéquias saamaka. O cristianismo segue os mortos para expor como a religião cristã, enquanto modulação, afeta também outras relações e engajamentos.

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Capítulo 1: Funerais, regras e autoridade Ouvindo um morto Terça-feira, quatro de outubro de 2011. Era a segunda semana de meu segundo período de campo em Botopási. Acordei com o basiá bái, o chamado de um dos basiá, homem que detêm um cargo político de ajudante dos kabiténi, líderes da aldeia. O arauto andava gritando e convocava a todos, homens e mulheres, para irem a um kuútu, uma assembleia geral. O local designado foi uma tenda que havia sido construída para um enterro que ocorrera há cerca de 15 dias atrás. Enquanto me preparava para ir, o homem que me hospedava disse que já sabia do que se tratava: um idoso morreu em Pikísééi, aldeia vizinha e do mesmo clã. Pelo tom do chamado do basiá, todos sabiam que era caso de morte e a notícia de quem especificamente falecera corria pelos telefones celulares. Ainda assim, meu anfitrião pediu para que eu não comentasse nada com ninguém, era necessário que todos agissem como se não soubessem do que trataria a assembleia, até que nela a notícia fosse dada oficialmente. Quando cheguei, os assentos já estavam dispostos sob a tenda. Cerca de 50 pessoas estavam presentes. Homens e mulheres sentavam-se separados, e de frente para ambos os grupos, capitães, basiá e anciões tinham assentos aparte. Seguindo a etiqueta, a cadência e o modo de fala típico dos kuútu, foi kabiténi Samuel, o mais velhos dos três capitães da aldeia, deu a notícia: um homem de Pikísééi morrera na noite passada. Era necessário escolher uma comitiva para ir “ouvir o morto” (háika deodë), isto é, ir ver com os próprios olhos; avisar às pessoas de Sééi que a notícia chegou e foi transmitida oficialmente em Botopási; e informarse sobre os preparativos para as cerimônias que se seguiriam. Depois me explicaram que, mesmo com a chegada dos celulares no rio Suriname, continua sendo necessário que se vá em pessoa cumprir esta pequena obrigação. Ofereceu-se para ser cabeça da expedição Charles, o mais jovem capitão, com certa de 45 anos. É prestigioso que se envie um kabiténi em visitas formais, além disso, ele tinha uma tênue relação de parentesco com o morto, irmão classificatório patrilateral de seu pai. Formava a comitiva Mako, também de seus 45 anos, que detêm o cargo semioficial de líder dos jovens (hédima u kijóo), e é amigo de kabiténi Charles. Por ser um bom orador (é “bom de kuútu”), frequentemente se dispõe a participar desse tipo de visita. O terceiro homem era Carlo, jovem de 30 anos. Esses três após o kuútu me convidaram para acompanhá-los, sabendo que era de meu interesse “ver coisas saamaka”.

50 Encerrada a assembleia, começamos a preparação para ir a Pikísééi. Kabiténi Charles coletava pela aldeia presentes para levar ao háika deodë, especialmente rum (daán) e tecidos (koósu), artigos usados em trocas funerárias. Além de Charles, outras pessoas que tinham relação com o falecido e sua família fizeram pequenas ofertas para levarmos ao morto que iríamos “ouvir” e a seus parentes. Apesar de Sééi ser próxima a Botopási, fomos de barco. Chegando lá, visitamos três dos oito capitães da aldeia e o hédi kabiténi da região (um dos cargos mais altos na hierarquia política saamaka). Os presentes foram entregues para os encarregados de organizar a cerimônia funerária. Também aproveitamos para visitar os familiares e amigos de Charles, o que na verdade tomou a maior parte de nossa tarde, entre cervejas, conversas sobre o morto e casos de caça. Mako fez questão de me mostrar a área de sua matrilinhagem naquela aldeia. Chamou-me atenção certa mudança na etiqueta. Uma das primeiras coisas que me ensinaram quando cheguei a saamaka foi a forma polida de saudação: ao cruzar com alguém pergunta-se: “i deo n oo?” (“você está aqui?”) ou “i kó akí noo?” (“você veio aqui?”), ao que se responde: “mi deo o! ” (“estou aqui!”) ou “mi kó akí o!” (“vim aqui!”). Naquele dia, Charles, líder de nossa expedição, em geral respondia aos cumprimentos com uma frase do tipo “estou aqui, ouvi o que aconteceu e vim ver com os próprios olhos”. Da mesma forma, quando um de nós perguntava a alguém “unfá nángo?” (“como vai?”), a resposta era diferente da usual, “a nángo búnu” (“vai bem”). Ocorria uma mudança de registro: para marcar a importância e a dor da morte, diziam algo como “a nángo, ma sëmbë akí deodë” (“vai indo, morreu gente aqui”) o que iniciava uma conversa sobre a relação da pessoa com o falecido, o progresso de sua doença, como e onde ficaram sabendo da morte. Era assim que se trocavam cumprimentos em Botopási quando alguém morria por lá. Mas não naquela manhã. Foram poucos comentários, continuaram conversando e saudando-se normalmente, pois o morto era idoso, estava há algum tempo doente, a morte não foi trágica. Além disso, não era próximo de ninguém que eu conhecia, apesar de ser do mesmo clã, não era “gente de Botopási”. Durante todo o tempo da visita, Charles e Mako mostravam-me algumas diferenças entre Pikísééi e Botopási. Ambas aldeias são do mesmo clã, fruto da fissão de uma antiga aldeia, Sofibuka, ocorrida por volta de 1895, após um caso de messianismo iconoclástico. Desde que foram fundadas, Botopási e Pikísééi diferenciam-se principalmente pela religião: Botopási é uma aldeia vinculada à Igreja Moraviana do Suriname (EBGS), enquanto em Pikísééi não são cristãos, cultuam antepassados, divindades da floresta, do rio, do solo 44. As 44 A divisão não é assim tão simples: há em Sééi rastafári, pentecostais, moravianos, como há em Botopási aqueles que não frequentam a igreja aos domingos. Muitas pessoas se mudam durante sua vida de uma

51 diferenças começam na porta da aldeia. No ancoradouro central de Pikísééi pende um azan, arco de palhas de inajá preparado para impedir espíritos perigosos de entrarem, marca inconfundível de que se está numa aldeia na qual o cristianismo não é a religião oficial. Botopási não tem azan. Andando por Pikísééi, fizeram questão de me mostrar duas óbia wósu, casas que são sede do culto a algumas divindades (gádu) poderosas, como os komatí, deuses guerreiros relacionados aos grandes felinos. Kabiténi Charles descreveu para mim a possessão pelo komatí: quando o espírito “vai a cabeça”, a pessoa toma os trejeitos do jaguar, ruge, faz com as mãos como se tivesse garras, ataca as galinhas da aldeia, sobe em pés de tucumã (palmeira alta e espinhosa), anda sobre fogo e vidro, coloca sua mão em líquidos ferventes, e torna-se até mesmo imune a tiros e golpes de armas brancas. Eu e Carlo, nosso amigo mais novo, nunca havíamos visto com nossos próprios olhos uma possessão por esse tipo de espírito, ouvíamos atentamente. Não era a primeira e nem a vigésima vez que Carlo visitava Pikísééi, mas, em sua inexperiência e respeito aos mais velhos, em vários momentos também fazia perguntas aos outros dois acerca das diferenças entre Sééi e Botopási no que tange às cerimônias fúnebres ou outros assuntos desconhecidos por ele. Nossos amigos mais velhos tinham boa parte das respostas na ponta da língua, pois ambos são do tipo de pessoa que, apesar de frequentarem a igreja, envolvem-se frequentemente com cerimônias ditas “pagãs” em outras aldeias. Outra diferença marcante que notei foi que Pikísééi possui uma “casa dos mortos” (deodë wósu), onde a atividade dos rituais funerários é concentrada. Por ela muita gente circulava naquele dia. Um complexo de quatro galpões, com espaço central para dança, um abrigo para as pessoas se sentarem e fazerem reuniões, uma casa onde guardavam os tambores que seriam tocados e uma estrutura onde repousava o corpo antes do enterro, na qual também dormiriam, durante o período crítico do ciclo funerário, os coveiros (baákuma), protagonistas dessas cerimônias. Botopási não possui “casa dos mortos” fixa. Lá, os cadáveres são preparados e descansam dentro de sua própria casa, da qual são retirados todos os móveis e objetos pessoais, e que doravante também será chamada de “casa do morto” (deodë wósu). Constroem uma tenda em frente à porta, onde serão acomodadas as pessoas durante a primeira semana que segue o enterro, e onde as festas ocorrerão. Não é necessário espaço para dança e para tambores, pois não há dança ou percussão durante as vigílias, apenas hinos moravianos durante a noite e canções gospel durante a madrugada. aldeia para outra, por motivos de trabalho, casamento, ou outros. E entre as duas aldeias fica Futunaákaba, também fruto da mesma fissão no séc. XIX e que, há cerca de 40 anos, adotou o pentecostalismo como religião oficial.

52 Perguntei a Carlo se a ausência de uma “casa de morto” fixa em Botopási devia-se ao fato da aldeia ser cristã. Ele achava que não. Disse que lhe parecia uma boa ideia fazer uma em Botopási também, pois pouparia o trabalho de fazer e refazer tendas a cada vez que alguém morre. Não sabia porque acostumaram-se a fazer assim em Botopási. Apenas tempos depois fiquei sabendo de uma outra versão, conversando com o tio matrilateral (tío, MB) de Carlo que, graças a seu emprego, viaja por todo o rio Suriname: segundo ele, nenhuma das aldeias protestantes possui casa de morto. Todas as moravianas seguem o costume de fazer tendas em frente à casa do falecido, enquanto em Futunaákaba, ao menos desde o ingresso do pentecostalismo, velam o morto no Zal, o salão de reuniões da aldeia, usado também para funções seculares. Em Pikísééi, naquela terça-feira, apressavam-se para que o enterro fosse realizado logo. Numa aldeia não cristã, ainda mais para uma pessoa idosa, podem esperar vários dias ou semanas para enterrar um cadáver, mas na ocasião daquele háika deodë, estava marcada para os dias 14 e 15 uma grande festa, com muitas bandas, comida, convidados importantes. O problema é que até o túwë njanján, cerimônia que ocorre três dias depois do enterro, não deveriam haver outras festas que conflitassem com as celebrações funerárias. Até lá, os coveiros têm de dormir na casa dos mortos, seguindo uma série de precauções contra o fantasma do falecido e há também restrições para outros habitantes da aldeia. Em Botopási, não fazem túwë njanján, mas sim o aitidei, uma semana depois do enterro, e igualmente, uma série de regras tem de ser seguidas até esta cerimônia, incluindo os coveiros dormirem na casa do morto. Em relação ao sepultamento, fazem esforços para que ocorra logo no primeiro dia depois da morte e reclamam da demora nas aldeias que chamam de “pagãs”, dizem que esse costume atrapalha demais a vida cotidiana. Em dado momento começamos a acompanhar uma grande movimentação: um grupo de homens carregava o cadáver em suas cabeças, sobre uma antiga canoa monóxila, e o levavam para um pequeno morro, na parte central da aldeia, cercado por palulú45. A aglomeração era grande, muitos queriam observar os procedimentos. Pouco depois, duas mulheres puseram-se de pé entre aqueles que lavavam o corpo e o público, e com um lençol fizeram uma cortina para dar maior privacidade à lavagem. De longe, não pude perceber outras diferenças com relação à lavagem do cadáver qual feita em Botopási, mas sabia que lá ela é feita na própria casa do morto. 45 Palulú inclui várias espécies de plantas da família das helicônias (como Heliconia richardiana e Heliconia psittacorum), muito comuns na região, utilizadas para vários fins, de telhados a usos medicinais. Suas folhas lembram as de bananeiras.

53 Depois de mais algumas conversas em Pikísééi, voltamos à Botopási. O háika deodë (“ouvir um morto” ou “ouvir a morte”), compreendi, é uma visita formal, uma solenidade, mas acaba sendo também um momento de cotejar os processos – como se fazem as coisas aqui e lá –, um momento de aprendizado por comparação. Certamente, no caso específico muitas das discrepâncias eram assinaladas por minha presença, mas Carlo, nosso companheiro mais novo na visita a Sééi também demonstrava certa ignorância natural que vai sendo sanada ao longo da vida por meio da experiência, da curiosidade e da observação.

O ciclo funerário numa aldeia cristã Em Botopási, seis semanas decorrem entre a morte de uma pessoa e o último ritual público em sua homenagem. Chamo o conjunto de ritos que ocorrem nesse período de ciclo funerário. São os mais importantes rituais em qualquer aldeia saamaka. Sendo a morte um dos momentos mais críticos da vida – seu fim como entendemos, uma transformação para os que vão e para os que ficam – conecta traços das vidas das pessoas e de suas relações, reforçandoos, renovando-os, reconstruindo-os, jogando uma luz especial sobre eles. Não é necessário falar da morte como “fato social total” para compreender que ela tem a capacidade de se infiltrar na vida, perturbando e revelando diversos de seus aspectos. Em saamaka, a morte não é um acontecimento banal, mas é muito presente, mesmo fora dos ritos fúnebres. Os mortos vagam pela aldeia à noite, como fantasmas; como antepassados, aparecem na história e em rezas; auxiliam as pessoas, quando vêm em sonhos, visões, possessões; como “padrinhos espirituais” (neoséki), fazem as crianças crescerem; causam infortúnios aos culpados pelas suas mortes, quando agem como espíritos vingativos (kúnu). Estão por todos os lados, na aldeia, no cemitério, na mata, nos sonhos, nas narrativas. E são perigosos. Por isso, no ciclo funerário, tudo tem de ser feito da maneira correta. São eventos arriscados, marcados por uma profusão de cuidados, regras, detalhes. 46 Há uma infinidade de precauções que devem ser tomadas para não despertar ciúmes, ira, rancor no falecido, bem como para evitar o contágio com o morto. Mas nem tudo é claro. Muitas pessoas nem mesmo sabem do motivo por trás de certos costumes – se fazem algo de tal maneira para que o fantasma do morto não se zangue, se a tradição se deve à presença do cristianismo, se foi uma decisão tomada pelos capitães da aldeia anos atrás, ou se 46 Dado o perigo, desde cedo na história, os saamaka fazem grandes esforços para proporcionar enterros apropriados a seus mortos, mesmo em condições adversas. Na época das fugas das plantations os saamaka voltavam para buscar pessoas importantes falecidas nas guerras contra os brancos, para enterrá-los devidamente (Price 2002 [1983]: 104).

54 simplesmente “é a maneira com a qual estamos acostumados”. É bom lembrar que trata-se de um contexto no qual há uma aura de segredo rondando muitos saberes. É esse assunto, o das regras e costumes relacionadas ao trato da morte e dos mortos, que abordo neste capítulo. Existem ideias, mais ou menos difundidas, mais ou menos gerais, de como as coisas devem ser feitas, do que deve se passar e do que se deve evitar quando alguém morre. São weoti, que traduzo aqui como “regras”. Dá-se muita importância a elas em Botopási, são muito discutidas. Porém, tais regras são mutantes no tempo e no espaço. Há, por um lado, as mais gerais, seguidas por todos ou quase todos os saamaka em todas as aldeias e também fora delas; por outro, variações, de uma aldeia para outra, de um clã para outro, de uma afiliação religiosa para outra. Num mesmo local, ao longo do tempo, as regras alteram-se devido a pressões externas ou internas, que podem passar por mudanças nas relações com a economia global, pela agência de entidades sobrenaturais, por disputas políticas ou por outros motivos – em geral por todas essas coisas embricadas. A flexibilidade e a dinâmica das regras apontam para um particular entrelaçamento entre conhecimento e poder, atravessado por tradição, segredos e ancestralidade, mas também por desejos de progresso e inovação. Para compreender a maneira pela qual se atinge alguma espécie de consenso nas decisões acerca de como regras são estabelecidas, mantidas, reforçadas ou alteradas, é preciso compreender os processos político-decisórios em geral, não apenas os relacionados à morte. A distribuição de cargos políticos, as assembleias e conselhos, as punições, e até mesmo as fofocas, a lógica de precedentes que governam as escolhas e os impasses. Antes, preciso expor como são os ritos fúnebres em Botopási no presente etnográfico. Segue um modelo resumido de como o ciclo funerário costuma suceder ali, baseado nos vários funerais a que (e em que) assisti. *** O anúncio de uma morte que ocorreu fora da aldeia é feito pelo basiá bái (“grito” ou “chamado” do basiá). Um dos homens que detêm tal cargo circulará a aldeia gritando, dirigindo as pessoas para o local adequado, sem dar detalhes sobre o ocorrido. Eventualmente pode usar um megafone, mas em geral o faz apenas com a voz, bradando num tom e num ritmo específicos, por todos os písi (lit. “pedaços” i. e., bairros) da aldeia. Agindo como arauto, os basiá podem também conclamar os habitantes em outras situações (uma assembleia importante ou algum trabalho coletivo), nesses casos dirão imediatamente do que se trata. Quando o anúncio é de uma morte, não a referem abertamente, mas certas palavras já indicam do que se trata: quando um basiá diz que “homens e mulheres” (“wómi ku mujeoë”) devem ir

55 para tal lugar, trata-se de um falecimento; quando acrescenta que devem ir “rápido” (“hésíhésí”), o caso é sério: morte de alguém relevante em Botopási, conhecido de todos. A grande mangueira (gaán mánjan básu)47 no “centro” da aldeia é onde a notícia é dada oficialmente mas, caso outra morte tenha ocorrido recentemente, e por causa dela uma tenda ainda esteja de pé na frente da casa do falecido, a reunião ocorre ali. As pessoas sentamse de frente para os líderes da aldeia – os basiá, kabiténi e anciões – e uma assembleia (kuútu) é aberta. Como em todos os kuútu formais da aldeia, há modalidades de fala apropriadas, modos te tomar a palavra, de apresentar as questões. Nesse tom, um dos kabiténi “dá a mensagem” (boóko búka, lit. “quebrar a boca”), o anúncio oficial do ocorrido: ele recapitula onde estava e o que fazia quando ouviu a notícia, e de quem ouviu. Quando finalmente pronuncia as palavras “Fulano morreu”, as mulheres, principalmente as mais próximas do morto, iniciam o choro ritual, de gemidos agudos. Até então, mesmo que todos já soubessem do que se passara, ninguém falava abertamente em morte, é preciso esperar esse momento para chorar. O que não quer dizer que o choro é falso: mulheres (e mais raramente homens), podem vir a chorar descontroladamente nesse momento. O choro não interrompe o kuútu, que segue com outros líderes recapitulando onde estavam e como ficaram sabendo da morte, e depois com as decisões de quais providências devem ser tomadas. Que eu tenha notícia, só são enterradas no cemitério da aldeia pessoas consideradas “gente de Botopási” (Botopási sëmbë), isto é, que ali têm família, ali nasceram e/ou viveram por muito tempo, criando laços com o local e com as pessoas. As mortes de pessoas relacionadas à aldeia, mas que não são dali – especialmente pessoas de outra aldeia do clã Dómbi –, passam pela conclamação do arauto e pelo anúncio oficial, quando são choradas, mas os ritos fúnebres serão celebrados alhures.48 Nesses casos, após o anúncio da morte será formada, na assembleia mesmo, a delegação para ir “ouvir o morto”, como vimos na seção anterior. As notícias que trazem sobre os preparativos são importantes pois nos próximos dias outras pessoas farão visitas à aldeia do morto. Vigílias em homenagem a mortos são grandes festas, frequentadas por muitos visitantes. Quando a morte anunciada sob a mangueira é de gente de Botopási, a discussão segue outro rumo. Antes de decidir quem ocupará os cargos rituais será debatido o que é necessário 47 O local tem importância comunitária: sob a grande mangueira costuma ser dividida caça grossa (anta ou queixada). 48 Todas as mortes dentro do clã Dómbi (com a exceção do segmento que habita Daum eo – ver nota 26) são acontecimentos relevantes em Botopási, mesmo que não se trate de alguém particularmente próximo ou de um falecimento particularmente trágico. Todas são suficientemente importantes para que o arauto dê a notícia. Mas um basiá pode avisar da morte de uma professora que deu aula em Botopási por muito tempo, um reverendo importante da igreja moraviana, ou outras figuras de destaque para a população local.

56 para trazer o cadáver. Logo começam a telefonar para parentes e amigos que moram alhures para avisar da morte.49 Quando tudo dá certo, o corpo é transportado de avião diretamente para a aldeia ou vai de automóvel até o porto de Atjooni e dali de barco até Botopási. Chegando no atracadouro principal ou na pista de pouso, as mulheres do grupo que ali espera, em roupa de luto, chorarão ritualmente mais uma vez, assim que o caixão é avistado, e os homens o carregarão até a casa do falecido, acompanhado por muitas pessoas e por mais pranto. Daí em diante o ciclo funerário é o mesmo para os falecidos dentro e fora da aldeia. Caso a morte tenha ocorrido na aldeia e não tenha sido completamente inesperada, é muito provável que as pessoas já estivessem reunindo-se em torno da casa, que passa a ser referida como “casa do doente” (suwáki wósu). Ali acompanham a situação e dão apoio à família. Quando alguém está doente em casa, a etiqueta indica que se deve prestar visitas, seja qual for o mal. Se não é nada grave, apenas amigos próximos passarão para perguntar como a pessoa está, mas quando se trata de algo mais sério corre rapidamente a notícia de que há um doente na aldeia.50 Parentes do enfermo disporão cadeiras nas sombras em frente à porta da casa onde ele está e amiúde servirão algo aos que vêm sentar-se, ouvir sobre o caso, conversar, demonstrar comiseração e entrar rapidamente para olhar o doente. Assim podem passar vários dias, sendo de bom tom, sempre que houver tempo, fazer uma visita. A torcida e o esforço é sempre para que a pessoa se recupere e providências são tomadas: rezam; buscam quem conheça algum remédio apropriado; levam à policlínica mais próxima, se for o caso. Quando a doença é curada ou atenuada cessa o fluxo de pessoas na casa. Muitas vezes o caso parece sem solução, o que significa que as pessoas já começam a se preparar para um possível enterro. Já pensam no caixão, avisam os parentes de fora da aldeia e passam até tarde da noite na casa do doente. Em vários casos ouvi, em cochichos, extraoficialmente, que a pessoa “já morreu, apenas sua respiração ainda não cessou” (“a deodë, ma böoo fë eon áán kóti jéti”). A morte não é exatamente o mesmo que a parada das funções vitais, uma pessoa está morta quando sua alma deixa o corpo para não mais retornar a ele. Se isso ocorre, a “casa do doente” é arranjada para se tornar a “casa do morto” (deodë wósu). Porém, é preciso esperar a declaração oficial da morte – em geral trazida por um enfermeiro da policlínica – para que o falecimento seja confirmado. Será oficializado pelo repique dos 49 Por volta de 2009 foi erguido um mastro de celular da multinacional Digicel em Botopási, e um da TeleSur em Pikísééi. Em 2014, quase todas as aldeias saamaka eram cobertas por sinal 3G e a maior parte dos habitantes tinha aparelhos de telefone celular. Além dos telefones, também a rádio Maifei, localizada na aldeia Bëndëkoondë transmite alguns anúncios de enterros e outras cerimônias do ciclo funerário. 50 Como nota Vernon (1989, 1992), os maroons não costumam tratar afecções separando-as em esferas física, psicológica, social e espiritual. Alguém suwáki (“doente”, “fraco”) pode ter sido picado por cobra, estar com fraturas ósseas, agonizando por ataque cardíaco, possuído por um espírito maligno, enfeitiçado...

57 sinos da igreja. As mulheres inciam seu choro, que como o das carpideiras acaba funcionando como outro alerta sonoro da morte, replicado pela aldeia. Apenas a partir daí pode-se falar mais abertamente sobre o falecimento. Um pequeno kuútu será então organizado, ali por perto mesmo, relembrando tudo o que aconteceu e indicando o que é preciso fazer a partir daí, “da maneira que estamos acostumados” (“kuma fá ú guwénti”), e para delegar as funções necessárias para o enterro. Um grupo de homens pode ser designado para ir caçar, trazendo carne para o evento. Outros homens se encarregarão de construir uma tenda, com postes de madeira e telhas de zinco disponíveis pela aldeia, em frente à porta da casa do morto. Ficará de pé até o limbá uwíi, seis semanas após o enterro. Ali as pessoas se reunirão, especialmente durante a semana entre a morte e o aitidei. Em geral quem toma iniciativa da construção são os kijóo (“jovens”, homens adultos sem posição oficial) da matrilinhagem do morto. Ainda que não seja obrigatório, é esperado que todos os adultos ajudem de alguma forma. Enquanto uns constroem a tenda, um pequeno grupo com homens e mulheres começa a tomar providências para lavar o morto (wási deodë). Após esvaziar a casa de móveis, entram – as mulheres com véus brancos na cabeça e os homens de chapéu na mão – fazem uma reza e cantam dois ou três hinos cristãos. Dentre eles estão os wásideodëma (“lavadores do morto”), que amarram em suas cinturas panos especiais para o trabalho (angula), e logo descerão o cadáver da rede onde passou suas últimas horas de vida, postando-o no chão e dali colocandoo num caixão provisório (báki). Enquanto isso, outros apressam-se para juntar os materiais necessários para a lavagem. Depois de limpo, o corpo será envolto em panos e colocado em seu caixão.51 Outro grupo de homens irá até o local do cemitério designado pelos líderes da igreja na aldeia e começarão a cavar a cova (baáku, lit. “buraco”), trabalho que será interrompido à noite e concluído na manhã seguinte. Paralelamente, outros homens irão “limpar um espaço” (kóti kamían): com serras elétricas, terçados e machados, derrubam uma porção ainda não utilizada de mato dentro do território do cemitério. O espaço ficará reservado para a sepultura da próxima pessoa que vier a ser enterrada na aldeia. Hoje em dia é mais frequente que as pessoas comprem caixões, mas, se a família decidir, pode designar um grupo de homens aptos em marcenaria como késima (“fabricante de caixões”) para fazer um ataúde ao longo do primeiro dia após a morte e da manhã seguinte. 51 No capítulo 3, detalharei a lavagem do cadáver, a escavação da sepultura, a construção do caixão, e o ato ritual de separar vivos e mortos, as cerimônias de remover tabus, o limbá uwíi e a questão do luto. No capítulo 4, detalharei o trabalho dos deodë basiá, as vigílias e as trocas rituais.

58 É preciso selecionar grupos de homens e mulheres para serem deodë basiá (“ajudantes do morto”).52 Um número razoável parece ser três homens e oito mulheres, mas varia de acordo com a disponibilidade, o número esperado de convidados etc. Os deodë basiá tomarão cuidado para que tudo corra bem durante a semana. Suas funções são divididas por gênero: mulheres ficam encarregadas de preparar os alimentos recebidos e servi-los; homens ficam a partilhar bebidas alcoólicas, distribuir presentes, organizar o espaço da tenda e dar os avisos necessários aos presentes. Há por fim o cargo de “chefe de armazém” (maksin meester), aqueles que tomam conta das casas próximas às do morto que serão utilizadas como armazém (maksin), depósito dos bens que serão consumidos ou distribuídos durante a semana. O dia da morte (e o dia seguinte, se ela se deu tarde) é de extensas preparações, de muitas tarefas a serem realizadas, repartidas por cargos designados em um kuútu logo após o falecimento. Delegações chegam para ouvir o morto, conversar com os capitães da aldeia e com parentes. Familiares do falecido que moram na cidade começam a vir, trazendo consigo bens para serem consumidos durante a semana, um gasto financeiro nada desprezível. Em torno da tenda, a atividade e agitação são intensas. O ritmo da vida muda radicalmente. Com tudo encaminhado, à noite os deodë basiá chamam os aldeões para sentarem-se sob a tenda. É o momento da “noite de hinos” (síngi ndéti), cerca de duas horas de hinos moravianos – que todos cantam alto para o morto que está em seu caixão, dentro da casa – até por volta de meia-noite. Fazem então um minuto de silêncio e passam à parte menos solene da vigília (boóko didía, lit. “quebrar o dia”, i.e., “virar a noite”). Num galpão-cozinha (gangása) do entorno, as mulheres deodë basiá ocupam-se preparando alimentos há horas. Com o fim dos hinos, os homens deodë basiá passam a distribuir bebidas, começando pelo rum branco. Depois, comida e bebida são fartas. A postura é relaxada, as pessoas se põem em grupos a jogar jogos, a conversar ou flertar e boa parte da atenção é destinada a músicas gospel, levadas no violão e cantadas em coro, em tom nada sisudo. A vigília vara a madrugada, até o sol raiar. Ao fim há mais uma curta rodada de hinos e orações. Logo pela manhã as atividades recomeçam. Mesmo os coveiros que conseguiram manter-se despertos durante a noite toda descansam pouco e logo cedo voltam para terminar a sepultura. As pessoas que chegam de Paramaribo, da Guiana Francesa e outros locais são 52 Não há ligação entre tal posição ritual temporária e o cargo político de basiá. O termo basiá é usado para designar “ajudantes” ou “organizadores” em geral. Para coordenar as atividades de réveillon, por exemplo, podem designar alguns jái basiá (“basiá de ano novo”). De acordo com R. Price, o cargo de deodë basiá existe porque os saamaka dizem que “nada pode ser realizado sem que alguém assuma o comando oficialmente” (1990: 104). Quando uso “basiá” sem qualificadores, refiro-me ao cargo político vitalício. Um basiá pode ser escolhido como deodë basiá sem problemas, mas nunca vi um kabiténi cumprir a função.

59 recepcionadas efusivamente no ancoradouro, com um misto de alegria pelo reencontro e tristeza pela situação. Depois de guardarem seus pertences, passam à casa do morto para vê-lo em seu caixão e chorar. Possivelmente os kabiténi e deodë basiá organizam uma pequena assembleia para acompanhar os procedimentos. Os coveiros já começam a receber alguns pagamentos por seus serviços. Imediatamente antes do enterro (béi), no meio da tarde, os sinos e os deodë basiá chamam todos para se reunirem novamente na tenda, no meio da qual está o caixão, sobre um catafalco, coberto com um pano decorado. Um kabiténi abre os trabalhos e logo passa a palavra para alguém fazer um curto serviço cristão com hinos, trechos da Bíblia e preces. 53 Dirá também algumas palavras sobre o morto, muitas vezes lendo informações de sua carteira de identidade e relembrando feitos da pessoa durante a vida: quantos filhos e netos teve, a que atividades se dedicou, etc. Cantam um último hino já de pé, enquanto os coveiros e outros homens colocam o caixão numa liteira e começam a movê-lo. Muita gente segue em procissão para o cemitério, alguns cantando hinos, outros levando flores para jogar sobre a cova. Chegando lá, mais orações e palavras e, finalmente, ao som de hinos, o caixão é descido para o seu buraco e enterrado. Todos que saem do cemitério lavam os pés e as mãos no rio, depois os coveiros têm um encontro rápido com os deodë basiá e com os líderes da aldeia (o baákuma kuútu) apenas para saber se tudo correu bem. A partir desse momento, na semana até o aitidei, a tenda em frente à casa do morto será o centro dos acontecimentos da aldeia. Cultos religiosos serão oficiados ali, bem como alguns kuútu oficiais da aldeia. A importância do local é tanta que ele pode ser referido por diversos nomes: deodë wósu (casa do morto), deodë dooö (porta do morto), deodë písi (lugar do morto), deodë ténti (tenda do morto), ténti básu (debaixo da tenda), këeo wósu (casa do choro). Grande parte dos habitantes de Botopási (e visitantes de outras aldeias e da cidade) passarão boa parte de seu tempo lá, bebendo, comendo, conversando, jogando, flertando... O importante é estarem juntos, unidos. De manhã cedo até a noite escura, a tenda fica cheia, depois os coveiros guardam o local, dormindo na casa do morto. Durante essa semana de união, os líderes da aldeia e os deodë basiá aproveitam qualquer oportunidade para agradecer, em tom formal, a todos que estão vindo à tenda, exercendo funções rituais e participando do funeral. Também agradecem a Deus e ao morto por tudo estar caminhando bem e pedem a eles que tudo continue assim. Quem não frequentar o local com certa frequência, de 53 A pessoa que celebra os cultos dominicais da aldeia costuma fazê-lo, mas outro convidado pode oficiar. Houve bastantes variações no exercício da função ao longo de minha estadia na aldeia. Detalharei as posições oficiais e extraoficiais da igreja no cap. 6.

60 preferência diariamente, será repreendido, bem como quem não fez nenhum trabalho para o enterro, pode ser cobrada uma multa (bútu). No primeiro dia após o enterro é realizado na “porta do morto” um kuútu especial, no qual pagarão os coveiros por seus serviços. E, durante toda a semana, os moradores da aldeia e visitantes trazem presentes, sobretudo comida, bebida e tecidos, para trocas cerimoniais. As trocas de tecidos são chamadas de tái beoë (lit. “amarrar ventre”), as de alimentos crus e bebidas lái mánda (lit. “encher cesta”) e as de alimentos preparados hópo táfa (lit. “erguer mesa”). Isso seguirá até o oitavo dia após o enterro. Na noite que antecede o fim da semana, mais uma vez celebra-se um boóko didía, uma vigília nos mesmos moldes da anterior. Há orações, kuútu e hinos, seguidos novamente por uma madrugada de música, bebida, comida, conversa e jogos. Na manhã seguinte, tem início o aitidei, a festa do oitavo dia. Nela, a comida é particularmente abundante, mas além disso a cerimônia não difere muito das anteriores, irão novamente rezar, cantar hinos, kuútu, beber, comer, trocar. Um ato que se faz nesse ponto do ciclo, porém, é bastante relevante. É o momento de “separar vivos e mortos” (paatí líbi ku deodë). Termina com o aitidei a parte crítica do ciclo funerário. Os deodë basiá são destituídos de suas funções por meio de uma pequena cerimônia de “remover basiá” (púu basiá) e um dia depois, a família do morto vai “remover tabu” (púu tjína), num pequeno rito privado, na roça de alguém. A tenda continuará de pé por mais cinco semanas, mas será frequentada agora apenas pelas pessoas da família mais imediata. Não é mais um ponto de encontro. Cerca de seis semanas depois do enterro, durante a tarde, há uma rápida reunião na qual fazem a “promessa” (paamúsi) para o morto de que, no dia seguinte realizarão o limbá uwíi. Na noite do mesmo dia, há ainda mais um encontro público sob a tenda, com comida, bebida, e alguma música, mas não há vigília e tudo acaba cedo. O limbá uwíi (lit. “limpar cabelos” ou “limpar folhas”) é mais um dia de comidas, bebidas, conversas, kuútu e trocas rituais. Nesse dia será presenteado principalmente quem estava ausente nas cerimônias anteriores. Seu principal ato ritual é o corte dos cabelos do viúvo, que marca que o espírito do falecido sai de seu corpo. Depois desse dia, a tenda pode ser desmontada. Mas o período de luto (hói baáka) do viúvo não acaba aí, se estende por talvez mais cinco meses, nos quais tem de passar seus dias em uma casa no território da matrilinhagem do falecido, levando uma vida contida. Cerca de um ano depois do enterro, tratarão oficialmente da herança do falecido, numa cerimônia discreta chamada púu lái a dooö (“retirar os bens de casa”).

61 Comparações e colaborações Caminhando a pé com um par de amigos um dia para Kambalúwa, aldeia do clã Nasí que faz fronteira com Botopási, notei que o mato crescia cada vez mais à medida em que nos aproximávamos de nosso destino. Explicaram: havia recentemente morrido uma pessoa em Kambalúwa, e ali, no período entre o falecimento e limbá uwíi é proibido cortar grama e aparar arbustos nos caminhos. Em Botopási, aldeia cristã, tal regra não existe. Esse pequeno episódio, bem como o caso narrado no início do capítulo mostram apenas algumas das diferenças entre o ciclo funerário de aldeias cristãs e não cristãs. Não apenas o etnógrafo, mas também os nativos, em ocasiões como visitas oficiais e comparecimento a ritos fúnebres de amigos e parentes, comparam como as coisas são feitas em cada lugar. Notam as semelhanças e diferenças nos costumes, a variação de uma infinidade de detalhes, de regras e normas que devem ser seguidas.54 Para começar, o cemitério nas aldeias “pagãs” costuma ser localizado na margem do rio oposta à da aldeia, a alguma distância, enquanto o de Botopási, cercado por árvores, tem sua entrada num ponto central da aldeia. As covas em cemitérios saamaka não cristãos são mais fundas, e cavadas como uma espécie de caverna onde o caixão é colocado (cf. Donicie 1948). Lá, a construção do caixão é um passo essencial no ciclo, e aqueles que o fazem, os késima, têm uma posição mais destacada nos ritos, só usam caixões pré-fabricados para trazer o corpo até sua aldeia caso o falecimento tenha ocorrido fora do território saamaka e eles serão destruídos ritualmente tão logo o caixão definitivo, de tamanho maior, estiver pronto. 55 Lá, utilizam como caixão provisório uma velha canoa monóxila (bungulá), com a qual farão um oráculo, consultando o espírito recém-falecido sobre as razões de sua morte, sobre o bom encaminhamento dos rituais e outras questões. A maneira de determinar a causa mortis também varia, já que isso não ocorre em Botopási, onde acaba não havendo definição oficial e pública da causa da morte. Ali, o motivo do falecimento é determinado em conversas

54 Descrições de enterros em outras aldeias saamaka estão em Herskovits & Herskovits (1971 [1934], em Gankwe, anos 1920); Donicie (1948, Lömbeo, anos 1940); Price & Price (1991: 41-60, Dangogo, anos 1960); e R. Price (1990: 103-111, 209-220, Baakawata e Bambey, séc. XVIII). Junto com funerais fora de Botopási que acompanhei e relatos que ouvi no Alto Suriname, servem como contrapontos à minha descrição. 55 De acordo com Richard Price (2014, comunicação pessoal), até os anos 1960 cadáveres não subiam o rio, não podiam atravessar Mamádán, as grandes corredeiras que hoje estão sob as águas do lago da hidrelétrica Afobaka. Saamaka mortos na cidade ou na Guiana Francesa eram enterrados por lá, e para as aldeias era transportada apenas uma caixa com os cabelos e as unhas do falecido que poderiam ser consultados como oráculo e depois enterrados numa cerimônia especial. O limbá uwíi decorria normalmente, como se a morte tivesse ocorrido na aldeia (ver também R. Price 1990: 310-2n11 e Price & Price 1991: 399n77).

62 particulares, por dedução lógica ou por possessões de espíritos e sessões oraculares mais discretas, ocorridas amiúde em outras aldeias, divulgadas à meia-voz. Não são todas as aldeias que, como Pikísééi, possuem a construção dedicada exclusivamente a servir como casa dos mortos. Em aldeias “pagãs” a residência do falecido pode ser transformada em deodë wósu, como em Botopási, mas também nesse ponto há diferenças: é necessário, lá, que se retire a parte da frente da casa, mesmo porque, de outra maneira o enorme caixão não entraria (cf. R. Price 1990: 211-2). O cadáver é lavado num local especial, que não sua casa, e fica muito mais tempo exposto na deodë wósu antes de ser enterrado, em parte por conta das consultas oraculares. A espera maior, que pode chegar a meses no caso do falecido ocupar uma posição política importante, é base de uma das principais críticas dos saamaka cristãos aos enterros “pagãos”: eles veem o costume como atrasado e um pouco repugnante. O enlutamento também é mais longo e exigente. As pessoas de Botopási que possuem cônjuges em aldeias não cristãs arrepiam só de pensar na miséria que passarão, se perderem a mulher ou o marido, ao enfrentar o período de luto no lar da matrilinhagem do esposo. Por outro lado, vigílias para mortos em aldeias não cristãs são mais animadas. De fato, costumam ser as festas mais grandiosas do Alto Suriname, com diversos tipos de música e dança, desde as tradicionais seokeoti, tjeokë e bandáambaa até som mecânico de DJs e bandas que tocam reggae, kawina, kaseko, e outros estilos. Costumam ser oportunidades para flertes, para rever amigos, embriagar-se e dançar, que os jovens das aldeias vizinhas não deixam de aproveitar. Há também toques de tambores especiais para conversar com os mortos, como o papá, que não são praticados em Botopási. Similarmente, o costume de contar fábulas ou mitos (kóntu) nas vigílias se mantém forte em aldeias não cristãs, enquanto em Botopási não o fazem mais.56 Aldeias cristãs celebram o aitidei uma semana depois do enterro. Outras aldeias têm, para marcar o fim do período mais crítico do ciclo funerário, um ritual chamado túwë njanján (lit. “jogar comida”, i.e., oblação), três dias depois da inumação. Outra distinção central é a maneira de separar vivos e mortos. Nas aldeias “pagãs” fazem um rito complexo no qual cortam uma folha de sangaafú para marcar o que vai para a terra dos mortos, e o que fica entre os vivos, enquanto em Botopási o fazem apenas com palavras.

56 Sobre estilos de música e dança saamaka, cf. S. Price 1993 [1984]:167ss; Price & Price 2005 [1999]: 174ss. Sobre os estilos musicais afrosurinameses kawina, kaseko e outros, Bilby 1999, 2000, 2001. Sobre o papá e outras linguagens de tambor, R. Price 2008. Sobre os mitos, Price & Price 1991.

63 É particularmente interessante a maneira como lidam com uma categoria particular de mortos, os taku deodë (lit. “mortos feios”), vítimas de morte violenta: afogamento, acidente de carro ou de caça, assassinato, suicídio. Esse tipo de morto causa pavor, é particularmente perigoso e contagioso, as pessoas das aldeias não cristãs evitam a todo custo tocar e mesmo olhar para eles. São precisos especialistas em óbia específicos para lidar com eles. A categoria existe em Botopási e é levada a sério. “Mortos feios” são de fato mais sinistros e perigosos que mortos comuns, mas, Mako disse-me certa vez, “gente de igreja não possui as mesmas tjína [tabus] em relação a eles.” Enterram no mesmo cemitério e celebram todos os ritos importantes. Tudo ocorre como se a crença no Deus cristão, em Jesus, e o costume já há muito estabelecido de lidar de forma mais temerária com mortos feios protegessem as pessoas de sua agência. Ouvi relatos de pessoas de Botopási que foram chamadas para lidar com os mortos feios das aldeias próximas, onde todos recusavam até mesmo tocar no cadáver. Da mesma forma, o contrário pode ocorrer, e que eu saiba já ocorreu ao menos uma vez: alguns anos atrás houve um caso de assassinato tão violento – uma mulher grávida foi assassinada por seu primo matrilateral – que as pessoas de Botopási ficaram com medo de enterrá-la no cemitério. Ninguém da aldeia, porém, sabia como proceder. Chamaram especialistas rituais de Pikísééi para fazer um enterro no mato, sem cerimônias, como se faz por lá.57 Em casos de mortes que não são “mortes feias”, também é esperado que visitantes de outras aldeias ajudem, cumprindo funções funerárias, especialmente se têm ligações de parentesco com o falecido ou sua família. A colaboração funerária é apenas um dos aspectos do contínuo religioso e ritual entre as aldeias. O uso de óbia, receitas mágicas, é comum em Botopási, ainda que seja feito de maneira mais furtiva do que em outras aldeias. Há pressão no sentido de manter o cristianismo mais aparente que as práticas do óbia. O mesmo vale para tratar com os espíritos, sejam eles kúnu (espíritos vingativos), joóka (espíritos de mortos) ou gádu (divindades do rio, do solo ou do mato). É raro ver um médium possuído por tais entidades em espaços públicos de Botopási, ainda que lidem com elas com grande frequência. Os oráculos (fíi) idem. Ainda assim, as pessoas utilizam esses recursos. Quando não é possível fazê-lo onde vivem, vão a outras aldeias. 57 Price & Price (1991: 184) e R. Price (1990: 87, 310-2n11) afirmam que em Dangogo, nos anos 1960, casos de afogamento eram tratados por um especialista ritual do clã Nási, vindo de Páda, aldeia bastante distante. Já mortos na floresta eram supervisionados pelos óbiama do clã Dómbi que possuem o gaán óbia Mavungu. Outro exemplo de colaboração funerária entre saamaka não cristãos é narrado por Tooy a R. Price (2008: 254-6). Ele conta sobre a origem do papá, linguagem de tambores tocada durante os funerais: em meados do séc. XVIII, um homem do clã Matjáu e um homem do clã Abáisa ouviram mortos tocando tambores, em um cemitério, mas cada qual teria adormecido em trechos diferentes do batuque. Por isso cada qual aprendeu trechos diferentes dos toques e hoje convidam-se mutuamente para funerais.

64 A maioria dos habitantes de Botopási, mesmo aqueles que frequentam a igreja assiduamente, recorrem em momentos aflitivos de sua vida a oráculos, magias, médiuns de aldeias vizinhas. Um homem começa a ficar abatido, sente-se fraco, suas idas ao mato e ao rio não rendem carne, infortúnios diversos o afetam e durante a noite surgem sonhos perturbadores. Talvez ele sonhe que está comendo, um péssimo sinal. Pode estar enfeitiçado ou sendo atacado por um kúnu de sua matrilinhagem. Orações para Jesus, apenas, não estão surtindo efeito. Conversas com pessoas mais velhas de sua família e amigos que conheçam mais a fundo óbia podem o encaminhar para um oráculo em Pikísééi, digamos. A partir do diagnóstico revelado na sessão, terá que procurar, seja em Botopási, Sééi ou outras aldeias, as proteções e remédios específicos para o mal que está o afetando. Quem dentre seus conhecidos sabe um kootösëmbë uwíi (óbia para proteger espíritos de mortos) e poderia aplicálo? Cada receita de óbia é propriedade de uma ou algumas pessoas, que não compartilharão seu conhecimento com qualquer um. O interessado terá que buscá-las dentro de sua rede de contatos, na aldeia onde vive ou fora, e pagar por elas. O que faz as pessoas circularem em diversas aldeias atrás de diagnósticos e tratamentos “místicos” não é simplesmente o fato de que, fora de Botopási, ausente o cristianismo, pode-se utilizar métodos “pagãos” mais livremente. Nem mesmo o fato de que nas aldeias não cristãs a manipulação mais livre e cotidiana de óbia faz com que haja mais especialistas nesses assuntos. O que ocorre é que os conhecimentos estão disperso pelo rio, pertencem a diferentes linhagens, diferentes clãs, diferentes pessoas em diferentes aldeias. É preciso circular para fazer uso deles. A circulação é necessária não apenas para saamaka cristãos. Nenhuma aldeia, nenhum clã, nenhuma linhagem conhece todos os óbia que seus membros podem precisar. Desde o período pré-tratado de paz, a interdependência nesse aspecto é um dos fatores que mantém unidos grupos (clãs e aldeias) relativamente independentes. Isso é particularmente claro no caso dos gaán óbia (“grandes óbia”), os mais poderosos e mais antigos, que remetem ao passado heroico de fugas das plantations e guerras contra os brancos, quando foram trazidos da África, encontrados no mato, ensinados por espíritos. Tais grandes e poderosos óbia foram essenciais, dizem os saamaka, nas guerras e para a sobrevivência na floresta não domesticada. São poderes capazes de fazerem as pessoas voarem, ficarem invisíveis, alcançarem força sobre-humana, etc. Um clã possui o óbia que encontra pessoas perdidas no mato, outro o que despolui o rio quando um afogamento ocorre, outro o que espanta fantasmas de um local assombrado. Como o conhecimento é secreto, nenhum clã pode prescindir dos outros. Em menor escala, isso é replicado dentro de uma aldeia: em Botopási o Lama beoë possui o óbia de

65 consertar ossos quebrados, o Aga beoë possui aquele que cura tiros de arma de fogo, as matrilinhagens dependem umas das outras. Algo semelhante ocorre no trato com as divindades: certas aldeias e clãs conhecem mais intimamente certas classes de espíritos que outras. Alguns tipos de espírito podem ser virtualmente desconhecidos num trecho do rio e fortemente atuantes em outro. A fragmentação do saber, a dispersão dos poderes, leva a uma interdependência entre as aldeias (e outras unidades sociais) no aspecto mágico, religioso, funerário e terapêutico. Às comparações entre aldeias cristãs e não cristãs poderíamos acrescentar comparações entre aldeias cristãs saamaka de diferentes denominações. Futunaákaba fica entre Botopási e Pikísééi. As três são fruto da fissão de uma mesma aldeia, mas Sééi nunca adotou o cristianismo, Botopási foi fundada como uma aldeia moraviana e Futuná converteuse ao protestantismo do Volle Evangelie há quase 40 anos. Em Futunaákaba não celebram o aitidei, dizem que preferem não estender o ciclo funerário pois “isso não está na Bíblia” e porque espíritos de mortos podem ser usados pelo diabo para prejudicar os vivos. Lá, a maneira os hinos que cantam durante as vigílias não são os mesmos que cantam em Botopási. Também não há lugar para jogos ou bebidas alcoólicas durante a madrugada, seguem cantando hinos até o amanhecer, com ligeiras pausas para distribuir comida e descansar. Saltam aos olhos tantas diferenças nos ritos (funerários e outros). Sobretudo quando comparamos Botopási, Futunaákaba e Pikísééi, aldeias da mesma tribo, do mesmo clã, com basicamente as mesmas matrilinhagens, distantes poucos quilômetros umas das outras. Mas será que podemos atribuir todas as diferenças à presença ou ausência de igrejas? As aldeias (köndë) são unidades fundamentais do sistema social saamaka. Cada aldeia pertence a um clã (loo) que tem suas origens num grupo de fugitivos de uma determinada plantation, na era da escravidão, e é dividido em matrilinhagens (beoë).58 A maioria dos clãs hoje possui mais de uma aldeia, e cada uma tem suas particularidades, estabilizadas ao longo da história desse conjunto de matrilinhagens. Com uma demarcação territorial-histórica e um corpo político, cada aldeia saamaka possui autonomia para decidir suas questões. Seus kuútu, seu conselho, seus kabiténi, basiá, anciões, seu povo, suas regras. Mas não são de forma alguma isoladas. O corpo político da aldeia é ligado ao poder central, é legitimado por um gaáma, o líder supremo dos saamaka, que em última instância pode intervir em questões importantes, arbitrar disputas entre aldeias, etc. Além do mais, 58 Não há uniformidade ou certeza absoluta nas divisões dos clãs (ou das matrilinhagens). Suas delineações são objeto de disputa. Em Botopási, há debates sobre se certos beoë seriam parte de outros ou matrilinhagens independentes. São diferentes visões acerca de fissões, fusões e composições.

66 independente da política oficial, as aldeias possuem relações entre si. Homens e mulheres tomam esposas e maridos pelo rio, com eles podem ir morar por temporadas ou definitivamente. Via matrimônios com múltiplas formas de localidade e de outras migrações internas, indivíduos ou grupos inteiros podem vir morar (kó líbi) em aldeias de outros clãs, tornando-se residentes plenos do local, estabelecendo sua descendência, ganhando território para construir casas e roças e podendo inclusive pleitear, se a matrilinhagem for grande o suficiente, cargos políticos. Além disso, a prole de um homem comumente estabelece laços com a aldeia paterna: alguém com pai de Tutubúka, mesmo sem nunca ter vivido lá, além de “gente de Botopási” (Botopási sëmbë), considera-se também “gente de Tutú” (“Tutú sëmbë”). A começar pelo parentesco e pela política, a autonomia de cada aldeia é relativa. Há alguma independência, mas não se sustentam sozinhas, fazem parte de uma trama política, social, histórica, econômica e religiosa que garante simultaneamente unidade e abertura.59 Para Botopási, a religião é ponto fundamental. Ao menos aos olhos dos que se dizem parte da EBGS, o pertencimento a uma aldeia cristã implica pertencimento à igreja à qual a aldeia se filia. Nascer, ter sua matrilinhagem, ser batizado e socializado num ambiente cristão fazem da pessoa um cristão. Mesmo que não frequente a igreja. 60 A autonomia e unidade da aldeia se estendem para o domínio religioso. A marcação das diferenças é clara entre aldeias cristãs e aquelas que seguem algo que foi chamado de “religião tradicional saamaka”. Há “aldeias de igreja” e “aldeias pagãs” (kéíki köndë e heiden köndë), não havendo dúvida sobre quais são o quê, graças a marcas que vimos na descrição, como as folhas de palmeira na entrada, as casas de óbia, etc. Porém, cabe perguntar: até que ponto faz sentido comparar as tradições de uma aldeia saamaka cristã com as de uma aldeia saamaka “pagã”? Como vimos, a contraposição entre rituais “pagãos” e cristãos não é apenas um artifício do etnógrafo: é feita pelos nativos. O termo holandês heiden (pagão), é utilizado pelos saamaka para marcar a diferença entre cristãos, “gente de igreja” (kéíki sëmbë) e não-cristãos, “gente de aldeia” (koondë sëmbë).61 O 59 Herskovits & Herskovits marcam a autonomia das aldeias, ainda que exagerem ao afirmar que uma aldeia ou grupo de aldeias de um clã formem quase um “pequeno reino” (1971 [1934]: 190). Talvez quisessem enxergar em saamaka um reflexo das cidades-estados da África Ocidental. Parris (2011: 136) também discute esse ponto acerca dos ndyuka, argumentando haver uma relação inversamente proporcional entre o grau de ingerência do gaamá em uma aldeia e sua distância da aldeia do líder. Nota também que o grau de autonomia flutua ao longo do tempo. 60 A emergência do pentecostalismo, cada vez mais presente no Alto Suriname desde os anos 1970 torna tudo mais complexo, especialmente pela ênfase pentecostal no batismo adulto. Tratarei disso no capítulo 6. 61 O que gera, para mim, um problema de tradução. As oposições paralelas entre “aldeia de igreja” e “aldeia pagã”, e entre “gente de igreja” e “gente de aldeia” é uma oposição que parte principalmente dos cristãos, ainda que seja usada por não cristãos. Para mim, utilizar o termo “pagão” significaria aderir a uma visão algo preconceituosa, problemática mesmo para os cristãos (ver capítulo 6). Mas não há termos alternativos

67 par de opostos “tradição” e “desenvolvimento”, do qual tratarei à frente, parece reforçar tal distinção. Ainda que certos cristãos mais tenazes taxem negativamente de “idolatria” (afgoderij) práticas como óbia e conversas com os espíritos, em geral a distinção entre “pagãos” e “cristãos” não reflete juízos de valor absolutos, como errado e certo, pior e melhor. São, antes, formas diferentes de lidar com as forças sobrenaturais do universo que podem ser complementares. Como disse um amigo, a maioria das pessoas em Botopási escolhe lidar com as duas coisas porque “as duas ajudam”. A diferenciação entre as aldeias no plano religioso é uma das instâncias comparativas possíveis, a que marca talvez as diferenças mais óbvias entre as aldeias. Mas o jogo entre autonomia e interdependência das aldeias saamaka existe também no plano político, jurídico, de parentesco; é explicitado em momentos de troca, de participação mútua em rituais e festas, e pelas comparações feitas pelos próprios nativos. A maneira como fazem as coisas em uma aldeia nunca é exatamente igual à maneira como fazem as coisas em outra, seja a comparação feita entre uma aldeia cristã e uma não cristã, entre duas cristãs, ou entre duas não cristãs. A dessemelhança nunca é absoluta. As diferenças pontuais nas práticas e a certeza inicial de que se está ou não em território cristão apontam para uma determinação que parece ser de vivas arestas, e que de fato apresenta certos contrastes diatônicos, ou mesmo binários. Um clã ou outro; uma aldeia ou outra; cristã ou pagã; tradicional ou progressista. Porém, os enredamentos entre os supostos opostos, que observamos tanto no domínio do social quanto do sobrenatural, rapidamente nos lembram que tratam-se de espaços em uma escala cromática. Não é incorreto afirmar que a cosmologia é a mesma, os entes que a habitam são os mesmos, afinal, as pessoas são todas saamaka. Porém, a semelhança desliza, ora imperceptivelmente, ora marcadamente, tornando-se diferença. O “mesmo” é também, de certa forma, “outro,” dependendo do ponto de vista que o encara. Há momentos em que se apela para generalizações do tipo “todo saamaka conhece óbia”, e há momentos em que se distingue “aldeias cristãs não usam tanto óbia”, ou “naquela aldeia sabem muito óbia”. Hora falam que é uma regra comum para todos os saamaka não comer a comida preparada por uma mulher menstruada; hora lembram que jovens em aldeias mais “desenvolvidas” frequentemente ignoram essa norma. Todos os saamaka fazem vigília para seus mortos, todos lavam o cadáver antes de enterrá-lo, todos designam um espaço específico para o cemitério. Porém, que tipo de morto merece vigília, os ingredientes usados na lavagem, a disposição das satisfatórios, posto que “aldeia não cristã” é uma definição pela negação, e “aldeia tradicional” implica que as aldeias cristãs são “menos tradicionalmente saamaka” que as demais. Na falta de outra expressão, opto por equilibrar o uso dos termos, sabendo que nenhum deles é ideal.

68 covas no espaço variam de um local para outro. Quando meus interlocutores falam de regras e costumes das “aldeias pagãs”, amiúde o fazem de maneira algo genérica, como se todas fossem iguais, mas sabem que estão falando apenas das que conhecem, e que há diferenças entre elas. O que é geral dentro desse universo só o é fora dos casos particulares, todas as atualizações do normativo comportam exceções, variações, transformações. Assim, trato Botopási, aldeia cristã saamaka, como uma territorialização particular do cristianismo e da das tradições saamaka, na qual as variações e invariações de ambas as tradições se atualizam de maneiras específicas, enquanto regras, costumes, práticas e crenças. Uma territorialização que é também uma transformação, no sentindo levistraussiano, i.e., da qual não há instâncias originárias, modelo ideal ou ponto de origem. Só existem as versões (cf. Lévi-Strauss 2011 [1971], Viveiros de Castro 2008, 2012).

Um universo de regras Falo de transformação, falo de diferenças de uma aldeia para a outra. Certas práticas e crenças aparecem mais destacados em uma povoação do que em outras, certas coisas são proibidas lá e não cá, os detalhes são especificados de maneiras distintas. Podemos resumir as diferenças a regras e costumes. É isso que fundamentalmente transforma-se de uma aldeia para a outra e que se altera ao longo do tempo. Prescrições sobre como se devem fazer as coisas, e como elas usualmente são feitas. A via é de mão dupla, a norma determinando o ato enquanto a ação determina a regra. A noção de weoti (“regra” ou “lei”) é de enorme importância. Ele aparece com os mais variados qualificadores. Há regras da igreja (kéíki weoti); há regras de óbia (óbia weoti); há regras para cortar uma roça (kóti goón weoti); há regras próprias para cada ritual; há as específicas para determinada linhagem; há regras envolvendo casamentos, e tantas outras. Há inclusive regras para atos que parecem triviais. Digamos, colher e processar bacaba. Se a pessoa não for capaz de subir na palmeira para cortar o cacho, a derruba, mas deve tomar o cuidado de não passar por cima do tronco antes de separar as frutas da árvore. Depois, não deve retirar os frutos dos galhos puxando com a mão tudo de uma vez, e sim colher cada bacaba com os dedos, separadamente. Por fim, para retirar o suco que será bebido com açúcar ou misturado com arroz, na hora de socar as frutas no morteiro não se deve largar o pilão com força, nem deixá-lo cair, devem ser esmagadas gentilmente. Se tais regras não forem seguidas, a bacaba fica com gosto ruim, como banana verde. Parecem meros detalhes, cuidados para o bom preparo de uma fruta tão apreciada. Mas não é qualquer cuidado que será

69 considerado regra: por exemplo, checar se entre os cachos há aranhas ou escorpiões não é weoti, ainda que seja muitíssimo recomendado. O mesmo vale para o manejo de espingardas. “Nós dómineongë [do clã Dómbi] temos muitas tjína [tabus, aqui usado como sinônimo de weoti] com armas. Eu sei que vocês, brancos, não têm tantos”, disse-me um companheiro que me ensinava como portar-se no mato. Não se deve passar por cima de uma arma quando ela está no chão, nem colocá-la dentro de uma canoa se mais pessoas estiverem embarcadas, nem tampouco deixá-la na soleira de uma casa. Outros cuidados talvez mais essenciais, e possivelmente mais seguidos, como não limpar uma espingarda carregada não necessariamente se encaixam na categoria de regra. Determinados cuidados não entram na categoria de weoti pelo motivo de serem apenas bom senso. Limpar uma arma carregada ou colocar a mão sem olhar num esconderijo comum de escorpiões seria descuido, insensatez. Nem é preciso discutir. A possibilidade de ser discutida, alguma dúvida sobre a necessidade ou forma de sua aplicação é um componente essencial da ideia de weoti. E há discussão sobre “a melhor maneira de fazer” quase tudo, pois há muitas regras, para cada aspecto da vida, são muitos detalhes a serem levados em conta. Obviamente, nem todas essas regras são seguidas por todo mundo o tempo todo, ainda mais em se tratando de normas relacionadas a afazeres cotidianos, como as descritas acima. Mas caso algo de errado ocorra, pode-se creditar o incidente à infração. Eventualmente, descobrem regras que desconheciam investigando os motivos de um infortúnio. Caso interessante são as regras dos óbia. Para que surta o efeito desejado, cada fórmula mágica exige que quem o aplica e seu paciente sigam uma série de prescrições, que variam caso a caso. Uma das mais comuns é evitar sexo. Quando alguém está sendo tratado com boóko kamían deési (“remédio para partes quebradas”, o óbia para fraturas ósseas), não pode ter relações sexuais e nem chegar perto de quem tenha feito. O correto é isolar-se numa casa afastada, na qual o mínimo possível de pessoas entrarão, pois alguém que chegue muito perto e antes tenha tocado em um terceiro que fez sexo recentemente pode contaminar e estragar o tratamento. “O remédio não gosta disso”, dizem. Menstruação, entrar em contato com mulheres menstruadas ou comer comida preparada por uma também é tabu para boa parte dos óbia.62 Há remédios que exigem que o óbiama (quem prepara o óbia) guarde 62 Por esse motivo, junto com os ritos fúnebres, as regras relacionadas com a menstruação são uma das principais diferenças entre aldeias cristãs e não cristãs. Os cristãos costumam preocupar-se pouco com o perigo da poluição do sangue menstrual, enquanto, em aldeias não cristãs, na descrição de Sally Price (1993 [1984]: 21-4), mulheres menstruadas não podem ficar em quase nenhuma estrutura da aldeia; nem entrar em contato ou falar com homens que tenham funções rituais ou passado por um ritual; nem passar sob os azan; nem andar de canoa com qualquer homem. Elas ficam reclusas em casas menstruais (faádji) também conhecidas como “casas feias” (taku wósu). Nessas aldeias, seguir as restrições da reclusão menstrual é visto

70 silêncio total enquanto colhe os ingredientes necessários e/ou quando os prepara e aplica. Não é incomum ver pessoas com uma folha entre os lábios, marcando que não podem falar naquele momento. O uso de sabão industrializado também é um impedimento para praticamente qualquer pessoa que esteja se lavando com óbia, pois corta seus efeitos. Sendo a terapêutica umas das funções primordiais dos óbia, suas regras podem ser vistas como similares às “regras de médico” (dáta weoti). Ambas são “regras de remédio” (deési weoti). Quem fez operação de catarata na cidade, digamos, deve seguir as regras do remédio, como não carregar coisas pesadas na cabeça, não andar no sol sem proteção, evitar ir ao mato. Não são mais que prescrições médicas, mas são consideradas weoti. Assim como os “tabus alimentares” de quem é diagnosticado com pressão alta ou diabetes: evitar sal, fritura, açúcares. Não seguir conselhos do especialista pode significar que o tratamento não tenha efeito, ou pior, que surjam complicações. Ainda próximas dessa categoria estão as regras para quem é médium de espíritos. “Ter um gádu”, isto é, ter uma divindade – estabelecendo uma relação duradoura com ela, que envolve ser possuído pelo espírito com certa frequência e comunicar-se com ele em sonhos e visões – significa que a pessoa terá de guardar várias regras, sobretudo alimentares. No caso dos komatí, espírito de jaguar, por exemplo, não pode comer certos frutos como mamão e abóbora, nem comida preparada por uma mulher menstruada. Logo, quando estiver na cidade, deve evitar comer em restaurantes, pois não saberá quem preparou a refeição e que ingredientes usou. Se há regras gerais para tipos de divindades, há também regras colocadas por divindades específicas. Cada komatí, cada pápagádu (espírito de jiboia), cada watawenú (espírito de anaconda), cada kaimágadu (espírito de jacaré-coroa) e assim por diante, é personalizado, possui nome, personalidade, características e regras próprias. Um apukú (espírito do mato) pode, por exemplo, proibir o banho em certo riacho da área com a qual é relacionado, pode prescrever a caça de veado ali, e/ou certa técnica de pesca (com timbó, digamos), enquanto outros não fazem as mesmas exigências. Quando se tratam de regras relacionadas a um espaço fora da aldeia, podemos considerá-las “regras para cortar roça” (kóti goón weoti) e quem decidir habitar e plantar na como uma obrigação moral para mulheres. Price conta: “quando um homem do Pikilio toma uma mulher de uma aldeia 'missionada' à jusante (onde a prática de seclusão menstrual foi abandonada), seus parentes e vizinhos invariavelmente objetam, argumentando que ela vai 'esconder' seu estado e destruir o poder de remédios locais” (ibid.). Em Botopási parece haver diferentes graus de evitação, por parte dos homens, da poluição menstrual: não há casa de reclusão, nem áreas no rio reservadas para seu banho, mas quase nenhum homem comeria comida preparada por uma mulher menstruada e a maioria não dormiria na mesma cama ou rede com uma, alguns nem mesmo na mesma casa. Apenas quem estiver se tratando ou aplicando óbia evitará completamente falar ou estar na presença de mulheres menstruadas.

71 área deve tê-las em mente. Antes de preparar um terreno é necessário consultar pessoas que tenham trabalhado ali anteriormente a fim de informar-se sobre o direito ao uso dele, mas também para saber quais divindades ali habitam e o que exigem, se há memória de alguma morte violenta na região que pode ter deixado assombrações, e assim por diante. Diversas regras desse tipo são específicas para uma linhagem, ou um clã: se um grupo está envolvido em uma morte ocorrida em uma região, por exemplo, o espírito do morto pode vedar a presença de seus membros por ali. Cada religião tem também suas regras. Os saamaka sabem, pois conhecem testemunhas de Jeová que não comemoram aniversário, não doam sangue, rastafári que não cortam seu dreadlocks, não comem carne ou sal, e tantos outros. As denominações mais relevantes para Botopási são o moravianismo da EBGS e o pentecostalismo do Volle Evangelie, mais representadas na região. As regras pentecostais em relação a oferendas e rezas a espíritos são mais rigorosas, pois enxergam mortos e divindades como “ferramentas do diabo” (didíbi woóko lái). A igreja pentecostal também coloca regras mais estritas que proíbem a poligamia e o consumo de álcool e tabaco. Há diferenças marcantes nas cerimônias funerárias também, como vimos. Com o grande fluxo de pessoas entre Botopási e Futunaákaba, e com alguns moradores de Botopási hoje convertidos ao pentecostalismo, as tensões e disputas sobre a maior adequação das regras de cada denominação com as escrituras bíblicas ou com o estilo de vida saamaka são recorrentes. Algumas regras da EBGS não conflitam com regras de aldeias saamaka não cristãs: “não matar”, “não roubar”, “não mentir”. Nenhum saamaka a princípio deveria fazer essas coisas, siga a Bíblia ou não. Mas há também as mais específicas, como guardar o domingo. Acompanhei, numa assembleia anual da aldeia (jái kuútu), uma grande discussão sobre qual seria o melhor dia da semana para deixar o gerador de energia elétrica ligado durante a tarde. Alguns diziam que o dia correto seria domingo, quando quem tem roça volta para suas casas, pois assim todos poderiam aproveitar. Mas muitos preferiam um dia durante a semana, talvez quarta-feira, pois poderiam usar a eletricidade para ligar suas plainas elétricas ou máquinas de lavar. Alguns chegaram a ameaçar: “se ligarem a luz domingo, vou trabalhar no domingo”. Todos concordavam, porém, que domingo não é dia de trabalhar, ainda que em certos casos possam quebrar a regra. Tempos depois, um homem da aldeia, mas que mora na cidade, contratou trabalhadores saamaka de fora de Botopási para fazer uma grande casa que serviria como hospedaria quando viessem visitantes. Para erguer a construção em tempo recorde, colocou os empregados para trabalhar no domingo, o que gerou certo desconforto, ainda mais

72 porque o dono do terreno era pentecostal, parecia demonstrar insolência ao passar por cima da regra moraviana. Quando vieram lhe interrogar, argumentou que, na cidade, onde mora, trabalha-se livremente no domingo. A resposta foi a esperada: “não estamos na cidade”. O homem então virou-se a um dos que o interpelavam e lembrou que quando eram mais novos e iam trabalhar em outras aldeias do Alto Suriname, quebravam diversas weoti locais sem se importar, afinal de contas não eram de lá. Sem conseguir negar, o interlocutor argumentou que naquele caso era diferente, pois o homem foi batizado na EBGS, logo deve seguir as weoti dessa igreja, mesmo tendo se convertido depois de adulto ao pentecostalismo. A discussão não parou aí, mas o trecho é suficiente para ilustrar um debate típico acerca das regras da igreja em Botopási.63 Várias regras da igreja mudam ao longo do tempo. Antigamente, homens entravam na igreja por uma porta e as mulheres por outra, e deveriam sentar-se separados. Hoje em dia a divisão não é mais obrigatória – não é mais uma weoti nem ali nem nas igrejas moravianas da cidade –, mas boa parte das pessoas ainda a segue, apenas os bancos mais ao centro da igreja são mistos. A páscoa é um feriado importante para a EBGS, e os dias que a antecedem também são cheios de interdições. Na sexta-feira da paixão (goede vrijdag) não pode haver música nem dança, não é de bom tom embebedar-se. Antes, porém, dizem que as regras eram mais severas, nem mesmo se comia direito nesse dia e as pessoas evitavam falar. As cerimônias, não apenas as religiosas, têm também suas weoti. O ritual de bisí basiá, por exemplo, “vestir o basiá”, em presença do gaamá, oficializando o cargo político, apesar de ser um momento pouco tenso do processo, exige, dentre outras coisas, que não se vista o uniforme de basiá pela metade, seu quepe, paletó e calça devem sempre fazer conjunto. Voltemos às regras relacionadas aos rituais fúnebres. Por se tratarem de momentos muito delicados, nos quais a todo tempo é preciso controlar a agência dos mortos, funerais são particularmente cheios de weoti. Desde o começo: quando o defunto está ainda em sua rede deve-se evitar passar por debaixo dela. Depois, ao manipular o corpo deve-se evitar que lágrimas ou suor caiam nele e que a roupa de quem está vivo toque no cadáver. Ao enrolar o morto em tecido para colocá-lo em seu caixão, a quantidade de panos e sua disposição são normatizados. Os késima, que fazem o caixão, têm menos weoti a seguir, a mais relevante é a de disporem da serragem e dos restos de madeira num lugar específico do cemitério, o mesmo 63 Diferentes aldeias saamaka possuem prescrições especiais em dias específicos da semana. São os sabá locais, dias que são tabus para determinadas atividades, por conta de eventos ocorridos – por exemplo uma morte devido a um acidente de caça pode proibir o uso de certos óbia da floresta em quartas-feiras. Tais sabá podem abranger apenas uma pessoa, uma família, ou uma aldeia, dependendo do caso (cf. R. Price 1990: 323n33).

73 onde é despojado o chorume que escorre do cadáver quando chega a entrar em processo de decomposição. Já o trabalho de coveiro (baákuma) é envolto em mais interdições. O tamanho da cova deve ser justo com o do caixão, no máximo algo como cinco centímetros de folga em cada lado. Ao ser arriado ao buraco a cabeça do falecido deve apontar para oeste, onde o sol se põe, para onde os mortos vão. Não podem brigar entre si. Devem dormir durante uma semana na casa do morto, onde uma luz deve ficar acesa ininterruptamente, e ali devem alimentar-se exclusivamente de comida preparada especialmente para eles – mesmo que os ingredientes e sua origem sejam as mesmas, mesmo que seja a mesma receita. Também os wásideodëma (que lavam o morto) comem uma comida exclusiva. Todas as pessoas, ao sair do cemitério, devem lavar suas mãos e pés no rio. Nesses casos todos o efeito de quebrar tais regras significa perigo de morte. Uma cova muito larga quer dizer que “cabe mais gente”, uma muito estreita pode fazer o morto se sentir maltratado, assim como um cadáver mal lavado ou mal vestido. Uma briga entre os coveiros ajuda o morto a prejudicar os vivos. Terra de cemitério, líquido de cadáver, restos de madeira de caixão, tudo isso é contagioso. Não sei dizer com precisão para cada uma dessas regras quais são específicas para Botopási e quais são difundidas. Algumas existem desde o tempo dos antepassados, impostas por eventos que fazem parte das narrativas históricas, outras são introduções recentes, das últimas décadas. Com essa longa lista de exemplos, podemos tentar entender o que significa weoti. Como se vê no caso das regras da igreja e no das regras de médico, o conceito de weoti não engloba somente as normas relacionadas ao mundo saamaka. Mamáweoti, literalmente “lei mãe”, é uma tradução possível para o saamaka de “Constituição” (de um país). Fala-se em “regra de polícia” (sikooutu weoti) para denominar os crimes e contravenções que podem levar alguém a ser preso pela polícia. Aliás, um dos receios à construção de postos policiais no Alto Suriname, em 2013, era de que eles viessem “colocar weoti aqui”, viessem falar para as pessoas como deveriam se portar. Dependendo do contexto, weoti pode significar regra, norma, lei, prescrição, tabu, receita, impedimento, doutrina. Cobre o campo semântico do dever fazer. Os conceitos de weoti e tjína (tabu) são intimamente relacionados. Quando se fala de tjína, sem qualificadores, em geral fala-se de tabus alimentares que uma pessoa herda de seu neoséki. O neoséki é um espírito de um parente morto que encarna na criança nos seus primeiros meses de vida e a faz crescer, sendo desde então componente de sua pessoa, uma espécie de padrinho ou madrinha espiritual que a auxiliará durante a vida. Assim como traços físicos e de caráter, as tjína que o neoséki tinha em vida serão transferidas para seu “afilhado” e, além

74 delas, algo que tenha ocorrido de trágico ao antepassado pode virar tjína da criança. Se o neoséki morreu comendo certo alimento envenenado, a pessoa em quem ele encarnar terá tjína desse alimento.64 Pode ser algo específico como pimenta, mamão, carne de tatu, ou uma categoria mais ampla, como animais que vivem nas copas das árvores (mbéti a líba) ou comida preparada no dia anterior (jéside njanján). Comer de sua tjína pode causar dores de barriga ou estômago, irritações na pele, vômitos ou outras reações adversas. Tabus alimentares pessoais demonstram que não há divisão clara entre o mundo ordinário e o sobrenatural. O que poderíamos ver como “alergias” possuem ligações com ancestrais falecidos, afetando os corpos das pessoas cotidianamente. Ainda que diagnósticos ocidentais como gastrite (tjumá háti) e diabetes (súki síki) sejam conhecidos e as interdições alimentares a eles relacionados não sejam vistas como necessariamente ligadas aos neoséki, não há separação clara entre um tipo de “tabu” e outro: é tudo tjína pessoal. Em muitos casos, tjína e weoti são usados como sinônimos. Dizer que durante o luto o viúvo tem tjína de fazer sexo é o mesmo que dizer que essa é uma weoti que ele deve seguir. Comer com os demais convidados de um funeral é uma tjína dos coveiros, da mesma forma que é uma tjína pessoal de certas pessoas durante sua vida comer mamão. Uma condição temporária, portanto, também pode gerar tabus. As regras que se deve seguir ao manipular um óbia são também chamadas de tjína do óbia. Em uma discussão sobre os deveres dos kabiténi da aldeia, um homem defendia como critério fundamental para a escolha de um capitão sua dedicação e frequência na igreja. Dizia que apenas religiosos deveriam ser considerados como candidatos a kabiténi em Botopási, e que “deveríamos guardar isso como uma tjína”, frase nada incomum que equaciona tabus a regras. Ele poderia perfeitamente ter dito que “isto deveria ser uma weoti da aldeia”, optou pelo termo tjína para marcar a importância daquela regra. Uma tjína, portanto, pode ser entendida como uma regra particularmente grave, pois quebrá-la gera reações quase mecânicas (de espíritos, de substâncias, de corpos), são regras que não necessitam pessoas para reforçá-las. Quebrar regras/tabus sempre gera consequências, que dependerão de que tipo de infração se cometeu. Pode ser a vingança de um fantasma ciumento, pode ser um mal-estar físico, a anulação do poder de um remédio, ficar mal visto aos olhos da congregação da igreja ou de parte da população da aldeia. Frequentemente faz com que as pessoas fiquem com “costas sujas” (súndjubáka), i.e., com uma espécie de “maré de azar” que têm de ser “limpa” ritualmente. Alguns casos como adultérios ou estupros podem ser punidos com 64 Vernon (1992: 27ss) apresenta a versão ndyuka dos neoséki, e sua participação na noção de pessoa. Falarei mais sobre o assunto no capítulo 5.

75 espancamentos coletivos. Outros, como trabalhar na aldeia durante um funeral, com multas (bútu) em víveres ou tecidos. O pior crime, o assassinato, é punido com a expulsão perene do território tradicional saamaka e com o opróbrio. Justamente por serem regras, todas elas são passíveis de serem quebradas ou dobradas. Certo cálculo de risco está sempre envolvido ao deparar-se com uma interdição que apresenta contrariedade às vontades do momento. A liberdade (fií) é um princípio da maior importância para os saamaka e, como em qualquer contexto, ela significa equilíbrio entre desejos e deveres. Entre as regras que permitem a convivência pacífica com vivos, mortos, espíritos, autoridades, parentes e afins, e a noção de que cada pessoa, livre da escravidão e do comando de outrem, tem o direito de ir aonde quiser e agir como julga correto. Se há um jogo de autonomia e interdependência entre as aldeias, há também entre as pessoas. A maioria das weoti possuem flexibilidade, o que gera debates acerca de sua adequação e da melhor forma de segui-las. A possibilidade de serem discutidas parece ser uma das características principais do conceito saamaka de regra, de weoti (por oposição a tjína, por exemplo). Nessas discussões recorre-se a precedentes e a cálculos de risco. Há regras que nem todos conhecem ou cujas motivações são obscuras. Parte delas são simplesmente defendidas por serem “a maneira de fazer as coisas com os quais estamos acostumados”, legitimadas por que “nossos ancestrais assim faziam”, muitas vezes sendo citados por nome: “não é assim que aprendi a fazer com basiá Bakaa” (ou alguma outra figura importante). Segredos, esoterismo, conhecimento e experiência pessoal fazem parte dos debates sobre regras. Algumas regras são preferências, costumes, não são perigosas, e também são discutidas com vigor. No trabalho de fazer a tenda na casa do morto, o tom da argumentação não é tão distinto do tom das discussões que cercam o trabalho de cavar a cova, ainda que o último seja muito mais perigoso que o primeiro. Mais uma vez, há de se levar em conta o fato de que grande partes dessas weoti são específicas a Botopási, o que demonstra que, apesar das regras dizerem respeito a ideias saamaka mais gerais – sobre morte e sobre comida, digamos – em última instância sua forma específica deriva de um histórico de costumes e precedentes localizados.

Um morto no ano novo, uma morta na cidade O sino da igreja tocou por volta das seis da tarde do dia 31 de dezembro de 2011. A maioria das pessoas da aldeia pensaram que era a chamada para o serviço religioso de ano velho (owru yari) e estavam animadas para a noite que viria. Poucos sabiam que na verdade Wénu havia falecido.

76 Wénu era idoso e estava gravemente doente em sua rede há tempos. Amigos e familiares se revezavam em sua casa, passando as noites por lá. Sabiam que o ano novo não seria tão animado daquela vez, por causa do doente. Mas com a morte, era pior. O ano novo (jái) é uma das principais datas do calendário em Botopási, uma grande festa que dura cerca de 15 dias, com muita música, comida, bebida, brincadeiras e fogos de artifício. Mas não poderiam celebrar livremente se houvesse um morto na aldeia. Além disso, já escurecia, não haveria tempo de ter tudo pronto até as 22h para a vigília. As pessoas não sabiam o que fazer. Não houve nem tempo de organizar uma reunião. Sob alguns protestos, um grupo de homens liderado por um membro da matrilinhagem do falecido começou, mesmo sem uma reunião formal, a erguer a tenda em frente à casa. Quando ficou pronta, fizeram um rápido kuútu, no qual apenas capitães e anciões falaram, comunicando que não haveria vigília naquela noite, pois o cadáver ainda não fora lavado e não seria bom augúrio fazê-lo à noite. Ainda assim, as pessoas, especialmente os parentes, deveriam velar o corpo a noite inteira, porque o morto não pode ficar sozinho em momento algum. Pela manhã decidiriam se fariam a vigília no dia seguinte ou se enterrariam no primeiro de janeiro mesmo. Algo completamente incomum mas, com a situação inaudita, as regras estavam em discussão. Ficou decidido também que deixariam de lado o culto religioso de ano velho das 19h, mas às 23h30 todos deveriam ir à igreja. Nas palavras do ancião Jozef, deveriam “passar a virada de ano na igreja, mas não pensando em morte” (“kísi jái a kéíki, ma ná ku deodë hédi”). Depois que tudo que poderia ser feito naquele dia por Wénu foi feito, as pessoas recolheram-se às suas casas, tomaram seus banhos quentes, vestiram roupas brancas ou azuis e foram à igreja. Enquanto isso, discussões paralelas seguiam: alguém achava que seria possível fazer a vigília sem lavar o corpo, já vira fazerem isso ema Klaaskreek; outros contrapunham argumentando sobre como fazem na aldeia vizinha Futunaákaba, com a qual Wénu tinha relações fortes; ou sobre como os saamaka que moram na cidade fazem vigílias por lá. Quem sabe se passassem a noite conversando, sem cantar? Ou se cantassem um pouco hoje e fizessem a vigília oficial amanhã? O culto das 23h30 foi bastante cheio e nele a morte de Wénu foi referida. Antes de seu fim, fogos de artifício já estouravam fora da igreja. Na saída, as pessoas saudavam-se alegremente, com apertos de mãos e abraços, repetindo “jái jái jái jái!” (“Ano novo, ano novo!”) Pequenos grupos de amigos logo se formaram para dar uma volta pela aldeia, passando na casa dos conhecidos para “gritar ano novo” (bái jái), recebendo em cada parada uma dose de bebida ou um pouco de comida. Logo um grande número de pessoas,

77 principalmente homens e mulheres jovens, concentrou-se numa tenda em frente à casa de Nelia, que havia morrido algumas semanas atrás. Dali, seguiram cantando pela aldeia até o sol raiar, passando de porta em porta para acordar as pessoas pedindo doações de bebidas a serem consumidas nas próximas semanas. Festejos típicos de ano novo. Porém, não houve dança. Apesar da alegria, a morte se fazia presente: o ponto de partida foi uma “casa de morto”, certas músicas gospel cantadas eram as mesmas que cantam vigílias. Alguns dos gritos de “jái o jái!”, com os quais se deseja feliz ano novo, transformavam-se, no meio da frase, em choros. O réveillon não foi dos mais agitados, mas foi o suficiente para que alguns reclamassem que, com aquela algazarra toda, nem parecia haver um morto na aldeia. Impressionantemente, mesmo aqueles que ficaram a madrugada celebrando seguiram sem dormir para o kuútu às 8h, quando delegaram as tarefas necessárias para o enterro de Wénu. No primeiro de janeiro tudo correu normalmente e à noite houve hinos e vigília. No dia seguinte, dois de janeiro, era dia de molhar as pessoas. Uma brincadeira típica de ano novo em que crianças e adultos carregam baldes, potes e cuias para a aldeia, jogando água fria ou morna em todo mundo do sexo oposto que passar pela frente. A aldeia inteira vira uma festa, cheia de pessoas encharcadas correndo umas atrás das outras. Naquele ano, tudo teve que acabar cedo. Havia o enterro de Wénu a resolver. No fim da manhã a brincadeira já havia acabado e à tarde fizeram o tradicional serviço religioso para o morto e o enterraram. Na volta do enterro, como de costume, houve um kuútu com o conselho da aldeia para acompanhar os procedimentos dos ritos e para apontar o que ainda teria de ser feito. Passada a parte mais protocolar dessa assembleia, os anciões deram seu veredito sobre o ano novo. Ficou oficial o que já se suspeitava: as pessoas estavam liberadas para comemorar o ano novo, mais que isso, deveriam fazê-lo, enfatizou o ancião Jozef. Celebrar a passagem do ano é um imperativo, é um rito importante em Botopási. Mas ninguém deveria deixar de ir à casa do morto, sempre que possível, dia ou noite, passar e sentar-se um pouco lá. As atividades que ocorrem na tenda em frente à casa de um morto na semana que segue seu enterro conflitavam com as celebrações de ano novo. Nos próximos dias, a atenção ficou dividida entre os eventos sob a tenda de Wénu e os festejos. Noite sim, noite não, houve festa, com som mecânico tocando até a madrugada, danças e flertes. Algumas foram nos salões de reunião, outras nos bares, mas nunca muito próximo da tenda. Ao longo dos dias, foram organizados jogos de futebol, e as casas das pessoas eram muito frequentadas, pois todos guardaram dinheiro para celebrar o ano novo, havia comida e bebida em abundância.

78 Salvo uma cerveja discreta na casa de um amigo, tudo isso seria impensável durante um ciclo funerário comum: esportes físicos e dança são proibidos entre a morte e o aitidei. Surpreendentemente, o que parecia para mim um dilema de difícil resolução – entre o grave respeito ao morto e sua família e a celebração do início do novo ciclo anual de vida – foi resolvido sem muita tribulação. Botopási encontrou um meio termo para seu impasse, descobriu como comemorar o ano novo e ao mesmo tempo honrar o morto com um funeral digno. As pessoas da aldeia, em particular os jovens, comemoraram a noite do dia 31, ainda que de forma mais comedida, sem dança, e guardando parte das bebidas coletadas para doar ao funeral de Wénu. Houve protestos, mas viu-se que seria praticamente impossível deixar a aldeia em silêncio por toda a semana que se seguia. Além disso, a passagem de ano não é apenas momento de diversão, mas de dispêndio e renovação, não poderia ser ignorada: é costume em Botopási celebrar o jái. Na noite seguinte fizeram a vigília e depois o enterro, seguindo o costume. Nos demais dias, equilibraram celebrações de ano novo com a presença sob a tenda, fazendo tudo o que era necessário para ambos eventos. No kuútu pós-enterro, foi Jozef, um dos anciões membros do conselho da aldeia, quem apresentou a forma como seriam harmonizados o luto e a festa. Ele disse que “deve-se celebrar o ano novo” (“jái músu nján”) e que, ao tocarem música e dançarem, “ninguém deve reclamar” (“sëmbë án músu tá hön”), mas que, ao mesmo tempo, deveriam lembrar de passar na tenda de Wénu. Sua fala, decisão, não era de maneira alguma unilateral. Levava em conta o relativo consenso que já havia sido alcançado nas últimas 24 horas, pesando as tradições, os perigos envolvidos em ignorar um e outro evento, decidindo por um meio termo. *** Sábado, seis de abril de 2013, eu e alguns homens sentávamos na porta de casa de Carlo, conversando, especialmente sobre o jái kuútu daquele ano, ocorrido há cinco dias. A assembleia anual da aldeia deveria ter sido realizada em janeiro, mas atrasou-se. Pior, quando finalmente teve lugar, foi interrompida por uma discussão generalizada que evidenciara um impasse político que não se resolveria tão cedo. Passeávamos também por outros assuntos, entre eles a doença de Soola, internada em um hospital de Paramaribo. Caso grave, aparentemente câncer. Nesse momento ouvimos o basiá baí conclamando para a população da aldeia se reunir sob a grande mangueira. Carlo cochichou que certamente era morte, e previu que se tratava de Soola. As pessoas foram se reunindo na grande mangueira. Quando julgou que já havia bastantes presentes, um dos basiá tomou a palavra e passou para kabiténi Samuel dar a

79 notícia. Quando ele terminou a frase “Soola perdeu sua vida”, muitas mulheres imediatamente começaram o choro ritual. A irmã classificatória (MZD) da falecida chorava tanto e tão alto que teve que ser levada para casa. A reunião continuou com os homens mais importantes da aldeia falando sobre onde estavam quando ouviram a notícia. Também explicaram que, como Soola faleceu na cidade, não sabiam detalhes sobre como e quando o corpo seria transportado para a aldeia. Dado momento, o sino da igreja começou a tocar, anúncio público da morte, desencadeando mais uma onda de choros. Ao fim da reunião, quase todos os presentes dirigiram-se para a porta da casa de Soola. Mulheres sentaram na varanda e homens colocaram seus bancos na sombra de um ingazeiro. Falavam sobre a morta. Ela tinha por volta de 50 anos, era atriz de teatro amador. Pena perder alguém que trazia tanta alegria para a aldeia, lamentavam. Dois de seus três filhos moram em Paramaribo. Estava doente há muito tempo, e seu irmão mais novo, que estivera na aldeia durante a páscoa, deveria ter avisado a todos que a morte era iminente. Mas ele tem “jeito de gente da cidade” (fóto fási), comentou um presente, mora em Paramaribo há tempos, não é acostumado com os procedimentos locais acerca da morte, por isso cometera o erro. Depois que deixei o local, em todo canto a morte era assunto. Falavam de problemas ocorridos em funerais recentes e sobre as dificuldades de saber o estado real de saúde das pessoas quando estão na cidade. Em segredo, uma pessoa disse que a morte fora decorrência “daquela doença”, ou seja, AIDS. A versão oficial parecia ser anemia (lági buúu), mas ouvi pouco sobre a causa da morte, diferente de outros casos que acompanhei. Um familiar comentou que a piora mais radical fora no último mês, da última vez que a viu no hospital, Soola estava muito magra. Na verdade, “já estava morta, faltava apenas sua respiração parar”. No domingo, voltei à casa da falecida. Um grupo de pessoas da família ainda se reunia por lá e mesmo sem o cadáver presente recebia visitas. Dei meus pêsames a Ringo, filho de Soola. Ele comentou que naquele dia mesmo seus parentes que moram na cidade iriam se reunir para decidir o enterro. Também contou um sonho que tivera na noite anterior à morte da mãe. Sonhou com um avião cheio de gente, que descia até o chão, pegava alguma coisa que levava para o alto, deixando nos céus. Acordou com a sensação de que algo estava para acontecer. Um parente afirmou que, naquele caso, a interpretação do sonho (púu sunján) era simples: não há local para colocar coisas no céu, apenas levar para Deus. Ringo sonhara com a morte da mãe. Para segunda-feira, marcaram uma assembleia em frente à casa da morta. Compareceu basiá Hesi, o homem mais velho da aldeia, membro da matrilinhagem da falecida. Com mais

80 de 90 anos, ele pouco saía de casa, mas a ocasião era importante. Com outros dois anciões da aldeia, sentou-se junto aos demais kabiténi, três de Botopási e um vindo de Pikísééi. Depois das formalidades que iniciaram a reunião, repetido o anúncio da morte, descritas as reuniões e conversas que tiveram até então, um kabiténi afirmou que a resposta dos parentes da cidade viera ontem: resolveram enterrar Soola em Paramaribo. Na realidade, todos já sabiam, mas agora era oficial. Kabiténi Pana, da matrilinhagem da falecida, frisou que não era costume de sua linhagem fazê-lo assim, preferia que trouxessem o corpo para Botopási. Tudo era marcado por espaços desconfortáveis de silêncio, tanto que ameaçaram terminar a assembleia, se não houvesse nada mais a ser dito. Basiá Hesi então toma a palavra, enérgico, dizendo exigir que o enterro fosse em Botopási, pois Soola era querida o suficiente para que fizessem para ela uma deodë dooö, uma semana de ritos funerários na aldeia, na porta de sua casa, bem ali onde sentávamos. Ela não fora fazer casa na cidade e morar lá para sempre, como tantos outros, ela era daqui, apenas calhou de morrer fora. Hesi afirmou que não gosta da maneira como enterram as pessoas na cidade, jogando terra sobre o caixão diretamente. Disse que a matrilinhagem (mamá beoë), a linhagem do pai (tatá beoë), o povo da aldeia (lánti) e o clã (domineongë) eram contra o enterro na cidade, e deveriam expressar seu descontentamento, ligando para as pessoas da cidade, dizendo querer que a enterrassem ali. Se o problema fosse falta de dinheiro para trazer o corpo de avião, que providenciassem apenas o caixão e uma van até onde a estrada chega, que daqui resolveriam o resto. As afirmações causaram ruído, aparentemente as pessoas concordavam. Conversas paralelas surgiram, mas ninguém tomava a palavra. Alguém então sugeriu que os kijóo gó a së, isto é, que os homens sem posição política oficial “fossem para o lado”, levantassem-se para conversar livremente, longe dos ouvidos dos demais presentes, um mecanismo comum para tomada de posição nas assembleias. Após os kabiténi levantarem rapidamente de seus assentos, simbolicamente permitindo que os homens se juntassem numa sombra ao lado, levantamo-nos e fomos discutir por um tempo. A conversa paralela foi dominada por Kafee, sobrinho de Soola. Ele contou que logo que soube da morte ligou para o irmão mais novo da falecida, que disse que a decisão de enterrar na cidade já estava tomada. Certamente os parentes mais próximos da morta (seu wósudéndu, matrissegmento) se reuniram em segredo e decidiram por si sós, antes mesmo de avisarem a todos que Soola havia morrido, o que foi visto por todos com maus olhos. Mas Kafee pediu que tal detalhe não fosse levantado no kuútu, pois poderia causar constrangimentos. Também lembrou que, quando seu irmão morrera, insistiam em enterrar na cidade, mas em Botopási

81 conseguiram juntar dinheiro, foram à cidade e convenceram as pessoas a trazer o corpo para a aldeia. A pressão funcionou uma vez e poderia funcionar de novo. A decisão dos homens foi telefonar ali mesmo para a cidade, mas eram os gaánwómi, os velhos, líderes e anciões da aldeia, que deveriam fazê-lo. Afinal, são os detentores da autoridade. Voltando a sentar, os jovens transmitiram a decisão à assembleia, que a acatou. À frente de todos, foram feitas ligações para dois parentes da morta, com os quais falaram basiá Hesi e os kabiténi. Enfatizaram que, no último enterro, há alguns meses, decidiram coletivamente, em kuútu, que todos os habitantes de Botopási que falecessem na cidade seriam enterrados na aldeia, preferencialmente nos fins de semana: que tragam o corpo na sexta e enterrem no sábado, assim domingo quem tiver compromissos está livre para voltar a Paramaribo. Os dois homens da cidade que receberam as ligações responderam que naquela noite mesmo se reuniriam para considerar o pedido. Após isso, a reunião acabou da maneira formal: um basiá trouxe uma garrafa de rum para aqueles que detêm cargos oficiais lavarem seus cajados que marcam sua posição política, suas mãos, e fazerem libações. As cadeiras foram rearranjadas, as conversas informais tomaram lugar, alguns beberam o que sobrou do rum e aos poucos as pessoas dispersaram. Kafee comentou comigo depois que é um costume de sua matrilinhagem sempre enterrar na aldeia. Outras linhagens já haviam enterrado seus mortos na cidade, mas não essa. Apenas em casos de mortes feias (taku deodë) não seria tão necessário enterrar ali, até preferem que o cadáver perigoso fique na cidade; ou em casos de pessoas originárias dali, mas que moraram pouco tempo em Botopási e mantiveram poucos laços estreitos. Kafee reafirmou também a importância dada à morte pelos saramaka, disse que alguém pode até vir destruir sua casa, roubar coisas, tudo isso é grave, mas, quando se trata de morte, é mais sério ainda, não pode haver brincadeira. Dois dias depois, quarta-feira, na casa da morta, ainda sentavam e recebiam visitas. Passei por lá, conversei com os parentes e me informei de que as pessoas da cidade não cederam. O enterro fora marcado para sábado em Paramaribo. Em conversas particulares em outros locais, a suspeita de que a morte fora em decorrência de HIV parecia reforçar-se. Alguns sugeriam que foi o fato dela ter morrido de uma doença tão estigmatizada, por muitos ainda associada ao pecado e à promiscuidade, que fez com que decidissem enterrar na cidade. Talvez, especulei, uma transformação da ideia de morte feia. Porém, sendo que tal diagnóstico nunca se oficializou e talvez não fosse mesmo mais que uma fofoca, o problema era que a decisão de enterrar na cidade abria um precedente: agora sempre que alguém se recusar a

82 trazer o corpo, poderia recorrer a ele. Os mais velhos, em particular, não aceitam, não querem tal tipo de mudança. Durante as discussões desencadeadas pelo caso de Soola, alguns ficavam nervosos ao tocar no assunto, dizendo que “o mais velho é que manda” (gaán wán da bási), que as pessoas da cidade deveriam ter seguido a decisão tomada aqui. Outros, como kabiténi Samuel, eram mais resignados, discordam da decisão, mas diziam que uma vez que as pessoas da cidade chegaram a ela, já não havia mais o que fazer. Semanas depois, quando se aproximava a data do limbá uwíi, a cerimônia que encerraria o ciclo funerário para Soola, desenhou-se uma nova polêmica: fariam o ritual em Botopási ou não? Muitos preparativos eram necessários: trazer bens para serem trocados, bebidas e comidas para serem preparadas e consumidas, chamar convidados nas aldeias vizinhas, erguer uma tenda onde fazer o ritual... Seria preciso fazer tudo com antecedência para fazer corretamente. É claro – ouvi kabiténi Samuel dizer a um dos anciões da família da morta – quando o morto está no chão, aqui na aldeia mesmo, não é preciso chamar ninguém para ajudar, as pessoas vão fazer tudo de bom grado, quase automaticamente. Porém, numa situação incomum como aquela, seria preciso reunir-se e conversar, organizar tudo. A cerimônia acabou ocorrendo mesmo em Botopási, mas tantos poréns em marcá-la pareceramme uma espécie de represália à escolha do matrissegment, e uma reflexão sobre a situação que potencialmente gerava uma mudança no ciclo funerário. Muitas mortes de habitantes de Botopási ocorrem na cidade, pois além de mais da metade da população originária da aldeia hoje viver em Paramaribo, é lá que vão ser tratados doentes graves que podem ser ajudados por médicos. Uma edificação na capital, Nieuw Combé, foi construída pelo governo para que maroons possam velar seus mortos de maneira similar à que fazem nas aldeias, com uma estrutura para substituir a casa do morto e uma área equivalente às tendas que levantam em Botopási. É um dos principais pontos de encontro de maroons na cidade. Há vários cemitérios multi-étnicos em Paramaribo nos quais maroons podem ser enterrados.65 Enterrar na cidade não é totalmente incomum, mas não é desejado. O problema parecia mais “sociológico” que “espiritual”. Pelo que me falaram, seria pouco provável que o espírito de Soola se zangasse simplesmente por ter sido enterrada fora do cemitério de sua aldeia, desde que tudo fosse feito com cuidado na cidade. Mas permitir que Soola fosse enterrada fora era abrir as portas para que isso se tornasse mais frequente, esvaziando a aldeia que quase só fica mesmo cheia durante a semana de ritos na porta da casa dos mortos. Muitas 65 A frequência eventual a enterros na cidade (de maroons ou não) gera comparações e debates. A literatura sobre ritos funerários em Paramaribo inclui Brana-Shute & Brana-Shute (1979) e van der Pijl (2007).

83 pessoas consideradas “de” Botopási só vêm visitar a aldeia quando um parente morre. Algumas, criadas na cidade desde pequenas, só vêm a conhecer seu local de origem nessas situações. Quem mora em Botopási quer ver vida ali, quer visitas, festas, quer parentes e amigos por perto. Além disso, mesmo que não tenha sido sempre assim, enterrar pessoas de Botopási que morrem na cidade no cemitério local é hoje um costume, uma regra da aldeia, ou pelo menos da matrilinhagem de Soola.66 Como toda regra, espera-se que seja seguida. O que podemos depreender do episódio? Apresentou-se um conflito de opiniões acerca do que deveria ser feito. Caso sério, morte de uma pessoa querida. Entraram na equação a autoridade dos mais velhos e dos líderes da aldeia, que por suas posições devem se posicionar como defensores das tradições. Porém, como o jái kuútu daquele ano revelara, certo impasse político dominava a aldeia. A autoridade dos kabiténi estava enfraquecida, bem como do conselho da aldeia – o grupo de anciões que delibera sobre as questões públicas. Para tomar uma atitude foi necessária a intervenção do homem mais velho da aldeia, basiá Hesi, o que demonstra que a autoridade não passa somente pelos cargos políticos oficiais, mas também por senioridade, experiência, sabedoria. Mesmo assim, a resolução aparentemente unânime dentro da aldeia não foi acatada pelos filhos da morta, “gente de Botopási”, mas que mora na cidade e tem “jeito” (fási) citadino. Eles não apenas eram os parentes mais próximos da falecida como o corpo estava em posse deles, de modo que foram capazes de tomar uma decisão unilateral.

Cargos políticos e o conselho da aldeia Começamos a entender como decisões acerca de regras e funerais são tomadas coletivamente e acatadas (ou não) pelas pessoas. Para aprofundarmo-nos, é preciso uma exposição da organização política da aldeia. Em 2014, Botopási tinha três kabiténi (ou capitães) e dezenove basiá (assistentes ou ajudantes dos kabiténi). Tais cargos são oficializados pelo gaamá, o líder supremo dos saamaka. Foram originalmente legitimados pelo governo colonial holandês quando do tratado de paz assinado com os saamaka em 1762 e hoje, apesar do status legal nebuloso, ainda são corroborados pelo governo surinamês, que paga um salário a cada oficial, maior quanto mais alto for o posto. Além de vestirem uniformes em estilo militar em ocasiões oficiais, kabiténi e basiá portam cetros (páu) nos quais estão contidos as almas (akáa) daqueles que assumiram o 66 Ver nota 55, supra. Bilby (1990: 206-16) apresenta um caso similar no qual os aluku, nos anos 1980, depararem-se com a possibilidade do enterro em um cemitério creole, em Maripasoula, o que abriria um precedente visto como perigoso por alterar suas regras funerárias em direção a costumes estrangeiros.

84 cargo anteriormente. Por isso, cetros e cargos mais antigos são considerados mais “pesados”. Logo, os líderes são, em sentido bastante literal, portadores da tradição e da autoridade política saamaka. Corporificam a autoridade tradicional de uma aldeia, clã ou linhagem. O poder de criar novos cargos de kabiténi está nas mãos do gaamá, porém a escolha de quem efetivamente os ocupa é um jogo político complexo envolvendo interesses de matrilinhagens, matrissegmentos, aldeias e dos possíveis candidatos. Ainda mais em uma aldeia relativamente distante da aldeia do líder, como Botopási, onde o gaamá não tem tanta influência direta no cotidiano. O processo pode durar meses, talvez anos, entre reuniões sigilosas das linhagens, conversas entre os envolvidos, consultas ao gaamá. Uma vez investido, o cargo não pode ser revogado, permanecendo com a pessoa até a sua morte. Depois, passado um período ocioso, o cetro será transmitido a um novo portador, agora mais pesado, com uma alma a mais em sua matéria. A transmissão envolve mais um jogo complexo, no qual a vontade do kabiténi falecido – expressa antes da morte ou depois, por meio de médiuns ou oráculos – é um dos principais fatores levados em consideração, mas não o único. Decidido o novo kabiténi, será necessário passar por trâmites burocráticos e ritualísticos que oficializam o cargo perante as autoridades surinamesas e saamaka. Dentre várias cerimônias, é fundamental que o kabiténi vá se vestir oficialmente, pela primeira vez, seu uniforme na aldeia do gaamá, na cerimônia de “vestir capitão” (bisí kabiténi). Outro rito pelo qual tem de passar é o de weoti fútu (“branquear os pés”), realizado na aldeia onde mora. Há alguns anos, o então gaamá Agbago Aboikoni, com fins de agradar a uma de suas esposas, que era de Botopási, criou um novo cargo de kabiténi na aldeia, mais quatro cargos de basiá, para serem ocupados por pessoas da matrilinhagem de sua mulher. Escolher quem viria a portar o cetro levou tempo, ao que tudo indica foram os anciões do matrissegmento da esposa do gaamá que afinal escolheram o novo capitão.67 As qualificações do candidato estão em jogo, assim como seu desejo de ocupar o cargo ou não, mas a opinião pública e disputas interpessoais também são relevantes. As transmissões dos cargos de basiá e gaamá seguem de forma geral os mesmos princípios, ainda que, sendo o posto de basiá menos disputado, sua sucessão seja mais simples, e sendo o cargo de gaamá mais importante, sua sucessão torna-se incrivelmente complexa, envolvendo questões de política interclânica que remetem à história da formação da sociedade saamaka, questões de política partidária, interesses econômicos 67 Gaamá Agbago faleceu em 1989 (ou, como dizem por respeito, “dormiu”), porém a cerimônia de bisí kabiténi relativa ao cargo que ele criou em Botopási só ocorreu em 2012, ainda que o homem que ocupa a posição já estivesse efetivamente exercendo seu cargo há alguns anos. Nessa altura, o posto de gaamá já havia passado para Songo Aboikoni e deste para Belfon Aboikoni, o que ilustra o vagar com o qual esses processos podem se dar.

85 sobre o território saamaka e amiúde também muita feitiçaria (cf. R. Price 1975: 130ss; Köbben 1967, Bilby 1989).68 Hoje em dia é lugar comum dizer que as pessoas se interessam por esses cargos graças ao salário que recebem, mas é claro que a autoridade os acompanham tem muito peso quando alguém interessa-se em ser kabiténi, basiá ou outro. Por outro lado, há inúmeras pessoas que dizem preferir não ocupar qualquer cargo oficial, pois com ele há demasiada responsabilidade e exposição, as pessoas procuram demais quem é kabiténi, reclamam demais deles, amiúde proferem maldições ou fazem feitiços contra eles. Ocupar tal cargo pode ser estressante e perigoso.69 Além disso, ou talvez por causa disso, aquele que preenche o cargo deve seguir um código de conduta: não fica bem que o capitão de uma aldeia demonstre estar bêbado em público ou envolva-se em brigas e fofocas sórdidas. Um kabiténi com má reputação pode perder seu prestígio, ainda que não perca seu cargo. Sua reputação é relevante para a aldeia como um todo, um kabiténi malvisto pode dar o que falar pelo rio. Por isso é esperado que os habitantes da aldeia tratem-no com respeito, ao menos publicamente. Em menor grau, o mesmo vale para os basiá. Há duas modalidades de capitão: lánti kabiténi e famíi kabiténi (traduzindo livremente, “capitão do povo” e “capitão da família”). O cargo de lánti kabiténi a princípio deve circular entre as matrilinhagens do clã Dómbi presentes em Botopási, enquanto o de famíi kabiténi circularia dentro de uma mesma matrilinhagem entre as três aldeias Dómbi vizinhas (Botopási, Pikísééi e Futunaákaba) e entre diferentes divisões da mesma linhagem – o ideal é que não haja demasiada proximidade genealógica entre o atual detentor de um cargo e seu sucessor, pois todas as seções da linhagem devem ser contempladas. Na prática, porém, não é 68 Durante a maior parte de meu trabalho de campo, o gaamá saamaka era Belfon Aboikoni, do clã Matjáu, que habitava a aldeia Asindó Opo, à montante de Botopási. Os Matjáu, por seu pioneirismo nas fugas das plantations, e papel nas guerras contra os brancos tiveram a maioria dos gaamá saamaka desde o século XVIII (oito até hoje). Mas outros clãs (Nasí, Lángu, Awaná e Agbó) já tiveram um ou dois gaamá cada (cf. R. Price 2002 [1983], 1990). Em junho de 2014 “dormiu” Belfon. As exéquias foram celebradas em setembro e acompanhei parte dos procedimentos. Pode demorar mais de um ano até que um novo gaamá seja escolhido e enquanto isso um interino (também Matjáu) cumpre as funções necessárias. Usando argumentos históricos e apontando problemas contemporâneos, parte dos outros clãs hoje contesta o domínio Matjáu da posição de gaamá, de modo que as possíveis disputas vindouras podem ser bastantes tensas para os saamaka, até porque envolvem interesses políticos e econômicos que ultrapassam os limites da tribo. A situação é complexa demais para der explorada aqui. Sobre a disputa anterior, que seguiu-se à morte do gaamá Songo Aboikoni em 2003 e levou Belfon ao poder, ver R. Price 2008: 239-244, 2011: 125-131. 69 De acordo com Köbben, no Cottica dos anos 1960 o cargo de capitão era definitivamente mais desejado pelo seu prestígio do que pelo salário (Köbben 1969a: 237). Ele afirma que havia uma espécie de etiqueta que exigia que as pessoas não demonstrem querer ser capitão, mas, na realidade, sabia-se que todos queriam (Köbben 1967: 341). Em saamaka, parece seguro afirmar que há pessoas que sinceramente não desejam o cargo; e outras que, se talvez não falam com todas as palavras, deixam bem claro publicamente que querem o cargo, quando há um disponível.

86 sempre isso que acontece, são frequentes acusações de usurpação de cargos entre uma linhagem e outra, uma aldeia e outra, uma parte da família e outra. Quando da transmissão de um cetro de lánti, a discussão deve envolver a aldeia inteira; se o cetro pertencer a uma família, o debate é mais restrito dentro da linhagem, guiado pelos anciões mais influentes. Afora seu modo de circulação, porém, não parece haver grandes diferenças entre “capitães do povo” e “de família”. Ambos têm obrigações com suas linhagens e ambos envolvem-se em assuntos gerais da aldeia. Como argumento em debates, já ouvi que haveria maior responsabilidade dos lánti kabiténi para com a aldeia como um todo, enquanto os famíi kabiténi estariam mais preocupados com questões internas à sua linhagem, logo, os primeiros ocupariam uma posição hierárquica ligeiramente mais alta que os segundos. Mas tal visão não é consenso, na prática as atribuições e responsabilidades de ambos são as mesmas. O número de kabiténi que uma aldeia pode ter depende do tamanho de sua população. Pikísééi (que estima-se ter mais de 1000 habitantes) tem oito kabiténi; Futunaákaba (menos de 100), apenas um. Mas as contas nunca são exatas. A princípio cada kabiténi tem trabalhando sob si quatro basiá, cuja escolha não recai somente sobre ele. Botopási deveria ter, portanto, oito famíi basiá e quatro lánti basiá (sob dois famíi kabiténi e sob um lánti kabiténi). Porém, as complexidades das transmissões de cargos faziam com que Botopási tivesse, quando deixei a aldeia, dezenove basiá: dez mulheres e nove homens.70 Continuam vivos em Botopási alguns basiá referentes a kabiténi já falecidos, cujo cetro foi para outra aldeia, enquanto outros deveriam ter sido transmitidos para Pikísééi ou Futunaákaba, mas ficaram por ali. Há ainda um basiá cujo cargo foi criado diretamente pelo atual gaamá, sem vinculação a qualquer capitão. Todos eles, por serem de Botopási, morarem ali e ali terem seus cargos, fazem parte do conselho da aldeia, sobre o qual falarei em breve. Os cargos de kabiténi e basiá são profundamente ligados à história colonial. Como notou R. Price, generalizando para pensar as comunidades de escravos fugidos nas Américas como um todo: Em contraste [com as comunidades formadas nos sécs. XVI e XVII, majoritariamente por pessoas nascidas na África, cujos modelos de liderança eram fortemente baseados nas monarquias africanas], depois do início do século XVIII, líderes maroons apenas raramente reivindicaram descendência de realezas africanas, ao invés disso tendendo a denominarem-se capitães, governadores ou coronéis, ao invés de reis (R. Price 1996 [1973]: 20).

70 Via de regra, deve haver tantos basiá homens quanto mulheres, focando especialmente nas questões da aldeia relacionadas a seu gênero. Existem algumas mulheres kabiténi pelo Alto Suriname. Porém, isso é ainda uma novidade polêmica. Muitos homens afirmam que as funções de um kabiténi são incompatíveis com as mulheres, entre outros motivos porque a menstruação pode impedi-las de participar de certas cerimônias, adentrar certos locais etc.

87 O termo kabiténi é claramente derivado da hierarquia militar colonial, possivelmente dos líderes de expedições que guerreavam e negociavam com os maroons antes do tratado de paz. Já o termo basiá, diz-se comumente que deriva dos capatazes das plantações: ouvi uma versão etimológica nativa que diz que chamavam os feitores de basiá pois deveriam obedecer a eles como a um patrão, e por isso diziam a eles “bási, ja” (“sim, chefe”).71 Tanto basiá quanto kabiténi vestem-se em situações oficiais com indumentária em estilo militar ocidental. Não é difícil reconhecer, pela diferença entre seus chapéus e paletós, qual pessoa ocupa qual cargo. São reconhecidos facilmente também por andarem com bengalas em madeira decorada (wakatíki), cada uma talhada em estilo determinado por seu proprietário. Mas as bengalas não são os cetros aos quais me referi acima. Os cetros de fato, onde estão depositadas as almas dos antigos detentores do cargo, são os kabiténi páu e basiá páu. Eles ficam, em geral, guardados, escondidos nas casas de cada capitão ou basiá, só sendo levados a público uma vez por ano, no jái kuútu, assembleia anual da aldeia, quando são limpos e aspergidos com rum, ou nas cerimônias de investidura dos cargos, bisí kabiténi e bisí basiá. O cetro dos kabiténi é de madeira, alto, encimado por uma esfera de metal prateado adornada com um brasão dourado do Suriname (ou, no caso dos feitos antes de 1975, o da coroa holandesa). O basiá páu é mais curto e possui uma corda que pende de sua ponta – por isso é chamado também de “chicote de basiá” (basiá wípi). A ligação do cargo de kabiténi com a colônia e com o Estado, bem como a do de basiá com as plantations fica clara no desenho de seus cetros. Ao descrever as atribuições de um kabiténi, os saamaka dizem que o que ele faz é “conduzir”, “guiar” (tíí). Deve estar atento às disputas e problemas que ocorrem na aldeia, ajudar a solucioná-las, além de representar sua aldeia em situações de encontro com estrangeiros. Os basiá são seus auxiliares na tarefa, mas também têm suas especificidades. Diz-se comumente em Botopási que a posição de basiá existia antes da existência da posição de kabiténi. No começo da história saamaka, antes do tratado de paz, haviam apenas basiá e o gaamá. Por isso a posição de basiá, apesar de hierarquicamente inferior, seria “mais pesada” do que a de kabiténi, como seus cetros. Há funções que os basiá podem cumprir e os kabiténi não, como ir “chamar cemitério” (bái geébi): pedir ajuda aos mortos quando algo de muito ruim estiver acontecendo, situação na qual podem ter de dormir em uma rede por lá, coisa que se um kabiténi fizesse correria perigo de morte. Tal função, em conjunto com seu papel de arauto e o de respondentes em kuútu (ver abaixo), demonstram que a função de basiá é muito 71 “Diz-se comumente” porque tais afirmações são parte do senso comum entre os saamaka. Não são informações coletadas entre especialistas em história. R. Price (1990: 314n16) afirma que o termo vem do holandês bastiaan, depois tornado basya em sranan, ambos significando “capataz”, “feitor de escravos”.

88 ligada à voz. Um bom basiá, dizem, sabe gritar, sabe falar em assembleias. Além disso, deve ser dedicado às questões da aldeia, estar sempre disposto a ajudar em trabalhos e eventos coletivos e a representar a aldeia em ritos, reuniões e funerais alhures. Abaixo do gaamá existem outros cargos oficiais: fisikái (“fiscal”), hédi kabiténi (“capitão líder”) e hédi basiá (“basiá líder”). Tais posições parecem ter origens e atribuições menos definidas. Os hédi basiá, por exemplo, usam o mesmo uniforme que os basiá comuns, seus cetros também são idênticos aos dos demais, e recebem o mesmo salário, o que parece estranho para alguns de meus interlocutores: se o cargo é superior, deveria haver diferenciação no traje e na remuneração, não apenas no título. Botopási havia um hédi basiá, falecido em dezembro de 2014, que antes de ser promovido era um basiá normal, mas, por ser íntimo do gaamá Belfon, tornou-se hédi basiá alguns anos antes de sua morte. Até a morte de Belfon, esse hédi basiá parecia ser o principal canal entre o líder supremo e as lideranças de Botopási. A impressão que fica é que a diferença é principalmente honorífica: trata-se de um basiá com comunicação mais próxima do gaamá, e/ou com um hédi kabiténi, servindo de contato direto entre o líder supremo e uma aldeia, clã ou matrilinhagem. Isso dá à sua voz mais autoridade do que a de um basiá ordinário. Os hédi kabiténi agem na esfera regional, têm responsabilidades não apenas com a aldeia ou com sua matrilinhagem. São líderes dos capitães de seu clã e dos capitães de um trecho do rio (písi wáta), ocupando posição de intermediário entre um clã, um grupo de aldeias e o gaamá. Os princípios que guiam sua autoridade – localização e clã – sobrepõemse: o hédi kabiténi relevante para Botopási é Wanze Eduards72, de Pikísééi, que é “cabeça” da área aproximadamente entre Gaántátái e Kambalúwa, e também do clã Dómbi. Ele “pode falar” (isto é, tem influência) em Béndíkwái (clã Nasí), dentro dessa área; e em Abénásítónu, fora dela, por ser uma aldeia do seu clã; mas não em Daumeo, aldeia Dómbi mais distante que guarda com poucos laços atuais com Pikísééi. Portanto, uma aldeia dentro do trecho do rio referente a um hédi kabiténi pode recorrer a um outro, desde que não seja distante em termos de espaço e de relações. Os fisikái podem ser entendidos como membros do gabinete do gaamá. Trabalham diretamente com o líder supremo, têm reuniões frequentes com ele. São três ou quatro em todo o rio, todos acumulando o cargo de kabiténi, e alguns sendo também hédi kabiténi. Wanze Eduards, por exemplo, é kabiténi, hédi kabiténi e fisikái. As atribuições, portanto, 72 Wanze é também uma figura importante no Suriname por ser um dos líderes da VSG (Vereniging Saramakaanse Gezagsdragers, Associação das Autoridades Tradicionais Saamaka), uma associação que luta pelos direitos dos saamaka a seu território tradicional (cf. Price 2011).

89 somam-se: a mesma pessoa pode ter responsabilidades pelas questões de sua aldeia (como kabiténi), por questões de todo o seu clã e de um trecho do rio (como hédi kabiténi) e, junto ao gaamá, por questões gerais de todos os saamaka (como fisikái).73 À primeira vista, pode parecer tratar-se de uma cadeia de comando fortemente territorializada, por meio da qual a autoridade do gaamá se ramificaria pelo rio e pelas aldeias. Ou poderíamos pensar que estamos frente um sistema político no qual aqueles que ocupam um cargo possuem o poder de agir como mandatário de coletivos crescentemente grandes, dependendo do nível de sua posição – a aldeia para um kabiténi, uma região para os hédi kabiténi, toda população saamaka para o gaamá. Porém, as coisas não funcionam bem assim. A cadeia nunca efetivamente se desenha, pois as interações que ocorrem em situações reais fogem sempre ao esquema prototípico. Um hédi basiá pode “mandar” muito mais numa aldeia do que um kabiténi; um kabiténi costuma ter mais influência nos afazeres cotidianos que um hédi kabiténi; um basiá tido em alta conta pelo gaamá pode ter mais influência junto a ele que um hédi kabiténi. Além disso, numa aldeia distante do líder supremo, como Botopási, a autoridade do gaamá é algo vaga, não interfere diretamente nas questões do dia a dia. O gaamá influi em temas como a delegação de cargos políticos, embates de maior escala entre clãs, conflitos relacionados ao território e à exploração de recursos naturais. Para a maioria das questões, mais que o clã, importam linhagens, matrissegmentos e aldeias. Problemas costumam envolver “as pessoas de Botopási” antes de “os saamaka”, logo, mais que o gaamá e seus assistentes diretos, são os kabiténi e basiá que se envolvem. Mesmo a autoridade dos kabiténi não se faz, de forma alguma, despótica. Até porque eles jamais agem ou decidem nada sozinhos. Trabalham sempre com o conselho da aldeia, formado por todos os kabiténi e basiá juntamente com um ancião de cada uma das principais matrilinhagens que constituem a aldeia. O conselho da aldeia pode ser chamado de lánti ou de dorp bestuur e a ele se opõe gaán lánti, o povo em geral da aldeia. Lánti é um termo de difícil tradução, pois significa, dependendo do contexto, “governo” ou “povo”. No primeiro sentido, refere-se aos kabiténi, aos basiá e aos anciões de cada linhagem, isto é: lánti é o conselho de uma aldeia, quem a governa. Nesse sentido, é comumente traduzido para o holandês como bestuur (“governo” ou “comitê'”). O governo de um país também é chamado de lánti ou gaán lánti. Já no segundo sentido, lánti é quase o 73 Não sei precisar a origem dos três cargos. Certamente são mais recentes do que basiá, gaamá e kabiténi. O cargo de fisikái parece existir pelo menos desde a primeira metade do século XX, posto que Thoden van Velzen & van Wetering (1988: 126) afirmam que Anake Paulus (que viveu até 1949) chegou a portar o cargo. Sobre a posição de fisikái entre os aluku, e seu papel na sucessão dos gaamá, cf. Bilby 1989: 167n34.

90 oposto: é a população da aldeia, mais especificamente, os “homens jovens” (kijóo) e “mulheres” (mujeoë). Isto é, todas as pessoas em idade adulta sem cargo oficial nem posto de ancião de sua linhagem. Crianças e adolescentes não participam das instâncias decisórias. Assim, por um lado, lánti é uma cúpula política, por outro é o povo liderado por ela. No segundo sentido, contrapõe-se às famílias, às linhagens: o que é de lánti é geral, é de todos os habitantes da aldeia, e não particular a uma linhagem – é o “público” em oposto ao “privado”. Daí a diferenciação acima apontada entre lánti kabiténi e famíi kabiténi: o primeiro cetro é de todo o povo e portanto deve circular entre as linhagens, o segundo pertence a uma família e por isso fica sempre dentro da matrilinhagem. Merecem atenção os membros do conselho da aldeia que chamo de anciões (gaánwómi, lit. “grandes homens”, também chamados de familiehoofd, “chefes de família”). São os homens mais velhos de cada linhagem ainda capazes de participar com frequência de eventos sociais. Frequentemente acumulam também um cargo de basiá que reforça sua autoridade. A posição é fundamental porque inserem, na cúpula que trata assuntos “públicos”, os interesses “privados”, isto é, das linhagens. Idealmente, todas as linhagens devem ser contempladas em todas as discussões e os anciões são os que levam as opiniões de cada um desses grupos. Em saamaka, autoridade e poder necessariamente passam por parentesco e pela gerontocracia. Os mais velhos têm destaque por terem mais conhecimentos, mais experiência, e portanto sabem melhor da história, regras e costumes do seu povo e família. Como são todos homens, fica evidente também a divisão de gênero que opera nas instâncias políticas oficiais. Mulheres e homens jovens, apesar de opostos à lánti (no sentido de governo), também têm voz no conselho. Existem dois cargos não-remunerados, que não passam pela chancela do gaamá: líder dos jovens (hédima u kijóo), mediadores entre os homens em idade adulta e o conselho; e líder das mulheres (hédima u mujeoë), mediadoras entre as mulheres de idade adulta e o conselho. Além disso, o conselho da aldeia tem, hoje, secretários (secretaris) com funções administrativas e tesoureiros (penningmeesters). Quem ocupa tais cargos, se não acumular um cetro de basiá, é considerado parte do “povo em geral” (gaán lánti) e não parte efetiva do conselho (lánti). Mas são frequentadores do Centro Político-Administrativo (Beleids- en Bestuurcentrum), casa erguida no fim dos anos 1990 onde ocorrem reuniões do conselho.74 Outro cargo importante é o superintendente de conselho (BO, bestuursopzichter), 74 Ao que me parece, isso é incomum. Botopási talvez seja uma das poucas aldeias do Alto Suriname que possui uma construção específica apenas para reuniões do conselho da aldeia. Em outras aldeias as reuniões do conselho ocorrem nos galpões de assembleia (kuútu gangása) ou nos salões (zal), ou seja, nos mesmos locais onde ocorrem as assembleias abertas ao público geral (lánti kuútu).

91 um funcionário público remunerado que media as relações entre a aldeia e o governo de Paramaribo em questões judiciais, policiais, financeiras, etc. Ele é parte do “povo em geral” (gaán lánti), mas utiliza um uniforme militar (distinto dos de basiá e kabiténi). Em 2013, faziam parte do conselho da aldeia em Botopási 26 pessoas: três kabiténi; dezenove basiá (um deles hédi basiá); e seis anciões (dois deles basiá). Algumas matrilinhagens não têm anciões oficialmente no conselho, por serem pouco numerosas na aldeia ou por não terem conseguido chegar à conclusão de quem indicar. Além deles, frequentavam com maior ou menor assiduidade o centro político-administrativo cinco “lideres dos jovens” e quatro “líderes das mulheres” (esses não podem acumular cargos de basiá ou kabiténi), dois secretários (um deles também basiá), um tesoureiro e um superintendente. Sempre que alguma questão tem de ser apresentada por um forasteiro (saamaka ou não) à aldeia, seja a proposta de reforma de um ancoradouro, uma campanha de prevenção ao HIV ou o convite para uma grande reunião em outra aldeia, o procedimento correto é que ela seja levada ao conselho que, depois, em uma assembleia aberta ou domingo na igreja, irá repassar a informação para o público em geral. Em princípio, moradores de Botopási podem também vir ao conselho com questões, mas aparentemente preferem canais menos formais. Por exemplo: num kuútu aberto, qualquer que seja o motivo de sua conclamação, as pessoas podem propor outras pautas. Ou podem discutir com suas famílias e amigos em particular e algum basiá, ancião, líder dos jovens ou das mulheres leva a questão ao conselho. O ponto é que nem as pessoas que tem cargos oficiais, nem os anciões, nem o conselho da aldeia enquanto conjunto decidem nada sozinhos. A função dos kabiténi é antes de tudo “guiar” (tíi). Eles conduzem uma aldeia como o barqueiro conduz seu barco, como um guia conduz uma expedição no mato, mas não decidem para onde os passageiros, o grupo ou a população vão. São apenas guias (tíima), indispensáveis, mas não autocratas. O fato de lánti significar tanto “povo” quanto “governo” indica que essas duas coisas devem ser, em algum sentido, uma só. Ou uma a sinédoque da outra. Lánti enquanto governo de uma aldeia ao menos idealmente deve ser um prolongamento de seu povo (gaán lánti), uma parte da população destacada dela e incumbida de funções deliberativas especiais graças à sua experiência (no caso dos anciões) ou de sua corporificação da ancestralidade a partir de um cargo oficial (os kabiténi e basiá). O conselho de uma aldeia é englobado pelo seu povo, faz parte dele ao mesmo tempo em que se opõe a ele. 75 Assim, o que eles “decidem” deve 75 Nesse sentido, podemos aproximar a hierarquia política saamaka da definição de hierarquia de Louis Dumont: “Acredito que a hierarquia não seja essencialmente uma cadeia de ordens superpostas, ou mesmo de seres de dignidade decrescente, nem uma árvore taxonômica, mas uma relação a qual se pode chamar

92 encapsular o que a população da aldeia quer, deve ser o mais próximo possível de um consenso de todo o povo. Veremos como isso opera na prática.

Decisões e retóricas dos kuútu Exposta a estrutura de poder formal saamaka, é preciso entender como funcionam os kuútu, principal instituição política saamaka.76 São vias de acesso para compreender questões de masculinidade, retórica e gerontocracia, ajudam a compreender como a autoridade está fragmentada por toda aldeia, ainda que se concentre em certos locais e pessoas. O kuútu é uma reunião formal, altamente cerimonializada, regida por uma etiqueta específica, tanto na disposição dos assentos quanto na ordem, modalidade e ritmo das falas. Observar como as pessoas sentam em um kuútu já é observar as clivagens locais por idade, gênero e status político. Apesar de não ser uma regra inviolável, homens e mulheres sentamse separados. Há assentos reservados para os kabiténi, para os basiá e para os anciões. Em outros tempos, apenas quem fazia parte do conselho tinha direito de fala em assembleias oficiais, mas hoje há maior liberalidade nesse aspecto. Na maioria das ocasiões, mulheres não falam, nem mesmo as que possuem cargo de basiá. Isso já foi uma regra, hoje a rigor revogada, mas mulheres ainda falam com menos frequência que os homens. Líderes e anciões são quem de fato conduzem o kuútu, são os que mais se manifestam verbalmente. Para tomar a palavra, é preciso esperar um silêncio e chamar uma pessoa, que fará durante todo o discurso o papel de “respondente” (píkima), normalmente um basiá. O falante se dirige ao respondente, mesmo que seu discurso seja dirigido a um terceiro específico ou à plateia como um todo. Fala pausadamente, para que, ao final de cada frase, o respondente retruque com expressões padronizadas que permitem que o orador continue: “sim”, “é mesmo?”, “assim foi” etc. Ao fim de um discurso ou trecho de discurso, o respondente pergunta se os presentes ouviram a mensagem. Eles respondem “ouvimos”. Antes de abrir espaço para um próximo orador, o respondente pergunta ao atual se encerrou seu discurso. Sempre que o orador, seja quem for, agradece alguém por algum feito, a plateia acompanha o agradecimento com palmas ritmadas e com a frase “muito obrigado, obrigado, obrigado!” (“gaántangí, tangí, tangí!”). A atitude esperada da plateia é de silêncio durante as falas, mas sucintamente de englobamento do contrário. [...] Essa relação hierárquica é muito geralmente aquela que existe entre um todo (ou um conjunto) e um elemento desse todo (ou desse conjunto): o elemento faz parte do conjunto, é-lhe nesse sentido consubstancial ou idêntico, e ao mesmo tempo dele se distingue ou se opõe a ele. É isso o que designo com a expressão englobamento do contrário.” (1997 [1970]: 370). 76 A literatura anglófona, seguindo a tradição africanista, traduziu kuútu por palaver, mas “palavrório” em português não parece-me adequado. Na falta de termo melhor, traduzo por “assembleia” ou “reunião”.

93 não são incomuns manifestações de apoio ou repúdio. Quando a discussão chega a um ponto no qual um grupo necessita tomar um partido, esse pode pedir para “ir ao lado” (gó a së), isto é, pede um aparte, retira-se do espaço onde o kuútu ocorre para deliberar à parte qual posição vão expor publicamente, agora sem a modalidade formal de fala. O grupo pode ser o dos jovens, o dos coveiros, uma família, etc. É comum também que já se chegue à assembleia com uma posição tomada anteriormente, em conversas e discussões privadas. A repetição é frequente, assim como interrupções e circunvoluções. Temas de fato relevantes são amiúde deixados para o final da reunião e discutidas com menos veemência do que assuntos aparentemente triviais. Alguém que chegue com um assunto diferente do que está sendo discutido em meio a uma reunião deve ser contemplado sem reprovações, mesmo que demore-se. Uma reunião para discutir um dado tópico muitas vezes mal trata dele, ou simplesmente alguém dá um veredito sem apresentar os prós e os contras, as visões conflitantes que levaram a assembleia a ser chamada. Nem sempre os kuútu terminam com qualquer tipo de resolução. Há toda uma arte da retórica, não apenas nos kuútu, mas realizada em sua forma mais nobre neles. Saber falar no modo kuútu de fala é uma virtude grandemente apreciada. Ao abrir sua fala, num ambiente formal, o esperado é que não se vá direto ao ponto: ao anunciar a morte de alguém começam antes contando onde estavam e o que faziam quando ouviram a notícia. Informações indiretas, que não foram coletadas pessoalmente, em geral são apresentadas como tal, não simplesmente afirmadas. Nem sempre nomeiam as fontes, mas caso garantam autoridade ao que se está sendo dito, podem ser reveladas. Tampouco é comum falar abertamente o nome de uma pessoa quando o tom da fala é acusatório (ainda que todos saibam de quem se trata). Um bom orador vale-se indiretas para referir-se a alguém ou algo e por isso metáforas padronizadas ou criativas são largamente utilizadas; são chamadas de woodu, caindo na mesma categoria dos provérbios, repositórios importantíssimos da sabedoria saamaka. A retórica, portanto, confunde-se aqui com a etiqueta, com o que é apropriado ou não de se dizer em quais momentos, o que por sua vez é revestido numa aura de segredos.77

77 Marrenga & Paulus (2011) tratam da retórica saamaka com exemplos didáticos. Sua exposição do funcionamento das instâncias decisórias das aldeias é particularmente esclarecedora. Pela descrição de Köbben (1969a: 238) dos kuútu ndyuka, a instituição é idêntica no Cottica. Para uma análise linguística, cf. Migge 2004. Price & Price (1991: 6) afirmam: “Saamaka também são mestres de indiretas e elipses: a arte da alusão por provérbios ou formas verbais e gestuais condensadas, bem como outras formas espontâneas e convencionais de evitar referências diretas. Apesar do uso de tais dispositivos intensificar-se em contextos formais (reza, reuniões etc.), mesmo formas cotidianas de endereçar e referir a pessoas são tratadas como uma arte complexa e sutil”.

94 Os kuútu ocorrem em diferentes níveis. Os mais amplos são “grandes reuniões” ou “reuniões do rio” (gaán kuútu ou lío kuútu), ocorrem em geral na aldeia do gaamá, em sua presença, mas podem também ser conclamados por outros grupos ou associações. Neles, em geral são esperadas presenças de delegações de cada clã, normalmente incluindo kabiténi ou basiá da maioria das aldeias. Tratam de questões relevantes para todos os saamaka: o uso de recursos naturais, a sucessão do gaamá, etc. As “reuniões da aldeia” (lánti kuútu), para todos seus habitantes, costumam se dar em construções específicas para esse fim (kuútu wósu) e tratam de temas de interesse da população: serviços da aldeia como água, luz e escola, seleção de comissões para eventos oficiais, funerais e atividades da igreja. “Reuniões de família” ou “reuniões de linhagem” (famíi kuútu ou beoë kuútu) são privadas, ocorrem nas casas das pessoas, muitas vezes furtivamente. Podem incluir grande parte da linhagem ou, mais frequentemente, apenas um ancião sentado com os diretamente envolvidos numa questão, para tratar de temas como ataques de espíritos, casamentos, ou outros. Em muitos casos, os kuútu servem simplesmente para anunciar uma decisão que já foi tomada. Em outros, comunicam uma proposta a ser debatida alhures. Kuútu podem servir apenas para agradecer uma pessoa ou grupo por algo que fizeram. Ou para advertir a alguém que deve mudar sua postura diante de algo. Em grande parte dos kuútu, duas ou mais pessoas (ou duas ou mais linhagens, dois ou mais matrissegmentos, dois ou mais clãs) tratam de alguma disputa ou desentendimento, sempre acompanhados de intermediários considerados neutros (como um kabiténi que não esteja diretamente envolvido). Digamos que um clã esteja explorando madeira no território que outro clama ser seu; ou que um homem exija de outro uma multa por ter “tomado” sua mulher; ou que duas pessoas de matrissegmentos diferentes de uma matrilinhagem queiram cortar uma roça num mesmo local. Nesses casos, o kuútu é conclamado para tentar arbitrar a questão, com a presença de alguém com autoridade suficiente para dar a última palavra, dependendo da escala o gaamá, um hédi kabiténi, o kabiténi ou um ancião. Pessoas diretamente envolvidas nas questões possuem o direito, e mesmo o dever, de participar presencialmente nos kuútu – ou ao menos mandar um representante, que ocupe a posição genealógica adequada (cf. Köbben 1969a). No limite, qualquer encontro pode se tornar um kuútu, se o assunto e a situação demandarem. O kuútu é, antes de tudo, um modo de fala. Mais de uma vez acompanhei conversas informais e descontraídas em ambientes públicos que chegaram a temas sérios e subitamente se organizaram como pequenas assembleias. As pessoas passaram a tomar turnos para falar, e um terceiro (não necessariamente basiá) a fazer o papel de respondente (píkima),

95 pontuando as frases com expressões padronizadas. A mudança dá imediatamente a uma discussão comum um tom mais solene, de deferência com o tópico tratado e com as intervenções de cada falante. Sendo um modo de fala, os kuútu são menos que uma assembleia e mais que uma conversa. Não são exatamente como as instâncias decisórias “democráticas” ocidentais, deliberativas. Antes, tratam-se de momentos nos quais as polêmicas e os principais argumentos utilizados nelas são trazidos a público e expostos, pesados, mas não necessariamente sentenciados. Pode-se, ao fim de um kuútu (ou de vários) ser apresentada uma decisão a cerca do ponto em questão, mas tal juízo não emerge dos debates oficiais em si, ele vem antes do parcial consenso desenvolvido fora deles, muitas vezes não apresentado literalmente nas assembleias. Após um ponto ser apresentado em uma reunião anterior, ou se fazer claro para todos sem a necessidade disso, as ideias rapidamente circulam pela aldeia. Em diálogos entre mulheres na beira do rio, kuútu familiares nas casas, conversas em torno de um jogo de damas ou de uma garrafa de cerveja, fofocas sussurradas durante o trabalho. Nesses ambientes, pode-se falar livremente coisas que não seriam de bom tom ser colocadas num espaço formal. Após algum tempo, fica claro qual o caminho a tomar, basta oficializar num kuútu a decisão tomada coletivamente, mesmo sem voto ou debate direto. Uma reunião geral da aldeia (lánti kuútu) é na realidade uma sinédoque das discussões que atravessam a aldeia durante um determinado período de tempo. Marrenga & Paulus (2011: 50) chamam tal processo de “democracia aldeã” (village democracy). Lembremos da morte de Wénu na noite de 31 de dezembro: um problema de difícil solução apareceu; pessoas posicionaram-se com palavras ou atitudes (trabalhando, festejando, argumentando, reclamando) ao longo de dois dias; quando chegou a hora do kuútu oficial, depois do enterro, conversas e acontecimentos pela aldeia demonstravam que a decisão já havia sido tomada. Naquele kuútu não apresentaram prós e contras ou pesaram argumentos: isso já havia sido feito, restava apenas um ancião tornar pública e oficial a resolução. É uma frase comum de homens de Botopási dizer que “a casa de reuniões das mulheres é o rio”. As mulheres têm pouco espaço de fala nos lánti kuútu, mas, no rio, enquanto lavam roupas e louças, falam entre si. Em discussões domésticas falam com suas famílias. Assim, tomam posições sobre os assuntos, e demonstram ter considerável influência política. Não se trata de dizer que não há disparidade de gênero, mas de entender que a voz das mulheres não é completamente silenciada. Pelo contrário, muitas delas são portadoras de autoridade extraoficial, de um prestígio que pode se igualar ao dos anciões. Cabe lembrar a

96 recomendação de Strathern (2006 [1989]: 127ss) de que não devemos entender a política somente em suas formas públicas, pois a domesticidade também tem seu caráter político. Em saamaka o poder político das mulheres é certamente menos visível do que o dos homens, por escapar, na maioria dos casos, das instâncias oficias de poder (grandes kuútu e cargos de kabiténi). Mas é no rio, nas soleiras das casas, nas sombras das árvores que as coisas são realmente discutidas e decididas. A autoridade visível, marcada formalmente, nem sempre é a que faz os consensos serem alcançados. Nos kuútu as hierarquias são marcadas, sempre alguém têm função de autoridade, o que se demonstra pelo espaço onde sentam oficiais e anciões e pela maior voz dada aos mesmos. Mas, ainda que os kabiténi comuniquem um problema ou sua solução, para cima ou para baixo, para a população da aldeia ou para o gaamá, não foram necessariamente eles que o levantaram ou o resolveram. Cabe sublinhar, ainda, que nem sempre a decisão a que se chega é acatada por todos os envolvidos. O poder dos líderes reside na retórica. Os saamaka dizem que não se sabe se um político pode ser confiado até ouvi-lo falar num kuútu. Quando um kabiténi tem influência sobre as decisões de uma aldeia que não a sua, dizem que ele “pode falar lá” (“a sa táki deo”). Um bom kabiténi é aquele capaz de apresentar soluções numa fala elegante e firme, trazendo ordem e afastando conflitos. Os capitães não mandam, apesar de sua autoridade moral e oficial, sua palavra não é ordem definitiva. No final das contas, o papel do kabiténi – como o dos demais oficiais – é sobretudo o de intercessor, mediador, comunicador.78 Sua importância e seu poder está nas conexões que estabelece, no fato de ser procurado, consultado e informado sobre quase tudo de importante que ocorre pela aldeia. Aí reside também o perigo que acompanha os cargos, e daí a recusa de tantos homens em ocuparam a posição: mais relações implicam mais demandas, mais responsabilidade e, logo, mais risco de entrar em desacordo ou desagrado com pessoas que podem vir a prejudicá-los por meio de feitiços, maldições verbais, desejos nocivos. Os anciões possuem autoridade mais firme diante de suas linhagens, são os “cabeças” dos grupos de parentesco, por terem

78 Parris (2011: 36) afirma algo semelhante sobre o papel do gaamá entre os ndyuka. Segundo o autor, o ideal é que o gaamá seja um árbitro último, harmonizando os pontos de vista, levando em conta a herança ancestral. E que o debate nas reuniões gerais (gaán kuútu) ocorra “em uma só voz”, i.e., sem grandes conflitos. Os debates de fato devem ter já ocorrido antes em escalas menores. Sobre a importância da retórica para os gaamá e kabiténi ndyuka do Tapanahoni cf. ibid.: 33-34. Köbben diz que, no Cottica, com a distância do gaamá, que habita o distante rio Tapanahoni, o cargo de capitão tem maior importância nas aldeias do outro rio. Assistido por anciões notáveis, o capitão é envolvido com quase tudo, incluindo assuntos que pareceriam para nós ser da esfera privada, de roubos a assuntos conjugais. Tendo pouco poder físico, sua influência deve-se em grande parte à sua personalidade (1969a: 237, 1969b: 139).

97 experiência e conhecimento acumulados. Mas nem mesmo eles possuem poder de mando sobre os demais, muitos jovens não obedecem. São antes de tudo conselheiros, guias. A “democracia aldeã” opera combinando o respeito à autoridade dos líderes e anciões e a liberdade como valor último. Herskovits & Herskovits (1971 [1934]) sugeriram que a política em saamaka conjuga valores de autoridade legados da África com a ética da liberdade de um povo que resistiu de forma particularmente vigorosa à experiência da escravidão. Mesmo sendo os velhos e chefes quem dão as palavras finais, a gerontocracia de maneira alguma é definitiva – está nas mãos de cada um seguir ou não o que foi decidido, posto que não há instância de julgamento que leve a cabo qualquer punição, além do opróbrio, aos infratores. Aqui, a retórica é a principal forma de exercer e concentrar poder político e a violência física é um recurso punitivo utilizado apenas raramente. Mesmo quando se faz uso de “violência legítima”, quem o faz não é um corpus designado pelas autoridades, mas os envolvidos num caso específico (de estupro ou adultério, por exemplo). Ninguém tem poder de dar ordens.

Mudanças e debates Quando regras têm de ser discutidas ou reelaboradas, nos kuútu ou fora deles, o principal fator a ser levado em conta, aquele do qual partem, é o costume. Num dos kuútu funerários que participei, ouvi, como argumento, a frase “aqui andamos atrás dos velhos” (“a gaán sëmbë báka u ta wáka akí”), ou seja, fazemos as coisas à maneira dos anciões, dos antigos, dos antepassados. Não que a sociedade saamaka não permita mudanças – muito pelo contrário, sua história dá motivos para acreditar que estiveram sempre em mutação. E o desenvolvimento é um tema premente. Porém, ao anunciar uma ação publicamente – a escolha da data de um ritual, por exemplo – o mais comum é afirmar que a farão “da maneira que estamos acostumados” (“kuma fá u guwénti”). Já ouvi a expressão guwénti fási usada para traduzir ao etnógrafo o conceito de cultura.79 Dentre os possíveis caminhos a serem tomados, 79 Falta ao saamaka uma palavra que traduza literalmente “cultura”, no sentido antropológico (com ou sem aspas). Valem-se do holandês cultuur ou do sranan kulturu, porém estas palavras são usadas num sentido mais restrito, apontando para manifestações visíveis (aquilo que alguns chamam de folclore) e/ou práticas mágico-religiosas ligadas a etnias específicas (como o óbia). Falarei um pouco mais sobre o uso da expressão kulturu no capítulo 6. “Fá” ou “fási”, sinônimos, podem significar também “maneiras”, no sentido de “educação”, “polidez”, mas no sentido que aponto aqui, referem por exemplo à diferença entre saamáka fási e fóto fási (“maneira [de fazer as coisas] saamaka” e “maneira [de fazer as coisas] da cidade”). Guwénti fási “maneira com que se está acostumado” é menos usado, mas está implícito quando se fala da fási de um povo. Quando eu perguntava o porque de uma determinada regra ou prática, respostas comuns eram: “é assim que nós fazemos”, “é a maneira de saamaka” ou “é um costume nosso”. Talvez irresponsavelmente, variarei ao longo da tese entre os termos “tradição”, “costumes” e “modo de vida” para traduzir tais ideias.

98 segue-se o do costume. Como vimos no caso da morte de Soola: não enterram nativos de Botopási, daquela matrilinhagem, na cidade. É assim “a maneira com a qual estão acostumados”, logo, a princípio, assim devem fazer. Ou no caso da morte de Wénu: sempre se comemorou o ano novo com fogos, dança e bebidas, é “a maneira com a qual estão acostumados”, logo, assim devem fazê-lo. Para muitos problemas há diversos caminhos possíveis, há espaço para a criatividade e a discussão. Detalhes são quase sempre tratados com muita atenção e sobre eles discutem longamente durante um trabalho, mesmo que não haja apenas um modo correto de fazê-lo ou que as diferenças pareçam a olhos externos quase insignificantes. Ao cavar uma sepultura há preciosismo impressionante: quanto a cova ficará distante das outras sepulturas, qual será sua profundidade, se será expandida mais 5cm para um lado, etc. O mesmo vale para o número de tecidos que envolverá o cadáver após sua lavagem: contam inúmeras vezes para precisar se já foram usados 20 ou 22 panos, mas decidem na hora, discutindo avidamente se são necessários mais quatro ou cinco. O gosto pela retórica e pelo saber esotérico certamente influencia o minuciosismo. O fato de que tais discussões são mais frequentes e mais acaloradas quando o assunto é a morte leva-me a pensar que o primor é chave nesses momentos. Pois os mortos são perigosos e portanto tudo deve ser feito da maneira mais segura possível. E a maneira mais segura possível é aquela já testada e comprovada no passado. Debatentes podem trazer exemplos de outras aldeias (cristãs ou não, do clã Dómbi ou não), mas o argumento mais forte é como se faz aqui, como se fazia aqui, como já se fez aqui – nessa ordem.80 Perguntam-se: como foi feito da última vez que algo assim aconteceu? E em outras situações? Qual fora o desenlace então? Há histórias do tempo dos antepassados que atestam que tal curso de ação já foi tomado? Se sim, quem conhece a história de maneira mais completa e de quem a ouviu? Ela ainda é pertinente para os dias de hoje? A análise do passado permite a tentativa de antecipação do futuro. Em certa medida, a ideia é seguir os passos dos ancestrais – “aqueles que andaram na frente” (de sëmbë di wáka a fési) – mas apenas se ainda fazem sentido no presente. Quando um costume muda, quando torna-se a nova maneira de fazer as coisas de um grupo, torna-se mais relevante do que os costumes dos antigos para as decisões. Porém, o passado pode ser recuperado em situações em que costumes atuais mostram-se problemáticos.

80 Herskovits & Herskovits (1971 [1934]: 191) já notam em sua etnografia o uso de argumentos do tipo “em nossa aldeia nós fazemos assim” – inclusive em costumes relacionados a rituais funerários. Notam também vários casos de desconhecimento, por parte de pessoas de uma aldeia, das divindades de outras.

99 No caso da morte de Soola, vimos que “todo habitante de Botopási deve ser enterrado no cemitério da aldeia” é um enunciado do qual podem partir. Quase uma lei. Mas se a pessoa saiu de lá muito cedo e não manteve laços fortes, pode não ser bem assim. Se foi uma “morte feia”, pode não ser bem assim. Se as pessoas não têm dinheiro e tempo, seria esse um bom argumento para enterrar pela cidade mesmo? Se a morte ocorreu na Holanda, talvez sim, em Paramaribo, menos. O critério da precedência, baseado no argumento do costume, no modo de fazer as coisas dos antigos, entra aí. Quando há um impasse, recorrem a outras situações – como se fez quando fulano e sicrano morreu, o que foi decidido nas assembleias recentes, como se fazem as coisas em aldeias vizinhas, como decidiria tal ou tal grande figura do passado. Quando há risco a discussão é mais vigorosa, mas quando o perigo é de ordem espiritual, tende a ser mais discreta, pois falar demais sobre um espírito pode atiçá-lo. O problema que a morte de Soola evidencia é o da mudança nos rituais funerários, particularmente aquelas impulsionadas por novas condições socioeconômicas nas quais estão inseridos os saamaka. As relações com o mundo urbano da costa são sempre mutantes, e acabam exigindo mudanças no modo de vida maroon, por esse ser profundamente ligado ao território tradicional desta população.81 Não é a primeira vez que as regras dos rituais funerários mudam ou ameaçam mudar em Botopási. As transformações nos costumes não se dão apenas entre uma aldeia e outra, são também atravessadas pela história. Meus informantes que já passaram de seus 40 anos acompanharam em suas vidas mudanças significativas no ciclo funerário. Na semana que se seguia ao enterro, na porta da casa do morto, costumava-se, em momentos diferentes, tocar tambores, dançar bandáamba, fazer libações aos antepassados (túwë daán) e contar mitos (kóntu). Quatro práticas, ainda comuns em aldeias não cristãs, foram sendo abandonadas, seja porque as pessoas simplesmente já não sabem mais fazê-lo – como parece ser a explicação para a ausência dos mitos – ou por decisões tomadas por líderes e pela população. Um amigo afirmou que foram dois importantes líderes de Botopási do século passado, kabiténi Logopai e basiá Bakaa, que em algum momento as proibiram, chamando-as de idolatria, por influência da igreja. Teriam trazido tais ideias iconoclásticas de Tutúbuka, aldeia também moraviana. Outra coisa que faziam e não fazem mais é levar os mortos de outras aldeias que passavam por Botopási (e são muitos, pois ali fica uma das únicas pistas de pouso do Alto Suriname) ao 81 No passado fora uma regra não trazer cadáveres da cidade para as aldeias, mas essa regra parece ter sido abolida por mudanças impulsionadas pelo “progresso”: a construção da hidrelétrica. A nova situação, quando da morte de Soola, aparece por novas mudanças: o maior acesso aos serviços médicos da costa possibilitados pelo asfaltamento da estrada, pelo crescente número de barcos motorizados e pela maior frequência de voos entre Botopási e Paramaribo, que encurtaram radicalmente a distância entre o território saamaka e a cidade.

100 galpão de reuniões da aldeia, a fim de rezar, pedindo a eles que não destruíssem a aldeia. Em algum momento deixaram de fazê-lo. Certamente, nenhuma dessas decisões foi tomada autoritariamente por Bakáa, Logopai ou qualquer outro. Quando meu interlocutor diz que foram eles que “proibiram” danças e tambores, seu discurso encapsula na figura de alguns líderes importantes, decisões (consensuais ou não) às quais a aldeia chegou. Dizer que um basiá e um kabiténi decidiram que certas práticas não são próprias para funerais cristãos significa dizer que lánti decidiu por novas regras. Mas, vimos, lánti significa tanto a população da aldeia quando seus líderes, nela englobados, que se distinguem mas, simultaneamente, fazem parte do povo. Nesse discurso sobre mudanças temporais, ocorrem dois níveis de englobamento-encapsulamento: líderes importantes encapsulam o conjunto de pessoas que forma o conselho da aldeia, pelo qual são englobados; e o conselho da aldeia (lánti) encapsula, em suas decisões, os debates ocorridos então na aldeia, a população em geral (gaán lánti) que o engloba. O processo tem o efeito de eclipsar as figuras, argumentos e pessoas em posições mais baixas na hierarquia, mas não as apagam por completo: uma exposição mais alongada da mudança, dada por alguém que acompanhou de perto os acontecimentos, certamente apontaria para toda uma história complexa de múltiplas posições e alianças que levaram as novas regras a serem implementadas (como os casos etnográficos apresentados acima atestam).82 Muitas mudanças passam por problemas econômicos, tempo e dinheiro, levantando o tema do desenvolvimento (ontwikkeling). Há anseios por progresso em Botopási, há uma vontade de ascender socioeconomicamente. As pessoas querem empregos, querem escolaridade, querem luz elétrica, água encanada, celulares, carros e tudo mais. Por outro lado, há uma sensação de que a chegada de muitas dessas coisas entra em choque com a tradição local, com “a maneira como estão acostumados a fazer as coisas”. Por exemplo: um afogamento fatal no rio significa que não se pode usar a sua água nem ir até a margem enquanto o rio não for tratado com óbia, mas atualmente, com turistas chegando de barco, doentes tendo que ser levados ao médico e um enorme trânsito no rio, muitos não seguem tal regra à risca. Em muitos casos, o desenvolvimento e os costumes saamaka são tratados como um par de opostos. Os saamaka que conheci com enorme frequência se colocam o problema da dicotomia entre desenvolvimento e tradição, querem abraçar inovações da vida moderna mas temem que venham minar aspectos de seu modo de vida que não querem abandonar. 82 Processo similar ocorre nos discursos sobre o passado mais distante, quando as ações de grupos são encapsuladas em seus protagonistas, grandes heróis do passado (cf. R. Price 2002 [1983]).

101 Quando as regras são alteradas por motivos religiosos, como o fim de danças, tambores e mitos nos funerais, em última instância podemos ver um fundo moral/espiritual por trás da revisão. Tudo leva a supor que os hinos cristãos, enquanto forma de comunicação com o sobrenatural (Deus e Jesus, mas também o morto), substituem o espaço da linguagem de tambor papá (que fala com os mortos), assim como as narrativas bíblicas ganham importância à medida que os mitos se tornam menos presentes. Porém, religião e progresso não estão desconectados. A igreja é vista como uma fonte e um efeito do desenvolvimento, do contato com os brancos, os conflitos e adaptações que ela gera encaixam-se nessa lógica. Pelo fato da igreja ter suas próprias regras (weoti), que dizem respeito a atividades cruciais – para quem e como rezar, como se curar de uma doença, como enterrar um morto – são conflitos e adaptações fundamentais. Apesar de desejado, o desenvolvimento, para a maioria dos saamaka fora das aldeias, redunda na marginalização e na proletarização. Nas áreas urbanas da Guiana Francesa, da Holanda e do Suriname, a maioria dos maroons são subempregados ou ocupados com trabalhos servis mal remunerados; muitos jovens envolvem-se com atividades ilegais. Os maroons são, é claro, conscientes desse problema. R. Price, falando sobre a forma como encaram tal realidade, apresenta um traço crucial da ideologia saamaka sobre dominação e desigualdade: “um aspecto relacionado dessa luta para manter a dignidade envolve a insistência saamaka em sua própria definição da situação de trabalho. Em termos saamaka, um homem consegue manter sua dignidade mesmo fazendo trabalho degradante e servil, desde que nunca aceita a definição do Outro da situação” (R. Price 2011: 49, grifos no original). Mais a frente, continua: “[…] a única maneira de triunfar é questionar a própria natureza do sistema, não aceitar a definição do chefe da situação de trabalho, seja escravidão ou trabalho assalariado servil” (ibid.: 53). Eis uma chave para pensar simetricamente as mudanças no universo saamaka, pensar sobre como incorporam elementos externos nos seus próprios termos. Ademais, a ideia pode ajudar a pensar como os saamaka encaram a autoridade, o poder, o comando, também em questões internas às aldeias e ao rio. O universo saamaka parece fortemente moral. Um universo de “dever ser”, “dever agir”; onde a agência humana é vista como uma das principais fontes dos problemas do mundo; onde ações possuem efeitos a longuíssimo prazo; e por isso são necessárias tantas regras para o bem viver. Porém, isso não bloqueia possibilidades criativas no presente. Quando apresento a grande quantidade de regras que permeiam todos os aspectos da vida saamaka, talvez surja a falsa impressão de uma opressão generalizada, de um enorme peso da

102 regulação na vida das pessoas, que teriam de se preocupar a todo momento com todos os pormenores de toda sua conduta. Ainda que a atenção aos detalhes salte aos olhos em vários momentos, as coisas não são bem assim. As regras são muitas, mas não são dogmáticas, não são códigos, são antes modelos mais ou menos frouxos de conduta – cada escolha particular sobre como segui-las é antes de tudo um cálculo de risco. A liberdade é princípio fundamental para todas as pessoas. Afinal, como afirmava Foucault (1984: 28) “para ser dita 'moral' uma ação não deve se reduzir a um ato ou uma série de atos conformes uma regra, valor ou lei”. A forma de relacionar-se com essas regras pode ser mais importantes do que seu conteúdo, e é o que me interessa principalmente aqui. Poder-se-ia também argumentar que as coisas são assim em qualquer lugar: regras socioculturais estão sujeitas a múltiplas interpretações e permitem flexibilização em qualquer sociedade ou cultura. O que é particular (e não necessariamente exclusivo) ao conceito saamaka de weoti é a maneira como as regras, profusas, são reelaboradas constantemente a partir do exercício da discussão, nos kuútu e fora deles. Além do modo com que fazem recurso ao passado e à autoridade ao produzir seus costumes. Richard e Sally Price (1991: 194), descrevendo rituais funerários em Dangogo, notam em vários momentos discussões animadas, por exemplo sobre quantas libações devem ser feitas em nome dos ancestrais. Alguns presentes citavam exemplos de procedimentos que viram em outras aldeias. Os autores afirmam: “Lavar o morto, como outras partes dos ritos funerários, persiste como uma ocasião privilegiada para acaloradas – e muito apreciadas – disputas sobre detalhes rituais; 'Não há funerais sem discussão', confirma o provérbio” (ibid.: 44). Explicitando de maneira jocosa a multiplicação de regras dos funerais, durante a semana que passam em frente a casa de um morto, os homens jogam um jogo de retórica, conhecido como politíki83, no qual tentam observar weoti que teriam sido quebradas por outros: não veio à tenda ontem, está vestido de maneira imprópria, trabalhou fazendo barulho por perto dali. O objetivo é achar faltas alheias para cobrar deles multas em cerveja, aguardente e refrigerante para serem consumidos sob a tenda. Em tais horas, recorrem a regras obscuras ou praticamente irrelevantes. “Não há enterros sem discussões”, mas há discussões fora de enterros. Construir uma casa, trabalhar na roça, lavar roupas no rio, portar-se frente a sogros, nadar no rio, jogar damas... Em todas essas situações é plausível debates surgirem sobre a maneira certa de 83 A palavra politíki significa de maneira mais geral a ardileza, sobretudo na fala. Apropriadamente, politíki pode servir também para traduzir “política” no sentido mais estrito da política representativa-estatalpartidária. No caso desas brincadeiras, fala-se que se está jogando (pëeo) politíki.

103 proceder. No limite, todas as pessoas “colocam regras” (butá weoti) para todas as outras, quase o tempo todo. No fim das contas, ninguém manda em ninguém. Há autoridade, mas não comando incontestável. Há regras, muitas, mas são muito flexíveis, pouco dogmáticas e pouco punidas. Pois cada um sustenta a sua definição da situação, baseado em precedentes, em experiência, em ensinamentos. Todos são livres. A compreensão saamaka do que são regras escapa a uma noção jurídica (presente na teoria do contrato social e na antropologia estrutural-funcionalista), da visão de normas e leis como existindo por si mesmas, dadas, servindo de base da existência em sociedade. Para Wagner (1972), normas e regras derivam seu efeito social de outros sentidos na cultura, são as ações sociais que criam, modificam, burlam ou seguem comportamentos mais ou menos estandardizados que podem eliciar, em sua repetição, as regras. Umas são mais seguidas que as outras, umas são mais consensuais que as outras. Apenas quando há Estado pode parecer haver uma falsa impressão de uniformidade das leis. A cadeia de cargos oficiais saamaka, apesar não ser acéfala, e apesar de ser legitimada pelo Estado surinamês, não segue o modelo estatal da política. Weoti não são “leis”: as prescrições não são escritas, impostas e a insubmissão a elas é apenas raramente sujeita à pena de sanções. Nem “normas”, pois não se tratam de padrões representativos, de comportamentos normais ou normatizados. Weoti são “regras” no sentido de princípios, preceitos, recomendações, vindas de todos os lados – ainda que mais frequentemente do passado. Ajudam a organizar a socialidade, a vida em comum, a definir que tipo de ato que deve ser tomado por uma “pessoa moral”, mas a ideia de cada um do que é uma “pessoa moral” também varia. Cada um faz as coisas “da sua própria maneira”, em sua individualidade controlando a tradição e as ideias compartilhadas (ibid. 1972: 608). Se todos têm sua ideia própria acerca das regras, sobre como fazer as coisas, mesmo muitas delas sendo comuns, é impossível pensar em uniformidade ou soberania. Nesse sentido, tal sistema jurídico se aproxima mais da common law britânica do que do direito romano e germânico continental. Mas essa oposição não nos leva longe.84 Deleuze (1992 [1986]: 125ss) fala sobre a diferença entre regras coercitivas e facultativas. As primeiras julgam ações como certas ou erradas a partir de valores morais 84 Köbben debruça-se sobre as regras ndyuka, buscando compreender se ela encaixa em diferentes definições de lei. Problematiza o fato de que nem sempre a “lei” ndyuka envolve sanções e que mesmo uma reprimenda pública nem sempre é efetiva. Sobre a autoridade dos kabiténi, sua descrição vai ao encontro da minha: “Se um líder é obedecido, é por causa de seu prestígio pessoal. Muitos líderes, entretanto, não têm prestígio suficiente. Sua impotência é em alguma medida acobertada pelo fato de que numa assembleia o líder costumeiramente fala em tom de comando e apessoa a quem se dirige sempre promete humildemente fazer o que lhe é dito. Mas isso não é mais que aparência exterior, ou precisa ser mais que isso” (1969b: 139).

104 transcendentes. As segundas avaliam o que as pessoas fazem e dizem a partir dos modos de existência que eliciam. Minha afirmação de que o universo saamaka é fortemente moral precisa ser refraseada. Melhor dizer que a socialidade saamaka é fortemente ética, ancorada num princípio de liberdade frente a regras (facultativas) que servem antes de tudo como guias para construir estilos de vida que permitam a convivência com diversos tipos de pessoas (humanas e não humanas, vivas e mortas). Há um motivo pelo qual as weoti saamaka não devem ser aproximadas demais da common law: a maneira como se faz recurso ao passado aqui é particular. Como vimos, os portadores de cargos oficiais carregam cetros nos quais estão contidas as almas dos antepassados que ocuparam aqueles cargos anteriormente. Ao mesmo tempo em que “representam” os vivos, os líderes saamaka “corporificam” os mortos, numa relação simultaneamente metafórica e metonímica nas duas direções. Por isso, dizem que kabiténi devem, via de regra, defenderem as tradições, quando se opõem, num dilema, ao progresso. Suas decisões não apenas contemplam os vivos, devem também agradar aos mortos. Quando recorrem a precedentes, a “jurisprudência” não remete tanto a instâncias anteriores e superiores, mas a pessoas (falecidas) e acontecimentos (passados) que seguem afetando diretamente o presente. O que engloba tanto o passado remoto (os relatos das fugas das plantations, das guerras contra a colônia, os estabelecimentos das aldeias, etc.) quanto o recente (as decisões de grandes líderes do séc. XX, por exemplo). A autoridade saamaka, transmitida pelas linhagens, definida por histórias orais de fésiten (o passado ancestral) e por eventos mais frescos nas memórias, é uma das concretizações dos passados no presente. Mas uma concretização mutante, em constante transformação. Pois a tradição, mesmo quando levada ferrenhamente a sério, como é em saamaka, é incapaz de – e resistente a – englobar todas as virtualidades da ação. Comparar, compor com, adicionar, repensar: é assim que se monta a maneira de fazer as coisas com a qual estão acostumados. Avaliações e reavaliações são contínuas, pois há necessidade constante de acomodar práticas. Quando observamos as variações das regras funerárias permitidas pela autonomia das aldeias, notamos como isso ocorre sincronicamente. Várias formas distribuídas no espaço de velar e enterrar um corpo podem ser consideradas legitimamente saamaka. Pensar as aldeias como transformações (sem original) umas das outras nos permite entender quais múltiplas possibilidades compõem o fazer saamaka. É claro que tanto as transformações históricas quanto as espaciais remetem a referentes, um passado ancestral modelar, fundador. Cada aldeia é diferente das outras em grande parte porque tem histórias e referenciais específicos.

105 Mas a fim e a cabo, a mudança é um componente esperado dentro do sistema, sabem que já não vivem mais na época do tratado de paz, que os antepassados, ainda que presentes, não estão vivos. Assim, as transformações que ocorrem na diacronia, alterações nos costumes através do tempo, não são consideradas descaracterizações no modo de vida. São novas formas possíveis, num caminho que continua sendo trilhado, no mato, na aldeia e na cidade, com um olho nos antepassados e outro nos descendentes. Em certo sentido, elementos como discussões sobre regras, acusações de que se está fazendo algo de maneira incorreta e multas por falhas alheias não são cacoetes, traços de uma “personalidade cultural” difundida no Alto Suriname. A própria noção saamaka de “regras” (weoti) implica a possibilidade das mesmas serem constantemente debatidas e repensadas. A constante (re-)construção dos modos legítimos de agência é tão relevante para as cerimônias funerárias quanto os gestos rituais propriamente ditos. Parece ser o substrato que é retido mesmo com as mudanças das tradições pela aquisição do cristianismo e pelo desenvolvimento. A maneira de relacionar-se com os outros, com pessoas, linhagens, autoridades, amigos, espíritos. Um elemento básico da socialidade e da historicidade saamaka, de como constroem seu mundo.

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Capítulo 2: Variações sobre os mortos A morte é cercada por todo um protocolo, em Botopási e nas demais aldeias saamaka. Tudo segue ordens determinadas, desde o acompanhamento da doença e da agonia dos moribundos; passando pelo anúncio da morte, a lavagem do corpo e demais preparações para o enterro; o velório, a festa que o acompanha; a inumação propriamente dita; a semana que se passa em frente à casa do morto e a vigília que a encerra; até a cerimônia de fechamento do ciclo fúnebre, seis semanas depois, incluindo neste ínterim vários kuútu e rituais menores. A apresentação, acima, de transformações no tempo e no espaço das regras dos ciclos funerários deve ter deixado claro que, apesar da normatividade dos procedimentos, há espaço para criatividade, para debates sobre a maneira mais adequada de fazer as coisas, e para variações internas ou externas à aldeia. O debate é frequente e esperado, é parte do que move e caracteriza os procedimentos. Para compreender os rituais é preciso dar atenção ao que está acontecendo, com vivos e com mortos, a cada etapa do ciclo funerário. Uma questão que atravessa todas elas é o destino da alma, sua separação do cadáver, do corpo do viúvo, seu afastamento do território da aldeia e do mundo dos vivos em direção à “terra dos mortos” (deodëkoondë). O caminho do morto, porém, não é simples ou inequívoco, não é possível marcar sem ambiguidade a condição e a localização do fantasma em momento algum. Vamos agora mergulhar nas ideias que circulam em Botopási acerca de mortos para, nos capítulos seguintes, dar sentido à exposição das práticas mortuárias.

Um debate sobre o conceito de alma Em março de 2013, logo que retornei a Botopási, sentei em um bar com homens jovens da aldeia a contar novidades do Brasil e ouvir as do Suriname. A conversa estendeu-se por horas, passando por temas como a gerontocracia, trabalhos coletivos, o dinheiro que o conselho da aldeia tinha em caixa, o território do clã Dómbi, a exploração de ouro em terras saamaka e o papa Francisco, então eleito há cinco dias. A certa altura, Eli, um dos presentes, levanta as questões: quantos jejé (espíritos) uma pessoa tem? Qual a diferença entre ziel e geest (“alma” e “espírito”)? Iko, a quem as perguntas foram primeiramente dirigidas, levanta-se e fala em seu modo tipicamente extrovertido e eloquentemente cristão, discursa usando argumentos e

108 citações bíblicas. Ele havia acabado de deixar a igreja pentecostal de Futunaákaba, à qual frequentou assiduamente por anos. Afirmou que geest (espírito) equivale a jejé, enquanto ziel (alma) é a akáa, que seria relacionada com o sangue. “Sangue se movimenta” (“Buúu tá wáka”), dizia, é essencial para a vida humana. Sem alma, gente não é gente, assim como gente não é gente sem sangue. O sangue é o que dá unidade (eenheid) ao corpo, é o que o faz a pessoa permanecer viva. A tradução dos dois termos pareceu ponto pacífico, a questão do sangue gerou polêmica. Outro presente argumentou que a alma teria mais a ver com véntu (lit. “vento”, neste contexto, o sobrenatural), por ser invisível. Disse: “alma trabalha com o sobrenatural, com o pensamento, com os sentimentos e sensações” (“akáa tá woóko ku véntu, a tá woóko ku meoni, a tá woóko ku fíi ”). Alguém argumntou que o corpo apodrece, que o sangue se acaba, enquanto a alma é imortal. A alma pode inclusive deixar o corpo, apenas não pode ficar fora dele por mais que 24 horas para que a pessoa não pereça. É este, frisaram, o princípio do temido feitiço saamaka chamado kái akáa, que chama a alma para fora do corpo, contra o qual é preciso se proteger usando óbia. Neste momento, Iko lembrou o quanto esse tipo de assunto é complexo. Disse que são coisas que temos de pesquisar em livros como a Bíblia dos brancos (bakáa) e o Torá dos judeus (djú). A sabedoria desses povos está escrita, enquanto a dos saamaka está na cabeça, lembrou. Não que seja pouca: veja os homens que tocam papá85, quantas coisas eles guardam na memória, é impressionante, ponderou. Eli concordou: perguntara aquilo para Iko justamente por saber que ele pesquisa os assuntos “ao nível de teologia”. Porém, Eli, dias depois, veio me dizer em particular que aquilo sobre sangue estava errado. Ele, que havia trabalhado anos como enfermeiro, voltou a alguns livros médicos que tinha em casa e lembrou que o sangue é formado de hemoglobina, ferro, plasma e outros componentes, nada tem a ver com o espírito, este relacionado com a psiquê (psyche) que, diferente do corpo, não apodrece depois da morte. Porém, a discussão não ficara neste ponto. Alguém conjecturou que deve haver dois tipos de espíritos, pois as pessoas fazem coisas ruins e coisas boas. Afinal de contas, dizem em saamaka que, quando alguém faz alguma coisa boa, “um bom espírito está nele” (“wán búmbúu jejé deo nëeëno ”) e, quando faz algo ruim, “um espírito ruim veio nele” (“wán hógi jejé kó nëeëno ”). Esta ideia, de que há espíritos ruins e bons pareceu bem aceita. Quando vi que a conversa desviava para outro assunto, resolvi não perder o ensejo e acrescentar alguns elementos à discussão: qual a relação entre o espírito e a sombra, posto que 85 Toque de tambor que constitui uma linguagem para conversa com mortos.

109 a palavra para as duas coisas é a mesma (jejé)? A questão não rendeu, meus interlocutores aparentemente consideravam ser apenas homônimos. Perguntei também, para além de akáa e jejé, qual a diferença entre essas duas coisas e joóka. A resposta foi direta: joóka é de morto, para todos isso era óbvio. Akáa e joóka são dois tipos de jejé, um vivo, outro morto. Quando a pessoa morre, sua akáa se torna joóka. A tradução de joóka, concluí, é fantasma. *** Um debate rico em elementos para pensar as concepções saamaka. Mesmo o argumento do sangue, que não foi acatado por todos, ilumina alguns aspectos das noções que circulam acerca da alma. Sendo ou não relacionado com akáa, o sangue, assim como a alma, tem movimento. Ambos preenchem o corpo, tendo proximidades com os órgãos, os membros, o ventre e a cabeça, colocando a pessoa em movimento e, assim, dando-lhe vida. Possuem ambos fluidez, sendo capazes de deixar o corpo físico, com a diferença de que a alma pode ausentar-se completamente por um período, enquanto uma pessoa completamente sem sangue não sobrevive por nenhum instante. O sangue, porém, aproxima-se mais do corpóreo do que do espiritual por ser visível e por ter uma duração finita, por apodrecer. Finitude e perecibilidade são marcas do corpo. No extremo oposto estão aquelas coisas que “trabalham ou agem com o vento” (“woóko ku véntu”), o que significa dizer que sua ação é invisível, poderosa e perigosa – como o ar em velocidade. Tudo que trabalha com véntu é sobrenatural, localizado em uma esfera além do domínio e da compreensão completa dos humanos. O véntu atravessa as pessoas, penetra seus corpos ininterruptamente, quer percebam ou não, quer escolham ou não. Neste sentido, a categoria véntu engloba todas as divindades (gádu), incluindo o Deus criador (Mása Gádu), e também feitiços (wísi), magias (óbia) e todos os espíritos (jejé), incluindo fantasmas (joóka) e espíritos vingativos (kúnu). Como exposto no debate, também são próximos ao véntu a psiquê, os pensamentos, os sentimentos e as sensações. Quando duas pessoas não se dão bem sem motivo concreto, por exemplo, diz-se que “as akáa deles não se gostam”. Nada tão diferente de concepções ocidentais filosóficas de espírito, que colocam as faculdades intelectuais como a consciência e a sensibilidade num plano distinto do corpóreo-material, ao qual também se opõem aspectos transcendentes – como a anima enquanto princípio vital e os fenômenos místico-religiosos. Em saamaka, sonhos são diretamente ligados à alma. As akáa das pessoas possuem sensibilidades que ultrapassam o consciente, sabem de coisas que ignoramos em nossa vida desperta e podem comunicá-las durante o sono. É relativamente comum que parentes e amigos mortos apareçam em sonhos de pessoas que gostavam para avisar de algum mal que

110 as ameaça. Consideram o sonho uma espécie de proteção para o corpo. Ao dormir, a akáa das pessoas vai para a “terra do sono” (duumíkoondë) e conta para elas se algo está errado. Uma dificuldade para dormir já pode ser sinal de que algo vai errado consigo ou com um ente querido, e que sua alma ou a de um terceiro está a alertar. Alguém que é acometido por constantes pesadelos pode ter certeza que está com problemas sérios, talvez esteja sendo enfeitiçado ou assombrado por algum fantasma. As imagens e acontecimentos que se passam durante o sono são indícios importantes de fatos relevantes para nossa vigília e, por isso, é preciso interpretá-las valendo-se do conhecimento de pessoas que sejam consideradas competentes em interpretar sonhos (púu sunján). São algo como oráculos. Porém, como tudo mais que age com o véntu, há um quê de enigma nos sonhos. A princípio, as coisas na terra do sono são inversões das coisas do mundo desperto: sonhar com sabão aponta para óbia (pois sabão anula óbia, no mundo real), sonhar com fezes pode ser relacionado com comida, e assim por diante. Certas imagens possuem interpretações relativamente canônicas: sonhar com veados indica problemas com fantasmas; com cobras, fíofio; com vespas, súndjubáka; com crianças ou bonecas, bakúlu.86 Sonhar com caixões é ruim, mas com mortos pode ser bom. Sonhar com comida é sempre mal agouro e, se for algo como manga, considerada “comida de morto” (“kootösëmbë njanján”), pior. Reconhecer esses sinais ainda é pouco. O que exatamente está se passando ainda precisa ser investigado por oráculos ou de outras formas. Quando uma pessoa sonha com comida, por exemplo, isso pode significar que estão enviando-lhe um fantasma (joóka), para devorar sua alma aos poucos; se o sonho se repetir muito eventualmente ela morre. Para resolver, a pessoa pode colocar um prato de comida embaixo da cama ou da rede ao deitar, falando em voz alta que já está satisfeita. Solução mais radical seria colocar comida em um cemitério de crianças, algo que a pessoa afetada realmente gosta, mas que, dali em diante, se tornará para ela um tabu alimentar. Entretanto, nada disso impede que também se busque óbia ou outros remédios que ataquem a origem do mal que causa os pesadelos. A alma de certa forma sai do corpo durante o sonho, tendo alguma independência em relação a ele. Também pode ser levada por perigosos feitiços que a chamam, a aprisionam ou a atacam. Para fazer tais feitiços, a roupa de uma pessoa, suas unhas ou cabelos podem ser usadas como ingrediente mágico. Pois, apesar de sua imaterialidade, a alma tem a capacidade 86 Fiofio é uma maldição que recai sobre os membros de uma família quando há animosidade velada ou hipocrisia entre eles. Súndjubáka (lit. “costas sujas”) é uma maré de azar em geral causada por alguma infração que se cometeu, algum tabu (tjína) ou regra (weoti) quebrada. Bakúlu são pequenos demônios vindos da costa.

111 de impregnar metonimicamente a matéria. A volatilidade da alma também é demonstrada em outras situações. Quando uma pessoa passa por um grave risco de morte, por exemplo quando se afoga e quase morre, prendem a seu pulso um cordão de pano com um pequeno saco fechado. Dentro do saco haverá água do rio e areia de onde o acidente ocorreu, além de outros ingredientes. Ali ficará contida temporariamente a akáa da pessoa. Se não usar o sortilégio, a pessoa pode enfraquecer e morrer. Isso parece ser particularmente comum em crianças, pois sua alma jovem ainda não está ancorada firmemente no corpo, é mais fugidia. *** A concepção saamaka de alma é bastante próxima daquelas de outros povos maroons das Guianas. Lenoir (1973: 142-3) afirma que para os paamaka um ser humano é uma combinação de três componentes espirituais: akaa, toné e nenseki. O toné é seu princípio local, que o liga com um locus geográfico87. O nenseki é a alma de um ancestral reencarnado que cria uma relação pessoal entre a pessoa e o parentesco. A akaa é o que há de mais único e particular em cada pessoa, é sua consciência, é o que a faz apreciar o prazer e aguentar a dor. A alma é enviada por Deus ao recém-nascido, sob a forma de seu primeiro suspiro. Como entre os saamaka, a alma pode se perder do corpo – saindo dele à noite, podendo ser capturada por um feiticeiro –, o que faz a pessoa perder a consciência ou a fala. Falando sobre os matawai, de Beet & Sterman (1981: 249-53) dizem que cada pessoa tem três almas (jejé). O primeiro é a akaa (ou okaa), localizada na cabeça (especialmente na moleira), a força vital conectada com a individualidade, que protege a pessoa de doenças e infortúnios. Alguns matawai afirmam existir duas okaa, uma boa e uma ruim. A akaa de um falecido encarna em uma pessoa, agindo como “genitor sobrenatural” (nenseki). A sombra (somba) seria um segundo aspecto da alma, uma espécie de imagem especular da akaa, que, por ser visível, é particularmente sujeita à manipulação por outras agências espirituais de sombra mais vigorosa.88 O terceiro aspecto é jooka, inerte durante a vida, mas que, após a morte, é separada ritualmente do corpo e passa a carregar consigo as experiências acumuladas durante a vida, agindo como um fantasma. Vernon (1992: 31) afirma que também para os ndyuka a akaa é enviada diretamente por Deus, sendo um traço de novidade e individualidade da pessoa. Seria visível nas sombras, mais que no corpo, diferentemente de outros princípios

87 Nunca ouvi dos saamaka referências a algo como o toné enquanto componente da pessoa. Existe um tipo de divindade dos rios chamada töneo, mas ele não parece ter relação com seu homófono paamaka. 88 Eis, portanto, uma aproximação entre sombra e espírito que não ouvi de meus informantes, mas que possivelmente faz sentido também para os saamaka.

112 como o nenseki. A akaa é volátil e, por isso, nas crianças precisa ser nutrida, mas é perene, estende-se depois da morte como nenseki, reincarnando no corpo de um descendente. A noção de alma dos creole também aproxima-se da saamaka. Segundo Wooding (1972: 59-61, 1981: 67-75), os afrosurinameses da região de Para dizem que cada pessoa tem duas akra ou kra (“almas”) – uma masculina e uma feminina – que servem de força motriz e intelectual das pessoas. Além disso, cada homem e mulher possui dois djodjo, espíritos guardiães, ligados ao local onde nasceu, que protegem a criança como um anjo da guarda e servem como intermediários entre as pessoas e os deuses (incluindo o Deus criador). 89 O fantasma (jorka) é o espírito humano quando deixa o corpo depois da morte para viver no mundo dos mortos, imbuído de sua experiência, esperando o dia do julgamento, mas que pode ajudar membros da família, avisando em sonhos contra magia e outros infortúnios. A jorka será boa ou ruim dependendo da pessoa. Pode fazer mal para pessoas por meio de seu sopro frio. A tradução de Herskovits & Herskovits para o conceito de akra entre os creole surinameses vai no mesmo sentido: De todas as forças sobrenaturais que governam o destino do indivíduo, nenhuma sobrepuja o papel da akra, – a alma – em determinar tal destino. A akra é o espírito dominante de um homem, e quando está bem disposta com ele, o protege das forças sinistras colocadas em movimento por inimigos humanos, ou deuses hostis. Chega a um homem no nascimento, e morre junto quando ele expira; afora suas perambulações durante o sono do homem, está com ele sempre, sendo fielmente atenta a ele, se seus ditames forem obedecidos (Herskovits & Herskovits 1936: 44).

As proximidades entre as variações afrosurinamesas da ideia de alma (akaa, akáa, akra, kra) replicam-se quando examinamos a ideia de espírito, jejé, que não foi explorada a fundo no debate descrito acima. Thoden van Velzen & van Wetering (2004: 25-6) dizem ser o yeye (m.q. jejé, em ndyuka) uma noção teológica chave, oposta à de obiya (óbia). Dentre a multidão de poderes presentes no universo, muitos deles seriam inexploradas e mesmo desconhecidas pelos humanos. Os obiya, receitas médicas e mágicas dos maroons, seriam o quinhão destes poderes que foram revelados aos homens, as forças sobrenaturais que conseguem manejar com alguma maestria. Por outro lado, yeye diria respeito às dimensões mais abstratas das forças do mundo, mas que possuem algum grau de pessoalidade. Para os autores, yeye é o aspecto puro de uma alma, emanação direta de uma pessoa ou ser sobrenatural, que não pode ser manipulado pelo homem (idem 1983: 123). Yeye ou jejé não diz respeito à força mística do mundo em seu estado puro, não é um conceito semelhante a mana ou a axé. Jejé é espírito no sentido de potência imaterial 89 O djodjo creole se aproxima do neoséki (ou nenseki) maroon, do qual trato no capítulo 5. Porém, estes espíritos, ao invés de parentes, em geral são divindades (winti), pace van Wetering (1995: 217). R. Price (2008: 274) afirma que, para os saamaka, em linguagem esotérica, djódjo designa o corpo de um neoséki.

113 pessoalizada. Pode ser, neste sentido, sinônimo de akáa, mas é mais amplo, a alma é apenas um dos vários tipos de espírito. A questão colocada por Eli no debate, veja bem, era quantos jejé uma pessoa tem, não quantas akáa. Assim, diferentes “aspectos da alma” de uma pessoa (como colocam de Beet & Sterman) podem ser conceitualizados como diferentes tipos de espírito, relativamente independentes e de características particulares. Jejé pode ser sinônimo de muita coisa, pois, como “espírito”, é um termo polissêmico. As divindades (gádu) são tipos de jejé. Os espíritos vingativos (kúnu) também, bem como os fantasmas (joóka). Todas estas coisas, gádu, kúnu e joóka, podem subir à cabeça dos humanos e possuí-los, comunicando suas demandas ou oferecendo auxílios. Como coloca Strange (2014), tratando dos ndyuka, “espíritos são imaginados como outra – mas muito humana – ordem de ser. Eles vivem em casas em suas terras natais, falam suas próprias línguas e têm maridos, mulheres e crianças. A principal diferença é sua imortalidade, invisibilidade e resultante maior facilidade para agir”. O espírito é qualquer ente sobrenatural desejante com o qual os vivos entram em contato. Além disso, é uma formulação recorrente dizer que “as doenças possuem um jejé”, que seria o que nelas causa mal às pessoas. Também já ouvi mais de uma vez dizerem que “o cigarro tem jejé”, por isso seria tão difícil largar o vício. Estes pontos fogem do núcleo da noção – não é sobre doença e cigarro que se pensa imediatamente quando se fala em jejé –, mas sua posição marginal esclarece um traço fundamental: tudo que tem ou é jejé afeta os humanos, podendo ir contra a vontade e a potência das pessoas. A categoria engloba, reforço, tudo que tem algum tipo de volição, ainda que muito tênue, sobretudo no domínio do sobrenatural. O que separa óbia de jejé, seguindo a dicotomia proposta por Thoden van Velzen & van Wetering, é o vetor: se a força é acima de tudo usada pelos humanos – uma receita mágica – é óbia; se afeta os humanos – os possuindo, atacando, ou de outra forma – é jejé. Porém é certo exagero afirmar, como estes autores, que espíritos não podem ser colocados para trabalhar para os fins humanos. Há formas que os vivos têm de acionar o poder dos espíritos, por exemplo por de feitiços que enviam fantasmas para fazer mal a outrem. Isso ainda não esgota o debate com o qual começamos, outras questões emergem dele. Por exemplo, quando um dos presentes coloca a ideia de que todos possuem dois espíritos, um bom e um ruim. Dividir o mundo entre coisas “boas” e “ruins” não é incomum em saamaka, ainda que a divisão não seja simples. 90 O debate também levanta questões metadiscursivas: quais tipos de argumentos geram dúvidas, debates, e quais são pontos pacíficos. Há áreas 90 Lidarei com a versão saamaka dos maniqueísmos e dualismos no capítulo 7. Nele voltarei também à dicotomia entre óbia e jejé proposta por Thoden van Velzen & van Wetering.

114 bastante relevantes da cosmologia saamaka que estão longe de ser sistematizadas para os próprios nativos, apesar do interesse que os mesmos possuem nas questões. No limite, nenhum saber sobre o mundo sobrenatural transparece em vivas arestas, sem polêmica, sem paradoxos, afinal o mistério e a incerteza são aspectos inerentes de tudo que “trabalha com o vento”, e os saberes estão distribuídos entre especialistas, clãs e entidades que apenas os revelam parcialmente. De todo modo, há certos pontos que parecem mais irresolutos. A escatologia, como veremos, talvez seja o caso mais patente de assunto que gera controvérsias, especulações e versões variadas. Vimos que a natureza da alma/espírito e sua relação com os corpos são questões também incertas. Por outro lado, há mais consenso sobre outros temas. A diferença entre vivos e mortos é uma delas.

Gente fria Morto não tem akáa. Alma de morto ou alma morta, se é que podemos falar assim, é fantasma. Uma vez que morre e se separa do corpo, o espírito de uma pessoa imediatamente ganha outras características, vira joóka, uma entidade perigosa. Já não é mais um ser humano. Ao iniciar a lavagem do cadáver de Baáa Bino, recentemente falecido, Iko, um dos encarregados do serviço fez questão de afirmar: “não vamos lavar Baáa Bino, vamos lavar o morto. Já não é mais a mesma pessoa”. Eis algo quase tautológico, mas que frequentemente é sublinhado em saamaka: “mortos e vivos não são a mesma coisa” (“líbi ku deodë ná dí wán”). A distinção é marcada claramente na língua: a expressão que melhor traduz a ideia de “ser humano” é líbisëmbë (lit. “pessoa viva”). Além da pessoalidade, o que marca fundamentalmente a humanidade não é o “ser”, a existência, como em nossa concepção, mas a vida. Há outros seres, outros modos de existir, com ou sem vida, com ou sem alma, assim como há outros tipos de pessoa: por seu corpo, sua psiquê e sua alma, seres humanos diferenciam-se de tudo aquilo que é inanimado; também dos animais, pássaros e peixes; e dos diversos tipos de espíritos e divindades. Muitos animais também podem ser sëmbë (pessoas), bem como muitos tipos de espíritos, mas, entre todas essas pessoas, parece fundamental para a filosofia saamaka sublinhar a distinção específica entre vivos e mortos. Ainda que outros nãohumanos também possuam almas (como os grandes predadores e alguns tipos de árvores), o status de pessoa dos mortos é mais claramente marcado. Mortos são chamados de “pessoas frias” (kootösëmbë). São caracterizados por seu perigo e por certa inescrutabilidade. São pessoas, mas sem vida, “frias”.

115 Como na cosmologia dos maroons das Guianas em geral, para os saamaka o par quente / frio (kéndi / kootö) é um dos mais fundamentais entre as categorias sensíveis. Ao frio também são ligados os sentidos de “brando”, “tranquilo”, “inativo”, “desabitado”; o de “morto”, como os ancestrais, que são “gente fria”; e o de “enfraquecido”, como são os alimentos oferecidos aos mortos ou o leite de uma mãe grávida cujo feto, tal qual um espírito, já sugou a essência. […] O frio parece antes ser uma essência antitética ao corpo humano ou animal, mesmo que não carregue uma doença específica (Vernon 1992: 47-8).

O frio aqui não é a mera ausência do calor, mas um princípio associado ao ar e ao vento, necessário para o funcionamento do mundo, mas que se opõe à atividade e à vida. Dizse que a aldeia está “fria” quando passam dias sem nada de interessante acontecer, quando não há agitação, apenas tédio. Ter os órgãos frios, ter ar dentro do corpo é causa de doenças, portanto o excesso de frio aproxima da morte. Na nosologia saamaka, para além das afecções espirituais, o desbalanço entre calor e frio é a principal causa de males físicos, em particular preocupam-se muito com frio ou vento na barriga. As trocas de fluidos com o ambiente e com o clima (wéi) podem fazer mal, se não forem bem reguladas. Um abdômen inchado – por exemplo, de quem bebe muita cerveja – é índice de má saúde, indica um ventre cheio de frio. O dia inteiro, ao respirar, fumar, falar, comer e beber (especialmente coisas geladas), o ar entra na barriga (beoë) das pessoas, e é preciso tirá-lo dali. Simples água quente já serve como remédio para “remover vento” (púu véntu) e até mesmo a flatulência ajuda, mas há casos mais críticos ou crônicos nos quais pode ser preciso usar véntu óbia, uma receita para vento dentro do corpo. No extremo oposto, o excesso de calor pode também fazer mal, queimar a pele, exaltar os humores. Por isso em tantos óbia usam água como ingrediente, para esfriar a situação e os ânimos: assim como a chuva esfria a aldeia num dia de muito calor, e a água apaga o fogo, ela também é capaz de apaziguar os ânimos, trazer kootöháti (lit. “coração frio”, “paz”, “calma”) – nos casos de fíofio, por exemplo (ver nota 86, supra). Outra conexão deve ser mencionada: o frio é associado ao véntu, no sentido de “ar”, “vento” ou “gás”, mas, como vimos, véntu significa também o sobrenatural. Neste caso, não parece se tratar de uma mera homonímia. Os mortos estão ligados ao frio e ao vento por fazerem parte do domínio do místico, do incompreendido, do inefável. Em suma, o frio é oposto à vida e portanto “pessoas vivas”, opõem-se “pessoas frias”, mortas. Por isso pimenta é uma comida proibida em funerais: é muito quente, desagrada aos mortos.

Fantasmas, ancestrais, assombrações Mortos interagem com vivos de diversas maneiras. Em sua forma mais terrível são kúnu, espíritos vingativos que atacam matrilinhagens inteiras, buscando retaliações pelas

116 mortes injustas que sofreram. Mesmo mortos que não cobram tais dívidas perenes podem fazer mal enquanto fantasmas (joóka). Sob esta forma, os mortos vêm em sonhos, podem ser manipulados por feiticeiros para atacar seus inimigos ou assombrar locais. Mas há mortos que fazem bem aos vivos. Para começar, todas as pessoas possuem uma relação estreita com um falecido específico, seu neoséki, que pode ser considerado uma espécie de padrinho espiritual, que faz a criança crescer e empresta-lhe traços de personalidade, características físicas, relações com divindades e tabus alimentares. Além do neoséki, parentes falecidos das pessoas aparecem para quem gostavam em vida, vêm em sonhos ou visões, dando conselhos, ensinando coisas, auxiliam em situações difíceis. Há ainda os espíritos dos gaánsëmbë (lit. “grandes pessoas”), os ancestrais mais antigos, espíritos poderosos que abrem caminhos, ensinam sobre óbia, sobre a história das linhagens. Mortos aparecem sobre várias formas e em vários locais. Pessoas frias estão por todos os lados: em sonhos, nos relatos e nas memórias; nos corpos das pessoas sob a forma de neoséki e em possessões; no território, no cemitério, em objetos, vagando pelas sombras; e também estão no além, em deodëkoondë, a terra dos mortos. Alguns mortos estão presentes em objetos. A alma de um falecido pode impregnar com sua força as roupas que este usava quando morreu, bem como a toalha que é usada para lavar seu cadáver. Os cetros que marcam a posição de kabiténi e basiá são carregados com os fantasmas daqueles que os portaram anteriormente. Eles habitam ali, zelam para que o atual encarregado cuide do objeto e das responsabilidades do cargo político da forma que deveria. Por isso diz-se que um cetro mais antigo é mais pesado, há mais fantasmas de ancestrais dentro deles. Ficam escondidos nas casas de quem os possui, longe da vista dos demais. São trazidos a público apenas uma vez por ano, nas assembleias anuais (jái kuútu), quando são lavados e aspergidos com rum branco, típica oferenda para espíritos. Mortos recebem rum em outros momentos. Em diversas ocasiões, ao pedir ajuda ou ao iniciar e ao encerrar um trabalho importante, uma assembleia ou uma cerimônia que envolva óbia, fazem libações com rum branco,91 mas pode-se usar também cerveja ou bebidas que o ancestral gostava. O gesto é chamado “jogar rum” (túwë daán) e pode ser feito derramando a bebida diretamente no solo, passando-a nas mãos, ou colocando na boca para depois aspergêla. Oferecem também oblações em comida, chamadas “jogar comida” (túwë njanján), mas isso não é comum de se fazer em público em Botopási. Os mesmos líquidos e alimentos 91 Chamam rum de daán (termo geral para bebidas destiladas) ou de palm, indicando a marca mais comum usada em libações: Mariënburg, uma bebida produzida em Paramaribo de 90% de teor alcoólico que tem uma palmeira em seu rótulo (daí seu apelido). Rum figura como um dos mais frequentes componentes de rituais e trocas cerimoniais maroons, tanto que é chamado por Green (1976) de “special-purpose money” na sociedade matawai.

117 podem ser oferecidos a outros tipos de espírito, como divindades, mas, novamente, não em público em Botopási. Também é de praxe, no mesmo tipo de situação, dizer o nome de mortos. Ancestrais são nomeados em listas não canônicas, nas quais são lembrados os mais importantes e relevantes para a situação – aqueles que detiveram o óbia que está sendo usado, que portaram o cetro que está sendo carregado, grandes líderes, pessoas sábias. Estas oferendas e recitações servem antes de tudo para abrir caminho: ao iniciar uma ação, para que os falecidos possibilitem que tudo se passe sem percalços e, ao final, agradecendo-os quando permitiram que tudo desse certo. Os ancestrais, a certa distância, agindo individualmente ou em grupo, junto com Deus e as divindades, guiam os acontecimentos, permitindo ou não que problemas graves ocorram: doenças, pragas, inundações, secas, conflitos políticos em larga escala. Quando a vida não vai bem, as pessoas começam a especular e prestar atenção se há sinais de que os espíritos não estão satisfeitos. Eles podem vir por meio de possessões avisar que os humanos não estão “vivendo bem” (líbi búnu) com eles, reclamar que não estão realizando certas obrigações espirituais, ou acusar os vivos de estarem agindo de maneira gananciosa, preguiçosa, ou se esquecendo de “viver bem” entre si mesmos. Providências devem ser tomadas para sanar as demandas dos mortos. O local mais comum para fazê-lo nas aldeias não cristãs é o faáka páu (lit. “mastro de bandeira”), principal altar para ancestrais e divindades de cada aldeia, onde fazem oblações, rezas, libações e sacrifícios (principalmente de aves domésticas). Pela presença da igreja, em Botopási não há faáka páu, mas na prática os ancestrais e divindades do local estão contemplados pelo altar em Pikísééi. Quando é preciso, vão até lá ou até alguma outra aldeia de madrugada para cumprir essas obrigações. A presença dos ancestrais mais antigos e poderosos faz-se sentir mesmo em situações aparentemente corriqueiras. Até quando a ação direta dos fantasmas não é óbvia, eles estão presentes. As pessoas contam histórias sobre vultos do passado com grande familiaridade – Momóimítji, a ancestral apical dos Dómbi, e suas filhas que fundaram as matrilinhagens do clã; Kúngoóka, que fundou a aldeia de Daumeo, que dizem ter sido um homem muito feio e de personalidade difícil, mas muito poderoso espiritualmente; Paánza, mulher do clã Matjáu que fugiu da plantation com grãos de arroz em seus cabelos e trouxe o alimento para os saamaka; Anake, o profeta de Sófibúka que trouxe o cristianismo para os Dómbi; e muitos outros.92 Tais histórias, os relatos de fésiten (“passado”, “antiguidade”), são lembradas como guias para a vida atual, ainda que, é claro, saibam que o mundo hoje é diferente. 92 Sobre algumas destas personagens e sobre como suas histórias são contadas, ver R. Price 2002 [1983].

118 Figuras mais recentes, líderes exemplares, surgem volta e meia em debates e argumentos: “não foi assim que eu aprendi com kabiténi Logopai”, “quem sabia mesmo dessas coisas era basiá Bakáa, atrás de quem eu me sentava para escutar”. A lista de personagens relevantes é muitíssimo extensa, cada pessoa sabe nomes e relatos variados, e recorrerá aos ancestrais de que necessita, que poderão agir diretamente no auxílio e/ou servir como precedente e modelo de comportamento. É principalmente este tipo de notável cujo nome é invocado ao iniciarem-se trabalhos importantes. São homens e mulheres que realizaram grandes feitos na vida, detinham grandes conhecimentos e poderes que mantêm no além, sendo por isso capazes de abrir caminhos para os vivos. Já mortos que se sobressaem menos, ao longo do tempo, tendem a ser esquecidos, posto que seu poder e sua intimidade com os vivos atuais vão sendo ofuscados por outros vultos. Perguntei para um amigo certa vez se apenas os espíritos de anciões (gaánwómi) podem ajudar. Ele disse que não, crianças mortas também ajudam, assim como as vivas auxiliam nos afazeres da aldeia. Porém, os mais velhos são mais úteis por possuírem mais conhecimento, mais sabedoria, mais experiência. Neste sentido, “da mesma maneira que vivemos aqui, eles vivem lá”, concluiu. A ideia presente em Wooding (1981) e em de Beet & Sterman (1981), de que nos fantasmas (joóka ou jorka) ficam acumuladas a experiência que as pessoas tiveram em vida procede, portanto. Com os mortos com quem tinham laços mais íntimos, a relação dos vivos é intensa. Uma mulher contou-me sobre seu pai, que não chegou a conhecer, pois faleceu quando ela era ainda muito nova. Sonha com ele frequentemente. Certa vez estava andando sozinha e ouviu passos, mas, quando se virava, não via ninguém. Até que chegou em casa, com medo e ao sentar-se no sofá viu que seu pai estava ao lado. Ele disse para ela que não se assustasse, que ela poderia rezar (bégi) para ele sempre que precisasse, que viria ajudar. Certificou-se que era mesmo seu pai depois, quando pediu para que lhe mostrassem fotos do homem em vida. Disse que por vezes ela reza pelo auxílio dele, “como se reza para Deus”, sobretudo quando está com problemas com homens, e ele nunca a abandona nesses assuntos. O pai pede sobretudo honestidade àqueles que a cortejam. Ela contou que certa vez, em sua presença, o espírito do pai falecido deu um tapa na cabeça de um homem que a estava enganando. Outra vez, quando um pretendente ciumento veio ameaçá-la com uma faca, ele segurou a arma e impediu que qualquer coisa ruim acontecesse. O exemplo está longe de ser isolado. Todos possuem seus mortos íntimos a quem pedem socorro, conselhos. Outro caso é o de um de meus principais interlocutores, Mako, um homem de meia idade que era muito apegado ao pai. Diz ter sido seu pai um homem muito

119 forte, que trabalhava muito e sabia muitas coisas, ao qual sempre que se compara percebe o quanto ainda tem para crescer e aprender. Possuía um poderoso komatí (espírito/óbia de jaguar). Mako sempre lembra das coisas que o pai o ensinou, sempre cita feitos da vida do falecido. Guarda com apego os bens que recebeu dele, inclusive a calça que usava quando morreu, embebida de sua kaakíti (“força”), que usa para se proteger quando vai a algum lugar especial. Além do que deixou em vida, meu amigo pede ao pai falecido assistência nos mais variados assuntos, que ajude e ensine coisas que não sabe. Pergunta coisas ao pai, mentalizando ou falando, e de repente a resposta lhe vem à cabeça. Certa vez estavam querendo enfeitiçá-lo, chamando a sua alma para prendê-la ou atirar nela, mas sempre que a chamavam, quem aparecia era o espírito de seu pai, e com um fantasma nada poderiam fazer, pois já está morto – se atirassem no fantasma (joóka) seriam os feiticeiros que correriam risco de vida. Desistiram então de “chamar a alma” (kái akáa) de meu amigo, seu pai o protegeu.93 Explicou Mako: eram pessoas que gostavam de você, ajudam mortas como ajudavam em vida. Deu um exemplo: se você tiver fome e pedir para um morto querido que traga carne, pode ser que você repentinamente tenha vontade de defecar e vá para o mato fazê-lo, ao invés de ir ao banheiro; pode ser que pense em levar uma arma e de repente apareça um queixada no seu caminho, que você mata e come. É preciso então raciocinar, disse, perceber que foi depois que você pediu para o morto que a caça apareceu, foi ele quem a trouxe. 94 Mortos concedem vários pedidos, inclusive os ruins. Quem desejar veementemente morrer pode ser “ajudado” por um morto. É mais fácil manipular um fantasma com o qual se tem boas relações para que assombre alguém, por meio de feitiçaria. Cabe notar que, para mortos com quem se tem intimidade, não é costume chamá-los de joóka (“fantasma”), pois a palavra tem conotações negativas, pode ser considerada gaán neo (lit. “grande nome”, apelido derrogatório) dos mortos. Por respeito, as pessoas chamam os mortos que os querem bem de gaánsëmbë (“grande pessoa”, i.e., ancestral).95 A relação entre duas pessoas não é interrompida quando uma delas parte para o além, ainda que mude de substância. Mortos continuam interagindo entre si e com os vivos. Interagindo enquanto pessoas, mantendo os traços relevantes de seus caráteres, suas vontades, 93 O fato destes dois exemplos de parentes mortos protetores serem de pais não é sem motivo. Outros parentes próximos podem ajudar as pessoas também, mas entre os saamaka a paternidade, quando bem sucedidas, trazem consigo uma ideia de proteção voluntária que casa bem com o tipo de proteção que os parentes mortos oferecem (mais sobre isso no capítulo 5). 94 Bégi, em saamaka, significa tanto “rezar” quanto “pedir”, “implorar”. Rezas são, portanto, sempre pedidos, ainda que possam ser apenas pedidos genéricos por proteção. Sobre as orações saamaka cristãs a Deus e Jesus, ver caps. 6 e 7. 95 Lenoir (1973: 81) nota o mesmo comportamento entre os paamaka: ancestrais são efetivamente fantasmas (yooka), mas são referidos como anciões (gaan sama).

120 sua voz. Podem expressar-se em sonhos, mas, como vimos, recados oníricos podem ser ambíguos,

oferecer

múltiplas

interpretações.

Por

isso,

mortos

bastante

recentes

recorrentemente aparecem para os vivos em possessões, quando querem deixar algo claro. Acontece muito que alguém que tenha morrido uma morte particularmente dramática ou que levante suspeitas (de feitiçaria, assassinato, traição) “suba à cabeça” de alguém para falar com os vivos sobre o que exatamente se deu quando de sua morte. Esses kootösëmbë fazem seu médium repetir durante o transe chamados como “eu sou Fulano! Eu sou Fulano!”. Kabiténi e outras pessoas serão chamados para assistir ao morto contar se kúnu estavam envolvidos em sua morte (e quais), se foi vítima de feitiço (e de quem), se brigas de família o afetaram, quem desejava mal para ele. Certas possessões, porém, podem ser tratadas com certa desconfiança, vistas como engodo do próprio médium ou de algum outro espírito malevolente que esteja querendo espalhar mentiras, intrigas. Quando vêm dar este tipo de aviso, os mortos dão preferência a possuir pessoas de sua própria família que sejam consideradas neutras na situação, para se fazerem acreditados. Em casos menos urgentes, é diferente. Quando o tempo passa e um morto vai se distanciando historicamente, ou, em outras palavras, quando as pessoas com quem tinha laços em vida também vão falecendo, ele não some, mas seu status vai se alterando. Grandes figuras do passado, mortos remotos, podem possuir pessoas. Essas figuras dos primórdios da história saamaka (fésiten) continuam auxiliando seu povo e seus clãs, sendo os mais antigos dentre eles os ancestrais por excelência, aqueles que são chamados por nome em rituais ou kuútu importantes. De forma similar, um fantasma de centenas de anos atrás pode continuar assombrando o espaço onde faleceu. Um kúnu, dizem os saamaka, segue atacando a matrilinhagem daquele que causou sua morte eternamente, ou até destruí-la. Na prática, porém, a relação com os vivos depende muito da memória. Interagem com os vivos principalmente mortos recentes, dos quais os viventes ainda se recordam, ou aqueles que marcaram com intensidade a história, para o bem ou para o mal. Memória e esquecimento são forças ativas e seletivas. Podemos imaginar um gradiente – artificial, que fique claro – entre mortos próximos e mortos longínquos. Num polo estariam os recém-falecidos, cuja vida ainda afeta diretamente os vivos, porque as relações que possuíam em vida seguem fazendo sentido no cotidiano. Sua morte ainda não está resolvida, seus entes queridos seguem precisando de ajuda, os cargos políticos, óbia, terras e outros bens que deixaram para trás ainda são passíveis de disputas entre os viventes. Traços de suas vidas ainda estão se desenrolando e são muito presentes nas

121 memórias atuais. No outro, temos os grandes ancestrais, as fundadoras de linhagens, os desbravadores do mato, os edificadores das aldeias, aqueles que primeiro entraram em contato com certos espíritos, trouxeram receitas mágicas da África ou as tiveram reveladas por divindades. Não mais nem menos que os mortos recentes, suas histórias estão em aberta controvérsia, “o que realmente se passou” com eles está em disputa. A diferença é que estabeleceram precedentes que dão direitos a prerrogativas de matrilinhagens e clãs inteiros, sua herança diz respeito muito mais à big politics saamaka e, portanto, sua memória diz mais respeito a especialistas em história e a conflitos amplos e esotéricos, cercados de segredos. Entre os polos, temos posições preenchidas por notáveis do passado recente que parecem candidatos fortes a se tornarem grandes ancestrais. No caso de Botopási dois exemplos óbvios são kabiténi Logopai e basiá Bakáa, falecidos nas últimas duas décadas, citados com enorme recorrência. Recuando mais ao passado, Anake Paulus certamente já ocupa um locus privilegiado nos relatos, aproximando-se das grandes figuras ancestrais, bem como os homens importantes que deram os sobrenomes atuais das linhagens. 96 São personagens que viveram a virada do século XIX para o XX, períodos de grandes mudanças na vida saamaka, de grande aproximação com o mundo dos brancos e da costa, que portanto estabeleceram novos precedentes e exemplos para a vida atual. Há toda uma escala de ancestralidade, ainda que de maneira nenhuma bem definida. Mortos – próximos e longínquos – devem ser agradados para que não “façam coisas” às pessoas, como dizem. Para que não as ataquem, não tragam desgraças, não as matem. Quando bem tratados, podem trazer enormes benefícios aos vivos. São, de fato, indispensáveis para a vida na terra. Podemos enxergar esta relação entre vivos e mortos como uma de constante troca. Mas uma permuta desigual, em eterno desequilíbrio, já que aquilo que os vivos podem fazer pelos mortos não é equivalente àquilo que os mortos podem fazer pelos vivos. De um lado, há oferendas de comida e bebida, rezas, respeito pela sua memória e seus desejos, reparação pelos maus que lhes foram causados e pelas injustiças que levaram às suas mortes. Além disso, vivos oferecem a mortos um funeral digno, rico, bem cuidado – não é a toa que todos se esmeram tanto em atividades do ciclo funerário. Do outro lado, as possibilidades são mais incomensuráveis, pois o poder dos espíritos é muito menos limitado 96 Até meados do século XX, os saamaka que possuíam identificação civil no Suriname utilizavam como sobrenome os nomes de seus clãs. Por volta dos anos 1960, por exigências do governo, passaram a utilizar suas matrilinhagens (mamá beoë) como sobrenome. Mas, via de regra, não utilizam o nome “próprio” da linhagem, que corresponde ao nome da ancestral apical que fundou o beoë. Escolheram outros ancestrais, que eu saiba todos homens que tiveram particular importância durante sua vida: grandes líderes e kabiténi, homens particularmente bem sucedidos economicamente, ou que fizeram algum feito bastante relevante no passado. Seus nomes sendo escritos e repetidos o tempo todo, acabam sendo lembrados constantemente.

122 que o dos homens. Como ancestrais e amigos, os mortos garantem o bom funcionamento do mundo para suas linhagens, ajudam para que suas vidas sigam bem, trazem ensinamentos e ganhos materiais. Nos casos de “mortos feios” (taku deodë), como logo veremos, este desequilíbrio torna-se ainda mais instável. Não se sabe exatamente se podem ou não ajudar os vivos, na maioria das aldeias seu funeral nem é celebrado. Sendo as mortes feias casos aberrantes, que colocam em risco os ideais de boa vida e boa morte saamaka, o comércio com esses mortos é mais perigoso. Em se tratando de entes tão relevantes, parece paradoxal uma afirmação recorrente em Botopási: “todo morto é hógi” (ruim). Dizia um informante: “uma vez que você morrer, você vira hógi”, pois você não quer morrer, “viver é bom”. A tradução mais acertada para hógi não é “ruim”, “mau”, mas “perigoso”. Morto é gente fria, o fantasma é a antítese da vida. Seu cadáver, seus objetos, sua morada, o local de sua morte, tudo que lhe diz respeito é contagioso. “Por este motivo”, meu interlocutor continuava, “lágrimas não podem cair no corpo, não se pode passar por debaixo da rede de uma pessoa que está para morrer, a luz sempre deve ficar acesa numa casa de morto. O morto pode querer levar sua alma”. “Para a terra dos mortos?”, perguntei, a resposta foi afirmativa. Lembrou que taku deodë são ainda piores. “Não se pode nem olhar para eles, se olhar, alguém vai ter que 'arrumar' você [seeká], se não você corre perigo. O morto pode tentar virar sua canoa, quando você estiver no rio. Mesmo o chão onde colocam um corpo morto é perigoso, não deve ser tocado, não se deve comer coisas que crescem ou caiam nele”. Se eles são tão perigosos, tão contagiosos, tão violentos, como os mortos podem trazer coisas boas para quem querem bem? A resposta é simples: continuam sendo pessoas. Pessoas frias, mas pessoas. Continuam tendo personalidade, desejos, preferências. São capazes de ciúmes, raiva, podem se sentir desagradados ou injustiçados – e é aí que sua ação maléfica é mais fortemente sentida. Mas são capazes também de comiseração, carinho, benevolência. Todo o rol das paixões humanas continua presente em seus espíritos, ainda que seu corpo esteja apodrecendo e que seu jejé tenha se transubstanciado de akáa para joóka. Todos cercados de dúvidas e de múltiplas possibilidades de apropriações e alianças, os mortos despertam uma série de aparentes paradoxos. Além de seu caráter ambiguamente perigoso, sua localização é igualmente incerta, pois múltipla. Não são poucos os locais marcados por assombrações, no território saamaka. Mortes são acontecimentos importantes e a elaborada memória coletiva saamaka trabalha muito em conexão ao território, de modo que há diversos trechos do rio, áreas de floresta, antigas roças,

123 casas abandonadas e árvores onde sabem que habitam fantasmas. Espaços onde pessoas morreram ou aos quais eram muito apegadas. Em particular quando se tratou de uma morte violenta (taku deodë), vivos evitam passar por estas áreas, sobretudo se tinham conexão com a morte ou se sua matrilinhagem o tinha. Se o local for tratado da maneira adequada, seguindo todas as weoti e aplicando os óbia corretos, pode continuar sendo usado, mas há grandes frações de mata que são temidos por mortes que ocorreram ali há mais de um século e cuja história, mesmo não sendo em detalhes do domínio de todos, ainda ressoa pelas lembranças dos habitantes da região. Veja por exemplo a seguinte tragédia: numa área populosa da aldeia, o terreno onde estava a casa onde uma mulher grávida foi assassinada é interditado, lá ninguém mora, não há nada construído e não é qualquer pessoa que pode limpar a sujeira que ali se acumula. Quando foi preciso fazê-lo, chamaram alguém cujo pai era da matrilinhagem da morta e que portanto não era diretamente afetado pelo kúnu, mas tinha boas relações com a família. Há uma ou outra casa, em Botopási, onde ninguém mais habita, mas cujas janelas se abrem inexplicavelmente durante a noite. Isso pode ser chamado de assombração (sipúku). Os mortos estão por todo o território. Também, claro, estão no cemitério, campo dos mortos por excelência, mais que qualquer outro local evitado por vivos. “Gente fria” pode aparecer, ainda que raramente, no corpo de veados, no mato. Se forem alvejados nesta condição trarão grandes problemas para o caçador. Por isso dizem que não é bom caçar veados à noite. É na escuridão, aliás, que os mortos mais vagam. Podem aparecer em qualquer horário e local, mas a meia-noite é sua hora favorita, quando eles mais vêm “agarrar as pessoas” (panján sëmbë), para lhes fazer mal. Ainda que não tenham corpos – um joóka por definição é aquilo que deixa o cadáver no momento da morte e deixa de habitar o mundo físico –, fantasmas também se fazem presentes nos corpos dos vivos, interferem neles. Sobem à cabeça das pessoas, as possuindo. Enquanto “padrinhos espirituais” (neoséki) formam a compleição e a personalidade de cada pessoa. Além disso, durante o período de luto, o viúvo traz em si o fantasma do antigo cônjuge, cuja presença se torna mais fraca depois do limbá uwíi, mas que só se despega de fato na cerimônia de “remover luto” (púu baáka). Quando se fala de morto (deodë), se está falando de muitas coisas e de uma só. Eles agem de diversas formas, como ancestrais, como pessoas próximas, como padrinhos espirituais, como espíritos vingativos, fantasmas, assombrações. Possuem muitos modi operandi. O espírito se distribui: pelo clima, pelo tempo, por territórios, corpos, objetos,

124 animais, sonhos... Não podemos esquecer, estão também em seu próprio domínio, em deodëkoondë, a terra dos mortos.

Terra dos mortos Nas vigílias para mortos em Botopási cantam uma canção que diz: Té mi dëdë / Mi o subí gó / A Mása Gádu koondë [repete] Quando eu morrer / Eu subirei / Ao reino de Deus [repete] Bigá mása Jezus deodë / A jábi pási dá mi / Té mi deodë mi Porque Jesus morreu / Abriu o caminho para mim / o dóu alá Quando eu morrer eu chegarei lá Wíni deo tidé / Wíni deo tidé / Wíni deo tidé a de neo u Mása / Há vitória hoje / Há vitória hoje / Há vitória hoje Wíni deo tidé em nome do Senhor / Há vitória hoje Té i dóu nëeon nooö i seéi sa sí / Táa wíni deo tidé dá mi ku i Quando você chegar nele você mesmo poderá ver / Que há vitória para mim e para você

A canção, composta por saamaka pentecostais de Futunaákaba, é alegre, apresenta uma visão positiva do além. Mas em geral ele não é pensado assim. Como é e onde fica deodëkoondë ninguém sabe ao certo. As discussões que ouvi sobre o assunto soavam-me ainda mais especulativas que o debate acima apresentado sobre a relação entre alma e espírito. Cabe refletir, então, sobre como tratar de um tema altamente irresoluto e controverso para os próprios nativos. Manuela Carneiro da Cunha apresenta duas formas de ler a escatologia de um povo, e suas variadas versões. Primeiro numa chave simbolista, como representação da sociedade. Neste caso, as diferentes versões acerca do destino dos mortos dependeriam da posição do informante na estrutura social. Alternativamente, podemos ler os sinais apontados nas narrativas escatológicas como relativamente independentes à morfologia social. Assim, só fariam sentido em seu conjunto, e suas variações apontariam para princípios que regulam o “surgimento inesgotável de novas versões”, como nos mitos. Este tratamento, que parece à autora e a mim mais proveitoso, ajuda a “descobrir na escatologia não apenas o reflexo da sociedade que a originou, mas também e principalmente uma reflexão sobre ela”' (Carneiro da Cunha 1978: 113, grifos no original). Certa vez, em uma “casa de doente” (suwáki wósu), ouvi um rapaz comentar: “sempre antes de morrer as pessoas sofrem alguma dor, mesmo que seja uma morte súbita. Só que por vezes a dor se arrasta por horas, por dias, é melhor morrer logo para ir descansar.” Ao que alguém argumentou: “você tem certeza que se descansa por lá? Quem sabe o que ocorre na terra dos mortos?” Perguntei se não está escrito na Bíblia que o paraíso é um lugar bom. A resposta que ouvi foi: “quem escreveu a Bíblia achava que sabia o que se passa quando morremos, mas não há como ter certeza.” Passaram então a discutir como seria o além. O

125 imaginário cristão do inferno foi apontado por alguns: rios de lava, pecadores queimando eternamente. Outros conjecturavam que deodëkoondë deve ser um lugar gelado, posto que mortos são “pessoas frias”. A ideia geral era de que o mundo dos mortos não é um lugar bom, melhor permanecer vivo. A ideia de um paraíso anterior à Queda, onde viveram Adão e Eva, também surge eventualmente. Por vezes associam a jiboia (vodú, que consideram ter espírito) à serpente que tentou Eva no paraíso, afinal, a jiboia é uma cobra que fala com as pessoas. Mas aquele animal da Bíblia especificamente estaria sob o efeito de um espírito demoníaco, especulam. Antes da ação da serpente, do diabo, antes de ele colocar o pecado no mundo, a terra seria plena, abundante. Esta foi única formulação um pouco mais acabada e recorrente que ouvi sobre o paraíso, de que lá não seria preciso trabalhar para comer, diferentemente do mundo de pecado onde vivemos. Com relação ao que Reis (1991: 91) chama de “princípio de exclusão” – destinos diferentes no além para pessoas boas e más – há discordância. Pentecostais afirmam com toda segurança que há um inferno e um paraíso, o último estando reservados apenas aos que aceitam Jesus como seu salvador e seguem à risca as regras da igreja, não se envolvendo com “idolatria” nem com espíritos que consideram malévolos, agentes do diabo (didíbi) incluindo aí divindades e fantasmas de antepassados. Mas tal radicalismo é incomum. Ouvi Iko, um homem que defende com firmeza o cristianismo, dizer em certa situação que “quem é gente de verdade” vive sua vida bem, sem roubar, enfeitiçar ou matar, mesmo não sendo religioso terá um destino bom: pode até não chegar ao paraíso, mas vai chegar perto, vai ouvir Deus, ainda que não o veja. Outros questionam se há de fato uma partição entre inferno (hélu) e paraíso (hemel ou paradijs). Seriam destinos exclusivos entre si, seriam apenas nomes diferentes para um mesmo lugar ou seriam aspectos diferentes do mundo dos mortos? “O Paraíso existe, com certeza”, ouvi outro homem asseverar, “mas é invisível, não sabemos como é porque ninguém volta para contar. Os brancos procuram por ele, mas não vão encontrar, pois o Paraíso está além de nossa compreensão, não se sabe o que se passa por lá. Tampouco o Inferno, onde as pessoas ruins vão queimar.” A influência do ideário cristão se faz presente nas noções escatológicas em Botopási, mas ainda assim elas são vagas, cercadas de dúvidas. Um dos problemas das ideias cristãs que envolvem o pagamento pelos pecados após a morte é que ela vai de encontro ao princípio dos espíritos vingativos e outras agências causadoras de infortúnio, que para os saamaka fazem as pessoas pagarem por seus erros em vida (ver caps. 5 e 7). A indefinição com relação ao

126 mundo dos mortos é generalizada. Talvez prefiram que continue assim, tão perigoso é o mundo dos mortos. Um informante de Richard e Sally Price disse, em um funeral, dirigindose ao morto, ao alegar desconhecimento sobre as causas do falecimento: “nunca diríamos que queremos saber o que realmente se passa na terra dos ancestrais” (Price & Price 1991: 192). Pode parecer estranho que um povo que dá tanta importância a mortos e a ritos funerários não possua uma escatologia bem definida. De fato, quando falo de “escatologia” deve ficar claro que não estou me referindo a uma doutrina sobre o que acontecerá no fim dos tempos, no apocalipse, apenas às vagas ideias sobre o além. Dois pontos influem nesta indefinição. Em primeiro lugar a relativa indistinção de tudo que é jejé, tudo que é imaterial, espiritual. Mortos, por não terem mais corpo físico, são difíceis de serem domados e compreendidos. Em segundo lugar, o fato de que os mortos estabelecem relações “utilitárias” com os vivos. Quando vêm se manifestar neste plano é em geral para falar sobre sua própria morte, sobre oferendas e rezas que estão deixando de ser feitas, sobre más condutas que outras pessoas tiveram ou têm em relação a eles. Podem vir ajudar, avisar que alguém de sua família está sendo enfeitiçado, ou podem atacar aqueles que adentram seus territórios, que usurpam bens a eles relacionados, ou podem por ciúmes machucar pretendentes de seu antigo cônjuge. Mas não contam nada sobe a terra dos mortos. Sabe-se, por outro lado, que os mortos convivem entre si. Deodëkoondë pode ser traduzido tanto por “terra” quanto por “país” ou “aldeia” dos mortos. No além, perpetuam-se certas instituições e princípios da socialidade saamaka, como a gerontocracia e os kuútu. Mortos reúnem-se, conversam. Daí o costume de enterrar os anciões e líderes na parte da frente do cemitério, para que convençam, por meio da retórica, de kuútu, outros mortos a não saírem do cemitério para fazer mal aos vivos. Um sinal (maáka) de que os mortos estão se reunindo é o tjeongë, um círculo de luz em torno da lua, fenômeno que os metereólogos nomeiam “halo lunar”. Quando aparece nos céus significa que os mortos estão em um kuútu no qual decidem matar uma pessoa boa. Entretanto, isso não necessariamente ocorrerá por perto, a vítima escolhida pode estar em qualquer parte do mundo. Relâmpagos – líba kóti fája (“fogo do céu”) ou gaángádú kóti fája (“fogo de Deus”) – também são sinais de que alguém vai morrer, mas não necessariamente alguém de boa índole. O trovão que acompanha – goónlíba bái (“grito do mundo”) ou gaángádú bái (“grito de Deus”) – demonstra claramente que um morto está furioso (hátíboónu). Se isso ocorre durante as cerimônias fúnebres, é um dos sinais mais claros de que as coisas não vão bem, provavelmente o morto quer matar

127 alguém.97 Apesar dos presságios, segue sendo impossível compreender completamente o que os mortos estão pensando, o que querem, que tipo de ataque planejam. “Assembleias de seres humanos e assembleias de mortos não são a mesma coisa” (“líbisëmbë kuútu ku kootösëmbë kuútu ná dí wán”). Talvez no mundo dos mortos, argumentava outro informante, se viva de modo muito diferente daqui. Lá, os gaánsëmbë (os ancestrais, os mais velhos) mandariam em tudo, decidiriam sem questionamento o que todos vão fazer. Talvez por esta razão um kúnu possa assombrar alguém que ele gostava, talvez por isso mortos guardem segredo sobre seu mundo. A ideia faz ressoar clivagens existentes do lado de cá – a importância da ancestralidade – e a visão de que os ancestrais mais antigos eram extremamente poderosos. Os fugitivos das plantations, os que ganharam a guerra contra os brancos, os fundadores dos clãs eram detentores de forças que não possuem paralelos nos dias de hoje. Mas, se seus comandos são de fato inquestionáveis no além, sobre isso não há certeza, trata-se de mais uma elucubração. Poucas coisas são certas quando ao tratar deste assunto. Algo que parece ser mais canônico é a associação da morte com o oeste. Ao baixar o caixão, os coveiros devem se certificar de que a cabeça do morto aponte para poente (sónugo, lit. “para onde vai o sol”), pois lá é o lugar dos mortos, lá fica deodëkoondë. Da mesma forma, as salvas de tiro que são dadas nos funerais das aldeias não cristãs são direcionadas para o oeste. Nos kuútu, os kabiténi sentam-se em direção ao nasceste (sónukúmútu, lit. “de onde vem o sol”), pois lá é o lugar dos vivos, o lugar das coisas boas. Outro ponto mais pacífico é a eternidade dos mortos, o fato de que eles nunca deixam de estar de alguma maneira existindo e podem sempre influenciar o mundo dos vivos. A volta do neoséki é interpretada como uma forma de reencarnação (cf. Price & Price 1991: 112-22). Porém, uma reencarnação “incompleta”, pois o morto não deixa de atuar de outras maneiras por ter dado parte de suas características a um humano que nasce. Se não há um “princípio de exclusão” claramente definido na escatologia saamaka – destinos distintos para bons e maus –, há alguma diferenciação no que diz respeito aos “mortos feios”. Não propriamente acerca de seu destino, mas de sua condição post mortem.

97 É preciso entender que estes sinais não são vistos como fundamentalmente diferentes de outros que poderíamos considerar trivialmente indiciais: trovões indicam chuva, nuvens carregadas na outra margem do rio significam que chuva vai cair na aldeia, arco-íris significa que a chuva vai se acalmar. Aprendem a ler estes indícios sem diferenciá-los necessariamente em “naturais” e “sobrenaturais”. Price & Price (1991: 44) notam também em Dangogo a associação entre morte recente e chuva.

128 Uma conversa sobre taku deodë Em meu terceiro campo, em 2013, já estava claro que a morte seria o tema central de minha tese. Sempre que tinha oportunidade, buscava preencher algumas lacunas de meu conhecimento sobre o assunto sentando com aquele que havia se tornado meu informante privilegiado para este tipo de assunto: Mako, um homem na faixa dos 45 anos, cristão, mas que pouco frequentava a igreja. Ele ajudava de bom grado, havia se tornado um amigo e queria que eu tivesse sucesso com o livro que escrevia. Ademais, era interessado em trocar ideias sobre este tipo de assunto, gostava de explicar “coisas saamaka” e filosofar. Certo dia, pedi para Mako mais informações sobre o luto e ele, apesar de nunca ter passado pelo processo, contou coisas que sabia, indicando-me depois um vizinho, viúvo, que poderia me dizer mais. Seguimos conversando sobre o papel da matrilinhagem do pai nas cerimônias fúnebres. Ainda que na maioria das decisões e rituais a matrilinhagem (mamá beoë) do morto tenha primazia, a matrilinhagem de seu pai (tatá beoë) também recebe algum destaque na semana que se passa em frente à casa do morto, ele dizia, “pois não foi apenas uma família que perdeu uma pessoa, foram as duas.” As pessoas do tatá beoë devem ser assíduas na tenda para o morto, devem trazer coisas, trocar presentes, e devem chorar. Mako frisou a importância do choro: “mesmo se for uma pessoa que você não gostava, mesmo se for um feiticeiro, é preciso chorar, pois, quando você morrer, vai querer que as pessoas chorem por você também.” Até mesmo um assassino: ainda que não se possa “viver bem” com um assassino, é preciso chorar em seu funeral. Este último ponto acabou nos levando para uma conversa sobre assassinato. Com um assassino – alguém que cometeu o pior dos crimes – não se pode “viver bem” (líbi búnu), isto é, ter uma convivência cordial. Não se pode comer da comida que um assassino oferece, nem conversar muito com ele, manter uma amizade, pois do contrário o kúnu que ele criou, o espírito vingativo de sua vítima, irá ver você como cúmplice, e pode atacar. Como exemplo, Mako citou um caso sobre qual eu já ouvira falar, sobre o qual muitas versões circulavam, à meia-voz, pela aldeia. Certamente a pior tragédia recente em Botopási. Há alguns anos um jovem matara com um tiro, aparentemente sem motivos, sua irmã classificatória matrilateral (sísa). Para piorar tudo, ela estava grávida. A mulher e possivelmente o feto viraram kúnu de sua própria matrilinhagem. O kúnu dela escolheu como médium uma mulher do beoë que mora na cidade e frequentemente a possui a fim de comunicar seus desejos e sua fúria. Por vezes chegou até a falar por telefone, através de seu médium, com pessoas da aldeia. Muitos

129 infortúnios atuais da matrilinhagem envolvida são creditados à agência deste espírito vingativo, sejam doenças ou problemas em casamentos. O ponto que meu informante queria esclarecer era que um amigo do culpado, com quem se preparava para ir caçar quando a tragédia ocorreu, também foi acometido por males relacionados a este kúnu, mesmo sem pertencer à linhagem. Estava “vivendo bem” demais com o assassino. O enterro da vítima foi excepcional. Foi o único caso de sepultamento em Botopási que não se deu no cemitério comum. Como eu já sabia, diferentemente das aldeias “pagãs”, ali não há um local de inumação separado para os taku deodë (“mortos feios”, como era o caso desta mulher). Mas o ocorrido foi tão grave que a família, com medo, sem saber o que fazer, decidiu enterrá-la no mato, perto da pista de pouso, longe dos outros mortos. Além da violência do ocorrido – um tiro à queima-roupa – e além de ser um assassinato dentro do beoë, havia a gravidez.98 Chamaram para auxiliar nos procedimentos especialistas da aldeia vizinha, Pikísééi, que não são cristãos e portanto são mais acostumados com enterros especiais para taku deodë. Não celebraram vigília, não cantaram hinos durante a madrugada, não fizeram trocas rituais. Ocorreram outras mortes feias em Botopási depois deste caso, mas foram enterrados no cemitério normalmente e com o ciclo ritual completo – eu mesmo acompanhei as exéquias de um suicida. O caso da grávida fora de fato uma exceção. Como os especialistas de Pikísééi limparam com óbia a casa onde o crime ocorreu, esta teve de ser destruída e não puderam construir outra em seu lugar. No terreno crescia um pé de tucumã, que todos deveriam evitar tocar. Se tivessem enterrado no estilo cristão, poderiam usar o lugar, disse Mako, “pois a igreja não tem este tipo de regras”. Continuou: “as únicas weoti da igreja com relação a mortos são: não tema, reze para Deus e viva bem” (“ná fëeoë, bégi gádu, líbi búnu”). Muito diferente das inúmeras regras dos “pagãos”. Mako dizia que, nas “aldeias pagãs” as pessoas têm muito medo de morto, especialmente de taku deodë e das assombrações que deixam nos lugares. Pensando mais um pouco, complementou: “eles têm razão de ter medo, pois mortos são de fato perigosos, sobretudo taku deodë”. Entre as práticas e crenças chamadas muitas vezes de “pagãs” e as cristãs, a diferença não é incontornável. Ainda que haja posições radicais de ambos os lados – pessoas que se recusam a participar de qualquer ritual com óbia e pessoas que se recusam a sequer ir à igreja –, o imperativo da situação é que comanda as decisões entre um e outro modo de proceder. 98 A morte de uma grávida é considerada o pior tipo de morte em saamaka (cf. R. Price 2002 [1983]: 50). Muitos segredos envolvem o enterro de uma mulher nestas condições. O pouco que ouvi indica que é necessário um procedimento especial: um óbiama tem de descer à cova e tirar o feto da barriga da mãe, enterrando-o junto com ela e jogando a placenta fora. Nas aldeias pagãs, o óbiama teria ainda de pegar uma entranha da mãe, talvez seu fígado, e pregar numa árvore nas proximidades.

130 Numa circunstância usual, mesmo um taku deodë é enterrado seguindo as regras do cristianismo local. Porém, quando o caso é realmente extraordinário, é perfeitamente legítimo recorrer a outros costumes, outras weoti. Levando a sério os dois conjuntos de saberes, Mako, como boa parte da população de Botopási e das aldeias vizinhas, não está exatamente preso entre dois mundos. Afinal, não são universos de fato distintos. A colaboração funerária demonstra com clareza a capacidade de circular entre as possibilidades rituais que a conjuntura sincrética apresenta. Houve, aliás, casos onde o contrário ocorreu, contou Mako naquela tarde. As pessoas de Botopási, por não terem tantas weoti relacionadas a taku deodë, podem ajudar habitantes das “aldeias pagãs” se necessário. Quando de um assassinato ocorrido em plena aldeia de Pikísééi, por arma de fogo, motivado por uma dívida, os moradores de lá ficaram tão apavorados que não queriam nem mesmo mexer no cadáver. Chamaram então pessoas de Botopási (entre eles Mako) para ajudar a manipular o corpo. Em outra situação, uma mulher desequilibrada, moradora de Kambalúwa, mas frequentadora de Botopási, desapareceu. Depois de dias de busca foi encontrada morta na capoeira entre as duas aldeias. Suspeitavam de assassinato ou feitiço. Os habitantes de Kambalúwa queriam que ela fosse enterrada no mato mesmo, para evitar mover o corpo. Já as de Botopási resistiram, pois enterrá-la ali significaria inutilizar todo entorno da área para roças futuras. Decidiram então cortar um caminho do mato até o rio para levar o corpo, o que foi levado a cabo pelos homens de Botopási, pois os de Kambalúwa temiam se envolver. Para ajudar, mulheres de Kambalúwa cozinharam um jabuti para os homens de Botopási que fizeram o trabalho. Pelo que entendi, nenhum desses dois mortos receberam funerais, nem cristãos nem “tradicionais”, foram enterrados junto com outros “mortos feios”. Estes dois episódios demonstram que, apesar dos saamaka não cristãos serem “acostumados” com enterros especiais para taku deodë, não menosprezam conhecimentos e crenças dos cristãos, podem até recorrer ao auxílio deles em casos extremos.99

Morte feia e boa morte Um taku deodë é literalmente um “morto feio”, uma vítima de morte violenta. Pode ter sido assassinado, morrido numa batida de carro, num acidente com arma de fogo ou branca, se afogado ou se suicidado. A expressão diz respeito num primeiro plano ao aspecto físico em geral repulsivo destes cadáveres desfigurados, mutilados, apodrecidos. Mas outra tradução de 99 Como vimos no capítulo anterior, a colaboração mágica, ritual e funerária não se dá apenas entre aldeias cristãs e não cristãs (cf. R. Price 1990: 310-2n11, Price & Price 1991: 184).

131 taku deodë poderia ser “morte ruim” ou “morte má”, já que “ruim”, “mau” ou “mal” são acepções possíveis para a palavra taku – um taku jejé é um espírito maligno. Outra palavra que também pode traduzir “mal” ou “mau” é hógi (“perigo”, “infortúnio”). Podemos dizer que toda morte considerada taku deodë tem como causador um hógi, isto é, um acontecimento particularmente ruim ou perigoso. Todo morto, a princípio, é hógi, um perigo, um mal, posto que a vida é boa, ninguém quer morrer. Os mortos, com inveja ou ciúmes dos vivos e da vida podem querer levar a alma das pessoas com elas para o além, para a terra dos mortos, daí seu perigo, daí tantas proteções contra o contágio e a ação dos fantasmas. Mas os casos de taku deodë hipertrofiam isso: um mero olhar sob o cadáver, um mero contato com o solo ou água onde a morte ocorreu já podem ser suficientes para que um infortúnio ocorra, levando até mesmo à morte. Não é difícil entender o porquê. O fim súbito da vida, vindo de um episódio inesperado de violência preenche ainda mais o morto de fúria e perigo.100 Ainda que toda morte seja ruim, no extremo oposto de taku deodë podemos vislumbrar um certo ideal saamaka de boa morte. Uma passagem tranquila, na velhice, sem surpresas, dentro de sua própria casa, com parentes e vizinhos no entorno, cuidando e visitando, demonstrando preocupação. Depois, um enterro completo, digno, rico, no qual todos chorem por saudades e compaixão. Este ideal de boa morte evidentemente reflete um ideal de boa vida, uma existência longa, plena, que leva à velhice, ao conhecimento, a muitos filhos, o mais longe possível dos riscos de feitiçaria ou violência. Um “bom morto” idealmente é alguém que viveu o suficiente para acumular experiências, sabedoria, tornando-se idoso (gaánsëmbë) e depois ancestral (gaánsëmbë). Uma mulher idealmente teve muitos filhos, “aumentando sua linhagem” (“mbéi i beoë kó bígi”). Em algum nível ainda misterioso e perigoso, esse tipo de fantasma muito provavelmente será mais benevolente e poderá se transformar num ancestral cultuado, recordado por gerações, que virá em sonhos, oráculos e visões para ajudar e ensinar aqueles de quem gosta e que dele necessitam. Por isso seus rituais funerários serão maiores, mais abundantes, e, em aldeias não cristãs, mais demorados. Por isso erguerão um zéi (grande bandeira) em frente à sua “casa de morto”, celebrando o fim de uma grande vida. 100 O temor particular à morte violenta não é característica exclusiva saamaka. Hertz (2003 [1907]: 78-9) nota que casos de mortes violentas ou acidentais por todo mundo envolvem ritos especiais. Frequentemente considera-se que suas almas não se juntam ao mundo dos mortos, erram sobre a terra ou habitam um local separado no além. Impedidos de se juntar aos mortos comuns, não há porque fazer para eles os mesmos rituais, posto que seu fim não será cumprido. Também van Gennep (2011 [1909]: 138) e Bloch & Parry (1982: 15) devotam atenção especial a esse tipo de morto.

132 Já no caso de uma ação abrupta que interrompe esse processo natural, esperado e desejado, no caso de uma vida que foi ceifada ainda incompleta, de alguém que foi arrebatado inesperadamente e provavelmente injustamente, o morto, taku deodë, torna-se uma calamidade. Esses são os kúnu mais violentos, os fantasmas mais contagiosos e os enterros mais discretos e soturnos. Sua própria presença no cemitério poderia macular o local, sua força poderia exercer má influência sobre os outros mortos, daí a necessidade de enterrá-los separadamente. Se todo ciclo funerário é arriscado, o de um taku deodë seria ainda mais, por isso não é celebrado nas aldeias não cristãs. Não surpreende, portanto, que crianças mortas ainda pequenas (especialmente as que ainda não tiveram a primeira dentição) sejam indiretamente associadas a mortos feios e enterradas separadamente na maioria das aldeias saamaka: ninguém deve morrer tão cedo, sem chance para desenvolver-se minimamente. Os bebês, porém, parecem não ser tão perigosos por ainda serem muito fracos, terem menos capacidade de agência positiva ou negativa antes ou depois da morte. Algumas aldeias têm cemitérios separados para leprosos e pessoas que nasceram com deformidades nas mãos (kokobesma), o que pode ser entendido na mesma chave: viveram uma vida defectiva.101 Quando morre um taku deodë em Botopási – mesmo que não seja um caso tão horrível quanto o relatado acima – o processo ritual é um pouco alterado. Especialmente em seus primeiros passos, pois quase todos temerão encostar e olhar para o cadáver. O medo é tão grande que poucas pessoas saem de casa. Quem puder evitará o local da tragédia. Situação muito diferente da enorme atividade que cerca a casa de um morto comum. Com um morto feio na aldeia, normalmente antes do enterro, antes mesmo da lavagem do corpo (wási deodë), é preciso fazer uma limpeza com óbia. Ninguém toca no corpo antes de um óbiama tratá-lo. Pode ser também necessário limpar com óbia o local da morte, que nesses casos poderá se tornar roto, deixando então de ser utilizado como espaço de moradia, roça, caça e mesmo como estrada. Em muitos desses casos, mas não só neles, o solo ou a casa onde se deu o falecimento se tornam assombrados (sipúku): quem ali passa pode ver “coisas ruins” (hógi), especialmente se for uma pessoa diretamente relacionada com a morte, malquista pelo 101 Reis (1991: 143-4) nota a diferença entre “funerais espetáculos” para mortes “boas” (especialmente de pessoas importantes) e “funerais clandestinos” para mortes “ruins” (como as de suicidas).. Em saamaka, o funeral será mais espetacular quanto mais velha for uma pessoa e quanto mais alto o cargo político oficial que ela ocupa, sendo os maiores os dos gaamá. Mas figuras importantes por outros motivos, como músicos famosos, também receb'em muitas visitas e recebem funerais espetaculares. Boyman, músico de reggae saamaka falecido em 2013 teve um funeral frequentado por milhares de pessoas e DVDs eram vendidos em Paramaribo com imagens de suas exéquias. Meus amigos disseram-me que quando morreu o rapper ndyuka Papa Touwtjie, em 2005, o funeral na cidade foi ainda mais grandioso (cf. van der Pijl 2007: 456).

133 fantasma, ou da matrilinhagem de alguém nesta posição. Se a morte feia foi na cidade ou alhures, o esperado é que um óbiama faça a lavagem com óbia por lá antes do corpo ser trazido para as cerimônias na aldeia. Porém, o mais comum é que, quando alguém morre uma morte feia na cidade, simplesmente deixem de trazer o defunto para Botopási. Sobretudo se o cadáver ficou desfigurado, ou se o acontecido foi particularmente grave e deixou as pessoas temerosas. Farão então as cerimônias na cidade e enterrarão em algum dos cemitérios de Paramaribo. Poucos moradores de Botopási irão se locomover até a cidade para tal enterro. Um ponto relevante é que morte por feitiçaria (wísi) não gera taku deodë. Bem entendido, o efeito mortal de um wísi pode, sim, ser considerado assassinato, pois os saamaka possuem uma visão ampla do que significa causar a morte de alguém. Qualquer mal grave cometido contra alguém (mentira, traição, roubo, etc.) pode ter efeitos de longo prazo, levar à morte após um tempo: a vítima pode ficar deprimida, doente, cair na miséria e, em decorrência, vir a falecer ou se suicidar. Mas um “homicídio” assim não gera taku deodë, a não ser no caso de suicídio. Um feitiço mortal é assassinato, mas apenas nesse sentido expandido de assassinato, já que a maioria dos efeitos de bruxarias não é sentida imediatamente. Logo, mesmo que se trate de um wísi poderoso e violento, restam sempre dúvidas sobre se o que causou a morte foi de fato magia negra. Isso só vai ser descoberto depois, por via de oráculos e outros sinais, e ainda assim sempre poderá restar alguma polêmica sobre o caso. Além do mais, uma enorme parte das mortes saamaka é creditada a agências sobrenaturais – seja feitiço, kúnu, demônios, outros espíritos, ou combinações dessas coisas. Como não há eventos completamente casuais, como quase todo mundo possui inimizades e conflitos, e como existem pessoas mal-intencionadas no mundo, a bruxaria é sempre cogitada quando morre alguém, especialmente um jovem. Os taku deodë, porém, são mais raros, são ocorrências sobretudo de mortes abruptas e localizadas. É claro, isso não isenta a participação de feiticeiros ou de espíritos no ocorrido. Um kúnu pode ter causado o acidente, ou um feitiço guiado o assassino. A distinção está na causa imediata da morte e não nos motivos profundos por detrás dela – uma árvore caindo sobre a cabeça de alguém é taku deodë, um ataque do coração não, ainda que ambos possam ser consequência de um feitiço.102

102 De acordo com Stuart Strange (2013, comunicação pessoal), para os ndyuka, o espírito de um takuu dede é chamado de koo sama, em oposição aos yooka comuns, e é notoriamente mais perigoso. Em saamaka, porém, o termo equivalente, kootö sëmbë (“gente fria”), é um sinônimo de joóka (“fantasma”), ou mesmo de deodë (“morto”), não há diferença de sentido ou de origem entre eles. Todo morto é kootö sëmbë. Fantasmas de taku deodë são potencialmente mais perigosos do que outros joóka, mas não são designados por nenhum termo especial, não havendo diferença substancial entre eles.

134 Sendo eventos localizados e traumáticos, os taku deodë deixam máculas nos territórios e na história. Daí a necessidade da limpeza do solo ou do rio com óbia, daí sua tendência maior a causar assombrações. Uma área onde se passou uma morte feia nunca mais será a mesma, ficará marcada na memória das pessoas como um local perigoso (hógi), com “espíritos feios” (taku jejé). Um morto feio enterrado há mais de um século num igarapé logo na saída de Botopási, por exemplo, continua assombrando o local, tornando-o interdito para algumas matrilinhagens e temido por quase todos. Existe certa ambiguidade na relação com os taku deodë em Botopási. A rejeição ou aceitação de determinadas regras, costumes e práticas operam desigualmente entre os habitantes da aldeia cristã. Como vimos, a categoria de taku deodë existe em Botopási e é levada a sério, são mortos de fato mais sinistros e perigosos, mas, como argumentou Mako, “gente de igreja” (kéíki sëmbë) não tem as mesmas regras ou tabus em relação a eles. Daí a celebração do rito funerário completo para seus mortos feios, daí o desassombramento com que muitos encaram casos como afogamento ocorridos em aldeias distantes.103 A fé (biíbi) funciona como uma proteção. O anteparo do Deus criador é mais pleno quando se seguem as regras da igreja, dizem os cristãos, chegando mesmo a fazer frente ao perigo dos taku deodë. Outra dúvida – esta não necessariamente ligada ao cristianismo – é sobre a capacidade de um espírito de taku deodë atuar como um “morto bom”. Qualquer morto a princípio pode ajudar espiritualmente os vivos com quem se importa, as pessoas que amava durante sua vida ou seus descendentes. Se tornou-se kúnu de uma matrilinhagem, ainda pode auxiliar outras. Se o morto não é seu kúnu, ele pode continuar gostando de você – desde que você não esteja “vivendo bem” com seus assassinos, com as pessoas que ele assombra. Sua ira é direcionada a outros, e portanto ele pode atacá-las e simultaneamente direcionar benfeitorias a você. Porém, quando se trata de taku deodë, ouvi afirmações opostas sobre sua capacidade de ações benéficas: alguns dizem que um fantasma de morto feio jamais ajuda espiritualmente ninguém em nada, nem mesmo a seus filhos. Outros afirmam que a ajuda do espírito de um taku deodë é mais difícil, provavelmente impossível até que o morto e o local do falecimento sejam propriamente tratados com óbia, mas possível depois disso. O terror da morte antinatural agrava características negativas da morte e gera dúvidas sobre seus traços positivos.

103 A princípio um afogamento torna poluída toda a água do rio e seus peixes, até que um óbiama limpe o rio (lëmbeo i lío), mas não são todos os habitantes de Botopási que seguem esta regra hoje em dia.

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Capítulo 3: Rituais de cuidado e separação Quando eu perguntava aos saamaka quais as motivações por trás dos ciclos funerários, a resposta imediata era sempre que os funerais servem para alegrar a família. As trocas de presentes são “confortos” ou “consolos” (trowstu), explicavam. As madrugadas passadas em claro e a semana sob a tenda são festas para trazer de volta a felicidade àqueles que perderam um ente querido, para tirar o sofrimento de suas cabeças e corações. Porém, quando perguntava sobre algo específico, digamos, sobre por que amarrar angula na cintura ao cavar a cova ou lavar o morto, sobre por que lavar a mão depois de sair do cemitério, sobre por que cantar numa cadência mais lenta durante as vigílias, a resposta mais comum era “algo pode te fazer mal” ou alguma variação do tipo “para se proteger do morto”, “para que o morto não se zangue”, “porque senão você pode ficar doente ou morrer”. Quando a pergunta era comparativa (“por que vocês não dão tiros para o alto em funerais, nem contam kóntu nas vigílias, como vi em outra aldeia?”), um terceiro tipo de resposta seguia a linha do “porque é assim que estamos acostumados”, “porque aqui é uma aldeia cristã”, “porque assim me ensinaram meus antepassados”. Por fim, a certas questões bastante específicas, cheguei a ouvir como resposta confissões de desconhecimento: “isso você tem que perguntar para os mais velhos”, “Fulano sabe melhor de tais coisas”, por vezes vindas de pessoas que efetuavam precisamente o ato ritual sobre o qual eu questionava. Todos esses tipos de respostas estão interligados. A reconstrução da estabilidade psíquica e emocional dos vivos, o cuidado com os mortos e a proteção contra eles são alcançados por meio de movimentos e momentos rituais preestabelecidos e normalizados pelos costumes e regras (weoti) de cada aldeia, mas que não são inalteráveis ou absolutas. Existe um espaço para variação, criatividade e debate. Espaço que é essencial, pois “não há enterros sem discussão”, mas que não é total, nem tudo está aberto ao debate. É preciso tentar compreender do que, afinal, pode-se abrir mão e do que não se pode, dentre os ritemas. Por outro lado, o desconhecimento de parte de certos aspectos mais esotéricos dos rituais indica que em muitos pontos a compreensão do executor acerca de sua tarefa pode ser menos relevante do que sua execução. O que interessa é fazer, mesmo sem saber o porquê. Todos compreendem, lá em saamaka, que os conhecimentos estão espalhados pela memória de vivos, mortos e espíritos, que são frequentemente secretos, e, diante disso, apenas fazem o que têm de fazer para se proteger ou alcançar seus objetivos. Frequentemente é apenas o etnógrafo

136 que está preocupado com a origem de certos detalhes. Amiúde não é de bom tom perguntar certas coisas. O que interessa muitas vezes é tão somente levar a cabo corretamente uma tarefa para que tudo ocorra de forma tranquila. Para tentar dar sentido a esses atos rituais, focarei alguns dos preparativos mais críticos que cercam o cuidado com os mortos durante os funerais. Podemos extrair algumas ideias para nos guiar observando detalhes da lavagem do corpo, da escavação da sepultura, da fabricação do caixão, da organização espacial do cemitério, da separação de vivos e mortos e do encerramento dos rituais que levam ao restabelecimento da vida cotidiana.

Lavando um cadáver Em maio de 2011, a notícia de um suicídio de um jovem de Botopási que morava na cidade suspendeu os últimos dias de uma expedição de caça com um grupo de amigos. Voltamos num domingo, antes do esperado. Na manhã de segunda-feira, ouvi o basiá baí conclamando para um kuútu e julguei que se tratava de algo relacionado à morte desse jovem, cujo corpo ainda seria transportado para o Alto Suriname. Chegando na reunião fiquei sabendo que, na realidade, outra morte ocorrera concomitantemente na aldeia: Baáa Bino, um idoso de mais de oitenta anos, que há cerca de 30 sofria de lepra, morrera durante a madrugada. Houvera uma vigília de domingo para segunda, mas não foi considerada o boóko didía oficial pois não haveria tempo de preparar o enterro para o dia seguinte. No kuútu relacionado à morte de Baáa Bino, separaram as tarefas: um grupo construiu uma tenda na porta da casa do morto, um grupo foi selecionado para lavar o corpo, outro para cavar a cova, além da escolha de quem seriam os deodë basiá. Um dos escolhidos para esta última função, no intuito de me ensinar sobre como as coisas funcionam, nomeou-me deodë basiá depois da reunião, algo extraoficialmente, mas com anuência dos líderes da aldeia. Acompanhei os preparativos durante o dia. As pessoas iam até suas casas para separar, dentre os têxteis que guardam em grandes malas, os panos (koósu) e lençóis que pretendiam doar para o funeral, além de comprar nas lojinhas da aldeia ou pegar de suas dispensas rum, refrigerante, chá, óleo, etc., para entregar nos “armazéns” (maksin). Os kabiténi observavam quem participava das atividades e discretamente aconselhavam uma ou outra pessoa que se fazia distante a cumprir alguma função ou fazer uma doação em bebidas e tecidos (em especial se tinham relações com a família do morto, como os homens que tinham filhos naquela matrilinhagem). A tenda foi construída rápida e habilmente. Em baixo dela logo colocaram cadeiras e o dia inteiro muita gente ficou por ali, conversando, bebendo ou

137 trabalhando, cozinhando, organizando as coisas. As mulheres costuravam, ora à mão, ora à máquina, koósu dois a dois, para fazer lençóis com os quais enrolariam o corpo. Na frente da casa, em duas panelas, preparavam os líquidos para lavar o morto. Naquela altura, muito do que ocorria ainda me ultrapassava. A preparação para a lavagem é uma das mais urgentes: logo depois da morte, alguém já começava a falar “vamos apressar! Vamos apressar!” (“bóo biingá! Bóo biingá!”), referindo-se a este serviço. Como costumam fazer, esquentaram a água para a lavagem fora da casa, em panelas ou chaleiras de boa qualidade, emprestadas por alguém que “tinha” o morto, ou seja, alguém de sua família. Dão preferência a utilizar uma lenha especial, de boa qualidade, como kapeoë údu104, “o tipo de lenha que é de bom tom dar de presente para sua sogra”, tempos depois me explicaram. Quando chegou a hora da lavagem propriamente dita, um dos wásideodëma (encarregados da lavagem) afirmou: “não vamos lavar o Baáa Bino, vamos lavar o morto. Já não é mais a mesma pessoa”. Penduraram uma cortina na porta da casa do morto para marcar a separação do ambiente, mas as janelas ficaram abertas. Coloquei-me a observar por uma delas, mas logo alertaram que aquilo não era certo: se eu quisesse ver ou participar, que entrasse na casa. Foi o que fiz. Meu cargo de deodë basiá não envolvia a lavagem do cadáver, mas não havia problema em participar. Os wásideodëma eram uma mulher e três homens, um deles, o que guiava os procedimentos, era membro do conselho da igreja. É costume que algum “líder da igreja” (fésima u kéiki) o faça, mas qualquer pessoa acostumada com o trabalho pode tomar a dianteira. Não há prescrição contra pessoas da matrilinhagem ou matrilinhagem do pai do falecido ajudarem na limpeza; apenas os viúvos ou os envolvidos sexualmente com o falecido estão impedidos de fazê-lo, pois do contrário correriam risco de vida. Além dos wásideodëma “oficiais”, eu e mais duas mulheres assistimos o procedimento, ajudando a entregar materiais quando necessário, sem tocar no corpo. Nós três não precisamos, portanto, amarrar em nossas cinturas a angula, pano protetor.105 O corpo já havia sido anteriormente descido da rede onde o morto dera seu último suspiro, e dali colocado no caixão temporário (báki), amarrado provisoriamente em dois lençóis, uma rede de dormir e uma corda. A casa estava livre de móveis e outros objetos. Uma vela foi acessa no chão, próxima ao pé esquerdo do morto, e depois transferida para o cômodo 104 Lenha de kapeoë páu, sardinheira ou cascária (Casearia arborea), árvore típica de vegetação secundária. Kapeoë significa capoeira, área de mata onde já houve roça, por oposição a páu goón, a mata virgem. 105 A angula não é usada apenas para lavar o morto. Em outros tipos de trabalho mais pesados, como derrubar grandes árvores, também é costume amarrar um pano na cintura. Porém, quando se trata de wási deodë, a angula é indispensável, pois evita o contato do suor e das roupas com o cadáver.

138 posterior da casa, vazio. Após uma prece, colocaram um plástico no chão da sala, um grande tecido por cima, e ali deitaram o cadáver, retirando-o do báki, que foi levado para os fundos. Tudo com muito cuidado. Abriram a corda, a rede e os lençóis. A aparência do corpo, devido à lepra, era desagradável, mas ninguém comentou nada a este respeito. Ele vestia apenas uma tanga de pano amarrada com uma corda, cobrindo o púbis. No canto da sala, três cuias. Depois me explicaram que se pode usar duas ou três cuias para a lavagem: uma com água quente, uma segunda opcional com água fria (presente neste caso) e uma terceira com água em temperatura ambiente, na qual se misturam cânfora, rum branco, sumo de limão e tabaco preto (comprado na cidade). Isso forma um líquido turvo, pendendo para o bege, de cheiro leve. Para Baáa Bino, lavaram usando primeiro a cuia de água quente, depois a de água fria e por fim a mistura, dividida em duas aplicações. Rasgaram um pano branco e limparam sistematicamente o corpo, por toda pele. Parte do grupo levantava e virava o cadáver quando era preciso. Repetiram a operação com mais da mistura até o líquido esgotar. Secaram então o corpo com uma toalha, que depois deixaram durante boa parte do processo tampando o rosto e a boca do cadáver. Esta toalha, contaram-me depois, seria lavada e devolvida para a família. Ela possui uma “força” (kaakíti) especial, assim como as roupas que o falecido vestia quando morreu, que também são devolvidas à família depois de limpas. Estas relíquias podem ser usadas para se proteger, quando vai-se a algum lugar ou atividade perigosa, digamos. Com o corpo lavado e seco, trouxeram de volta o caixão provisório e nele passaram a preparar a complexa mortalha. Iniciaram colocando os lençóis duplos: primeiro um dobrado na horizontal, depois cinco abertos, depois oito abertos, em pares, um dobrado na vertical, mais dois pares, mais um na vertical, mais um par. Eram de várias cores e padronagens. 106 Ao longo da organização, havia grande preocupação em contar quantos lençóis foram colocados, ainda que, parecia-me, estivessem decidindo o número exato ao longo do trabalho. No total foram 29, mas na altura de 21 e 25 pareceram ameaçar parar. A contagem e a discussão que a acompanhava, sobre o número apropriado de koósu para enrolar o morto, soava-me estranha, uma mescla de atenção obsessiva a detalhes, jogo de retórica e improviso. Depois explicaram que não havia exatamente improvisação, a regra é que a quantidade de koósu deve ser em torno de 30. Não podem ser excessivos, pois do contrário o morto pensará que há riqueza demais, abundância demais, e pode querer levar mais alguém com ele. Não podem ser escassos, tampouco, senão o morto achará que há avareza, que alguém tem algo contra ele. São como presentes para o morto. 106 Os panos (koósu) usados para enrolar ao corpo são do mesmo estilo usado nas trocas rituais (ver cap. 4).

139 Colocaram todos aqueles panos, ainda abertos, sobre o caixão e por cima deles o cadáver. Uma tira de pano branco amarrava a cabeça, prendendo a mandíbula, e outra amarrava os dedões, mantendo as pernas fechadas. Sob a cabeça, um travesseiro. Trajaram Baáa Bino em roupas ocidentais brancas: cueca, calça, camiseta regata, camisa de botão. Logo passaram a dobrar os lençóis abertos, fazendo uma espécie de casulo. Apenas o rosto, uma gravata borboleta e uma abotoadura dourada ficaram visíveis. O último lençol fechado também era branco. Um pano do tamanho de uma bandana foi colocado tapando o rosto. Alguns koósu e toalhas ainda foram enrolados e acomodados ao lado do corpo, preenchendo totalmente o caixão, dentre eles um koósu bordado muito bonito, um dos favoritos do falecido. Alguns dos panos sobraram nas cestas nas quais vieram. Nos caixões em Botopási só vão têxteis, de modo que se alguém quiser que o morto seja enterrado com algo seu, como presente ou lembrança, deverá doar koósu, lençóis ou toalhas para serem acomodados no esquife durante a lavagem. O caixão foi erguido até o catafalco (bángi107) e deixado semiaberto, com mais um pano decorado sobre a tampa – este um tecido guardado na igreja, que depois seria lavado para ser usado novamente em outro funeral. Algumas flores também foram colocadas sobre o caixão. Todos limparam suas mãos com rum branco e a lavagem teve seu fim. Retiraram a cortina que tampava a porta. Agora era possível, para todos que quisessem, entrar na casa para ver o morto devidamente preparado. Após o fim da lavagem, ergueram um zéi, bandeira feita de um koósu comprido, mais na horizontal do que na vertical, esticada em um mastro de madeira, com mais de cinco metros de altura. O zéi só é hasteado para mortos idosos como Bino, para capitães ou para viúvas de capitães.

Agradar ao morto Mais de um ano depois, eu quis saber sobre a composição do líquido que lava o cadáver. Achava estranho que a maioria dos ingredientes – cânfora, tabaco, rum – fossem importados da costa. Queria saber porque não usavam na lavagem do corpo goón uwíi (“folhas da terra”, termo genérico para ingredientes vegetais), centrais na maioria dos compostos medicinais saamaka. Um dos interlocutores corrigiu-me, dizendo que o limão era, sim, goón uwíi, pois crescia do solo. Mas isso não respondia minha pergunta. Dois pontos 107 A palavra bángi designa “banco” e “catafalco”. Soa como se o vocábulo fosse usado para referir-se ao segundo por extensão de sentido. Na pesquisa de Reis sobre funerais na Bahia nos sécs. XVIII e XIX aparece um objeto de “origem incerta”, chamado bangüê, esquife usado para a condução de mortos indigentes e escravos (1991: 146-7). Talvez etimologia de bángi (catafalco) seja a mesma, e bángi (banco) em saamaka seja apenas um homófono.

140 parecem fundamentais para entender a composição do líquido: em primeiro lugar, o universo mágico, religioso e cerimonial saamaka não está de forma alguma isolado do mundo exterior, da costa. Rum, tecido, terçados, sabão, sal e tantos outros elementos indispensáveis em trocas cerimoniais, pagamentos por serviços espirituais ou como ingredientes de compostos mágicos são produzidos fora do território saamaka. O elemento estrangeiro fornece uma forma particular de força que não deve ser ignorada. Porém, a resposta para minha pergunta era outra: o líquido que lava o cadáver não é considerado “mágico”, não é óbia, explicaram-me naquele dia. Daí não serem centrais plantas colhidas na floresta. O objetivo geral da lavagem (wási deodë) é simplesmente lavar o corpo, não apenas para que fique menos perigoso, mas porque o morto quer ser lavado. Explicaram-me didaticamente: “quando você vai dormir, toma banho antes, não é? O morto não pode se lavar sozinho, não pode mais se mexer. Se não o lavarem, ele pode achar que você tem algum problema com ele”. Não usam óbia para lavar cadáver – nem nas aldeias não cristãs 108 –, com exceções apenas para pessoas que possuem espíritos como töneo (divindade da água), apukú (divindade da mata) ou algum outro óbia poderoso que peça anteriormente para que o lavem. Utilizarão, nestes casos, receitas específicas de tais espíritos. Mas é importante notar que não estão lavando o morto com a receita, e sim o óbia, e para isto usarão uma cuia separada. Não podemos ignorar que os gestos rituais de lavar e vestir o morto têm uma faceta importante de proteção, efetuam uma espécie de “desinfecção” do cadáver – nos sentidos espiritual e corporal, que não se distinguem. Um morto limpo é desimpregnado de certa força, talvez uma espécie de memória de seu corpo, que permanece nas roupas que usava quando morreu, na toalha que seca seu corpo depois da lavagem e em suas exsudações. Um morto vestido, amortalhado, fechado em panos quase como uma múmia, protege e está protegido por uma barreira física de tecido, que dificulta que sua poluição se espalhe via toque ou visão. Mas o foco, afirmam meus informantes, é agradar ao morto. Deixá-lo limpo, cheiroso, como os saamaka gostam de ficar sempre, daí cânfora, rum, limão, tabaco, elementos com aroma forte que combatem o odor da morte. Vesti-lo com as melhores roupas possíveis, seja indumentária tradicional ou em trajes ocidentais, como foi o caso de Baáa Bino. Escolhem roupas que o falecido gostava, nas quais teria orgulho de ser visto, mesmo que essas roupas fiquem sob camadas e camadas de pano, fora da vista de todas as pessoas que comparecerão

108 As descrições de R. Price (1990: 212-3) e Price & Price (1991: 43-4) confirmam: os cadáveres foram apenas lavados com água quente e água fria. Nas aldeias analisadas pelos Price, bem como em outras aldeias que visitei, há locais específicos para lavar o cadáver, diferente de Botopási, onde isto é feito na casa do falecido.

141 ao enterro. Deixam-no endomingado para ir para o além. Junto com as roupas dentro de seu caixão vão koósu bonitos, decorados, presentes que são gestos para contentar o morto. Durante todo o ciclo ritual, o morto deve ser agradado, honrado, homenageado. Todo serviço efetuado ao longo da semana é feito com afinco para demonstrar cuidado e cortesia com aquele que morreu. Se o funeral não correr bem, o morto pode fazer algo contra a própria família, mas isso não é comum. Pode vir a acontecer caso o morto tenha problemas não resolvidos com pessoas que ficaram vivas e, por cima disso, muita gente recusar-se a ajudar nas cerimônias; ou se a família é rica mas proporciona um funeral pobre, demonstrando claramente desdém com o falecido. Mas o medo não é o combustível principal aqui. O ponto é a manutenção das relações com a pessoa, mesmo que ela agora esteja partindo para o além. Se é verdade, como veremos, que a separação entre vivos e mortos deve ser efetuada com clareza, por outro lado o corte não é abrupto nem completo. As relações de parentesco, afinidade e amizade estabelecidas com o falecido não se desfazem após a morte, ainda que mudem de figura. Agora espírito, a pessoa torna-se mais potente e perigosa, graças à sua imaterialidade, de maneira que sentimentos e vínculos positivos serão enfatizados, enquanto tentam amenizar os negativos. Falam com o recém-falecido várias vezes, reforçam com palavras tudo o que está sendo e foi feito em nome dele, durante o funeral. Suplicam para que ele não se zangue, que não traga coisas ruins, doenças, acidentes nem mortes para a família. Pedem que se desapegue de sua casa, da aldeia, de suas pessoas e de suas coisas, deixando o que é dos vivos com os vivos. Que suas únicas intervenções do lado de cá sejam positivas – que proteja os sobreviventes de todos os males, que traga muitas crianças, que traga caça abundante, riquezas, felicidade. Ao mesmo tempo, falam com outros mortos, outros ancestrais, avisando da morte que ocorreu e pedindo para que recebam bem o recém-chegado na terra dos mortos, pedindo deles também paz, proteção e benesses. Nas mesmas preces, rezam para Deus (Mása Gádu), pedindo basicamente as mesmas coisas boas, mas de modo mais impessoal. Pode ser que alguns pedidos para os mortos sejam carregados com um leve tom de ameaça, do tipo “vamos culpar você se alguém ficar doente durante o enterro!”, mas não creio que ameaçariam Deus assim. Apesar de eventuais ameaças suaves, o tom com o morto é em geral de grande respeito. Devido às conotações negativas da morte, o respeito envolve alguns subterfúgios para não referir-se diretamente a ela. Já vimos que os mortos bem quistos não são chamados de joóka (fantasmas), mas de gaánsëmbë (antepassados). O fato de não se falar sobre a morte

142 até que o anúncio oficial (boóko búka) tenha sido dado em kuútu aponta para o mesmo: não apenas é necessário o ato ilocutório de decretar o falecimento para a aldeia, mas também referências muito diretas à morte podem ofender o defunto, especialmente se ocorrem cedo demais, pois pode parecer que desejavam seu fim. Isso fica particularmente visível no caso do falecimento de um gaamá, morto paroxístico109 ao qual ainda mais respeito é devido: não dizem que ele morreu, mas sim que “dormiu”; não dizem que será enterrado, mas que será “levado para a Holanda” ou “para a África”; seu caixão é chamado de “casa” e construído num formato que lembra uma residência de vivos. Esta não é a única razão pela qual tal segredo de polichinelo é construído, mas certamente o respeito ao morto é fundamental. O choro é também uma expressão de respeito ao morto. Demonstra que a pessoa era querida, que não queriam que ela partisse do meio dos vivos. Como tudo no ciclo funerário, porém, é necessário que seja regrado. Por isso a maioria do choro é ritualizado, se dá em momentos precisos: quando anunciam a morte, quando avistam o cadáver ou o caixão, quando certas palavras são ditas, quando carregam o esquife e quando o colocam em sua cova. Além de falar com os mortos e chorarem para eles, as pessoas em Botopási fazem oferendas. Libações não são tão comuns ali quanto em outras aldeias, mas ao menos ao fim de cada kuútu capitães e anciões da aldeia derrubam rum ou outros líquidos no chão, esfregam ou aspergem nas suas bengalas (wakitíki). Oblações em comida nunca vi em Botopási, mas são comuns alhures. Cada pequeno gesto pode ser pensado como uma forma de agradar ao morto e a sua família. Certa vigília, já alta madrugada, ouvi uma mulher que quase já não se aguentava mais desperta dizer que estava fazendo um esforço para não dormir, mesmo o falecido não sendo parente seu, pois quando perder alguém de sua família, quer que façam o mesmo por ela. Passar a madrugada cantando e se divertindo, externando bons sentimentos, é um presente ao morto e à sua família, assim como a comida e a bebida que se prepara e se consome, os presentes que se troca e todo serviço que se faz. Há formas de agrado genéricas e específicas. Há aquelas que fazem para todos os mortos (libações, limpeza, amortalhamento, vigília, agradecimentos, hinos, comidas, alegria) e há aquelas que dizem respeito ao gosto do falecido: um prato que apreciava será preparado pelas deodë basiá; seu hinos e canções favoritas serão cantados durante a noite; jogos aos que era afeito terão destaque sobre a tenda; a escolha da roupa com que será enterrado depende do que gostava de vestir; se era um bom carpinteiro, farão seu caixão na aldeia em vez de 109 O ciclo funerário de um gaamá é paroxístico em vários sentidos: é mais longo, mais abundante de comida, danças, músicas, convidados, mas também traz mais perigos e portanto mais segredos.

143 comprá-lo; se era bom caçador ou pescador, homens irão caçar ou pescar para trazer carne... Desde que não se trate de algo proibido nas “casas de morto” (como dança, carne de viado, pimenta), buscarão homenageá-lo partindo de suas preferências. Uma pessoa não perde sua individualidade após a morte. Mesmo os agrados “genéricos” não apontam para uma indistinção das pessoas no além: alguns atos são comuns para todos os mortos em parte porque eles eram acostumados com rituais à moda de sua aldeia, aos quais sempre compareceram. Seguem acostumados com a tradição da qual fazem parte. Quando morre uma pessoa que “pertence” a múltiplas aldeias (digamos alguém nascido e criado em Pikísééi que viveu grande parte de sua vida em Botopási) é sempre preciso reunir as aldeias e discutir quais compromissos serão feitos às duas tradições, o que pode gerar conflitos. Todo processo de velório e sepultamento é perigoso. Grande parte dos gestos rituais são formas de cuidado, de proteção contra a possivelmente danosa ação do falecido, bem como contra os riscos de contágio com o cadáver. Mas paralelamente há grande preocupação em alegrar os vivos e mortos, em expulsar a tristeza e trazer de volta a felicidade à aldeia e em particular àqueles que eram íntimos do falecido. Além de um fim em si só e além de reatar os laços sociais abalados pela perda de um membro da comunidade, isso também está conectado com o caráter protetório dos ritos. Afinal, os sentimentos soturnos, a tristeza (tjalí), o sofrimento (háti), a melancolia (kusumí), a saudade (hángi) deixam os vivos mais vulneráveis e os mortos mais suscetíveis a mágoa e desgosto.

A cova A escolha de quem será coveiro – baákuma (lit. “pessoa do buraco”) ou baákumíi (lit. “criança do buraco”) – é feita no mesmo momento em que escolhem as demais funções cerimoniais, no kuútu logo após o anúncio da morte. Designam um “líder dos coveiros” (hédi baákuma ou hédima u baáku) responsável pelo grupo, em geral um homem acostumado com tal trabalho, bom de serviço. Como nos outros cargos funerários, aqueles que se destacam na função gozam de algum prestígio e são chamados com frequência para exercê-la. Além do líder, selecionam um grupo de talvez dez entre os jovens (kijóo) da aldeia. Praticamente qualquer homem capaz, em idade adulta e ainda não ancião, pode fazê-lo, se quiser, e o fazem com certa frequência, já que não sobram homens jovens na aldeia. Mais do que isso, é esperado que todo homem seja coveiro ao menos uma vez em sua vida, mesmo que não tenha gosto pela coisa, pois ser coveiro pela primeira ocasião (ser fósubaákumíi) é um marcador importante de que se chegou à idade adulta. A maioria o faz antes dos 20 anos, em Botopási.

144 Exceções existem, porém: um homem cuja mulher (legítima ou não) esteja grávida não pode ser coveiro, pois carrega uma tjína em relação a isso: se o fizer, a criança poderá nascer com alguma deficiência séria. Um homem em tal condição pode, entretanto, exercer outras funções, pode até mesmo derrubar o mato para abrir espaço para uma futura cova, enquanto outros cavam a sepultura. O trabalho dos baákuma não tarda a começar. Logo que são escolhidos, já se dirigem ao cemitério e lá ficam enquanto houver luz do sol. Depois de frequentar a vigília (na qual possuem assentos especiais) vão dormir uma última vez em suas casas e logo cedo já recomeçam a cavar, pois a sepultura deve estar pronta antes do meio-dia. Ninguém deve permanecer no cemitério depois das 12h no dia do enterro, uma das weoti relacionadas a funerais em Botopási. No local da futura cova, antes de tudo é comum fazerem uma prece, suplicando a Deus e ao morto para que tudo corra bem. Põem-se então a remover folhas, raízes e relva dos arredores da superfície escolhida e do caminho até ela. A limpeza do solo imediatamente sobre onde será cavada a cova é importante: quem participar desse trabalho deverá permanecer até o final, será baákuma de fato. Outras pessoas podem observar e podem ajudar, se quiserem, mas não serão tratadas com a distinção dos coveiros oficiais, não receberão presentes ou refeições especias, não necessitarão dormir na casa do morto.110 O próximo passo é medir exatamente as dimensões da cova, marcá-la, reservar um espaço para que as pessoas possam assistir ao enterro e outro para a terra removida. É de extrema relevância o preciosismo com o qual mensuram o buraco, desde o começo do trabalho até o último momento no cemitério, quando, levando em conta o tamanho do caixão, gastam um bom tempo retocando a cova, medindo-a, aumentando um pouco um de seus lados, aplainando as laterais. O cuidado é o mesmo quando a sepultura é revestida com placas de concreto. Esses detalhes geram argumentos e discussões, em tom sério. Como quando os wásideodëma contam com muito apuro o número de koósu que envolvem o cadáver; nesse ponto, pode parecer haver improviso, mas não há, trata-se de uma minúcia das mais importantes, uma regra fundamental, que por isso mesmo causa tanta polêmica. A cova deve 110 Existe a possibilidade de homens tornarem-se coveiros oficiais ao longo do processo, depois desse primeiro momento, e mesmo de a posição de “líder dos coveiros” trocar de mãos durante a semana seguinte. Isto ocorre de facto, não tenho certeza se poderia ocorrer de jure – mas esta distinção não faz totalmente sentido em saamaka. Num episódio que observei, um homem que a princípio nem era baákuma passou, dias depois do enterro, a preencher alguns papéis do hédi baákuma– falar em nome dos coveiros, dar destino aos bens do grupo. Isso ocorreu porque a liderança, de um rapaz bastante jovem, parecia insegura, pouco firme, e seus companheiros eram quase todos adolescentes. O homem intercedeu a fim de auxiliar para que tudo fosse levado a cabo conforme as regras, mesmo que isto significasse quebrar uma regra menos importante.

145 ser, claro, maior que o caixão, mas não demasiadamente. A medida é uma falange de dedo da mão. Se o buraco for muito apertado, o morto vai se sentir maltratado, se for muito folgado, ele vai achar que a sepultura é muito grande, que ali cabe mais de uma pessoa, e pode querer levar alguém junto com ele para o além. Outra regra que devem seguir é, enquanto estão no cemitério, não urinarem de pé; devem fazê-lo agachados, “como mulheres”. Também não podem comer de qualquer comida, nem em qualquer lugar, pois poderiam sentir dores estomacais ou outros problemas digestivos, efeito do morto. O ideal é, durante a semana na casa do morto, comerem todos juntos, dentro da casa do morto. Tampouco podem brigar entre si, devem evitar desentendimentos verbais e baterem-se a sério, para não ajudar o fantasma a fazer mal aos vivos. Os fósubaákumíi, coveiros iniciantes, possuem restrições adicionais: não podem tomar iniciativa para trabalhar, não devem fazer nada antes que o líder dos coveiros lhes dê alguma tarefa. Só cavam quando ordenados, pois ainda estão aprendendo a função. Além disso, qualquer comida que forem comer deve idealmente ser provada antes pelo seu líder. Apesar de tudo isso, apesar do perigo sempre rondando os coveiros no cemitério e na casa do morto, o trabalho tem um clima bastante amistoso. Enquanto medem, cavam, misturam cimento, descansam, há muita falação, o tempo todo e sobre quaisquer assuntos. Futebol e sexo são recorrentes. Receberão das mãos de mulheres deodë basiá ou da família do falecido lanches, refrescos e bebidas alcoólicas enquanto estiverem cavando e, se acharem que não foram bem servidos, certamente irão cobrar isto publicamente mais tarde, em um kuútu. Os baákuma implicam uns com os outros, vendo erros nos comportamentos e no trabalho dos companheiros, procurando muitas vezes com isso motivos para exigir dos outros multas (bútu) em bebidas. Os mais novos, principalmente, fazem kijóo fá (“jeito de jovem”), impõem-se, ostentam-se, alardeiam e bravateiam. Discutem, reclamam, divertindo-se com a confusão. É bastante comum – de fato é um costume – que cheguem a hasúa, entrar num combate corpo-a-corpo dois a dois, uma espécie de luta livre cujo objetivo é apanhar o oponente e levá-lo ao chão. Mas é um esporte, as brigas não são sérias, acontecem antes para gerar risos do que para machucar. O ambiente é todo muito viril e muito ameno, ainda que haja risco. Pode-se até mesmo sentar para descansar em cima das sepulturas de pedra, ainda que não o façam completamente descuidadamente, e que evitem pisar nas covas ou andar à toa por áreas desertas do cemitério. Não parece exagero dizer que o trabalho dos baákuma é uma espécie de modelo de ofício masculino. A movimentação é similar quando há muitos homens reunidos fazendo

146 outros tipos de tarefa coletiva pesada pela aldeia, seja um serviço público ou particular – amarrar um telhado de palha, cavar a fundação de uma casa, carregar troncos de árvores, erguer uma construção comunal... Sempre que há muitos homens juntos, agem de modo fanfarrão. O trabalho de coveiro é prototípico nesse sentido. Ouvi de um ancião, acompanhando de longe um pesado trabalho coletivo, cheio de discussões, que os jovens estavam “trabalhando como baákuma”. Pronta a sepultura, os coveiros encontram kabiténi da aldeia para o baákuma kuútu (“assembleia dos coveiros”), no qual farão um informe ao conselho da aldeia acerca de seu trabalho, para dizer se tudo correu bem. Cabe notar que não apenas nesse momento, mas durante todo o processo, os coveiros são acompanhados de perto pelos kabiténi, basiá e deodë basiá. Há muita preocupação em saber se não houve problemas em seu ofício. Depois disso, almoçam e esperam o serviço cristão sob a tenda. Ditas as palavras e as orações, estão entre os que auxiliam a carregar o esquife, em sua liteira, para o cemitério, acompanhados de homens e mulheres que cantam hinos e colhem flores para adornar a sepultura. 111 Não estão, porém, bem vestidos como a maioria das outras pessoas. Usam roupas velhas, “de se usar no mato”, roupas de trabalho, galochas, calças grossas, camisetas velhas, pois descer o caixão pelo buraco é um trabalho pesado. Repousam o esquife no catafalco ao lado da sepultura e atravessam o buraco com dois galhos recém cortados, rígidos, e ali repousam o ataúde. Depois passam uma corda espessa duas vezes por debaixo do caixão e os mais fortes a seguram para descê-lo do modo menos brusco possível. Alguns precisam que ajudantes os segurem pela cintura para não caírem. Nesse momento, gritar ordens e direções é normal, mesmo com quase toda aldeia calada, séria. O caixão deve ser baixado de maneira que a cabeça do morto aponte para o poente (sónugo), onde fica a terra dos mortos. Descido o caixão, tiram a corda (que será lavada e usada de novo), deixam a liteira de lado (que será guardada na igreja) e começam a tampar o buraco com tábuas uniformes. Sobre elas, colocam um plástico e, para complementar, folhas de helicônias (palulú). Por cima das folhas ainda pode ir mais um plástico. Apenas nesse momento começarão a jogar terra sobre a cova. Se a sepultura for de concreto, no lugar das tábuas colocam placas de cimento, depois a cobrem com mais cimento

111 Não há apenas um caminho que leva ao cemitério. Assim, o trajeto que seguem da casa do morto para a cova varia. Por vezes, passam pela igreja e dão três voltas nela, por vezes não. Mas, como me explicou um dos kabiténi, nem todo caminho é seguro. Contou que, no enterro de um grande futebolista, resolveram passar pelo campo de futebol e ali chutaram algumas bolas em sua homenagem. Depois de fazerem isso, as pessoas que levavam o caixão não conseguiam continuar o trajeto. Perceberam que misturar atividades físicas com o enterro não era uma boa ideia.

147 fresco, aplainando com cuidado, e não cobrirão de terra. É um elemento diacrítico com relação aos enterros na cidade que não se jogue terra diretamente sobre o caixão. Não apenas os coveiros cobrirão a sepultura de terra. É comum que aquele que cerimoniou o ofício cristão jogue a primeira pá e depois dele alguns homens de meia idade fazerem-no. Mulheres podem fazê-lo também. Enquanto isso, alguém crava estacas no perímetro da cova e outros plantam tásitíki, arbustos de folhas rosadas, no entorno.112 Seguem com as pás enquanto uns pisam na terra para deixá-la mais compacta e outros moldam o monte usando paus. Podem ir mais flores sobre a cova, ao final. O séquito com o caixão ao cemitério e boa parte do enterro propriamente dito possui um clima mais solene que o trabalho de cavar a cova. Desde a saída da tenda as pessoas não param de entoar hinos (a não ser durante as preces) e seguem cantando por um tempo, muitas vezes com uma disputa jovial entre homens e mulheres, a ver quem canta mais alto e bonito. Mas cobrir a cova é demorado, as pessoas aos poucos vão-se indo. Por fim, sobram quase só os coveiros, os hinos cessam e as piadas e conversas retornam. Durante os dias sob a tenda, a camaradagem continua. No dia seguinte, serão pagos em tecido e víveres por seu serviço, e ainda terão seu “ventre amarrado” (tái beoë) com presentes durante toda a semana (detalhes sobre pagamentos e presentes no cap. 4). Costumase dizer que os coveiros são os “chefes” da aldeia durante a primeira semana após o funeral, e particularmente antes de serem pagos.113 Como os demais, os baákuma participam dos jogos de politíki, observando regras descumpridas pelos outros a fim de pedir pagamentos em bebidas. Porém os coveiros agem como um conjunto nesses momentos, buscam ofensas (muitas vezes insignificâncias) que tenham sido cometidas contra eles e demandam multas como compensação. Por exemplo, alguém deve sempre passar na casa do morto cedo pela manhã, enquanto os coveiros lá dormem, para dar bom dia (hákísi wéki), de preferência os ou as deodë basiá. Dar bom dia, boa tarde ou boa noite, cumprimentar a todos, é parte central da

112 Tásitíki, também conhecida como bë íngi tási (lit. “colmo vermelho de índio”), no Brasil dracena vermelha ou planta ti (Cordyline fruticosa). É originária do sudeste asiático e da polinésia. Apesar de introduzida nas Américas antes da chegada dos trabalhadores de contrato asiáticos na Guiana Holandesa, foram os javaneses que popularizaram no Suriname seu uso no entorno de sepulturas. Hoje, abundam em cemitérios creole e maroons (Andel & Ruysschaert 2011: 287-8). Em Botopási, cercam todas as covas de terra, estando ausentes apenas das sepulturas de concreto. Informantes maroons de Andel & Ruysschaert afirmam que a planta ajuda o fantasma (joóka) do falecido a subir para o céu, mas em Botopási ouvi apenas que servem para enfeitar o cemitério. O arbusto adorna também algumas casas na aldeia. 113 As liberdades que tomam os baákuma durante os funerais são muito maiores em outras aldeias, lá roubam galinhas e comidas das pessoas, perseguem garotas pela aldeia, provocam outros moradores (cf. Price & Price 1991: 51-3; Donicie 1948: 180). Outra diferença é que em aldeias não cristãs os coveiros usam panos brancos amarrados na cabeça de uma forma especial, referidos como baákuma hédi (“cabeça de coveiro”).

148 etiqueta cotidiana saamaka. Se os baákuma não se sentirem devidamente saudados todos os dias, podem exigir pagamentos.114 Na primeira semana depois do enterro, os coveiros estão “guardando a casa” (hói wósu). Não apenas devem dormir nela, distribuindo ali dentro suas redes, como também devem comer no recinto e sempre deixar ao menos uma pessoa tomando conta do local, junto com alguma luz sempre acesa, dia e noite, que pode ser um lampião de querosene, lâmpada elétrica ou vela. Quando alguém nota que poucos estão tomando conta da casa ou que alguns não estão dormindo ali, podem cobrar mais atenção deles. Os homens que não são coveiros podem ainda fazer uma brincadeira com os baákuma, aproveitando-se de alguma situação de descuido: entram na casa, talvez amarrando quem está de guarda, e roubam as coisas ali estocadas – especialmente presentes por eles recebidos – para esconder em outro local. Fazem então provocações com os coveiros, chamando-os de “piolhos de galinha” (pijójo). Começa então uma luta livre generalizada (hasúa), talvez com 20 pessoas, baákuma de um lado e os demais do outro. Lutas dois a dois também acontecem bastante durante a semana, e podem propagar-se em hasúa coletivos. Há quem se prepare passando óleo no corpo para os outros não conseguirem agarrá-lo. É um esporte violento e, por mais que raramente haja maldade, por vezes a brincadeira só termina quando alguém se machuca. Nos últimos tempos, os kabiténi de Botopási têm pedido para que essas brincadeiras sejam evitadas, pois em algumas ocasiões em anos anteriores houve feridos. Apesar de todas as regras e dos perigos envolvendo seu trabalho e sua posição, os baákuma de Botopási contentam-se em pensar que não estão numa aldeia “pagã”. Aqueles que por laços de afinidade ou filiação já cumpriram a função em outras aldeias saamaka onde não há cristianismo contam com certo horror e desdém as situações pelas quais têm de passar e as muitas regras que devem seguir: pendurar suas redes paralelas e próximas ao caixão, ficar sem tomar banho, carregar o bungulá. Essa canoa cortada contém o cadáver enquanto o caixão é feito, e é erguida para fazer consultas oraculares ao morto. Quando o fazem, porém, o cheiro é forte, e pode acontecer mesmo de o chorume escorrer pelo rosto... Fora que a cova lá é muito mais funda, tanto que amiúde precisam de uma escada para sair dela enquanto cavam. Muito mais trabalho.

114 Donicie (1948: 181) afirma que nos funerais que assistiu os coveiros não podem levantar-se antes de serem despertados por um (deodë?) basiá, durante as três primeiras noites em que dormem na casa do morto.

149 Contágio, agência e perigo Mesmo livres de parte das imposições pesadas que ocorrem em outras aldeias saamaka, os baákuma cristãos ainda possuem muitas weoti, muitas regras a seguir. De todas elas, certamente a mais frisada é a de passarem as noites na casa do morto. Guardar a casa: essa foi uma cobrança quase constante em todos os ciclos funerais que acompanhei. Isso parece-me digno de reflexão. Os mesmos que abrem o buraco onde será depositado o morto são os que guardam a casa contra a ação danosa de seu fantasma. Casa onde provavelmente viveu seus últimos dias, veio a falecer e onde o cadáver foi lavado. Casa portanto em relação metonímica com aquele morto e, logo, um dos locais mais guardados, homenageados, frequentados e perigosos da aldeia naqueles dias.115 Estando em uma posição crítica, os coveiros devem proteger e ser protegidos – daí a quantidade de weoti que devem seguir, daí a luz sempre acesa na casa. O cargo lúgubre exige força e coragem físicas e espirituais, motivo de sua importância na formação de um homem adulto completo. É perigoso, é desgastante, por isso tentam atenuar sua condição com brincadeiras e bravatas amistosas. Por isso também o cargo é cercado de tantas regalias e de tanto prestígio. A insistência em comida separada para os baákuma não se deve somente aos privilégios dos quais desfrutam enquanto são “chefes” da aldeia. Lembremos que os wásideodëma também recebem refeições exclusivas. A regra diz respeito ao fato de que as pessoas que ocupam estes cargos particularmente perigosos devem “comer sozinhos”, isto é, o morto não deve comer com eles (se os coveiros quiserem, podem partilhar sua comida com outros vivos presentes no enterro). Daí parte da explicação para oferendas em comida que fazem aos mortos durante vários momentos nas aldeias não cristãs: são para que eles comam separados dos vivos. Os coveiros iniciantes correm riscos ainda maiores ao se alimentarem, posto que é a primeira vez que agem como baákuma, e primeiras vezes são sempre momentos tensos em qualquer aspecto da vida saamaka: não há precedentes específicos, não se sabe o que vai acontecer, como cada corpo, alma e pessoa reagirão à nova experiência. Muitos são os exemplos da ação metonímica do morto, mas talvez o melhor seja o oráculo por meio do qual o consultam, momento crucial nos funerais saamaka não cristãos. Os baákuma cortam uma velha canoa monóxila do falecido e a utilizam como caixão provisório, no qual é depositado o cadáver ou um pacote com suas unhas e cabelos. Essa 115 Nos funerais saamaka do séc. XVIII destruíam as casas das pessoas depois de seu funeral, costume que não existia mais em meados do séc. XX (Price 1990: 400-1n63). Em Botopási não há espaço de sobra, especialmente nos locais mais centrais da aldeia, de modo que a maioria das casas é reutilizada por pessoas do matrissegmento algum tempo depois do falecimento de seu dono. Porém, isto nem sempre ocorre de maneira tranquila. Quando a casa de um falecido é ocupada cedo demais, o novo morador, mesmo que tivesse uma relação boa com o morto, pode ser afetado por infortúnios.

150 canoa, chamada bungulá, será carregada pelos coveiros sobre suas cabeças para servir como oráculo. Às perguntas dos anciões e líderes da aldeia sobre as razões de sua morte, sobre o bom encaminhamento dos rituais e outras questões, o morto responde guiando os movimentos dos carregadores. Quando perguntam se alguém é culpado por sua morte, por exemplo, o bungulá dirige os baákuma até a casa do acusado. Em Botopási, aldeia fundada cristã, nunca se fez consultas a mortos assim, o que faz com que a ação e as vontades do morto sejam em geral um tanto mais enigmáticas, raramente expressas diretamente. Determinar a verdadeira causa mortis – se foi vítima de feitiços, de ação de kúnu, etc. – não é algo que ocorre de maneira oficial e pública. Mesmo que o morto se expresse por possessões, isso não se dará em um kuútu público, diante de toda população. O que porém não impede que a família recorra a sessões oraculares mais discretas, em outras aldeias ou em locais privados. Ao invés do bungulá, podem, na hora de lavar o corpo, furtivamente guardar a roupa que a pessoa vestia quando morreu, ou suas unhas e cabelos, para depois fazer a consulta oracular (fíi, lit. “sentir”) privadamente. Tudo aquilo que entra em contato direto ou que possui forte relação com o morto ou com a morte é extremamente perigoso e potente: os líquidos que saem do corpo em decomposição (deodë wáta), seus cabelos e unhas, as serragem e restos de madeira que sobram do caixão (kési sipándji), a terra do cemitério, o local onde a pessoa faleceu e até mesmo pessoas e objetos a quem era apegado. Parte dos afazeres dos funerais busca então destruir, purificar, proteger ou canalizar de forma positiva toda essa potência dos mortos. A agência do morto, nesse caso, parece operar de forma mais “mecânica”, uma espécie de contágio. Nada muito diferente do que frisam Hertz (2003 [1907]) e Douglas (1991 [1966]) sobre a poluição dos cadáveres e da morte. Porém, não é possível separar claramente dois modos de perigo que a morte carrega: risco de contágio e ação motivada do morto. Algumas proteções talvez pareçam apontar para formas mais “mecânicas” de poluição, nas quais é o contato direto com a morte que traz riscos – por exemplo lavar as mãos depois de sair de um cemitério, não deixar o suor pingar no defunto. Outras parecem indicar que é a dimensão volitiva do fantasma, suas vontades e sentimentos, que estão em jogo – comer uma comida separada, guardar sua casa, falar com o falecido. Mas causalidade mecânica e intencional se confundem o tempo todo. O funcionamento do bungulá é justamente uma fusão de ambas: por meio da ação metonímica do cadáver ou de seu prolongamento (unhas e cabelos) o fantasma expressa seus pensamentos e suas vontades. Um morto está ao mesmo tempo afastado e ligado a seus restos mortais. No

151 limite entre materialidade e imaterialidade, o recém-falecido opera de maneira ambivalente. O morto que por ciúmes ou saudade leva alguém com ele para a terra dos mortos age dessa maneira com faculdades idênticas às humanas, mas sua imaterialidade, sua desconexão de um corpo físico, sua qualidade ubíqua de espírito (jejé), o tornam mais potente para fazê-lo. Inversamente, o contágio ou “ação mecânica” do morto é enormemente mais perigoso quando estão em jogo relações específicas, pautadas por pulsões humanas: quando se trata do viúvo, de um desafeto, de um parente que não agiu da maneira esperada. O perigo da morte e do morto, seu contágio e sua vontade, não se distinguem. O perigo (hógi) é a noção que mais se opõe, no compasso moral saamaka, ao que é bom. A maioria das coisas ruins, se não todas, o são porque trazem riscos. Se estamos falando de risco, estamos falando de probabilidade, incerteza. A ação do morto, sob qualquer forma, é sempre um tanto imprevisível, seus efeitos plenamente compreendidos apenas após o fato. O que exatamente pode acontecer e quem ou o que exatamente o provoca é algo que só será descoberto quando o problema vier. Se algo de ruim ocorre, ligam a materialidade do infortúnio à quebra da interdição por conexão indicial: problemas intestinais significam que pode-se ter comido de alimentos impróprios (a comida dos wásideodëma, p. ex.); uma criança nascida com deficiência indica que um de seus genitores esteve em contato com algo interdito (o pai trabalhou como coveiro, p. ex.). Da mesma forma, qual a agência trouxe o infortúnio só é algo localizado após o acontecimento. A análise da situação é sempre a posteriori, pois muitas forças e fatores podem influir, todas as pessoas estão imersas em demasiadas relações. Como afirma Strange (2014), o sofrimento é o primeiro índice de relacionalidade, a partir do qual vão se filtrando as possibilidades até chegar na causa do problema. A investigação detetivesca e/ou oracular sempre parte dos tipos de agências ontologicamente mais salientes (kúnu, feitiço, fantasmas, divindades, maldições). Para especificar, leva em conta relações particulares que podem estar em jogo, acontecimentos e problemas atuais. Alguém próximo morreu recentemente? Algum kúnu atacou seus parentes nos últimos meses? Algum conflito corrente pode ter gerado feitiçaria ou maldições? Nada muito diferente do que frisa EvansPritchard (2004 [1937]) sobre a lógica oracular e da feitiçaria. Assim podemos compreender o aviso genérico de perigo que cerca muitas das interdições relacionadas à morte: não se deve fazer tal coisa porque “sondí sa dú i”, i.e., “algo pode te fazer [mal]”. “Sondí”, significante flutuante, aponta para duas indistinções iniciais: “algo” pode te fazer “algo” de mal. O perigo é indeterminado, indistinto, antes de ocorrer. Por isso o apotropismo nessa situação é tão abrangente: aqueles que estão em situações

152 particularmente arriscadas – baákuma, viúvo, doentes, grávidas – devem proteger-se de qualquer tipo de ação maléfica concebível.

O caixão Uma função funerária opcional em Botopási é a de késima (lit. “pessoa do caixão”), aquele que fabrica o esquife.116 Entre os saamaka, a função não ganha proeminência nos rituais funerários, diferentemente de outras sociedades maroons das Guianas. Menos ainda em aldeias cristãs, onde mais e mais o costume tem se alterado de construir o caixão na aldeia para comprá-lo pronto na cidade.117 Nas aldeias “pagãs”, mesmo quando uma morte ocorre na cidade e o cadáver é transportado até o rio Suriname em um ataúde adquirido na costa, outro esquife começa a ser feito quando o corpo chega na aldeia, e o antigo é destruído e despojado. No novo caixão, maior, de talvez um metro de largura, são acomodados, além do morto, presentes como tecidos, redes, joias e talvez também bebidas, terçados, etc. (cf. R. Price 1990: 213-6). Já em Botopási, geralmente o enterro é feito no caixão que veio de fora. Mesmo quando a morte ocorre na aldeia, é de praxe enterrar num ataúde importado da costa, que já estava guardado. Porém, há certa polêmica sobre esse assunto. Mais de uma vez, em kuútu públicos, ouvi queixas sobre estarem deixando de lado em Botopási o costume de fazer caixões na aldeia. Eram pessoas mais velhas que diziam não fazer sentido gastar 1.500 SRD 118 ou mais num esquife pronto, sendo que não há dinheiro de sobra e que há carpinteiros competentes na aldeia, bem como abundante madeira de qualidade na mata do entorno. Boa parte dos jovens já não sabe mais fazer caixões, reclamavam, e as crianças não aprenderão nunca sem observar este tipo de trabalho. Isso soava-lhes como desperdício de dinheiro e um risco de perda de tradições. O argumento antidesenvolvimentista parecia, ao menos em público, convencer a todos, mas em privado muitos admitiram que preferem trazer caixões da cidade, em parte pela economia de tempo e trabalho, em parte por gosto pessoal, mas principalmente por uma 116 Qualquer homem com força suficiente pode ajudar a carregar o caixão para o cemitério. Quem carrega o ataúde também pode ser chamado de késima, mas não ganha nenhum tipo de pagamento especial por fazê-lo, qual os carpinteiros do caixão recebem. Podem usar o termo mbéikésima (“pessoa que faz o caixão”) para diferenciá-los. 117 Entre os ndyuka, o trabalho dos kisiman (fazedores de caixão) alcança uma importância similar ao dos oloman (coveiros). Thoden van Velzen (1978: 102) afirma que, quando adolescentes, os homens ndyuka devem escolher entre participar de uma das duas sociedades mortuárias – a dos oloman ou a dos kisiman (Thoden van Velzen & van Wetering 2004: 22). Lenoir (1973: 159) afirma que entre os paamaka, após uma morte, decide-se em kuútu quem serão os kisiman e os oloman – mas os dois cargos não possuem o mesmo poder que conferem em ndyuka. 118 Na época, cerca de R$800,00.

153 questão de imagem: temem que a família seja vista como pobre, ridicularizada por não ter dinheiro ou não querer dispor de recursos para comprar um ataúde, sendo que, todos sabem, enterros não são momentos de economia, mas de dispêndio.119 Quando a morte se dá em Botopási, decidem no primeiro kuútu, no mesmo momento em que se denominam os demais cargos funerários, se o caixão vai ser comprado ou feito por késima, e quem cumprirá a função. Algumas pessoas da aldeia podem ter caixões prontos para vender, que devem ser pagos mesmo que sejam da família direta do falecido. nesses casos, algumas pessoas trazem o ataúde de onde ele estiver, cantando hinos e abanando-o com flores enquanto carregam-no para a casa do morto, onde o corpo está sendo lavado. Quando a morte ocorre alhures, a espera do caixão é mais solene, atendida por um grande número de aldeões. Eles se concentram no ancoradouro principal da aldeia, em roupas fúnebres, e logo que o barco que carrega o esquife é avistado, inicia-se o choro ritual. Outros barcos costumam vir em comboio, trazendo pessoas da cidade para o funeral. Os homens carregam o caixão para algum lugar, talvez já o centro da tenda, talvez para um galpão de reuniões (kuútu gangása) onde os kabiténi dirão algumas palavras, rezam e cantam alguns hinos. As pessoas então fazem fila para observar pela primeira vez como o morto jaz em sua caixa. A construção do caixão (kési), quando se dá na aldeia, deve ter início depois do anúncio oficial da morte, assim como cavar a sepultura não pode ser adiantado, mesmo que o falecimento seja iminente. Não se deve antecipar a morte até que a respiração da pessoa tenha cessado. Por outro lado, é preciso estar preparado. Mesmo com os novos hábitos, mesmo com a raridade da construção de caixões, espera-se que todo matrissegmento tenha guardadas tábuas apropriadas para fabricar esquifes, prontas para serem usadas, em especial quando há velhos ou doentes na família. De todos enterros que ocorreram enquanto estive em Botopási, em apenas um o caixão foi feito na aldeia por késima. Como havia sido a primeira morte após um par de homens ter levantado, em um kuútu, a necessidade de voltarem a fazer caixões na aldeia, logo imaginei que seu pedido surtira efeito imediato. Mas não foi bem isso, esclareceram meus interlocutores: o falecido naquela ocasião fora um carpinteiro de renome, que gostava de exercer a função de késima e que tinha como desejo, quando de sua morte, que seu caixão 119 Um ponto conectado parece gerar menos polêmica: fazer ou não tumbas de cimento. Elas também economizam algum tempo, também são mais caras do que covas comuns e também são signos de progresso e de riqueza. O aumento da quantidade dessas sepulturas “modernas” é claramente paralelo ao aumento da quantidade de caixões estrangeiros. Ouvi menos questionamentos em relação a esta mudança, talvez por se tratar de uma prática ainda relativamente pouco comum, talvez por ela não descartar a função ritual nem os saberes dos baákuma, ao contrário do que a mudança nos ataúdes faz com os késima.

154 fosse feito por ali, da maneira tradicional. No fim das contas, este tipo de decisão fica mesmo por conta da família, não da coletividade. Naquela situação, o caixão foi feito do zero, no galpão de reuniões da aldeia, por cerca de seis késima. Ficou pronto por volta das 22h. Foi feito com capricho, bem decorado, mas sem verniz. Seu forro era uma rede de dormir. O tamanho era similar ao de um caixão comprado na cidade, nada como os gigantescos esquifes das aldeias “pagãs”. Dão preferência a três tipos de madeira: sédu, apisí e boánti, que podem ser combinadas ou não num mesmo esquife. Porém, isso não é considerado regra ou tabu (weoti ou tjína), apenas um costume (guwénti). Evitam tábuas “que coçam” (kaási páu), como wána. Quando compram na cidade, disseram, o caixão muitas vezes é feito com madeiras inferiores, como asúmaípa, ou com madeiras que em saamaka usam para fazer barco, como abönkíní.120 Como na escolha das madeiras, há poucas regras relacionadas ao ofício de késima. A principal é que devem se livrar das aparas e serragem do caixão (kési sipándji) num local apropriado do cemitério, no mesmo local onde é disposto o chorume do cadáver (deodë wáta). O caixão não pode ser grande nem pequeno demais, deve ser justo em relação ao tamanho da pessoa, apenas com algum espaço de folga para colocar alguns tecidos.121 Além disso, também ganharão presentes na casa do morto e terão comida à parte. Fora isso, tudo o que devem fazer é se esforçar para que seu trabalho seja apurado e não atrase. Algumas funções desempenhadas nos rituais funerários, como construir a tenda, “mestre de armazém” (maksin meester), “ajudante de morto” (deodë basiá), são ainda mais afastados do contato direto com a morte e com os espíritos, logo quase não são envoltos em tabus e proscrições sérias. Quem os cumpre deve apenas fazer seu trabalho corretamente, de acordo com o costume local. São mais ligados ao lado do ciclo funerário que regula as trocas e relações entre os vivos. Quanto mais próximo do corpo e da cova, mais interdições e regras. Daí o cemitério ser um local tão perigoso.

120 Fontes escritas apontam que o sédu – cedro-vermelho (Cedrela odorata) – já era usado na construção de esquifes no séc. XVIII (R. Price 1990: 72). Donicie (1948: 176) confirma que seguiu sendo usado para o mesmo fim em meados do XX. Outras espécies citadas no parágrafo são: abönkíní – ingá-vermelha (Inga alba); apisí – louro-seda (Ocotea guianensis); asúmaípa – marupá (Simarouba amara); wána – louro vermelho (Sextonia rubra). Não fui capaz de identificar boánti. As madeiras de apísi, asúmaípa e boánti são utilizadas na construção de casas. 121 Nas aldeias não cristãs, os caixões são muito maiores, especialmente quando o morto é importante. O maior de todos é o do gaamá. Porém, mesmo o seu caixão não pode ser grande demais. Explicando-me porque o caixão de Belfon Aboikoni (falecido em 2014) fora menor do que o do gaamá anterior, Songó Aboikoni (falecido em 2003), meus interlocutores disseram que o esquife do último fora feito em tamanho exagerado, o que, como uma cova exagerada, significava que “cabia mais gente”. Por isso tantas mortes teriam ocorrido na última década.

155 O cemitério O cemitério (geébi) de Botopási é uma área de mato, onde a luz penetra através das copas das árvores. Sua principal entrada fica em gandá, o centro político e histórico da aldeia. O crescimento da área construída faz com que, aos poucos, a vila comece a envolver o cemitério, a norte e a oeste. Assim, hoje existem entradas alternativas para o cemitério, por trás das casas das pessoas, mas devem ser evitadas. Mesmo adjacente à aldeia, o cemitério é considerado parte de bákasë (“lado de trás”, “floresta”), estando portanto oposto a gandá, ao domínio espacial habitado pelos humanos. O cemitério, apesar de bem cuidado, faz parte do mundo selvagem. Os vivos não vão ao cemitério com frequência, não se entra ali sem razão. São locais perigosos onde habitam mortos cuja índole tende à violência. Não sem motivo, lavam pés e mãos depois de sair do cemitério. À noite, então, são locais ainda mais assustadores: quem adentrar pode ver assombrações, gente sem olhos com fogo nas órbitas. Ouve-se histórias de pessoas que entraram em cemitérios ou em suas proximidades e acabaram enlouquecendo, acometidas por fantasmas. Além disso, terra, plantas e ossos retirados do cemitério são ingredientes dos mais poderosos e perigosos para feitiços (wís). Ser visto entrando num cemitério sem motivo é forte indício de que se é um feiticeiro (wísima), de que se está preparando malefícios contra alguém. Ouvi um homem saamaka que morava na cidade, e que portanto era habituado com práticas indo-surinamesas, dizer que gostaria de ser cremado, para que jamais usem seus ossos para fazer wísi. Responderam a ele que as cinzas também poderiam ser usadas para o mesmo fim, assim como unhas e cabelos cortados após a morte, chorume do cadáver ou mesmo objetos que entraram em contato com o falecido durante a lavagem, seja um pano, uma roupa, uma cesta. Até plantas que crescem no cemitério. Tudo que é contíguo ao morto e a seu espaço, tudo que ali toca, cresce ou jaz, ganha por metonímia uma potência danosa. Dois são os motivos legítimos mais comuns para entrar no cemitério: quando alguém morre, para preparar o local, cavar a cova, e depois enterrar; e na páscoa, quando limpam o espaço para a cerimônia moraviana de erguer simbolicamente Jesus Cristo de sua sepultura, na madrugada de sábado para domingo.122 A páscoa é um momento interessante, portanto, para observar a relação dos vivos com o cemitério fora de uma situação tensa, de morte.

122 Há situações extraordinárias nas quais pode ser necessário ir ao cemitério. Uma delas é quando, numa ocasião de muito apuro, se convoca um basiá para ir pedir socorro aos mortos, tendo que talvez até dormir lá. O procedimento, bastante raro, é chamado bái geébi (“chamar cemitério”).

156 A limpeza do cemitério pode começar já na Quinta-Feira Santa (Witte Donderdag) e estender-se até o Sábado de Aleluia (Stille Zaterdag). A Participação de homens e mulheres, como em outros trabalhos coletivos, é facultativa, ainda que possam querer cobrar uma multa de alguém que não tenha ajudado em nada. O comparecimento varia: há anos em que quase todos os habitantes e muitos visitantes tomam parte, enquanto em outros apenas uma dúzia se presta a tal. O objetivo principal é embelezar o cemitério, em particular a clareira reservada para o ritual de “levantar o Senhor da cova” (hópo Mása a geébi) e o caminho até ela. Mas há atividade por todo o terreno. As pessoas tomam particular cuidado com as sepulturas de amigos e de parentes mais próximos, pelas quais se responsabilizam, sobretudo de sua própria matrilinhagem. Colocam como objetivo mondar talvez a cova de um irmão, de uma avó, e dela limpam todo o entorno, retirando cada folha sobre o monte de terra, depois seguem para outra. Durante o trabalho, por todos os lados as pessoas reconhecem covas de familiares e conhecidos ou de figuras emblemáticas da aldeia, grandes líderes e anciões vultosos, apontando-as e mostrando-as uns para os outros. Varrem as folhas do chão, retiram árvores caídas, replantam tásitíki, cobrem as tumbas abertas com galhos mumúu123. A diferença do local antes e depois da limpeza é grande, o espaço fica mais aberto, torna-se mais fácil ver as coisas de longe, discernir as sepulturas do mato, especialmente na madrugada do ritual. Nos caminhos e entre as covas ficam de pé apenas árvores maiores e algumas poucas plantas. Apesar do local, o clima é relaxado, mas algumas áreas ainda são evitadas por uns e outros. Os homens podem aproveitar estes dias de atividade no cemitério para adornar com cerâmica as sepulturas feitas em cimento ou acrescentar uma placa de mármore, uma cruz ou uma plaqueta com o nome do falecido, mesmo que a morte tenha ocorrido há vários anos. Numa dessas situações, ouvi uma discussão sobre se poderiam ou não trabalhar num outro dia qualquer no cemitério. Um habitante de Botopási ligado à EBGS em Paramaribo, onde mora, disse: “não temos tabu [tjína] de vir ao cemitério, deveríamos vir mais, limpar as sepulturas, talvez colocar uma coroa de flores para as 'nossas pessoas' [sëmbë fuú], como fazem na cidade”. A conclusão que chegaram naquele de momento é de que isso não seria um grande problema, desde que peçam para os líderes da igreja e que informem o que vão fazer. Mas seria algo fora do ordinário, nunca vi acontecer. A enorme maioria das centenas de sepulturas ainda é feita apenas de terra, um monte de aproximadamente um metro de altura, marcado em suas extremidades por estacas de madeira e cercado por talvez uma dezena de tásitíki. Há menos de dez feitas em cimento, 123 Sobre tásitíki, ver nota 112, supra. Mumúu, murumuru (Astrocaryum sciophilum) é uma palmeira espinhosa cujas folhas são trançadas para fazer paredes e tetos de palha vigorosos.

157 creio que todas nas últimas duas décadas. Nestas, o buraco é tampado por placas de concreto cobertas de cimento úmido, no qual inscrevem, usando os dedos ou um graveto, o nome do falecido, sua data de nascimento e falecimento. Mais raras ainda são as sepulturas de cimento mais altas, que se destacam do chão. Cobrir estas tumbas maiores com azulejos de cerâmica é opcional, bem como o uso de placas e cruzes com nome e datas inscritas. A decisão de fazer ou não uma cova de cimento ou de azulejá-las vem da família. É algo visto como uma forma de desenvolvimento (ontwikkeling) que não trás qualquer tipo de problema. Para isso, recursos são necessários: podem fazer uma coleta de dinheiro entre a família mais próxima ou usar algum que sobrou de outros gastos para o funeral. Apesar de menos comuns que os caixões comprados na cidade, trata-se, como esses, de um símbolo de status. Seguindo a lógica gerontocrática, as sepulturas mais exuberantes costumam ser as de homens que morreram com idade avançada, que eram considerados sábios e importantes e/ou que chegaram a ocupar cargos como o de kabiténi ou basiá. Dos sepulcros, o mais largo, adornado e bem cuidado era o de Jonathan Rietfeld, mais conhecido como kabiténi Logopai, que viveu quase cem anos, de 1907 a 2005, e foi uma referência na aldeia. Habitantes de Botopási chamaram-me a atenção também para as covas de outros anciões (gaánwómi), como Ta Timon, que não foi nem kabiténi nem basiá, mas que é recordado como uma figura importante. Até hoje lembram dele e chamam seu nome com frequência em kuútu da aldeia. Morreu, pelo que ouvi, no início da década de 1960, época em que o “desenvolvimento” era menos presente, ainda não se faziam sepulturas de cimento ou cruzes, e por isso plantaram um cedro em sua cova, que hoje passa dos 20 metros de altura. Outros capitães, basiá e anciões costumam ser também apontados, especialmente aqueles que eram “bons de kuútu”. Como o mesmo cemitério é usado desde a fundação de Botopási, afora os túmulos de grandes vultos do passado e os de pessoas queridas – mortos mais presentes nas memórias dos vivos –, há certo desconhecimento sobre muitos dos que estão enterrados. Covas acabam sendo devassadas por animais e pela vegetação, degradadas pelo tempo. Mesmo durante a páscoa há certa evitação de áreas onde estão enterrados os mais antigos, as tumbas mais cercadas de mistérios e de olvido. Quem mexer ali poderá “ver coisas”. Várias covas parecem completamente abandonadas. Eis uma vantagem, comentaram, do costume “moderno”, das cruzes, placas, do cimento: protegem sepulturas do esquecimento e do tempo. O cuidado desigual dado às sepulturas de diferentes tipos de mortos – mais novos e mais velhos; mais antigos e mais recentes; mais próximos e mais distantes; com ou sem cargo político; mais ou

158 menos importantes – demonstra clivagens existentes no mundo dos mortos. Ou, ao menos, as diferenças nas relações dos tipos de mortos com o mundo dos vivos. Além disso, apontam para o recorte particular, feito pelas memórias saamaka, dentro da gama de antepassados. O cemitério é um dos únicos territórios da aldeia que não é dividido por matrilinhagens. Não há jazigos familiares. Jovens, crianças, homens e mulheres de todas as linhagens estão misturados pelo terreno. Antigamente, separavam homens de mulheres, mas não mais, assim como na igreja já não é mais obrigatório homens e mulheres sentarem-se em alas separadas. São as pessoas que ocupam as posições de líderes da igreja (fésima u kéíki) que escolhem um local que lhes parece bonito e apropriado para a próxima cova. Sempre antevendo uma próxima morte, eles já selecionam um ou mais locais para serem limpos por um grupo de homens, que derrubam árvores e removem a vegetação, deixando os espaços reservados, enquanto os coveiros cavam a sepultura para um enterro no dia seguinte. O resultado é algo labiríntico, ao menos para olhos destreinados: pequenas clareiras com conjuntos de covas, com distâncias de talvez dois metros entre cada, separados por sendas no mato, junto às quais estão mais sepulturas, e por áreas nas quais a princípio pode parecer haver apenas vegetação, mas onde estão covas mais antigas, camufladas pelo verde. A comparação com as aldeias saamaka não cristãs revela aspectos importantes das transformações na relação com os mortos devidas ao cristianismo. Para começar, o cemitério de Botopási é contíguo à aldeia, enquanto nas aldeias “pagãs” eles em geral se localizam na outra margem do rio, à certa distância de locais habitados. Os enormes caixões tradicionais são carregados de barco, enquanto tocam papá, toque de tambor que conversa com os mortos. Nas aldeias não cristãs, é vedada a presença de mulheres vivas no cemitério, e também de crianças (em Botopási, apenas de crianças). Nestas, todos os homens que ali entram devem amarrar em sua roupa um pedaço de mazigaziga124 como proteção sobrenatural (kándúu). Em suma, a necessidade de proteção frente os mortos parece menor em aldeias cristãs. Não porque mortos tornam-se menos perigosos, mas porque práticas e crenças cristãs garantem uma proteção adicional contra eles. Outro ponto importante é que Botopási possui apenas um cemitério, no qual todos que morrem são enterrados. Ao menos três tipos de mortos são enterrados em locais separados, nas aldeias não cristãs: pessoas com membros defeituosos (kokobesma), como leprosos; crianças que ainda não tiveram sua primeira dentição; e “mortos feios” (taku deodë). O padrão, pelos relatos que ouvi, é um cemitério à parte para crianças; para os kokobesma, um espaço 124 Capim-pé-de-galinha (Eleusine indica).

159 separado no cemitério comum ou um terceiro cemitério. Taku deodë são inumados em locais especiais no mato, sem muita cerimônia. Nenéns e leprosos talvez sejam menos perigosos, mas também não celebram o ciclo funerário completo para eles.125 Como vimos, em Botopási, como em outras aldeias que adotaram cristianismo oficialmente, a classe de “mortos feios” segue existindo, mas costumam celebrar o ritual completo para eles e os enterram juntos com os demais. Para leprosos não há qualquer diferença com relação aos mortos comuns. Nenéns vão também para o cemitério, mas tendem a evitar o ciclo funerário, enterram sem alarde, especialmente se a criança tiver vivido poucos dias. Uma interpretação parcialíssima que ouvi de habitantes de Botopási sobre a unidade do cemitério cristão aponta para uma visão mais igualitária da humanidade incentivada pela igreja. Particularmente no caso dos kokobesma, o tratamento aparentemente desdenhoso a eles reservados pelos demais saamaka é visto como descabido, enquanto os cristãos seriam mais compassíveis, veriam os acometidos por este mal como pessoas completas, e portanto merecedoras de todas as honras, quando da sua morte.

Clivagens antes e depois da morte A única divisão claramente marcada no cemitério é o espaço reservado perto da entrada para os antigos líderes da aldeia, aqueles que foram kabiténi, basiá ou que morreram idosos, tendo participado do conselho da aldeia. Aqueles que tomavam decisões em Botopási, quando vivos, ganham um local de destaque após a sua morte, pois continuarão fazendo-o. Os mortos também conversam, também fazem kuútu e, por suas falas, os líderes, na frente do cemitério, podem impedir que outros fantasmas (joóka), irados, decidam sair da floresta (bákasë) para entrar na aldeia (gandá), vindo atrás dos vivos para vingar-se, para fazer mal. Quem portou cargos políticos oficiais em saamaka não perde sua posição de liderança após a morte. Continua atuando como guia (tíima) de seu povo, do além. Sua posição destacada no cemitério, bem como a presença de suas almas nos cetros, materializa sua presença. Quando um gaamá, kabiténi ou basiá morre, seu uniforme (páki) e sua bengala (wákatíki) são dispostos em uma cadeira ou num manequim de madeira dentro da casa onde o corpo jaz no caixão, um índice de sua simultânea ausência e presença, enquanto líder.126

125 Donicie (1948: 177) nota que “leprosos e mulheres grávidas não são colocados em caixões, mas enterrados nas duas metades de uma canoa, das quais uma serve de base e outra de tampa”. Porém não menciona a existência de cemitérios separados para esses tipos de mortos. R. Price (2002 [1983]: 14) afirma que leprosos não costumam ser enterrados nos cemitérios, com caixões, mas sim direto na terra, na margem dos rios. Sobre os enterros de crianças em aldeias não cristãs, cf. R. Price 1990: 370n32. 126 Ver também a discussão, na introdução, sobre se o gaamá seria enterrado sentado ou não.

160 Botopási nunca teve mulher kabiténi, mas uma que tenha portado cetro de basiá em vida também será enterrada mais na frente do cemitério, porém atrás dos líderes homens. Explicou-me um interlocutor: “palavra de mulher não se firma” (“mujeoë táki án tá fingá”) – num kuútu, mesmo sendo basiá, a mulher tem de pedir permissão aos homens para falar, deve estar sempre atrás dos homens. O raciocínio foi complementado por uma justificação bíblica: Deus criou o homem, Adão, antes da mulher, Eva, que saiu de uma de suas costelas, por isso “o homem tem que ser o chefe”. Este obviamente é um argumento que só viria de um saamaka homem e decerto seria rebatido por uma mulher que ouvisse. argumentação demonstra que projetam, ao imaginar o mundo dos mortos, uma estrutura análoga à do mundo dos vivos: homens, líderes e anciões possuem voz mais ativa nas decisões, maior legitimidade e capacidade de convencimento. Os kuútu dos mortos possuiriam estratificações similares aos kuútu dos vivos, apesar de meus informantes frisarem em outros momentos que “kuútu de mortos e kuútu de vivos não são a mesma coisa”. Cabe pensar, a partir do cemitério e dos caixões, que tipo de divisão mantém-se no além e o que se altera. A crescente penetração da economia capitalista nas aldeias maroons é certamente um dado importante. O crescente uso de caixões e sepulturas de cimento poderia ser sintoma de que uma lógica individualista, estratificadora se expandiria para o domínio da morte entre os saamaka.127 Porém, quando observamos exatamente quem recebe os melhores túmulos e caixões, percebemos que clivagens de classe não operam nas aldeias, ao menos não ainda. É verdade, há em Botopási pessoas mais ricas e mais pobres. Tais desigualdades passam menos pelas hierarquias locais de parentesco e cargos políticos e mais por acesso a empregos públicos, a negócios na cidade ou no garimpo ou a posse de bens geradores de capital como bares, barcos, pousadas, etc. A diferença de riquezas acaba afetando o cemitério, quem tem mais dinheiro tem mais chance de comprar um bom caixão ou cimento e cerâmica para uma tumba mais vistosa. Porém, não são os mais ricos que ganham boas covas e caixões, e sim os mais importantes. São outras clivagens sociais reforçadas além-túmulo, não as de capital econômico. Sobretudo anciões, kabiténi e basiá de renome recebem túmulos vistosos e caixões caros. Pessoas que em vida faziam parte do conselho da aldeia, deliberando e comunicando os 127 João José Reis afirma que a introdução do uso de caixões nos funerais baianos nos sécs. XVII e XVIII destaca tendências cada vez maiores à individualização e à estratificação social da morte, à medida que a lógica capitalística adentra no mercado fúnebre. Naquela época, passaram a ser reforçadas além-túmulo as desigualdades sociais em vida, por meio de diferentes tipos de caixões, ou ainda da ausência deles (Reis 1991: 149-151). Da mesma forma, diferentes estilos de arquitetura fúnebre (covas comuns, catacumbas ou jazigos perpétuos) e maiores ou menores gastos nas pompas funerárias prolongariam nos enterros e cemitérios as clivagens de classe (ibid.: 295-297).

161 problemas da e para a população, seguem tendo destaque no cemitério. A posição de suas covas na entrada do cemitério explicita o fato de que, após a morte, continuarão exercendo em benefício da aldeia seu poder moderador fundado na retórica. Continuarão guiando. Apenas agora não ajudarão na comunicação entre a população da aldeia e instâncias estrangeiras (o gaamá, outros clãs, o governo na costa) e sim entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Serão os ancestrais lembrados em rituais, libações e preces. Aqueles mais poderosos, que mais ajudam quando bem tratados e que mais infortúnios trazem quando as pessoas vivas não estão “vivendo bem”. As tumbas de cimento, as plaquetas de cerâmica e as cruzes com nomes e datas escritas são auxílio para as memórias dos vivos, mas isso não implica uma crescente “individualização” dos mortos com a pressão modernizadora externa. Certo princípio individuador já está presente no modo saamaka de recortar e construir o passado: lembram por nome cada um de seus ancestrais relevantes, remetendo a genealogias que se estendem até o século XVII. Não há um fundo indistinto de ancestralidade, um além no qual os fantasmas se confundem uns com os outros. Ancestrais são pessoas singulares – ainda que antes fractais, compostas, distribuídas, do que individualizadas.128 Bloch & Parry (1982: 35) afirmam que tumbas podem ser usadas como um mapa idealizado da ordem social. Em saamaka, pode-se dizer que isso ocorre apenas parcialmente. A não separação do solo do cemitério por família pode dar a falsa impressão de que após a morte as categorias de parentesco perderiam importância. Porém, apenas se está colocando todas as linhagens em relação de horizontalidade, como manda o discurso público também no que diz respeito à divisão de poder, território e cargos políticos. Enquanto princípio, todas deveriam ter acesso proporcional à terra, a posições políticas e a recursos, ainda que na prática isso não ocorra. Há linhagens mais e menos poderosas em Botopási, mas no cemitério tais discrepâncias são apagadas. Isso ajuda a impedir, também, que disputas por terra – motivos tão frequentes de desavenças na aldeia – estendam-se para o cemitério, local delicado onde 128 A situação parece ser oposta à situação dos merina de Madagascar, qual exposta por Bloch (1971). As tumbas merina, construídas em estilo ancestral, são feitas para durar o máximo possível, enfatizando relações dos vivos com antepassados e grupos locais, hoje dispersos pelas mudanças no estilo de vida tradicional. Suas tumbas celebram regras de parentesco e localidade que já não procedem na vida cotidiana, sendo apenas seguidas depois da morte. São “[...] uma negação da fluidez da sociedade merina e de fato de todas as sociedades dos vivos, e uma afirmação de uma ordem imutável onde homens estão organizados em linhas nítidas. Em outras palavras, elas são a demonstração do que os merina sentam que sua sociedade era e deveria ser" (ibid.: 114). No caso saamaka cristão, a “modernização” das sepulturas pode servir para impedir o anonimato aos mortos, reforçando a memória e a forma tradicional de se enxergar a ancestralidade e a conexão com o território, que essencialmente não se alterou. Em ambos os casos, sepulcros lidam com o problema do esquecimento, mas os merina a partir estabilidade das formas de enterro, os saamaka a partir de mudanças nas mesmas.

162 qualquer conflito seria potencialmente devastador. Simplesmente colocam a decisão acerca do local de uma cova na mão do conselho local da igreja (a princípio também não atravessado por demandas envolvendo parentesco) para afastar a possibilidade desse tipo de problema. De fato, jamais ouvi qualquer reclamação, mesmo velada, acerca de ter sido um parente enterrado num local menos nobre ou apropriado. O espaço do cemitério parece mesmo livre de tais entrelaçamentos entre território, parentesco, poder e prestígio. De toda forma, isso não quer dizer que após a morte as pessoas deixem de pertencer às suas linhagens. As pessoas continuam compondo as linhagens e as relações entre elas, agora sob as condições de ancestrais, “padrinhos espirituais” e espíritos vingativos (como veremos no capítulo 5). Parris (2011) trata da relação entre a política e os funerais ndyuka focando na efetividade do ciclo funerário em criar ancestrais. De acordo com o autor, a onipresença e a importância da agência dos ancestrais na sociedade ndyuka é reforçada cotidianamente por rezas e oferendas por parte dos vivos (ibid.: 27). Porém, não são todos os mortos que entram no círculo dos ancestrais. Crianças, suicidas e muitos mortos feios não ganham as honras funerárias da maioria dos mortos, e assim não passam a ser reverenciados pelas gerações futuras. Mais importante, se a divinação do cadáver expor que um morto era feiticeiro, este também não recebe o ciclo funerário completo e não ascende ao status de ancestral (ibid.: 37). Sucessivas

reformas

impulsionadas

por

movimentos

proféticos,

messiânicos

e/ou

iconoclásticos causaram grandes impactos entre os ndyuka desde o século XIX, estabelecendo cultos que alteraram as regras da divinação de cadáveres – e portanto as regras de acesso de um morto à condição de ancestral (ibid.: 63-9, ver também Thoden van Velzen & van Wetering 1988, 2004). As controvérsias que atravessam tais mudanças apontam para o fato de que certos clãs controlam a divinação de cadáver, estando em jogo os interesses de diferentes grupos corporados e do gaamá. A fabricação de ancestrais parece ser, para Parris, o principal motor dos funerais ndyuka e de suas mudanças. O controle sobre este modo de produção sobrenatural estaria nas mãos dos detentores de poder político (Parris 2011: 12, 115).129 A feitiçaria parece causar um pânico maior entre os ndyuka, e sua “tradição profética” é mais bem estabelecida e influente do que entre os saamaka. O contexto no Alto Suriname é bastante diferente do Tapanahoni, ainda mais em Botopási, onde não há nem nunca houve 129 Lenoir faz afirmações similares acerca dos funerais paamaka, comparando funerais protestantes com católicos (os últimos mais “tradicionais”). Para o autor, a morte de um protestante deixa a alma do morto em suspensão, aguardando o juízo final com o retorno de Jesus. Já a morte de um católico é o dia do julgamento do falecido. Ele será julgado pela sua matrilinhagem, que descobrirá via oráculos se o morto era ou não feiticeiro. “Se o falecido é julgado digno, a linhagem ritualmente desenha sua transição para o estado de ancestral. O funeral celebra sua passagem, enquanto incorpora e reintegra a vasta tecitura das relações sociais entre linhagens por meio da divinação do cadáver e rituais associados” (Lenoir 1973: 194-5).

163 divinação de cadáver. Apesar da diferenças, é relevante pensar o argumento de Parris. Seria a produção de ancestrais a função central dos funerais maroons? O caso saamaka aponta para uma resposta negativa; o principal objetivo dos funerais não parece ser permitir o acesso do fantasma ao panteão dos ancestrais. É claro que, para que o morto possa ser reverenciado após a morte, ritos têm de ser feitos da maneira apropriada para que possa chegar à terra dos mortos sem percalços e sem ira e isso é parte do que é efetuado em rituais funerários. Porém, a possibilidade de se tornar um ancestral é construída sobretudo durante a vida. Aí entra o ideal de boa vida que vimos anteriormente. O clássico trecho de Montaigne é inspirador: Tudo o que viveis estais roubando da vida: e às expensas dela. A contínua obra de vossa vida é construir a morte. Estais na morte enquanto estais em vida, pois estais depois da morte quando não mais estais em vida. Ou, se assim o preferis, estais morto depois da vida, mas durante a vida estais morrendo, e a morte toca bem mais brutalmente o moribundo que o morto, e mais viva e mais essencialmente. Se da vida tirastes proveito, estais saciado; ide-vos satisfeito (2010 [1580]: 78).

Para garantir status e poder consideráveis no além, para ser lembrado e influir no mundo dos vivos, a pessoa deve levar uma vida longa e próspera. Alcançar antes de morrer influência entre os seus, conhecimento, sabedoria. A autoridade está nas palavras, saber falar é saber fazer; a fala é algo que só se domina com experiência. Quando morto, alguém que viveu uma vida assim plena terá um funeral pomposo, uma bandeira hasteada em sua homenagem, um belo caixão, uma cova decorada. Terá mais chances de estar presente positivamente na vida de seus descendentes e de toda a aldeia. Os detentores do poder político podem até ter alguma capacidade de influir sobre a memória dos aldeões, ajudando ou não a legitimar a ascensão de um novo ancestral, mas em última instância não são eles que decidem, e sim o próprio impacto que a pessoa causou na vida de seu povo, quando vivo e depois de morto. A visão de de Beet & Sterman sobre as motivações por detrás dos rituais funerários matawai parece encaixar-se melhor com as saamaka cristãs: “[...] o todo do ciclo de ritos funerários e rituais de luto que são performados destinam-se a separar o espírito (jooka) do mundo dos vivos, e a redefinir a linhagem, perturbada pela perda de um parente” (1981: 253).

Separar mortos e vivos Segue ao enterro uma semana de trocas rituais, comida, bebida, jogos e conversas na casa do morto. Estes dias sob a tenda serão descritos em detalhes no próximo capítulo. O que nos interessa nesta altura são os momentos que encerram a semana. À noite, celebram mais uma vigília em nome do morto, com hinos moravianos (síngi ndéti), seguida de uma madrugada de música, brincadeiras, bebedeira e comida (boóko didía). Tudo praticamente igual ao que ocorre na noite que antecede ao enterro. No dia seguinte, logo pela manhã,

164 começam a celebrar o aitidei, marcando o oitavo dia da morte. É um dia de muitas falas, muito kuútu, em que recapitulam tudo o que foi feito até então desde que a morte se deu. Agradecem aos que trabalharam como coveiros, aos que foram deodë basiá, aos que lavaram o corpo, aos que construíram a tenda, aos que vieram nas vigílias, rezaram e cantaram, aos que trouxeram presentes para serem distribuídos, às visitas de outras aldeias e da cidade, a todos que passaram pela casa do morto por todos esses dias. É o dia de encerramento da fase crítica do ciclo funerário, logo um dia de celebração. De continuação das trocas. De muita comida e bebida que os deodë basiá separaram para este dia, em geral tão abundantes que as pessoas já trazem potes de plástico pensando em levar um pouco do que sobrar para casa. Como nos outros kuútu sob a tenda, parte das falas oficiais que são ditas no aitidei é direcionada ao morto. Ele não responde diretamente, por um oráculo, como faria em outras aldeias, mas seu silêncio tem eloquência. Se tudo correu bem, ninguém adoeceu nem morreu na última semana, grandes brigas não se iniciaram, o falecido deve estar satisfeito com o que foi levado a cabo em seu nome. Se estivesse descontente, teria externado por meio de infortúnios, intempéries climáticas violentas, ou possessões nas quais falaria usando o corpo de alguém. Os líderes da aldeia agradecem ao morto, portanto, por seu silêncio, e relembram tudo o que foi feito para ele, todos os bons sentimentos e atitudes que levaram a semana a se passar sem incidentes. É hora de uma despedida final. O aitidei é o dia no qual fazem a separação final de vivos e mortos. Separar vivos e mortos (paatí líbi ku deodë) é um dos objetivos de qualquer funeral saamaka. Nas aldeias não cristãs, onde não celebram o aitidei (e sim o túwë njanján, três dias depois do enterro), há um gesto ritual que marca essa separação, o corte do sangaafú130. Um basiá indica uma pessoa para segurar um talo dessa planta sobre o esquife, voltada para o nascente. A planta fora pintada parte de branco com caulim, parte de preto com fuligem, e, enquanto palavras marcam a separação, um terçado corta a parte preta (ruim), ficando o talo branco (boa) na mão (cf. Price 1990: 216-7; Price & Price 1991: 56-7). Isso é performado mais de uma vez, no dia do enterro, antes de o caixão ser levado ao cemitério. Se a pessoa tiver óbia de divindades (gádu), cortarão sangaafú para separar o morto dela, quantas plantas para quantos gádu possuir, enquanto os presentes vestem as roupas, tocam toques de tambor e 130 O Sangaafú – cana-do-brejo (Costus arabicus ou Costus scaber) – tem grande importância para os maroons. Suculenta, foi fonte de água durante a fuga dos antepassados pelas savanas e pântanos. “Suco de sangrafu simboliza água e portanto limpeza e apaziguamento espiritual”, sendo ingrediente em inúmeros óbia, e considerada uma das plantas mais poderosas, capaz de domar praticamente todos os tipos de espírito, capaz de curar diversos males com enorme rapidez (Andel & Ruysschaert 2011: 174-178). Era usada em libações para antepassados antes da introdução de caldo de cana, rum e cerveja (Price 2008: 426n11).

165 dançam danças específicas de cada um. Cortam sangaafú também para separar o morto de sua matrilinhagem e, no caminho do cemitério, mais um parar separar o falecido da aldeia. Ao fazê-lo, os presentes podem apanhar o braço de quem segura a ponta branca, numa corrente que ajuda a garantir a presença de todos do lado dos vivos. Aquele que fica com a planta embranquecida, em geral alguém da família, leva-a para a casa, pode guardá-la como um amuleto. A parte preta deve ser dispensada na cova, com o caixão. Em Botopási, nada disso é feito. A separação é efetuada apenas por palavras. Durante vários momentos do ciclo funeral, falam com o falecido e outros ancestrais, lembrando que a morte é triste, mas que não há o que fazer, os mortos devem ir para seu lugar e deixar os vivos onde estão. Pedem para que não se zanguem, não se apegam às pessoas e locais que amavam, que deixem de bom grado sua antiga existência e passem a trazer apenas coisas boas para os vivos: crianças, caça, fortuna. No kuútu do aitidei, como depois no limbá uwíi, isso é especialmente reforçado, pois tratam-se de momentos de encerramento de ciclos. Um informante de Futunaákaba, pentecostal fervoroso, numa conversa afirmou que por lá a separação de vivos e mortos também é feita apenas com palavras, e logo no primeiro dia do funeral, no momento do enterro. Para ele, em verdade, nem seria necessário falar, pois Deus já faz essa separação sozinho, sem que seja necessário pedir. Porém mantiveram a tradição de marcar a separação principalmente “para agradar às pessoas de outras aldeias que estejam presentes”, para que sintam que em Futuná também se faz essa parte tão importante do ritual. Tal visão, porém, está longe de ser unânime entre cristãos. A ausência da materialidade do gesto ritual não significa que o procedimento não foi levado a cabo, nem que é desnecessário. O paatí líbi ku deodë pode ser feito com palavras. É importante compreender a importância do poder do verbo no universo saamaka. Não fazem nenhum ritual, nenhuma oferenda, nenhuma libação sem falar com Deus, espíritos, divindades e ancestrais. Todos os gestos são acompanhados de rezas, agradecimentos, súplicas e pedidos às forças com as quais se está lidando. Em um mundo como o saamaka, onde há grande importância conferida à arte da retórica, efetivamente se faz as coisas com as palavras, tanto nos assuntos entre os vivos como na relação com o mundo sobrenatural. Agir é em grande parte convencer tudo e todos, definir a situação, os problemas e sua resolução. A etiqueta requer que se dê bom dia para todos. Agradecimentos, felicitações, louvações e condolências são sempre enfatizados. Demonstrar bons sentimentos, falar o bem, é fazer o bem. Agradecer, dizem, é “dinheiro saamaka” (“saamáka mooni”), tal o valor que se dá à gratidão externalizada. Por outro lado, sentimentos ruins, mal intencionados, quando

166 colocados em fala, ganham forma e poder, causando sofrimento na forma de maldições (fuúku e sibá), ações que também podem ser chamadas de “enfeitiçar com a boca” (wísi ku búka). Mas nem é necessário proferir uma maldição: posicionar-se e falar contra alguém é “lutar com a boca” (féti ku búka). Simples fofocas ou acusações – “chamar o nome de alguém” (kái sëmbë neo) – já são suficientes para causar problemas. Daí tantos segredos, tantas circunvoluções nos discursos oficiais, tanto uso de linguagem metafórica e proverbial. É preciso escolher bem as palavras, ser direto demais é colocar as palavras para agir com uma potência que pode ser difícil controlar posteriormente. Enfim, como disse um amigo, “foi com palavras que Deus fez as coisas, não podemos ignorar sua força”. Palavras têm eficácia, criam, transformam e destroem. Compreendemos assim como os saamaka cristãos podem prescindir de certos gestos e materiais rituais e ainda assim atingir efeitos análogos aos que são alcançados em outras aldeias. Quando se faz uso de uma receita com plantas da floresta (deési ou óbia), podem ou não aplicar caulim, fazer libações, oblações; podem ou não falar o nome de ancestrais e divindades para pedir que ajudem. A força que gera a eficácia desejada já está na planta, mas outros elementos podem ser acrescentados para aumentar a efetividade do composto. Da mesma forma, um feitiço pode ser feito com plantas, objetos, espíritos, ou valendo-se tão somente de palavras e sentimentos negativos. Inúmeras formas atingem eficácia mágica e ritual. Isso vale também para separar vivos e mortos. Dependendo do ponto de vista, as formas excluem-se ou complementam-se. Para alguns, basta a força motriz mais forte e inicial, a de Deus, para que se efetue; qualquer gesto ou palavra ritual somada é mera futilidade ou, pior, idolatria. Outros recorrem apenas a palavras para se assegurar da divisão. Outros ainda para uma combinação de palavras, materiais, música e gestos. Mas, no fim das contas, eis algo que todo funeral saamaka faz: separar vivos de mortos. A separação precisa também ser reforçada em outros momentos, fora do ciclo ritual. Ao utilizar um óbia contra fantasmas (kootösëmbë óbia), uma pessoa que está sendo acometida por um fantasma está buscando uma receita mágica com este fim: cortar laços que o amarram a uma “pessoa fria” específica que faz-lhe mal.131 Van Gennep (2011 [1909]: 140-2) fala de ritos de separação (entre mortos e vivos) e de ritos de agregação (do falecido ao mundo dos mortos). Parris enxergou nos funerais 131 Existem óbia poderosos para assegurar a separação entre vivos e mortos. Um dos mais importantes é Dúnguláli, pertencente ao clã Langu. Dúnguláli é um gaán óbia que mantém a separação entre os vivos e os mortos, especialmente removendo fantasmas dos ambientes onde as pessoas vivem e de seus corpos. É também conhecido por um nome bastante significativo: Pásipaáti, “separa caminhos” (R. Price 2008).

167 ndyuka um foco nos segundos. Nos funerais saamaka, a ênfase alterna-se entre ambos. Não é difícil perceber que a separação nunca pode ser completa. Os seres humanos precisam dos mortos para viver, precisam de ancestrais, de ajudantes no mundo dos mortos. Dependem até mesmo, por vias tortuosas, dos kúnu, espíritos vingativos. Como vimos, falam o tempo todo com fantasmas, ao longo das cerimônias fúnebres pedem a eles calma, compreensão e benesses. Mesmo em momentos de encerramento dos ciclos funerários, mortos e vivos são apartados, mas não totalmente nem definitivamente. Antes de tudo, o que esses rituais efetuam é o controle da boa distância entre as terras dos mortos e dos vivos.

Removendo tabus Separados vivos de mortos, é hora de voltar à vida normal. Para que isso possa ocorrer sem percalços é preciso abrir caminho para que a rotina se instaure outra vez. No fim da tarde, depois do aitidei, os deodë basiá são destituídos de suas funções por meio da divisão dos víveres e presentes restantes da semana anterior, num kuútu onde ocorre a remoção de seu cargo (o púu basiá). Maksin meesters, baákuma, wásideodëma, késima, todos já estão livres de suas obrigações no oitavo dia após a morte. Todos podem agir normalmente, pela primeira vez desde o falecimento. Mas “primeiras vezes” são momentos perigosos em qualquer aspecto da vida saamaka; primeiras vezes em que se faz qualquer coisa “normalmente” depois de uma morte, idem. Por isso é preciso “remover os tabus” (púu tjína), no dia que segue o aitidei. Em geral, vão as pessoas mais próximas do morto com condições de fazê-lo, mas é comum que alguns deodë basiá acompanhem, e outros convidados. Na ocasião em que participei de um púu tjína, eu havia sido deodë basiá. Fui chamado pela manhã por um dos kabiténi de Botopási, que me levou até a sombra da tenda na porta da casa da falecida, para esperar a chegada de homens e mulheres. São necessárias pessoas de ambos os gêneros. Vieram os dois homens que haviam sido deodë basiá comigo (ambos paípáí míi, filhos de homens da matrilinhagem da morta) e cinco mulheres (todas da matrilinhagem da morta). Foi feito um kuútu rápido, iniciado com uma oração, no qual sobretudo o kabiténi falou. Ele dizia, dirigindo-se a Deus, à morta e a outros ancestrais (nesta ordem) que iríamos “remover tabus” ao comer, beber, conversar, trabalhar, e pedia que tudo desse certo, que nada atrapalhasse nosso caminho. Partimos para a roça de um dos homens presentes. Chegando lá, sentamos em tábuas sob um galpão. Uma das mulheres iniciou uma reza que quase a fez chorar. Depois, reforçando que o estavam fazendo “da maneira que estamos acostumados” (“kuma fá ú guwénti”), acenderam uma fogueira, na qual esquentaram um pouco de bruine

168 bonnen que haviam trazido. Cada um comeu uma pequena quantidade desse prato típico creole, feito com feijões marrons e carne, acompanhado de arroz. Uma das mulheres pediu desculpa pela pouca quantidade da comida. Todos bebemos água, as mulheres tomaram refrigerantes e os homens pequenas doses de rum, e finalmente pedaços de beiju. Os mais comuns alimentos saamaka estavam representados: arroz, mandioca brava, legumes, carne, água, bebida doce, álcool. Enquanto isso, conversávamos assuntos cotidianos, relações entre homens e mulheres na aldeia e temas correntes nos jornais. O ambiente era descontraído. Ao longo de tudo isso, mais quatro mulheres e um homem juntaram-se a nós. Depois de comermos, as mulheres se levantaram para capinar um pouco o terreno em volta do galpão, removendo ervas daninhas, mas era um trabalho leve, que não faria tanta diferença para a conservação do que estava plantado. Não passou mais de uma hora e decidiram fazer o caminho de volta para a aldeia. Chegando lá, o kabiténi esperava-nos. Fizeram mais um rápido kuútu, no qual os homens informaram que tudo correu bem. Outra oração foi feita, distribuíram refrigerante e o púu tjína acabou. O ritual serve para “abrir caminho” (jabí pási) para que a família possa comer, beber, trabalhar, etc., sem que nada de ruim aconteça. Passada a fase mais crítica dos rituais, mas com o morto ainda próximo, o melhor é que todas essas coisas sejam feitas pela primeira vez num ambiente privado e controlado, longe dos olhos de pessoas que queiram fazer mal e de quaisquer outros riscos. Daí que as quantidades de comida, bebida e trabalho sejam diminutas e que a duração seja curta. Tudo só para constar, para ter certeza de que a vida não está bloqueada pela morte que se passou. Se ninguém machucar-se, passar mal, brigar, é sinal de que tudo anda bem. Em outras aldeias, as pessoas lavam-se com óbia nesses momentos, adicionado ou reforçando proteções mágicas ao recomeço. Mas isso não é necessário em Botopási. Depois da frugal cerimônia, já não é proibido nenhum tipo de trabalho na aldeia, nem festas seculares com dança e música profana, que estavam vedadas durante a semana anterior. As tjína dos coveiros e outros que fizeram serviços fúnebres também são abandonadas. Podem comer normalmente e voltar a dormir em suas próprias casas.132

132 Este tipo de gesto inaugural “para constar” acontece em outros momentos também, e é referido pela mesma expressão, púu tjína. Por exemplo, no primeiro dia do ano é preciso ir “gritar ano novo” (bái jái) na casa de parentes e amigos. Sozinhas ou em grupo, as pessoas circulam a aldeia, parando em cada porta para gritar “Ano novo! Ano novo!” (“jái o jái!”) e pedir alguma bebida e talvez algum pedaço de bolo, pipoca ou algo assim. É importante que todos recebam visitas e que todos doem alguma coisa para alguém, nem que sejam umas poucas gotas de rum, pois é considerado púu tjína. Também nesse momento de renovação, de abertura de um novo ciclo, efetuar pequenas trocas simbólicas permite que se abra caminho para que a reciprocidade possa se seguir ao longo do resto do ano. Sobre o perigo das “primeiras vezes” cf. R. Price 1990: 323n34.

169 Limpar os cabelos, controlar a putrefação Passada a primeira semana, os mortos estão separados dos vivos e a normalidade retornou à aldeia. Mas não totalmente. A tenda continua de pé por mais seis semanas. Um importante ritual ainda é necessário, o morto ainda não está assim tão apartado, especialmente não de seu viúvo. A cerimônia que encerra o ciclo funerário é o limbá uwíi (lit. “limpar cabelo”). Nas aldeias não cristãs este é o momento de enterrar o pacote com unhas e cabelos do falecido, que vinha sendo usado para consultar oracularmente o morto. O enterram no caminho para o cemitério numa cova rasa, sem muito comentário, sem caixão. R. Price (1990: 103-111) chama este rito de “segundo funeral”, pela proximidade com os obséquios finais, quais descritos por Hertz (2003 [1907]). Diferente do aitidei, a data do limbá uwíi é flexível. Nos locais onde se faz divinação com cabelos e unhas do morto, este oráculo definirá o dia preciso da cerimônia (R. Price 1990: 104). Em Botopási, já começam a discutir a data logo no dia do aitidei, em kuútu, sendo a decisão tomada principalmente pelo metrissegmento do falecido. Em geral, escolhem uma segunda-feira, que é o dia de fazer trabalhos comunitários (lánti woóko), com os quais cerimônias fúnebres são pareadas. Levam em conta outros fatores: quais datas facilitariam a vinda de pessoas da cidade, em quais dias há outros eventos concomitantes como feriados cristãos ou rituais em outras aldeias, etc. Quando duas ou mais pessoas morrem em datas próximas, podem marcar os limbá uwíi para o mesmo dia e a população da aldeia se locomoverá durante toda a tarde entre as casas dos mortos. Não perguntam diretamente para o morto sobre a data de seu segundo funeral, mas fazem o contrário: avisam para ele que a cerimônia será celebrada. Fazem isso no paamúsi (“promessa”), um breve encontro atendido por não muitas pessoas, na tarde que antecede o limbá uwíi. Trata-se de um kuútu atendido pelo conselho da aldeia e por familiares e amigos, no qual o ponto principal é falar com Deus e com o morto que no dia seguinte “limparão o cabelo” para o falecido. Na noite do mesmo dia há mais um evento público, dessa vez atendido por boa parte da população da aldeia. Uma reunião para comer, beber e conversar. Rezas não são obrigatórias e não há hinos. Tampouco varam a madrugada em vigília. O anúncio do limbá uwíi é feito ao morto durante o dia, em um ambiente um pouco mais privado, e aos vivos durante a noite, em um evento aberto para todos. O limbá uwíi assemelha-se muito, em Botopási, ao aitidei. Inicia-se também pela manhã, com uma breve cerimônia religiosa na qual falam algumas palavras, leem trechos da Bíblia, a palavra do dia do almanaque da EBGS, rezam e cantam hinos. Algum choro volta a

170 ocorrer. Depois há um kuútu, no qual os kabiténi narram tudo que aconteceu, desde que a pessoa adoeceu seriamente, passando pela morte, pelo enterro, pela semana na frente da casa do morto, lembrando todas as pessoas e grupos que ajudaram e agradecendo um a um pelos trabalhos, pelos presentes ou apenas pela presença nas cerimônias. Como de praxe nos kuútu funerários, também pedem união à família e à população da aldeia no difícil momento. Também podem falar de assuntos de interesse da aldeia não relacionados à morte. Depois disso, passam distribuir comidas e bebidas, o que se estende até o final da tarde, com jogos, conversas e diversão. São retomadas as bravatas de politíki e também as trocas cerimoniais, tái beoë e hópo táfa, porém em geral só recebem tecidos as pessoas relevantes que não estiveram presentes durante a primeira semana após o enterro. Os coveiros não cumprem mais qualquer papel destacado, mas podem ter assentos privilegiados e recebem novos agradecimentos. Os deodë basiá, já destituídos de suas funções, não têm obrigação de trabalhar, mas em geral o fazem sem qualquer reserva. Nos limbá uwíi de Botopási não há muitas diferenças com relação às atividades realizadas nas outras cerimônias do ciclo. Destaca-se neste dia o gesto que lhe dá nome: o corte dos cabelos. No centro da tenda, que está de pé pelo último dia, as pessoas devem sentar e ter seus cabelos cortados. Sobretudo o viúvo, mas também outras pessoas da família do morto podem fazê-lo, e quem mais o quiser. Por vezes há alguma resistência – uma mulher com longa e bonita cabeleira pode não querer abrir mão dela – mas, para o viúvo, isso é uma das regras mais importantes que deve seguir. Pois até o limbá uwíi o espírito do morto ainda está no corpo de seu cônjuge, o corte dos cabelos é um gesto que o livra do fantasma. Como me explicou um ancião, “depois de uma morte é preciso limpar-se para começar de novo”. A data de “limpar os cabelos” é flexível, mas não completamente. Em uma manhã de 2012, durante um kuútu de aitidei, discutiam o dia em que marcariam o limbá uwíi para aquele morto específico. Um homem novo, de seus 40 anos, mas que possuía um cargo oficial na aldeia, fez uma sugestão: disse que seria bom se diminuíssem o tempo entre a morte e o limbá uwíi. A tradição regulava o período em cerca de seis semanas, e ele sugeriu que diminuíssem para duas ou quatro semanas contando do enterro. Seria apenas acompanhar uma tendência que já existe, argumentou: os limbá uwíi ocorriam meses depois da morte, antigamente, a distância de tempo vem diminuindo. Parecia-lhe que há pouco tempo fora estabelecido em Botopási o prazo de seis semanas, de modo que não seria grave encurtar ainda mais. Muita gente estava morrendo, nos últimos anos, era preciso agilizar as coisas.

171 Um dia depois que a proposta foi apresentada publicamente, um amigo veio dizer-me que aquela não era uma boa ideia. Certamente alguém deve ter comentado o mesmo com o homem que propusera a ideia, pois ele não mais tocou no assunto. Como em tantos kuútu saamaka, tudo foi debatido fora deles. O ponto, dizia meu amigo, é que o corpo enterrado deve ter apodrecido quando fazem o limbá uwíi, e quatro semanas não são suficientes. Frisou ainda haver um problema: muita gente, até mesmo pessoas que fazem parte do conselho da aldeia, como era o caso daquele que levantou a ideia, não sabe o motivo por trás de certos costumes saamaka, seguem ou deixam de segui-los sem entender a razão. Muitas mudanças ruins acontecem por esse motivo. Em “coisas sérias da cultura não se deve mexer”, disse esse meu amigo. Logo ele, que morou anos em Paramaribo e na maioria dos assuntos tende a ser um partidário do desenvolvimento. Um tempo depois, perguntei a outro interlocutor se era verdade que o corpo deveria apodrecer antes do limbá uwíi e se este seria o motivo da espera de semanas para a cerimônia. Ele quis saber quem havia me contado isso, talvez por não ser um conhecimento tão difundido. Depois explicou que, mais especificamente, a mandíbula deve soltar do crânio, o que ocorre em seis semanas. Quando estão vestindo o cadáver, amarram um pano verticalmente na cabeça para que a boca não abrir, e afrouxam um pouco quando está tudo pronto. Ao longo das semanas o pano solta mais e a mandíbula separa-se do crânio. E mais: uma tira de pano é amarrado nos dedões do pé do cadáver, juntando-os. Depois de uma semana, dentro do caixão, a tira se solta completamente – é quando se celebra o aitidei. Mais uma separação que ocorre paulatinamente ao longo do ciclo funerário, portanto: a dos ossos e carne do defunto. Dentro de uma semana, o corpo já começa a se putrefazer. Ao fim dela, uma primeira apartação já ocorre numa de suas extremidades. Nesse momento, a parte mais crítica dos rituais tem seu fim, as trocas de presentes cessam, e a vida pode começar a retomar seu ritmo usual, pode haver dança e música na aldeia, todos podem trabalhar e comer normalmente. Mais cinco semanas passam e o apodrecimento intensifica, a extremidade superior do morto perde sua unidade, os ossos de sua cabeça se separam. É hora de mais um ritual que afasta o fantasma dos vivos, enfatizando agora sua separação do corpo de seu cônjuge. A parte física e a parte espiritual da pessoa acompanham-se num ritmo sincronizado, o espírito distanciando-se de sua aldeia e pessoas à medida que o corpo se desfaz. Talvez mais uma razão para o perigo dos taku deodë: um cadáver que sofreu uma morte violenta pode ter seu processo de decomposição e de separação de suas partes alterada de modo imprevisível. Sabe-se lá quanto tempo leva para alguém que sofreu um grave acidente

172 ter sua mandíbula separada do crânio. Quando um corpo não apodrece, o fantasma torna-se anômalo. Ouvi histórias sobre cadáveres que foram tratados com substâncias que impediam o apodrecimento e fizeram com que o morto aparecesse frequentemente em sonhos para contar que “não era como os outros mortos”, que haviam colocado “algo de ruim” nele.133 A putrefação do cadáver é tema recorrente em Botopási, especialmente quando comparam seus modos de enterramento aos de outros grupos étnicos do Suriname. Um jovem certa vez disse-me que não se deve queimar cadáveres nem jogá-los no mar, pois Deus não os aceitará. Os indo-surinameses (kulí) fazem errado, talvez até por más intenções, para usar as cinzas em feitiços. É na terra que se deve colocar o corpo, pois é nela que deixamos coisas que não são mais boas, “a terra come o corpo das pessoas” (“dóti tá nján sëmbë sínkíi”). Em outra situação, um ancião asseverou: “Jesus não foi jogado na água, não foi queimado, não foi jogado na rua para os cachorros comerem. Devemos enterrar todos os mortos como Jesus foi enterrado, mesmo que tenha sido morto a tiro” (i.e., mesmo que seja um taku deodë). Por outro lado, o contato imediato com a terra pode ser problemático. Mais de uma vez ouvi comentários de desaprovação sobre enterros na cidade, nos quais jogam terra diretamente sobre o caixão. Mortos “normais” devem ser enterrados em caixões, sobre a cova devem ser feitas proteções com madeira, cimento, plástico e/ou plantas, acima das quais a terra será lançada. Discordâncias podem existir – ouvi um basiá afirmar: “cremar, enterrar na terra, no cimento, tampar a cova com madeira, isso tudo depende da fé [geloof] da pessoa, mas  eu gosto da maneira como fazem na cidade,  jogando terra em cima do caixão, pois devemos   virar   pó   [dóti]   depois   que   morrer,   como   diz   a   Bíblia:   'do   pó   viestes   e   ao   pó voltarás'”. Independentemente da posição, existe toda uma preocupação com a boa medida do contato entre a terra e o cadáver, uma regulação do tempo da decomposição do cadáver como forma de controle da boa distância entre o fantasma e o mundo físico.

133 Hertz pensa a putrefação como suporte material para crenças ligadas à condição da alma. Nota um paralelismo entre a condição do corpo que espera obséquios definitivos e a da alma que aguarda a admissão na terra dos mortos (2003 [1907]: 33-4). O mal cheiro e as matéria pútridas do cadáver seriam signos das más influências da morte, de contágio e poluição. O fechamento da tumba e o amortalhamento auxiliam para que a alma não escape para locais indesejados (ibid.: 18-9). Hertz é seguindo de perto por van Gennep, que chama o espaço de tempo entre os dois enterros de “período de margem”. O processo físico mais importante que deve ocorrer no período de margem, para o autor é a decomposição, queima ou retirada da carne dos ossos. No período pós-liminar podem haver comemorações de “retorno” – em oito dias, um mês, um ano etc (2011 [1909]: 130). A liminaridade de pessoas em condições rituais intersticiais – como viúvos – foi estudada por Turner (1974 [1969]) numa chave estrutural-funcionalista, associando-a ao caráter “menos estruturado” das relações humanas, aquilo que chama de communitas. Não haveria muita dificuldade, portanto, em encaixar os rituais funerários saamaka nos esquema sugeridos pela antropologia clássica.

173 Luto Para a maioria das pessoas o luto (baáka) é curto. Membros da família de um falecido só têm obrigação de vestir-se em roupas de luto até o limbá uwíi. Usam branco, preto e cinza, vermelho é evitado. Mulheres amarram panos na cabeça como véus, que podem ser chamados de “lenços brancos” (wéti angísa) ou “pano de cabeça” (hoofdddoek). A tristeza pode fazer com que evitem algumas atividades como dançar e esportes por mais algum tempo, mas nada prescrito. Porém, mesmo depois do limbá uwíi, continua tensa a relação entre o morto e seu cônjuge. Este rito de passagem ainda não livra o viúvo completamente do espírito do falecido. O longo período de luto de viúvos (hói baáka, lit. “manter preto”) dura cerca de seis meses e é passado em uma casa no território da matrilinhagem (mamá beoë) do esposo falecido, designada por esta mesma linhagem, que responsabiliza-se pelo enlutado. O envolvimento da matrilinhagem do pai (tatá beoë) do falecido pode ocorrer caso as famílias estejam de acordo, mas não é comum. Por todo o luto, o viúvo leva uma vida contida, sem sexo, sem trabalho pesado, sem exposição. Deve evitar sair de casa e, se o fizer, usar roupas cobrindo o corpo e andar vagarosamente. Tampouco pode trabalhar livremente, deve sentar-se no chão e ninguém pode tocar nas costas de viúvo enlutado. Deve evitar receber visitas de pessoas do sexo oposto, com exceção de um homem que tenha outra(s) esposa(s) viva(s), mas, mesmo com elas, relações sexuais são proscritas. Corre o risco de o morto, ainda cheio de ciúmes, levá-lo junto para o além. Quando um falecido deixa mais de uma viúva, cada uma das coesposas (kambósa) guardará luto em uma casa. Mulheres grávidas não podem guardar luto, mas devem cumprir o período algum tempo depois do nascimento da criança. Uma mulher que engravida em seu luto, ou de um homem que estava de luto, terá sérios problemas, assim como a criança, que será considerada pikádu míi, filho de uma relação interdita, sofrerá infortúnios e dificuldades por toda sua vida. O mesmo vale para um casamento ou relação que se inicie durante o luto de um dos parceiros: o casal e sua prole correm o sério risco de serem sempre acometidos pelo fantasma do falecido. O processo tem um fim gradual, aos poucos a pessoa aproxima sua vida da normalidade. Pessoas muito idosas, que têm dificuldades em cumprir as regras estritas, ou outros casos especiais, podem ter o luto interrompido mais cedo, mas é preciso tomar as devidas precauções, falando com o falecido e usando óbia. E é sempre necessário marcar o fim definitivo do período com ritual íntimo, sem convidados, púu baáka (“retirar luto”). Nele, é preciso lavar-se com uma receita especial baseada em ervas e é preciso fazer sexo, marcando a liberdade finalmente conquistada em relação ao morto. Algo similar ao púu tjína,

174 mas específico para relações sexuais e conjugais. O costume, para um homem, é ir à Paramaribo fazer sexo com uma prostituta. Antigamente, os homens que o faziam desciam o rio de canoa à remo (palibóto) usando um chapéu virado para trás que indicava a todos o que ele iria fazer, mas tal tradição não é mais seguida. As mulheres em geral procuram, com a ajuda do mamá beoë do falecido, alguém na aldeia disposto a fazer sexo com elas. Nem sempre é fácil encontrar um homem para o ato, pois, mesmo com as precauções mágicas, muitos temem o espírito do falecido. Dificuldades em encontrar alguém podem ser sinal de que a esposa e o falecido não estavam “vivendo bem” entre si, de que havia problemas conjugais. Quando encontram, o ritual é realizado em torno da meia-noite. A viúva e o homem serão lavados com ervas e irão a algum lugar escondido no rio, onde tomarão banho; a mulher despojará as roupas de luto, recendo novas do homem e vestindo-as. Dali seguem para uma casa onde fazem sexo quantas vezes quiserem. Quando realmente não há ninguém disponível, ou quando pessoas muito velhas não pretendem estabelecer novas relações conjugais nem manter uma vida sexual ativa, podem substituir o ato sexual ritual por um banho com óbia especial. Há uma posição genealógica preferencial de homem para cumprir essa função: baáa (irmão classificatório matrilateral) do esposo falecido. Porque, caso ele e a viúva queiram, e os parentes aprovem, poderão casar-se em levirato, a mulher assim permanecendo na família. Tal prática, chamada de hói suwági (lit. “segurar cunhada”), não é obrigatória, e em Botopási dizem ser cada vez mais rara. Quando o levirato ocorre, é preciso tomar algumas precauções para que o morto não pense que seu baáa roubou sua mulher. O casal não poderá efetuar a celebração pública do casamento, o túwë daán (lit. “jogar rum”, oblação), o que não é um grande problema pois, de todo modo, mesmo em casamentos comuns, a cerimônia pode ser dispensada. Se quiserem que o casamento seja oficial, o homem pode e deve efetuar o lái valísi (lit. “encher a mala”), isto é, entregar à mulher um enxoval, espécie de “preço da noiva”. Mas o novo marido não a chamará de mujeoë (“esposa”) e sim de suwági (“cunhada”), mantendo assim a relação em segredo do morto. Um casamento pós-luto de uma viúva com homem fora da matrilinhagem do falecido pode ocorrer normalmente, sem tais precauções.134 Depois do púu baáka, pode haver ainda algum resquício de obrigação de um viúvo com a família do morto, talvez um homem tenha que cortar uma roça para a matrilinhagem de 134 Trato de trocas matrimoniais no próximo capítulo. Sally Price (1993 [1984]) trata delas a fundo. Também descreve o período de luto e as obrigações das viúvas em aldeias não cristãs (ibid.: 78). R. Price (1990: 3167n17) descreve o luto entre os saamaka do séc. XVIII. No caso aluku, paamaka e ndyuka, o fim do luto pode ser uma grande celebração (cf. Bilby 1990: 150; Lenoir 1973: 172; Parris 2011: 55).

175 sua esposa falecida (mujeoë beoë), mas isso não dura muito tempo. Apenas um ano depois do enterro, ou mais, se trata da herança do falecido. Falaremos de tal tema no próximo capítulo.

Tempo-espaço da morte Sobre o segundo funeral, Hertz afirma: “a cerimônia final tem um triplo objetivo: ele deve dar aos restos do defunto a sepultura definitiva, assegurar à sua alma o repouso e o acesso à terra dos mortos, e enfim suspender aos sobreviventes as obrigações do luto.” (2003 [1909]: 44). Esses três objetivos que estariam encapsulados em uma única cerimônia, neste modelo antropológico, ocorrem em momentos diferentes do ciclo funerário saamaka. Acerca do segundo ponto, particularmente, o acesso da alma ao país dos mortos, não é possível localizar com precisão o momento onde isto ocorre. Mesmo com as palavras que separam vivos de mortos durante a primeira semana e depois no aitidei, mesmo com o corte dos cabelos no limbá uwíi, mesmo com a restauração da normalidade promovida pelo púu tjína, o morto ainda continua de certa forma lá, em suas coisas e pessoas. O viúvo ainda guardará luto por meses, sob risco da agência do cônjuge falecido, cujos bens ainda demorarão um bom tempo para serem partilhados. A separação parece nunca ser efetuada definitivamente, ainda que o tempo abra uma distância cada vez maior – ou melhor, mais bem controlada – entre vivos e mortos. Para alcançar este controle, ou, como colocam de Beet & Sterman (1981: 3136), para alcançar um balanço entre continuidade e descontinuidade entre vivos e mortos, entre humanos e divindades, toda uma série de atos rituais é feita. Toda uma técnica que inclui trabalhos, discursos, pagamentos, rezas, choros, proibições, discussões. O ciclo funerário tem sua duração específica, marcando um estado transitório para os que vão para o além e para os que ficam na terra. A duração do movimento de desagregação e síntese acompanha a decomposição material do corpo. Porém, o morto independe de tal intervalo para agir. Imediatamente após a morte já começa a atuar, seja como fantasma, espírito vingativo ou neoséki. Antes mesmo de a pessoa morrer, antes de a respiração cessar, quando ela agoniza em seu leito de morte, a alma da pessoa já deixa seu corpo e pode imediatamente reencarnar em uma criança com quem tenha relações de parentesco. A única coisa que a alma de um falecido faz é isto, brotar em outra pessoa como neoséki. Akáa é princípio vital, não se relaciona com a morte. Porém, no mesmo movimento, passa a agir seu duplo invertido, o joóka, que poderíamos chamar de princípio mórbido. Sempre que se fala que o morto fez isso ou aquilo, sempre que se conversa com o falecido, é com o fantasma que se está lidando. O joóka passa

176 a existir apenas no momento em que a akáa sai do corpo, momento em que a vida acaba. E já pode agir imediatamente. Tanto cuidado desde o princípio dos rituais funerários se deve em enorme parte a esta agência. Não passam por debaixo da rede de alguém que agoniza porque a pessoa já pode estar sem alma, seu já fantasma poderia atuar. Logo que a morte se dá, as pessoas já começam a falar com o morto para que ele não se zangue durante as cerimônias. Rezam para ele, pedindo que nada de ruim aconteça com os caçadores que vão em busca de carne e que ele traga queixadas para os banquetes serem abundantes. Pedem que não machuque ninguém que venha à cerimônia, nem mesmo seus desafetos. Pedem que a barriga das visitas não doa quando vierem beber e comer sob a tenda. Um amigo contou-me de algo terrível que se passou em Botopási na década de 2000. A tia de um homem da aldeia morreu na cidade. Enquanto seu corpo estava sendo transportado para o Alto Suriname, a mãe desse homem, já velha, morreu. Foi uma grande comoção, os dois corpos foram colocados em caixões lado a lado no galpão de reuniões. De madrugada, meu amigo viu o homem passando, cambaleando, e achou que ele estava bêbado, pois tinha fama de beberrão e era a vigília para sua mãe e sua tia, momento de beber mesmo. No outro dia veio a notícia de que ele estava gravemente doente. Bebera cânfora, ingrediente usado para lavar cadáveres. Morreu em pouco tempo. Três mortos no mesmo matrissegmento, algo que nunca havia ocorrido em Botopási. Toda a aldeia ficou com medo. Esse tipo de coisa, disse meu amigo, não pode ser simplesmente “azar” (hógihédi). Os membros da família, enquanto fantasmas, estavam agindo sobre seus parentes. Provavelmente não queriam ir sozinhos para o além. Também enquanto kúnu os mortos podem agir no imediato momento do falecimento. Ouvi um caso, ocorrido em Malobí, aldeia à montante, em que, no exato momento de um enterramento, ouviram-se gritos vindos da aldeia. Uma pessoa morreu por causa da agência enquanto kúnu do homem que estava sendo sepultado. Quando uma morte ocorre durante um funeral, é muito provável que ela se deva à ação do morto recente, que está ainda zangado e descontrolado, seja como espírito vingativo ou fantasma. A temporalidade da morte é ambígua, necessita de um processo, mas simultaneamente prescinde de duração. A metamorfose para outro estágio dá-se no imediatismo do acontecimento. No instante da morte, antes mesmo da lavagem, do enterro, do rito de separação entre vivos e mortos, o fantasma chega à terra dos mortos (deodë koondë). Ser fantasma é sinônimo de ser um habitante de deodë koondë. Mas ao mesmo tempo o fantasma está no corpo da viúva, nos cetros dos kabiténi e basiá, impregnando o cadáver e rondando a

177 aldeia. As libações feitas para os ancestrais demonstram que eles estão ao mesmo tempo no solo (goón), onde se derrama rum, e na atmosfera (wéi), para onde os líquidos são aspergidos. A espacialidade dos mortos também é ambígua. Deodë koondë fica no poente (sónugo). Leste-oeste é um eixe fundamental no espaço saamaka. Nos kuútu, líderes sentam-se voltados para o nascente. A cabeça do falecido aponta para o oeste. As oblações e libações, as disposições dos elementos dos óbia, os gestos rituais, tudo isso é guiado por este par, nascente e poente, leste e oeste, sónukúmútu e sónugo, relacionados respectivamente com bem e mal, perigo e segurança, começo e fim, vida e morte, claro e escuro. No dia do enterro, há um tabu: os coveiros devem terminar a cova antes do meio-dia. Em aldeias não cristãs, são ainda mais específicos: o caixão deve sair da casa de morto exatamente após o meio-dia. Ninguém enterra mortos pela manhã. Mas os coveiros têm de voltar do cemitério antes que escureça. Tais regras também relacionam-se com os pontos cardeais: a metade do dia marca a transição do sol do lado da vida para o lado da morte, mais uma forma de reafirmar a separação espacial-temporal entre vivos e mortos. Outra divisão espacial fundamental no pensamento saamaka é aquela entre gandá e bákasë. Podemos traduzir gandá livremente por “centro” ou “local onde as pessoas vivem” e bákasë literalmente por “lado de trás [da aldeia]”, significando floresta, tanto os locais de roças das pessoas quanto a mata profunda. O par diz respeito a uma separação entre o mundo domesticado, onde residem os humanos, e o mundo selvagem, habitado principalmente por animais e certos espíritos. O cemitério é considerado bákasë, faz parte do mundo selvagem. Veremos no próximo capítulo que essa divisão é mais complexa, tem efeitos significativos para toda a aldeia durante os rituais funerários. O fundamental aqui é que, quando a tenda está de pé, quando há uma casa de morto funcionando, é como se o centro da aldeia (gandá) se deslocasse para a casa do morto, o que significa reforçar o caráter humano daquele espaço onde as pessoas estão reunidas, em contraposição ao cemitério em bákasë, onde reúnem-se os mortos. O que o funeral saamaka opera, em grande parte, é uma domesticação dos mortos.135 135 Philippe Ariès (2012 [1977]), historiador da morte no Atlântico Norte, acompanha a transição de uma morte pública, barroca, na qual funerais são grandes eventos públicos cheios de pompa, para práticas mortuárias mais contidas e individualistas, a morte romântica, na qual a discrição e o silêncio imperam, ao invés da festa. Chama a primeira de “morte domesticada” e a segunda de “morte selvagem”. Ariès inverte, assim, clichês históricos e evolucionistas que colocam como signo da modernização a domesticação da vida, o trajeto que distancia o homem da selvageria, movimento quase natural pelo qual teria passado o ocidente e que pareceria ser o destino de todos os povos do mundo no contexto pós-colonial. Apesar de tratar de um contexto radicalmente diferente, a conceituação de Ariès parece apropriada aos ritos saamaka. Seus funerais, que jamais foram modernos, aproximam-se muito mais do barroco que do romântico. Nada têm de selvagens. Até mesmo o choro é ritualizado, marcado. O que logram é controlar, domesticar a morte, seu perigo e o morto, este ser contagioso.

178 Definitivamente o cemitério não é parte da aldeia, mesmo estando, em Botopási, bastante perto de sua gandá. O domínio dos mortos não é o domínio humano, mas um espaço que faz parte de um mundo exterior cuja principal imagem para os saamaka é a floresta. Porém, diferentemente do que se poderia esperar, este outro mundo não apresenta inversões diametrais com relação ao universo dos humanos. Nem a floresta nem a terra dos mortos (deodëkoondë) apresentam categorias sensíveis e morais propriamente antitéticas às humanas. Antes, são domínios onde tais categorias encontram-se num estado de maior indistinção. Tudo é mais desconhecido, mais incerto, e portanto mais perigoso. É da imaterialidade dos mortos que provém sua indistinção. Sem corpo físico, resta aos fantasmas operarem com (e como) o vento, o sobrenatural (véntu), enquanto espíritos (jejé). Daí restos mortais serem tão perigosos e contagiosos. São o que resta de físico de um ser não físico. Em certo sentido, os mortos ao mesmo tempo são cadáveres e estão nos cadáveres. Seus corpos putrefatos são matéria ambígua, liminar, perigosa, mas ainda matéria, e por isto podem ser manipulados por humanos como ingredientes de feitiços. Fora do cemitério e do que resta de seu invólucro físico, disforme, sem forma, o morto e seu mundo não podem ser conhecidos, representados. Operam numa lógica própria, num tempo e num espaço próprios. Mortos podem estar em vários locais ao mesmo tempo, na duração e na simultaneidade, apresentarem suas diversas qualidades concomitantemente, como fantasmas, espíritos vingativos, padrinhos sobrenaturais, antepassados. Ajudando e atacando, trazendo vida e trazendo morte. Tamanha indefinição faz com que pareça impossível acompanhar com precisão o trajeto dos mortos para deodëkoondë, local misterioso onde perduram. Entre os saamaka, não há psicopompo, um guia que direciona a alma dos mortos e paralelamente regenera a alma dos vivos.136 O movimento para a terra dos mortos pode ser ajudado, por meio de palavras, gestos rituais, rezas. Mas principalmente não deve ser atrapalhado. Basta que tudo seja feito comme il faut, ou melhor, kuma fá ú guwénti, “como estamos acostumados”, seguindo dentro do possível as regras, para que o trajeto do morto seja bem sucedido. Tudo que podem fazer é controlar a ação do morto e seu contágio, pois seu movimento independe em grande parte dos vivos. Assim, a terra dos mortos não é exatamente um local, um território strictu sensu. Sinaliza uma condição, um modo de existir.

136 A multiplicidade da localização dos mortos e a indistinção escatológica aproximam-se, mas não possuem relação causal necessária entre si. Uma escatologia pode ser desenvolvida e ainda assim entender que um mesmo morto tem múltiplos destinos, como é o caso em Trobriand: o baloma de um morto vai para a ilha de Tuma e seu kosi fica nos lugares em que habitou, o que não é visto pelos trobriandeses como inconsistência (Malinowski 1916: 354-5).

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Capitulo 4: Amarrar ventres O capítulo anterior tratou das atividades funerárias de cuidado com o morto, que ao mesmo tempo o homenageiam e evitam seu contágio e ações perniciosas. Outro objetivo do ciclo funerário é trazer união e alegria para os vivos após a ruptura causada pela morte. Neste capítulo vamos observar como as unidades sociais são feitas (e refeitas) a partir das trocas que acontecem durante a semana em frente à casa do morto. Para tal, descreverei-as em detalhes, buscando entender quem doa o quê para quem e de que maneira isso explicita, reforça e cria relações (de parentesco e outras). Será necessário dar alguma atenção ao aspecto econômico dessas trocas e dos funerais: as compras, os trabalhos, os gastos, as relações com o mundo da costa. Observaremos também outras atividades que são realizadas na casa do morto, pois as trocas são apenas um dos componentes de uma estética mais ampla que busca união nos ciclos funerários. Uma estética que passa pela sociabilidade, pelo divertimento, pela comensalidade, pela lubricidade.137 Além disso, trocas fora dos funerais (em casamentos, nascimentos e situações cotidianas) também precisam ser descritas para compreender como funciona a reciprocidade idealizada e praticada pelos saamaka. Iniciaremos com a descrição de um funeral bastante ordinário, que fornece um panorama das atividades coletivas feitas ao longo de uma semana em frente à casa de um morto.

O trabalho de um deodë basiá Na noite de 14 de dezembro de 2011, Nelia foi dormir bem, segundo suas parentes e vizinhas. Acordou cedo no dia seguinte, tomou o desjejum e um banho, deitou em sua rede para descansar e simplesmente parou de responder. Era idosa, mas não parecia doente até então. Choros femininos pela aldeia alertaram todos, quem ouvia buscava se informar sobre o ocorrido e dirigia-se imediatamente à casa de Nelia. Lá, um grupo de mulheres buscava bancos para que as pessoas pudessem sentar. Muitos homens iam direto à casa, de porta entreaberta, observar Nelia na rede. Alguns tentavam sentir a pressão, o pulso, a respiração. Eli, que fora enfermeiro, pediu para que abrissem a porta para que a luz entrasse, e após rápido exame, saiu desolado. Perguntei se ainda estava viva, ele nada respondeu. Depois, longe dos demais, disse que já estava morta. Vieram kabiténi e mais gente ver o que se 137 Utilizo “estética” no sentido stratherniano: não um julgamento acerca do que é belo, mas uma apreciação de formas apropriadas de apresentação e ocultação de pessoas e coisas, que implicam constrangimentos acerca do que é feito aparecer e o que é deixado implícito (Strathern 2006 [1989]: passim, 2010: 1-2).

180 passava. A maioria ia ficando por ali, em pouco tempo os bancos em frente à casa estavam cheios. Muitos telefonavam para a família na cidade, sem falar em morte, diziam apenas que Nelia estava “doente” (suwáki), o suficiente para que entendessem. Nelia nascera em Botopási, foi morar em outra aldeia ainda jovem. Passou boa parte da vida lá e muitos anos em Paramaribo, por isso relativamente pouca gente a conhecia bem na aldeia. Há cerca de quatro anos voltara à aldeia natal e, por sua personalidade dócil, muitos afeiçoaram-se dela, principalmente na área de sua matrilinhagem no bairro (písi) Báka Djái. Teve seis filhos e uma filha, e desta uma neta, fazendo “crescer a linhagem” (“mbéi i beoë kó bígi”). Desde que voltara a Botopási, tinha a saúde frágil, diabetes (súki síki) e pressão alta (héi buúu), combinação comum em idosos saamaka. Meu amigo Kumumá, filho de sua irmã, sustentava que Nelia morreu em decorrência dessas doenças; ouvi uma ou outra pessoa dizer que a agência de seu marido fez-se sentir: depois que ele morreu ela piorou rapidamente. O fato de Nelia ter falecido pacificamente e com idade avançada fez com que relativamente pouco se falasse sobre feitiços, kúnu e fantasmas. Foi uma morte e um enterro sem grandes eventualidades, um ciclo funerário comum. Quando os sinos da igreja dobraram, mais de uma hora depois que as pessoas ajuntaram-se em frente à casa, foi decretada oficialmente a morte. Imediatamente as mulheres choraram. Trouxeram mais bancos e começaram a tirar as coisas de dentro da casa de dois cômodos, que ficou livre. No cômodo da frente ficou só o corpo na rede, no de trás, nada. Pouco depois, pessoas entraram na casa e cantaram uns poucos hinos, homens de chapéu na mão e mulheres de véus na cabeça. Puseram o corpo no chão sobre a rede e depois o passaram para o caixão provisório (báki). Organizaram um kuútu no qual falaram sobre a morte e oficializaram que “como estão acostumados”, fariam uma vigília (boóko didía) naquela noite. Também escolheram quem ocuparia os cargos importantes no funeral. Fui convidado por um dos kabiténi para ser deodë basiá com outros dois homens, Bokoe e Mako. As mulheres deodë basiá seriam sete, sempre devem ser mais numerosas, há mais trabalho para elas. Ao fim do kuútu ergueram uma tenda em frente à casa da morta utilizando materiais que estavam guardados desde que fora desmontada a tenda feita para outro morto, de outra família. Depois, aqueles que fizeram a tenda (téntima) receberam rum e cerveja. Continuavam os telefonemas. Chamaram gente da família próxima, que mora em Cayenne. Vieram kabiténi de Pikísééi “ouvir a morta”. No fim da tarde, os késima chegaram da outra margem do rio cantando hinos, carregando o caixão. A família comprou um ataúde pronto que estava em um terreno na outra margem do rio. Os

181 késima não eram de fato “fazedores de caixão”, apenas o carregaram, e por isso não ganhariam presentes ou comida especialmente durante a semana. O cadáver limpo e amortalhado foi movido pelos wásideodëma do caixão provisório para o definitivo, sobre o catafalco (bángi). Dentro do caixão, junto com vários panos, lençóis e toalhas, enrolaram sob a cabeça de Nelia um objeto ao qual ela tinha particular afeição, um belo pano amarelo decorado. Em cima de tudo veio um lençol branco. Deixaram o caixão entreaberto, com a face à mostra. O pano que desde o início da lavagem tampava a porta da casa foi suspenso ao lado do caixão e decorado com flores, agora era possível entrar na casa sem ver o corpo. À noite, eu e os outros homens deodë basiá dispomos sob a tenda cadeiras enfileiradas, voltadas para a porta, uma mesa dentro da casa e uma fora, cada uma com garrafas d'água, rum e refrigerante. Elas não deveriam ser consumidas antes dos hinos começarem, não há distribuição de comida para visitantes antes da cantoria. Mako e Bokoe passaram a caminhar pelas proximidades chamando as pessoas, gritavam “venham para a cantoria!” (“úun hái kó a dí síngi o!”). Logo o local estava lotado. Todos bem vestidos: mulheres de blusas, véus e saias brancas; homens com suas roupas de maior qualidade, alguns de casaco ou terno devido ao frio que fazia naquela noite. Pouco depois das 21h, Mako avisou a todos que a “noite de hinos” (síngi ndéti) iria começar, ao que as conversas que preenchiam o ambiente silenciaram. Algumas pessoas sentaram-se dentro da casa, foram elas as primeiras a puxarem os hinos (hópo síngi). A maioria era lida diretamente dos hinários (singi-boekoe) que muitos traziam consigo, mas vários cantados mais frequentemente eram conhecidos de cor e dispensavam a leitura. Noutros, uma pessoa da mesa lia alto a frase que seria cantada a seguir e aqueles sob a tenda repetiam. De início, mais mulheres cantavam, muitos homens circulavam em volta da tenda, bebendo ou fumando, mas logo aproximaram-se. Vez ou outra alguém comentava em voz alta, dizendo que homens ou mulheres estavam cantando mais alto, numa disputa lúdica. Bokoe, no papel de deodë basiá, três vezes interrompeu a cantoria para pedir que as pessoas esforçassem-se para cantar mais alto e mais bonito, mesmo quem nem todos a conhecessem bem, pois aquele era o último momento (“lásíti písi”) da falecida. Fizeram duas pausas para descanso, cerca de cinco minutos cada. Quando chegou a meia noite, Mako anunciou que era hora do último hino, cantado por todos de pé, em tom mais solene que os anteriores. Homens e mulheres deodë basiá passamos então à distribuição de bebidas: chocolate, café e chá quentes com leite. Primeiros para os kabiténi e os anciões da aldeia, depois para os demais presentes. Garrafas de cerveja, rum e outros destilados foram abertas, principalmente

182 para os homens – poucas mulheres bebem álcool. As mulheres deodë basiá há horas estavam preparando os comes e bebes para a noite: pipoca e panquecas fritas foram servidas algumas vezes, no meio da noite um caldo de banana-da-terra com galinha (baána apití) foi a refeição principal. Durante quase toda a noite, três homens revesaram-se tocando violão, guiando um grupo de homens e mulheres que cantava canções gospel. Não eram hinos moravianos, mas canções pop religiosas, a maioria em saamaka. Os que cantavam tinham prioridade em ganhar porções de comida. Os que não cantavam conversavam, bebiam e comiam. As cadeiras haviam sido rearranjadas de forma livre, as pessoas circulavam pela tenda e arredores. As mesas eram ocupadas por jogos de damas (jogadas apenas por homens), cartas e dominós (por homens e mulheres). Aos poucos, durante a noite, pessoas foram deixando o recinto, até alguns deodë basiá foram dormir antes da alvorada. Às 4h30, Kumumá, sobrinho da morta, barqueiro, saiu da tenda e foi de barco em direção a Atjooni, buscar parentes que partiram de Cayenne assim que souberam da morte e chegariam cedo pela manhã no porto. Às 5h, quando ainda havia umas 20 pessoas sob a tenda, cantaram mais 20 minutos de hinos. Às 6h, chamaram de volta para a tenda algumas pessoas que antes de ir dormir pediram para serem acordadas para o final do boóko didía. Recolheram os jogos e puxaram mais hinos, marcando a importância de que houvesse gente cantando dentro da casa, perto do caixão. Com o sol nascendo, cantaram o último hino de pé e fizeram um minuto de silêncio. Neste momento uma irmã de Nelia emocionou-se e disse que queria rever o cadáver. Aqueles que a ampararam disseram que ela poderia, mas que tivesse cuidado para que as lágrimas não caíssem no cadáver. Outras mulheres acompanharam o choro. Às 12h do dia seguinte, tudo estava encaminhado para o enterro. Como deodë basiá, fui verificar como andava o trabalho dos coveiros. A cova estava quase pronta, mas ainda discutiam avidamente sobre o tamanho exato que o buraco deveria ter. Normalmente não haveria kuútu antes que acabassem de cavar, mas como muita gente chegara da costa no fim da manhã, fizeram uma pequena assembleia no meio da qual os recém-chegados entraram na casa para ver o corpo. Homens e mulheres, incluindo filhos da falecida, choraram forte, um choro bastante distinto do choro ritual, que contagiou pessoas que estavam fora da casa. Retomaram o kuútu com um kabiténi dizendo que, conforme o costume, homens e mulheres deveriam ir ao rio ajudar a carregar os pertences dos que chegaram. Era grande a quantidade de bens trazidos para serem distribuídos durante as cerimônias.

183 Depois do kuútu, nós, os homens deodë basiá, fomos “comprar a cova” (bái baáku) dos coveiros com refrigerante e cerveja. O pagamento de fato viria no dia seguinte. Com a sepultura pronta, um ou outro ainda tirava uma pá de terra, arrancava uma raiz, aplainava o buraco. Brincavam entre si, chegou a haver uma luta (hasúa) envolvendo um dos filhos de Nelia. Quando os coveiros voltaram para casa da morta, receberam uma farta refeição preparada pelas mulheres deodë basiá e ficaram por ali esperando a hora do enterro, marcada para as 15h30. O enterro não teve eventualidades. Quando os coveiros terminaram de tapar a cova, sentaram-se com alguns deodë basiá e parte do conselho da aldeia para o baákuma kuútu. Foi uma reunião rápida pois tudo correra bem. Ao fim, distribuímos rum. Durante o fim da tarde e início da noite, um grupo pequeno de pessoas ficou pela tenda, bebendo, conversando e jogando. Eram poucos, a maioria estava cansada da vigília, dos trabalhos ou da viagem. Kumumá, por exemplo, desde que soube da morte de sua tia não dormira. Passou a tarde trabalhando e fazendo os preparativos necessários, participou da vigília à noite, de madrugada foi buscar parentes em Atjooni, de tarde participou do enterro e à noite ficou bebendo na tenda . Uma resistência impressionante, mas nada anormal para um saamaka. Os coveiros dormiram na casa da morta (deodë wósu) que durante aquela semana era a casa deles. Se a casa da morta era dos coveiros, os armazéns (maksin), eram consideradas casas dos deodë basiá durante a semana. São duas casas perto da casa do morto utilizadas para estocar bens a serem distribuídos durante o ciclo funerário. A maior, gaán maksin, é controlada pelo maksin meester, que anota tudo que entra e sai delas, quem doou o quê e para quem foi destinado, combinando sempre com os deodë basiá e com a família acerca da distribuição. Um dos homens deodë basiá ficou com a chave da casa menor, a pikí maksin, onde uma quantidade menor de víveres estava estocada, mas que podíamos dispor com mais habilidade – café, leite, refrigerante, copos de plástico etc. Alguma comida era reservada para nós na pikí maksin pelas mulheres deodë basiá, passávamos lá para descansar durante as tardes ou para combinar em particular algo. As mulheres deodë basiá, que têm a importante função de preparar e distribuir alimentos, acessavam a pikí maksin, mas trabalhavam a maior parte do tempo num galpão-cozinha (gangása) ao lado da casa da morta, referida como mujeoë maksin (“armazém das mulheres”). O kuútu do dia posterior ao enterro teve início às 9h. Arrumamos as cadeiras com cuidado para que os deodë basiá, baákuma, e os kabiténi e anciões tivessem espaços separados, à vista uns dos outros. Esses três grupos seriam protagonistas daquela manhã. Naquela

184 reunião, os baákuma eram os “chefes”, pois a família e a aldeia estavam em dívida com eles: tinham “comprado” a cova, mas ainda não haviam pago. Dez minutos depois do início do kuútu, o líder dos coveiros interrompeu o que estava sendo dito e gritou: “madjómina!”, ao que um deodë basiá respondeu “kála!”. Repetiram tais palavras mais três vezes. Levamos então uma cesta com o pagamento para onde estavam sentados os coveiros, cheia de tecidos e alimentos (principalmente arroz e óleo de soja). Os baákuma pareceram satisfeitos. O kuútu seguiu com agradecimentos e descrições do que já fora feito e do que ainda havia a fazer. O líder dos coveiros pediu um pagamento (paimá) para a parte da família que veio de Cayenne, pois chegara atrasada e perdera a vigília. A família pediu permissão para “gó a së” (discutir em particular na lateral da tenda), voltando com uma resposta generosa: juntaram dinheiro para um engradado de cerveja e refrigerantes e doces, recebidos com entusiasmo pela aldeia. Teve início um dia de bebedeira. Além de Whisky, cachaça, rum e Campari, foram consumidos quatro engradados de cerveja até a noite. Algumas mulheres reclamaram que havia muita cerveja para os homens e pouco refrigerante para elas, o que foi logo sanado. Houve quem criticasse o dispêndio, dizendo que era exagero, que tal quantidade de cerveja serviria para três dias, que tinham de pensar na semana inteira, pois em todos os dias pessoas vão comer e beber. A maioria das pessoas ignorou o aviso e divertiu-se. À noite, num rápido kuútu, confirmaram o calendário para a semana: a morte fora no dia 14 de dezembro e o enterro dia 15; na madrugada do dia 21 para o 22 haveria nova vigília e durante a tarde do 22, o aitidei. O limbá uwíi deveria acontecer por volta de 2 de fevereiro. Neste dia que sucedeu ao enterro tiveram início as trocas cerimoniais. Pessoas da família da morta, visitantes de aldeias distantes, gente que ocupava cargos funerários, kabiténi, basiá e anciões, enfim, os mais importantes convidados, receberam um koósu para ser vestido pelo ombro, como uma toga. Em situações normais, tal vestimenta é masculina e chamada de tapá kootö, em funerais é unissex e ganha o nome de avö. Quem o recebe deve usá-lo na tenda, à noite, nunca alhures. Nós deodë basiá os recebíamos do maksin meester ou das mulheres deodë basiá e, pronunciando as palavras “Fulano, amarro o seu ventre” (“Fulano mi tái jú beoë”), passávamos o pano pelo pescoço do presenteado. A cada dia, os avö doados eram numa mesma padronagem. Pessoas particularmente importantes para aquele funeral foram presenteadas com mais de um, acumulando talvez quatro panos. Na primeira noite após a vigília, todos deodë basiá recebemos também koósu em padronagem distinta dos avö presenteados, para indicar nossa função. Homens os vestíamos no ombro, mulheres os amarravam na cintura como uma saia ou na cabeça como um véu.

185 Outros têxteis foram distribuídos. Matrissegmentos ou pessoas individualmente traziam sacolas cheias de panos, cada qual discriminado para ser doado para uma pessoa específica. Os deodë basiá conclamavam um pequeno kuútu no qual distribuíam os presentes, dizendo a cada item: “Fulano amarra o ventre de Sicrano” (“Fulano tái Sicrano beoë”) antes de entregar o objeto em mãos. Quando o destinatário estava ausente, entregavam para alguém receber em seu nome. O item mais comum eram peças simples de pano (koósu); presentes mais valiosos incluíam lençóis, toalhas, peças de vestimenta bordadas e redes de dormir. Cestas com alimentos também chegavam, enviadas pela família ou por amigos. Ao longo da semana, foram dezenas, com arroz, beiju, farinha, açúcar, óleo, coco, lenha, refrigerante. Eram levadas para o centro da tenda, onde os deodë basiá, falando na modalidade de kuútu, descreviam o conteúdo de cada uma, quem as enviou, e quem seria o destinatário. Doar tal tipo de presente para um funeral é chamado de lái mánda (“encher cesta”). A maior parte dos alimentos ia para a maksin e dali as mulheres deodë basiá buscariam o que necessitavam para cozinhar. Coveiros e aqueles que lavaram o cadáver também recebiam algumas cestas, guardando-as na casa da morta. O dia inteiro as mulheres deodë basiá iam e vinham com cestas, água, rachavam lenha, faziam beiju, pilavam arroz, cozinhavam. Outros presentes eram em comida já pronta, doação conhecida como hópo táfa (“erguer mesa”). A cada “mesa” que chegava, era necessário que Mako e Bokoe descrevessem quem enviou as panelas, o que continham e a quem eram destinadas. Dispor, apresentar e descrever cada presente de forma apropriada é uma das funções mais importantes que cumprem os homens deodë basiá. A quantidade de alimentos não preparados que chegava foi diminuindo ao longo dos dias. Um dia depois do enterro, foram mais de 20 conjuntos de cestas; nos dois dias que se seguiram, cerca de dez; no quarto, talvez cinco conjuntos; um dia depois, apenas dois; e no dia que antecedeu ao aitidei nenhum. Por motivos óbvios: não daria tempo de preparar alimentos tão em cima da hora, e já havia víveres suficientes na gaán maksin. A quantidade de tecidos e “mesas” manteve-se estável ao longo de todos os dias. Durante a semana boa parte dos habitantes de Botopási e muitas visitas frequentaram a tenda na porta da casa da morta (deodë dooö). Um espaço simples: chão de terra batida, cadeiras de plástico e um par de mesas, telhado de zinco, uma lâmpada ligada a um gerador que funcionava parte da noite. As conversas ali eram das mais variadas. Discussões teológicas, debates sobre a política partidária do Suriname, argumentos sobre a história do clã Dómbi... A morta em si não era assunto frequente. No sábado à noite, hora de culto cristão, decidiram

186 fazer o serviço religioso sob a tenda, em vez de na igreja. Isso garantiu um quórum maior do que a igreja consegue num sábado à noite. No domingo, depois de muitas cestas, mesas e ventres amarrados, fizeram uma brincadeira: um grupo trouxe objetos velhos que foram distribuídos como se fosse presentes para a família: um motor de popa quebrado, bolsas furadas, camisetas e calças rasgadas. A cada item, explicavam: “o motor é para os filhos de Nelia virem mais a Botopási”, “as bolsas são para Fulano levar seus instrumentos para o trabalho”, etc. O grand finale foi uma jovem mulher, toda coberta de koósu, enrolada como um presente para seu marido. Na quarta-feira, nós deodë basiá reunimo-nos na pikí maksin e decidimos por começar com os hinos às 20h30. Na noite antes do enterro cantam até a meia-noite, na que antecede o aitidei até às 23h. Os coveiros jantaram dentro da casa de Nelia pela última vez, organizamos o espaço e Bokoe e Mako chamaram todos para a tenda. Quem puxou os primeiros hinos foram membros da matrilinhagem de Nelia, de dentro da casa que, sem o corpo, tinha apenas cadeiras e uma mesa com uma vela, refrigerante e rum. Houve uma interrupção durante a cantoria, na qual um dos deodë basiá disse algumas palavras sobre a morta. Os presentes sob a tenda pediram que ele fosse rápido pois “não estamos na igreja”, isto é, aquele não era momento de sermão, e sim de cantar. Às 23h15, após um último hino em pé e um minuto de silêncio, teve fim a cantoria e a festa começou. Muita comida e bebida foi servida durante a noite: pão com sardinhas, peixe frito, galinha frita, bolo, refrigerante, whisky, conhaque, rum, cerveja, chá. As canções gospel foram até as 6h30, com o sol raiando. Logo às nove da manhã, o aitidei teve início. Mais uma vez, os deodë basiá abriram os procedimentos, passaram a palavra aos anciões e depois ao homem que oficiou um curto culto moraviano: um hino, a palavra do dia, uma oração e mais um hino. Retornando ao kuútu, Mako mostrou a abundância de comidas e bebidas que havíamos disposto nas mesas no meio da tenda, descrevendo o que havia nelas, que pessoa ou família ofereceu e para quem. Por fim, mais distribuição de tecidos. Havia entre os presentes um jogo de porcelana, algo incomum em trocas funerárias. Todos os deodë basiá recebemos um koósu azul, que vestimos sobre o vermelho recebido dias antes. A distribuição de presentes foi longa, depois dela o kuútu durou ainda algum tempo, tratando de temas de interesse geral da aldeia não relacionados com o funeral, aproveitando que grande parte dos habitantes estava presente. Finalmente, passamos aos comes e bebes do aitidei. Como de costume, foi o dia mais rico da semana, com tudo mais abundante. Sobrava para que as pessoas levassem para suas casas. No meio da tarde as festividades se encerraram.

187 Por volta das 17h, nós deodë basiá nos reunimos com um dos kabiténi e dois anciões da aldeia para “remover basiá” (púu basiá), sendo destituídos oficialmente do cargo funerário. Após poucas palavras, tudo o que sobrara na maksin foi disposto sobre uma mesa, na tenda em frente à casa de Nelia. A família já havia levado parte do que não foi usado durante a semana e o que sobrou foi divido entre nós. Era o pagamento pelos serviços durante a semana, posto que, como frisou um dos anciões presentes, “não trabalhamos com dinheiro em coisas relacionadas a mortos” (“wá tá woóko ku mooni a deodë sondí ”). Dois dias depois, fui com Mako, Bokoe e familiares de Nelia púu tjína (ver cap. 3); mais uma semana depois, a festa de réveillon teve início sob a tenda em frente a casa de Nelia, mais uma homenagem para a recém falecida (ver cap.1).

Tecidos e alimentos Ao longo da semana de ritos que segue uma morte em Botopási e depois novamente no dia do limbá uwíi, ocorrem trocas cerimoniais de alimentos preparados (hópo táfa) ou crus (lái mánda) e de artigos têxteis (tái beoë). Essas últimas estão no cerne das trocas funerárias. A poética expressão “amarrar ventre” ou “amarrar linhagem” revela seu objetivo: criar laços entre as pessoas. Tecidos são enorme maioria do que é doado nos tái beoë, mas não há interdição em relação o que pode ser doado: uma pessoa pode “amarrar o ventre” de outros com panelas, objetos de cozinha, redes, toalhas, cobertores, barris de querosene etc. A única coisa que não circula nas trocas cerimoniais – e nem como pagamento para cargos funerários – é dinheiro. A ideia de pagar uma função cerimonial em dinheiro é ridícula para um saamaka. Quando se fala em tái beoë, o principal referente são os koósu: panos em padronagem xadrez ou em listras, de múltiplas cores, comprados em Paramaribo sob a forma de grandes rolos (koósu lólu) ou cortados por metro. Os saamaka nunca fabricaram quantidades suficientes de tecido nas aldeias, de forma que panos importados há muito são matéria-prima de suas vestimentas.138 Os koósu possuem grande importância para os saamaka, especialmente para as mulheres. As vestes femininas saamaka prototípicas – espécies de saias – são chamadas de koósu. O termo koósuma (“pessoa do pano” ou “pessoa da saia”) significa esposa ou mulher, por oposição a marido ou homem, kamísama (“pessoa da kamísa”). As 138 Hoogbergen (1990: 21) cogita que os maroons produziam tecidos de algodão para vestirem-se, no séc. XVIII, usando técnicas aprendidas com os ameríndios. Sally Price (1993 [1984]: 130ss) afirma que o algodão plantado nas aldeias servia para fins específicos (redes, faixas de panturrilha, cordas) e que o grosso dos tecidos usados em vestimentas vinham da costa, por saques ou como parte dos tributos concedidos pelo governo depois da paz. A autora ainda traça uma história dos panos importados de diferentes origens (indiana, do Caribe francófono, etc.) usados pelos saamaka ao longo de sua história.

188 mulheres chegam mesmo a dar nomes aos diferentes padrões e cores de panos (S. Price 1993 [1984]: 188-194). Em conjunto com as cabaças entalhadas, koósu são a matéria prima dos principais objetos de arte produzidos por mulheres maroons: os decoram com belas estampas, em geral geométricas, utilizando bordados, apliques, retalhos e outras técnicas, fazendo assim vestes e peças de decoração. O trabalho de decorar koósu faz surgir uma oposição entre “panos costurados” (nái koósu) e “panos crus” (kúákúa koósu). Mesmo os últimos são mais que simples panos, são relevantes na vida saamaka pelos seus usos práticos e por servirem de meios de pagamento para óbia e para cargos funerários (em conjunto com outro material importado, rum). Nas trocas funerárias, os koósu circulam de três formas: como rolos, fracionados ou como avö. Rolos de tecido são um presente generoso, pois caro. Quem os recebe pode fracioná-los para distribuí-los novamente. Quem recebe os koósu fracionados (em peças de cerca de 130x80cm) pode guardá-los, decorá-los, trocá-los novamente no futuro, enfim, utilizá-los livremente. Por fim, os koósu podem vir amarrados sob a forma de avö para serem vestidos durante as noites na tenda.139 Juntamente com os koósu costumam trocar também lençóis industrializados (lachen ou gaán koósu, lit. “pano grande”), considerados presentes um pouco mais valiosos que panos crus. Uma terceira categoria de têxteis ainda mais valiosos são as redes de dormir (amáka), outro objeto importante para os saamaka, tampouco produzido localmente. Redes são presentes particularmente comuns entre cônjuges. Por fim, podem ser doados panos decorados artisticamente (nái koósu), para vestimenta ou decoração, com apliques ou bordados feitos em geral por quem está doando. Presentes mais pessoais, redes e panos artísticos, são abertos e mostrados ao público pelo deodë basiá no momento de sua doação. Já vimos que os têxteis, koósu, lençóis, redes, toalhas são usados também para amortalhar o cadáver e são acomodados no caixão. Muito do ciclo funerário é marcado pela materialidade dos panos. No tocante à comida, não parece haver em Botopási pratos obrigatórios para momentos específicos dos funerais ou tantas proibições, diferente do que os Price relatam para rituais funerários em outros tempos e outras aldeias (R. Price 1990: 104-5; Price & Price 1991: 197). Na tenda durante a semana são servidos praticamente quaisquer comes e bebes consumidos em dias normais, mas há pratos mais comuns. Ainda que as regras não sejam estritas, há discussão e preciosismo sobre a ordem e hora certa de servir cada prato. Comidas 139 É comum que se dê avö de um padrão de cor para uma categoria de pessoas (digamos, as pessoas da matrilinhagem da morta) e outro padrão de cor para outra (digamos, as pessoas cuja pai é da matrilinhagem da morta).

189 interditas são carne de veado-mateiro (djanga) e pimenta. A interdição à carne de veado dá-se pela relação desses animais com fantasmas: joóka podem aparecer para os caçadores como veados, à noite, na floresta, matá-los pode trazer problemas. 140 Já a pimenta, por ser um alimento quente, opõe-se ao frio dos mortos, kootösëmbë, seu consumo num funeral poderia desagradar o falecido.141 Fora isso, pode-se comer de tudo, mas, nos boóko didía, aitidei, limbá uwíi, em se tratando de grandes festas e banquetes, dão preferência a pratos mais elaborados e apreciados, bem como a pratos que o morto gostava. A lista é grande. De bebidas, são servidos refrigerantes, refrescos, bebidas de gengibre industrializadas, de diversas marcas; cerveja (em geral a cerveja nacional do Suriname, Parbo); cognac (marca Hannapier); rum surinamês (Mariënburg142, Borgoe); rum agrícola da Martinica ou da Guiana Francesa (Maniba, La Belle Cabresse e outros); Campari; whisky, vinho e licores de várias marcas. Além de bebidas servidas com leite quente: chocolate, chá e café solúvel. Chocolate quente (sukuáti), de acordo com um informante, deve ser a primeira bebida servida, junto com rum. O apínkusu, caldo de cana, é essencial em funerais saamaka não cristãos, mas nunca vi ser produzido ou consumido em Botopási. Doces e entradas incluem bolos variados; confeitos de coco, amendoim e arroz; pães com manteiga, geleias, manteiga de amendoim ou sardinhas enlatadas; banana-da-terra, djógu143 ou galinha frita; pipoca; salgadinhos industrializados; pães dormidos para serem tomados com bebidas quentes; pannenkoek (panquecas fritas de origem holandesa); bakabana (doce creole de banana com massa de trigo); mandioca frita (conhecido no Suriname pelo nome javanês, telo); bara (massa frita salgada de origem indiana); adjádja (crostas de arroz frito, tira-gosto muito apreciado entre os saamaka); e beiju (de origem ameríndia, um dos carboidratos básicos da alimentação maroon). Parte dos petiscos são servidos em pequenos sacos para que as pessoas levem para suas casas se não quiserem consumir na hora. 140 Carne de veado-virá (paádu) não é proibida, mas por ser parecida com a de djanga, tende a ser evitada em funerais. 141 R. Price (1990: 213-8) e Price & Price (1991: 51) afirmam que, em certos momentos do ciclo funerário, a comida dos coveiros é carregada de pimenta, tempero “quente” que repele os mortos. Assim os coveiros podem “comer sozinhos”, isto é, sem que mortos se aproximem deles. Comentei com meus informantes de Botopási e isso pareceu-lhes absurdo: para eles é tabu (tjína) em qualquer aldeia saamaka, cristã ou não cristã, comer pimenta em qualquer situação que respeito aos mortos. Pimenta não é “coisa de morto” (deodë sondí). O tempero é usado em proteções (kándúu) contra fantasmas, colocada em cima da porta para não adentrarem numa casa ou consumida de noite para evitar que assombrações apareçam. Uma inversão da prática observado em campo pelos Price: para meus interlocutores, comer algo que espanta mortos em seu próprio funeral seria ofensivo para o falecido. 142 Ver nota 91, cap. 2. Na maioria dos pagamentos cerimoniais, bem como em libações, o rum Mariënburg é padrão, mas outra marca pode substituí-la, em geral rum branco agrícola francês. 143 Hemiodus sp., pequeno peixe conhecido no Brasil como jatuarana, voador, charuto ou flexeira.

190 Dentre os pratos principais, alguns ganham destaque: pindá alísi, arroz com amendoim, que antigamente era comido com a mão e não em recipientes; fátu alísi, “arroz gordo” feito no óleo (de soja, inajá ou tucumã) com carnes e legumes; fanía apití, bolinhos de amendoim e arroz, servidos com coco e muita carne. Também muito comuns são os baáfu, ensopados de carne acompanhados de arroz ou beiju, feitos com frango industrializado ou galinhas criadas na aldeia, peixes do rio (traíra, piranha, tucunaré, pacu, etc.), ou caça (tatu, macaco, cutia, paca, nambu, etc.). Refogados de legumes e verduras plantados localmente podem acompanhar os ensopados: vagem-corda, quiabo, berinjela-africana, taioba, pepino, abóbora, melão-de-são-caetano, etc. As carnes – frescas, salgadas ou secas – podem também ser base de outros caldos com apití (com bolinhos de banana-da-terra ou de mandioca); masala (com curry e outros temperos indianos); pési (lentilhas amarelas); ou bruine bonnen (feijões marrons, prato típico da culinária creole). Outros pratos estimados incluem barbecue (churrasco de frango marinado); bami (macarrão de origem javanesa); nasi (arroz frito, também javanês); e moksi-aleisi (prato creole de arroz e feijões com carnes e vegetais cozinhados em conjunto). Tais pratos chegam em grandes panelas, dispostas em mesas no centro da tenda, e serão servidos pelas deodë basiá. A variedade é importante nos banquetes sob a tenda. Tanto em seus ingredientes quanto em suas receitas, a comida em dias de festa em Botopási é um misto de culinárias variadas: indiana, javanesa, creole, maroon, ameríndia, holandesa... Como a culinária do Suriname em geral. Uma das coisas que mais se pede a Deus, ao morto e aos antepassados durante os funerais é que a caça seja copiosa. Um informante dos Price afirma que carne de caça deve ser sempre mais volumosa que peixes, nos funerais em Dangogo (Price & Price 1991: 197). Nunca ouvi qualquer afirmação desse tipo em Botopási, mas a ênfase na caça existe, posto que é comum designar, logo depois do enterro, um grupo de homens para trazer caça para o aitidei.144 É relevante notar que a caça hoje em dia já não é tão abundante em torno das aldeias do Alto Suriname quanto um dia foi. A pressão demográfica fez com que, para conseguir carne em quantidade, seja necessário caminhar dias em direção à floresta mais afastada. Assim, o grupo que vai caçar, conhecido como mátuma (“homens do mato”), é necessário para que haja variedade de pratos na casa do morto. Eles normalmente saem da aldeia um dia depois do enterro e dormem cerca de três noites no mato, voltando talvez um dia antes do 144 Durante as exéquias do gaamá Belfon Aboikoni, uma das críticas que ouvi foi que não se foram feitas grandes expedições de caça para trazer carne vermelha ao funeral. O motivo seria que simplesmente não é mais necessário, posto que é possível comprar carne – frango em particular – na cidade. Realizaram, porém, uma pesca com timbó.

191 aitidei. Se tiverem sorte, chegam com várias bacias de carne, sua contribuição para o funeral. Num kuútu sob a tenda, diante das carnes, os mátuma contam sobre seus dias na floresta, depois os deodë basiá descrevem quem participou da expedição, frisando que o fizeram por causa do morto, e listam o que conseguiram, para depois dividirem tudo de forma similar aos objetos e víveres de outras trocas em funerais. A maior parte vai “para o morto”, isto é, será consumida na tenda até o aitidei, mas os próprios mátuma recebem um quinhão para levarem para suas casas, se a caça tiver sido em território pertencente a outra aldeia, enviarão um bocado para lá como pagamento. Apesar da importância, a função de mátuma não é indispensável nos funerais em Botopási, eles não recebem regalias, comidas separadas, assentos especiais, pagamentos formais. Não considero, portanto, que eles cumpram um cargo funerário como aqueles dos baákuma, deodë basiá, wásideodëma. As carnes vêm em grande parte dos mátuma, o restante dos alimentos chega em cestas “enchidas” pelos visitantes. Quando “enchem cestas” (lái mánda), os doadores dispõem no meio da tenda sacolas, cestas e bacias cobertas com koósu decorados, a serem abertas e descritas publicamente pelos deodë basiá, que agradecem aos doadores antes de encaminhar para as maksin, para as mulheres deodë basiá ou para os coveiros. Os componentes mais comuns das cestas são lenha, arroz (local ou comprado na cidade), beiju, óleo de soja, de tucumã, ou de inajá, farinha de trigo, açúcar, fardos de refrigerante e garrafas de bebida. Podem vir também café, chá, leite em pó, sabão, coco seco, amendoim, manteiga de amendoim, lentilhas, enlatados, ovos, refresco, ketchup, sal, blocos de caldo Maggie (o tempero mais comum em saamakai hoje), copos descartáveis e esponjas. Koósu também são incluídos nas cestas. O “grande armazém” (gaán maksin) funciona como intermediário entre a família do morto e lánti (a população da aldeia). Quando pessoas trazem koósu, comida e outras coisas como presentes para o morto, os bens são em geral direcionadas para a gaán maksin. O encarregado é o maksin meester, comumente alguém da matrilinhagem do falecido ou um filho de homem da linhagem (paípáí míi). Controla tudo que chega e escreve num livro. Se for bom de serviço, anota tudo que sai e para quem, quais “ventres” estão sendo “amarrados” e com o quê. A família guarda o livro para saber como as coisas se passaram – se no futuro alguém reclamar que doou demais em tal funeral ou recebeu de menos, a família terá o registro. A maksin distribui bens para a pikí maksin (controlada pelos homens deodë basiá) e para a mujeoë maksin (controlada pelas mulheres deodë basiá). A gaán maksin amarrará ventres de todas as pessoas da matrilinhagem (mamá beoë) do falecido, dos paípáí míi da mesma, dos

192 coveiros, de quem está participando com outros cargos e de quem vem visitar. Além de controlar a comida entregue para as mulheres cozinharem. Porém, não é tudo que passa pela maksin. Pode-se doar tecidos e alimentos entregando os bens direto para os deodë basiá.

As trocas funerárias Descrito o que chega à tenda e como chega, resta compreender quem doa para quem, o quanto e quando. Qualquer ocasião entre o enterro e o aitidei é apropriada para doar; deve haver trocas durante cada dia da semana, mas quanto mais cedo chegarem alimentos crus, melhor. Alimentos preparados devem ser particularmente abundantes no aitidei, dia de festejar o fim do perigo maior. Personagens importantes (família próxima e viúvo, por exemplo) devem receber tecidos logo no primeiro dia e seguem recebendo em todos os outros. No limbá uwíi há menos trocas de tecido, nesse dia são priorizados aqueles que estavam ausentes na semana do enterro. O ideal é que todas as pessoas próximas estejam presentes em todas as cerimônias, o que muitas vezes não é viável, de modo que as pessoas organizam, conforme suas possibilidades e seu protagonismo naquela cerimônia em particular, suas vindas e a quantidade de presentes que trarão. No que tange os recebedores, os três tipos de troca distinguem-se um pouco. As mesas e cestas são distribuídas sobretudo para os grupos que têm de comer separados: um pouco para os que lavaram o corpo (wásideodëma), um pouco para os que fizeram o caixão (késima, se houverem), uma quantidade maior para os coveiros (baákuma) e a maioria para lánti (os demais presentes na tenda). Quando são doadas sem especificação, as cestas são repartidas na hora entre os baákuma e as deodë basiá, por vezes com uma disputa jovial, uma corrida a ver quem leva mais coisas, a casa do morto dos coveiros ou os armazéns das ajudantes. As “mesas” com comida pronta para os baákuma, wásideodëma e késima vão para a casa do morto, onde cada grupo dividirá os alimentos entre si, enquanto as mesas que vão para lánti são servidas pelos deodë basiá, que fazem pratos individuais para cada um dos presentes. Convidados não podem se servir diretamente das panelas, nem mesmo a família ou pessoas importantes. Os destinatários dos tecidos são definidos mais especificamente. Aqueles que ocupam cargos funerários em geral recebem enquanto grupo, para dividirem entre si os koósu e outros objetos: isso vale para os baákuma, wásideodëma, késima, mátuma, deodë basiá homens e mulheres, aqueles que derrubaram o mato no cemitério para uma futura cova etc. Pessoas de

193 tais grupos podem receber presentes individualmente, sobretudo se tiverem também relações com o morto. O líder dos coveiros costuma receber presentes particulares. Kabiténi sempre têm o ventre amarrado, mesmo que não sejam da família, e muitas vezes também alguns basiá da aldeia. Visitantes de outras aldeias, mesmo não tendo relações com o morto recebem algum tecido, em geral um avö, De quanto mais distantes vierem e quanto maior for seu cargo político e idade, mais receberão. Em suma, recebem tecidos todos aqueles que possuem alguma relevância naquele contexto. Pessoas e grupos podem ainda tái lánti beoë, isto é, doar uma grande quantidade de koósu para a população da aldeia: quem tem interesse, recursos e generosidade para tal, entrega um ou mais rolos de tecido para a maksin, que serão depois fracionados e distribuídos pelos deodë basiá quando “amarram o ventre” de outras pessoas em nome da aldeia. Doar algo à maksin é doar “para a aldeia” (lánti), mas também “para o morto” (deodë), posto que os bens vão circular, farão com que a cerimônia seja mais rica. Quem mais recebe tecidos é a família direta do falecido: o viúvo é sempre o que mais deve receber, mas também irmãos e irmãs, filhos e filhas, pai e mãe ganham muito. Conforme a distância genealógica aumenta, a quantidade de bens recebidos vai diminuindo, mas primos e primas classificatórios, netos e netas, avôs e avós, tios e tias classificatórios, quase todos da matrilinhagem (mamá beoë) do morto recebem algo. Também muitos da matrilinhagem do pai do morto (tatá beoë) e diversos afins: mái (sogras, noras), pái (sogros, genros), balá (cunhados) e suwági (cunhadas) – lembrando que tais termos são classificatórios, de modo que a quantidade do que é recebido varia também de acordo com a distância em relação ao morto e ao doador. Quando o que determina o destinatário é o parentesco, as doação são quase sempre individuais, não é comum doar grandes quantidades de tecido para o mamá beoë ou para o tatá beoë enquanto grupos.145 Quanto aos doadores, o mais frequente é que comidas venham em nome de grupos e tecidos de pessoas. Todos podem doar, presentes são sempre bem recebidos, mas aqueles que ocupam certas posições devem fazê-lo. A começar por aqueles que também são os maiores recebedores durante aquele enterro, os membros da matrilinhagem do falecido. O mamá beoë do morto necessita, em conjunto ou particularmente, ser generoso com todos aqueles que tiveram cargos durante o enterro, que fizeram o evento acontecer. Pessoas da matrilinhagem do pai do falecido (tatá beoë) também doam. Igualmente aqueles em relação de afinidade com o falecido: os paípái míi (filhos e filhas dos homens do beoë), as mujeoë kó a mánu (mulheres casadas com homens do beoë) e os wómi kó a mujeoë, (homens que casados ou que têm filhos 145 A lista de termos de parentesco ao fim do glossário ajuda a localizar as posições genealógicas citadas.

194 com mulheres do beoë) – que doam em mais quantidade quando o morto tem relação direta com seus cônjuges, pais, cunhados e cunhadas, e em geral diretamente para eles. Uma relação de vizinhança ou amizade é suficiente para doar algo, seja quando o amigo morreu ou quando alguém próximo ao amigo morreu. No funeral de Nelia, uma das professoras da escola de Botopási doou e recebeu koósu. Ela nem mesmo é saamaka, nem é casada com ninguém na aldeia, mas ajudava a criar um dos filhos de um dos sobrinhos da falecida, o que já configurava relação suficiente para que fosse incluída no circuito de trocas. Grupos cujo vínculo não passa pelo parentesco também podem doar. Os coveiros não precisam, mas frequentemente amarram o ventre de outras pessoas ou de lánti (aldeia como um todo). A gaán maksin também “amarra o ventre” de muitas pessoas, durante a semana, em nome de lánti. No enterro do gaamá Belfon, comida e tecidos foram doados em nome de Botopási, como outras aldeias fizeram, e igualmente organizações não saamaka: a assembleia surinamesa doou presentes e também a Medische Zending (associação que cuida das clínicas no Alto Suriname). Algumas transações são notoriamente importantes, espera-se que ocorram certas trocas. Principalmente, a matrilinhagem do cônjuge do falecido deve “encher cestas” para a família do falecido, e vice-versa. Isto é, o viúvo deve doar víveres à matrilinhagem de seu marido ou mulher (mánu beoë ou mujeoë beoë) e em retorno a matrilinhagem do morto irá “amarrar o ventre” dele. Como explicou um informante “eles [a matrilinhagem do morto] devem amarrar a pessoa que está no chão [o viúvo], pois trouxe pessoas para a linhagem”. Será uma cesta especial, mais abundante, na qual todas as cunhadas e cunhados, sogros e sogras – classificatórios ou não – estão contemplados. Lembremos que as relações espalham-se pelo rio, não se limitam à esfera da aldeia, assim, todos os potenciais doadores e recebedores podem ser de (ou morar em) outras aldeias, na cidade ou no estrangeiro. Vários visitantes estão incluídos nos tái beoë. Se possuem relações estreitas com o falecido ou com alguém próximo ao mesmo, é de fato esperado que venham, se não o fizerem pode ser cobrado deles uma multa (bútu) em bebidas ou tecido, que enviam por alguém ou pagam quando vierem a outro funeral. Muitos parentes e amigos mandam presentes pela comissão que vai ao funeral ouvir o morto (háika deodë) em nome de uma aldeia vizinha. Tal comissão vêm em geral no dia da morte, para se informar sobre o ocorrido, sobre os planos para o ciclo funerário e trazer presentes. Outras comissões podem vir em outros dias, incluindo via de regra ao menos um kabiténi ou basiá. Seus membros recebem avö em nome da aldeia e da família que “tem” o morto. As aldeias que mais enviam visitantes são

195 aquelas com as quais o morto e seus parentes possuem laços, o que em grande parte das vezes significa as aldeias mais próximas geograficamente e genealogicamente, especialmente Pikísééi e Futunaákaba. No limite, todos podem presentear todos: mães, pais, irmãs, irmãos, tios, avôs, netos, afins, amigos, vizinhos; todos doam e recebem bens. A quantidade é limitada apenas pelos recursos e pela vontade do doador, mas passa também pela importância da pessoa que morreu. Quando se trata de alguém mais velho, com algum cargo político, ou mesmo se a pessoa era particularmente benquista, mais comida e tecidos circularão. Um amigo contou que no início desta década morreu uma senhora com quase cem anos, que tinha muitos filhos, netos e bisnetos. Foi tudo tão grandioso que todas as pessoas da aldeia – fora crianças – tiverem seu ventre amarrado e até mesmo uma quantidade grande de visitantes de outras aldeias receberam tái beoë. A possibilidade de que todos troquem com todos não significa que não haja critérios. Não se doa nada em sob uma tenda sem especificar quem receberá. Mesmo quando se doa algo para a população da aldeia em geral, ainda se trata de um presente com alvo determinado, pois doar para lánti é doar para o morto. Os critérios para determinar se é necessário doar algo para alguém, e quanto, podem ser resumidos em três: proximidade, status e dívida. Chamo de dívida o critério que guia as doações destinadas às pessoas que cumpriram funções rituais durante o ciclo funerário. O pagamento mais literal, mais cerimonializado é o destinado aos coveiros, pela função particularmente pesada e perigosa que cumprem. Mas todos os presentes doados a quem ajudou de alguma forma no funeral podem ser vistos como pagamentos. A família do morto e a população geral da aldeia estão em dívida com todos os ajudantes e portanto devem pagá-los na tenda, em tecidos e víveres. O mesmo parece valer para visitantes de outra aldeias, sobretudo aqueles que vêm de lugares distantes: seu esforço em comparecer a um funeral que talvez nem lhes diga respeito diretamente deve ser recompensado com um presente, em geral um avö. Entra também no critério da dívida a ênfase na reciprocidade. Quando uma pessoa doa muitas coisas no funeral de uma família que não a sua, espera a mesma generosidade quando morto for “seu” (isto é, um parente próximo ou cônjuge). A falha em corresponder tal expectativa pode gerar desconfortos e afastar pessoas, mas isso depende, claro, da boa vontade dos envolvidos e da situação específica. Outro critério é o status do morto: se era idoso, basiá, kabiténi, tudo tem que ser mais rico, maior, mais abundante, o que significa que cada um tem que doar mais. Isso diz respeito ao ideal de boa vida e boa morte saamaka, diz respeito ao fato de que tal tipo de morto tem

196 mais autoridade, em vida e em morte, será provavelmente um ancestral mais poderoso. Além do mais, quanto mais filhos uma pessoa teve, mais importante ela é, haverá mais gente nas exéquias para contribuir com os gastos nos funerais, doar e receber bens. Não sem motivo, no kuútu que antecede o enterro de uma pessoa, dentre os feitos que relembram que ela fez em vida, sempre falam da quantidade de filhos, netos e bisnetos que teve. Principalmente quando é uma mulher, tendo filhos ela cumpriu uma função importantíssima: aumentar sua linhagem. Ainda dentro do critério de status podemos incluir os presentes dados aos kabiténi presentes no enterro, mesmo que não sejam diretamente relacionados com o falecido: sua posição política faz com que mereçam sempre homenagens. As pessoas mais próximas do falecido “têm o morto” e são os personagens centrais das trocas funerárias. O principal critério é o da proximidade. Proximidade genealógica, sobretudo, com o morto e/ou com os parentes próximos do morto, mas também proximidade de convivência com os mesmos. Afinal, também em saamaka parentesco não é apenas aliança e descendência, é além disso intimidade, coabitação, participação mútua em atividades. Isso continua após a morte: se você era próximo do morto, deve doar e receber muitas coisas. Se uma pessoa próxima a você perdeu um ente querido, você deve doar para ela. Assim reforçam os laços já existentes entre os vivos e entre vivos e mortos: dar presentes a um morto, fazendo seu funeral ser rico, é uma maneira de manter a conexão de intimidade com o falecido, que em morte seguirá ajudando os vivos de quem gostava.146 Há uma multiplicidade de relações sendo atualizadas ao longo das trocas. Relações de filiação e casamento, convivência e intimidade, autoridade e reciprocidade. Diversas relações interpessoais que os saamaka estabelecem entre si durante a vida aparecem na porta da casa de um morto: com parentes e afins, vizinhos e amigos, chefes e parceiros. As trocas abarcam grande parte das relações possíveis, diferencialmente: os critérios – quem deve doar para quem, o quê e o quanto – ajudam a distinguir os tipos de relações salientes nesses momentos 146 Trabalho, já deve ter ficado claro, também é uma forma de dádiva. A seleção de quem fara qual serviço ao morto é feita em kuútu, o que significa que um kabiténi costuma dar a palavra final, mas, como sempre, o consenso deve ser buscado entre todos os envolvidos, a população da aldeia e as linhagens envolvidas com o morto. Tal seleção passa por uma série de critérios, alguns similares aos que guiam as trocas de tecidos e alimentos. Pessoas da matrilinhagem do morto (mamá beoë) principalmente, devem dispor-se a ocupar cargos funerários. Para cargos que possam envolver ataques de kúnu, pessoas da matrilinhagem do pai do falecido (tatá beoë) ocupam posições de destaque, pois ao mesmo tempo têm proximidade com o morto e são imunes aos espíritos vingativos que afetam a linhagem dele. Critério central para cargos é competência e costume: quem gosta de cumprir determinada função e torna-se bom no serviço é escolhido com frequência. Alguns cargos têm critérios específicos: para lavar o corpo, um membro do conselho da igreja costuma estar presente; para ser coveiro, um homem não pode ter sua mulher grávida atualmente, etc. Os grupos não são fixos, são escolhidos para cada funeral e não há qualquer problema em ocupar um cargo num funeral, outro num próximo.

197 críticos. Pessoas com quem se contraiu dívidas, pessoas com que estão em posição de status relevantes, pessoas com as quais há laços de parentesco são as que mais importam quando de uma morte. Mas as possibilidades de trocas são tantas, os cruzamentos entre os critérios são tão comuns, que as relações individualizadas e entre grupos ao mesmo tempo se reforçam e se difundem. Aldeias estão trocando entre si, linhagens estão trocando entre si, grupos que performam cargos rituais estão trocando entre si, pessoas estão trocando entre si. Ao mesmo tempo em que cada um dos vetores de troca significam laços específicos, seu conjunto demonstra um entrelaçamento denso da trama social dentro da aldeia e fora dela. A recriação das relações por meio do objeto trocado enquanto dádiva (isto é, enquanto extensão das pessoas e grupos) é multilateral, nos ciclos funerários. Por trás da complexidade das trocas, no fim das contas, há um foco bastante simples: o que fazem, efetivamente, é reforçar a união dentro da aldeia.147

Reciprocidade A morte é um momento tenso, no qual é necessário marcar simbólica e objetivamente a união entre as pessoas e grupos. As trocas funerárias cumprem parte de tal função. Porém, não é apenas nesses momentos em que objetos servem para consolidar elos. S. Price (1993 [1984]: 61-87) dá uma lista de exemplos nos quais “pagamentos simbólicos” são feitos pelos saamaka. A autora frisa que muito da circulação de bens ocorre por prestações que atravessam linhas de gênero, daí a importância das trocas matrimoniais, chamadas lái valísi ou lái paká.148 Para oficializar uma relação, após a anuência das duas famílias, o homem deve entregar à sua 147 Que me seja permitida uma pequena digressão teórico-metodológica. Demorei muito a compreender os critérios que guiam as trocas funerárias. Critérios que, evidente, são transparentes para os saamaka. Quando eu os questionava sobre quem deve doar para quem, as respostas sempre recaíam nos grupos e pessoas mais relevantes: mamá beoë, tatá beoë, viúvo, coveiros... Mas eu percebia que as trocas iam além disso. Muito da antropologia clássica tende a apresentar a disciplina como um esforço do etnógrafo para desvelar ao leitor razões que são opacas para seus nativos. Os nativos explicariam suas práticas por causas manifestas e o antropólogo buscaria suas causas socioculturais latentes. Pensar sobre as trocas rituais foi para mim a maior prova de que o processo etnográfico é justamente o contrário: tentar compreender a transparência que os nativos enxergam naquilo que para o etnógrafo é opaco, e tentar transmiti-la ao leitor. Nesse processo, a distância entre minha compreensão translúcida e a transparência nativa, fruto da paralaxe provocada pelo movimento de minha particular perspectiva, é o próprio conhecimento antropológico. 148 Lái valísi significa literalmente “encher a mala”, e lái paká algo como “encher o pagamento” ou “pagar objetos”. Apesar dos termos serem frequentemente usados como sinônimos, o lái paká refere-se mais especificamente ao formato tradicional e estandardizado de presentear a noiva, enquanto o lái valísi são os presentes matrimoniais comuns em Botopási hoje em dia, que descrevo aqui. Sally Price (1993 [1984]: 72-3) descreve os conteúdos do paká para uma mulher em seu primeiro casamento, em Dangogo nos anos 1970: duas redes de dormir, dois lençóis, uma rede de mosquitos, uma corda para amarrar rede, uma barra de sabão, uma lâmpada de querosene com três litros do combustível, fósforos, colheres, garfos, um pote de alumínio, alguns pratos esmaltados, pacotes de agulhas, cinco ou mais koósu. No fundo do pacote, um centavo e um alfinete num pedaço de papel (para que elas nunca reclamem que eles “nunca lhe deram nem um centavo, nem um alfinete”).

198 mulher uma ou mais malas ou cestas com um enxoval de objetos que serão necessários para a mulher em sua casa. Uma ou duas redes de dormir estão sempre incluídas, talvez 40 a 50 koósu (ou mais), cerca de seis angísa (pano usado por cima da saia), além de roupas de cama, potes de plástico, louças, panelas, talheres, bacias, querosene e o que mais se quiser presentear. Apenas após tal pagamento o casal pode celebrar um casamento público, chamado de túwë dán (lit. “jogar rum”), mas isso é opcional. Uma mulher virgem significa uma valísi menos copiosa que uma mulher com experiência sexual (Green 1976: 414). Da mesma forma, no caso de um segundo (ou outro) casamento da mulher, os bens são menos numerosos. Quando um homem desposa uma mulher que atualmente tem outro marido, desfazendo o casamento anterior, considera-se que o homem que “perde” a mulher deve ter alguma compensação, mesmo que todos os envolvidos estejam de acordo com a separação e com o novo casamento. Por isso, além da valísi recebida pela mulher, o novo marido paga ao ex-marido uma rede de dormir, um lençol, algo em torno de 12 a 30 koósu, uma ou duas caixas de rum. Se não pagar, o novo marido pode ser legitimamente espancado por um grupo de homens da família do ex-marido. Da mesma forma, um homem pode pagar por um adultério, entregando koósu e rum para o marido ofendido. Mesmo que a traição não signifique o fim do casamento anterior, o pagamento em bens pode ser o suficiente para que a dívida iniciada pelo adultério seja sanada sem a necessidade de castigo corporal. Um homem também pode lái valísi para uma mulher solteira se a engravidou e quer ter relações boas com o filho e a família dele, mesmo que não queiram se casar. Os conteúdos da valísi serão similares aos daquela para um casamento, adicionando alguns objetos que sirvam para a criança. Outro momento de troca que envolve as crianças são os púu míi a dooö (“tirar a criança de casa”), cerimônia na qual se apresenta oficialmente um bebê à comunidade, cerca de um mês após o nascimento. Nela, o pai e a mãe oferecem uma festa com bebida e comida, e em troca recebem koósu, rum e outros objetos das linhagens dele e dela, além de presentes para a criança. Serviços rituais também são pagos em bens, sobretudo tecidos e rum. Não apenas nos funerais. Quem aplica óbia ou opera um oráculo não deve cobrar dinheiro do paciente. A quantidade padrão é de cinco koósu e uma garrafa de rum, mas, em casos mais graves, de óbia mais poderosos, pode chegar a 30 koósu, um engradado de rum, uma rede de dormir e mais outras pequenas coisas. Já vi um homem pagar outro por óbia com uma chuteira de futebol. Tais trocas, informa Sally Price (idem: 67-8), frequentemente são performadas por

199 meio de um diálogo padronizado, no qual o cobrador grita “madjómina!” e o devedor responde “kála!”, por três vezes. Em Botopási, tal tipo de pagamento cerimonializado ocorre exclusivamente para os coveiros na casa do morto, até porque o óbia não é praticado abertamente. O pagamento sempre deve existir, mesmo que óbiama e paciente sejam muito íntimos, pois pagar é parte do que produz a efetividade do ritual. Quando se trata de um pagamento pela preparação de um tratamento por uma doença, por exemplo, pagar é parte do que faz o remédio curar (cf. Vernon 1989). Por fim, não podemos esquecer, rum, água, cerveja e outras bebidas também são dádivas adequadas para os espíritos de antepassados e de divindades, assim como diversos tipos de comida. O fazem por meio de libações e oblações, no solo, em estátuas, ou nos cetros onde estão as almas de kabiténi e basiá antigos. Todas as troca de tecido e alimentos refletem um ideal de reciprocidade saamaka, exacerbado durante as cerimônias fúnebres. Conforme afirma Richard Price, “na ideologia saamaka, amor e generosidade material andam juntos, o ato de não compartilhar demarca limites sociais claros” (1990: 99). Doa-se para aqueles de quem se gosta, se ama e se respeita, em situações cerimonializadas ou não. Em Botopási oferecem comida e bebida fora de ciclos funerários, por exemplo no ano novo, quando vizinhos, parentes e amigos são convidados para entrarem nas casas uns dos outros e bái jái, “gritarem ano novo”, recebendo uma dose de bebida e um pouco de comida. Em outras festividades como natal, páscoa, pentecostes, dia das mães, celebrações de aniversário da aldeia, comemorações pela oficialização de um cargo de basiá ou kabiténi, as pessoas também são incentivadas a doar víveres, dinheiro ou prestar serviços para o povo da aldeia. O mesmo ocorre quando há grandes trabalhos coletivos. Também nos aniversários aqueles que possuem recursos podem oferecer banquetes ou festas para convidados, nos quais sempre o aniversariante doa mais que recebe. Mesmo em situações mais prosaicas as pessoas fazem circular bens, dinheiro e serviços. Marido e mulher trocam entre si constantemente aquilo que produzem ou compram: homens trazem sobretudo objetos importados da costa e caça, mulheres bens produzidos na roça e outros; homens fazem objetos em madeira e cestaria, mulheres fazem cabaças decoradas e peças de tecido; homens constroem casas e preparam o solo; mulheres semeiam, colhem, processam o alimento e cozinham. Não na divisão sexual do trabalho, mas é importante perceber que o casamento é concebido aqui mais como uma relação pontuada por trocas, onde cada um presenteia o cônjuge, do que como uma parceria na qual ambos

200 contribuem para um fundo comum.149 Mesmo numa relação extraoficial – um caso amoroso que ainda não se tornou ou nunca se tornará um casório – é esperado que presentes circulem: homens saamaka dizem que, ao cortejar uma mulher e depois ao manter relações sexuais com ela, devem dar víveres, objetos ou mesmo dinheiro. O que não conota qualquer má-fé ou vigarice de nenhuma das partes: presentes são demonstrações de bem querer. Entre amigos (máti) a troca é frequente. Quando uma pessoa resolve oferecer sua amizade a alguém, pode conceder um presente. Isso é chamado de “tomar como amigo” (téi fu máti) e o conteúdo da oferta não é padronizado. Não é nada oficial, apenas um gesto de que se quer aprofundar uma relação não marcada pelo parentesco. Além disso, todos que retornam da cidade ou do estrangeiro ouvem de seus amigos pedidos de bakáama (lit. “pessoa estrangeira”), de presentes importados. O que será dado varia em importância conforme a proximidade da relação, o tempo que se passou longe e a riqueza que se acumulou no período. Mesmo com a facilidade de ir e vir para a cidade hoje em dia, um pequeno bakáama é sempre esperado de quem é próximo, nem que seja uma dose de bebida ou uma garrafinha de refrigerante.150 No dia a dia, sempre que há excedente, amigos trazem uns para os outros frutas, peixes, comida, pagam cerveja, cigarros etc. Amigos muito próximos podem entrar na casa uns dos outros e servir-se de comida sem pedir autorização prévia. Tais préstimos, mesmo os menos formais, são formas de criar vínculos. Fazer algo bom para os outros significa que algo bom vai acontecer com você no futuro. Doar quando se têm excedente significa receber no futuro, quando houver escassez. Isso vale também para certos serviços que não se pode fazer sozinho. Ainda que hoje em dia, em Botopási, grande parte dos serviços sejam pagos em dinheiro, restam algumas atividades para as quais se convocam amigos para ajudar. Estes esperam como pagamento apenas algumas doses de bebida durante ou depois do trabalho, e principalmente que sejam retribuídos no futuro. A mais frequente dessas atividades é a de amarrar as palhas de um telhado, para a qual são 149 Para uma descrição detalhada das trocas entre homens e mulheres, ver S. Price 1993 [1984]. O padrão de residência esperado para um casal dentro de uma mesma aldeia é autolocal, o homem e sua esposa (ou suas esposas) devem ter casas separadas, mesmo que durmam juntos todas as noites. Quando são de aldeias diferentes, podem optar por residência uxorilocal, virilocal ou outra, mas cada um deve ter sua casa em sua aldeia. Aquilo que está guardado na casa do homem é dele, e aquilo que está na casa da mulher é dela. A divisão de bens é o principal motivo (juntamente com a poliginia) que faz com que observem como problemática a coabitação plena. Nos termos de Strathern (2006 [1989]: 270ss, 289ss, 368ss), as trocas saamaka entre cônjuges são mediadas, i.e., as coisas são “dadas” mais que “compartilhadas”, num movimento no qual doadores destacam partes de si mesmo por meio da dádiva, ao invés de criarem uma unidade com aquilo que é produzido e consumido conjuntamente. 150 R. Price (1990: 388n26) afirma que a prática do bakáama existe desde antes do tratado de paz. No séc. XVIII, a chegada de um homem da costa, trazendo bens, era o principal momento de festa, junto com o ano novo. Para práticas atuais, cf. ibid.: 389n31; S. Price 1993 [1984]: 68-9.

201 precisas ao menos quatro pessoas, mas podem ser necessárias mais de dez, dependendo do tamanho da construção. Como os homens constroem muitas casas para si e para seus parentes, todos sabem que precisarão de ajuda no futuro, e portanto fazem um esforço para auxiliar quem pedir. Ocupar cargos e realizar serviços nos funerais é algo pensado seguindo a mesma lógica. Aqueles que se esquivam de trabalhos coletivos (funerários ou outros) mesmo que paguem multas compensatórias, ganham má fama, são chamados de preguiçosos (maleongë), mesquinhos (giíi), têm dificuldades em conseguir ajuda em momentos de necessidade. Relações de afinidade criam obrigações mais claras. Uma pessoa deve ajudar, sempre que possível, seus pái e mái (sogros e sogras), sobretudo em serviços, de pequenos reparos a ajuda na roça. A tais afins, com os quais parece haver eterna dívida, deve-se também respeito: é uma relação que exige certa evitação e formalidade. Certas palavras não devem ser ditas em frente a uma sogra, certos assuntos devem ser evitados, um homem não deve ficar atrás de sua sogra quando ela curva-se. O mesmo vale, em menor grau, para balá, sísa mái e suwági (cunhados e cunhadas), sempre lembrando que, sendo tais termos classificatórios, a medida que a distância aumenta, a dívida é menor. Pessoas de gerações ascendentes de sua própria matrilinhagem (e, em menor grau, da matrilinhagem de seu pai), também esperam respeito e ajuda, ainda que tais relações comportem maior intimidade e sejam pautadas mais pelo aprendizado e pelo suporte do que pela dívida. Isso é especialmente claro na relação com o tío (MB). Com parentes da mesma geração, baáa e sísa (irmãos e irmãs, primos e primas) esperase uma relação de generosidade e reciprocidade (mais uma vez, maior quanto mais houver proximidade genealógica e de intimidade). Em todos esses casos, a relação específica será ativada quando necessário, mesmo que seja longínqua: um homem pode exigir com mais afinco que um outro ajude-lhe ou compartilhe algo com ele ao lembrá-lo que são baáa, mesmo que signifique serem primos distantes, algo como MMMZSSS. Sempre que se dá algo, espera-se uma reciprocação à altura. A falha a atender expectativas nesse sentido é um dos principais motivos de conflitos interpessoais na aldeia. As cobranças, portanto, existem, e fazê-las pode significar lembrar algo que se fez pelo outro há muito tempo atrás ou mencionar uma conexão de parentesco um tanto quanto distante. Entretanto, reclamar abertamente ao próximo uma obrigação ou dívida pode ser considerado desrespeitoso. Existe um verbo para tal tipo de cobrança, “landá”, fazê-lo é sinal de ganância (lángáháti, lit. “coração comprido”) ou de que se é mesquinho (giíi). Köbben (1967) afirma haver um ideal de generosidade e reciprocidade intragrupal quase generalizada entre os ndyuka. O mesmo vale para os saamaka. O ideal inflige sobretudo

202 entre pessoas relacionadas por parentesco, afinidade ou amizade, mas, sendo que relações muito distantes e dívidas muito antigas podem ser acionadas, na prática quase todas as pessoas de uma aldeia estão vinculadas a quase todas as outras de alguma forma, ainda que tênue. Não trocar, como afirmou R. Price, é portanto um ato de estabelecer fronteiras e distâncias que não se quer cruzar. O egoísmo demasiado frequente pode até mesmo ser um motivo para que se especule que a pessoa é uma feiticeira, ou que possui um bakúlu, demônio que traz prosperidade financeira. Quando se trata de não doar ou não ajudar alguém específico, isso significa deliberadamente impor uma barreira que demonstra haver desafeto ou hostilidade. Voltemos à casa do morto, utilizando um exemplo que ouvi de um amigo quando perguntava a ele sobre como doar num funeral. Ele lembrou que pode ocorrer de querer-se homenagear um morto de quem se era próximo ou admirava, mas ter problemas com a família do falecido. Amigos em geral doam para a matrilinhagem do morto mas, nesse caso, uma saída pode ser amarrar o ventre de lánti, ou dos coveiros, ou doar koósu e lençóis para colocarem no caixão quando estão amortalhando o cadáver, assim o morto recebe algo, mas não a família com quem há desafeição. Uma atitude assim é uma forma elegante de reforçar os laços que se quer reforçar, sem entretanto estabelecer uma relação de dívida com aqueles com os quais não se quer qualquer relação. São raras as doações entre coesposas (kambósa). Posto que tal relação é de evitação e até mesmo hostilidade, as coviúvas não objetivam criar laços entre si, ainda quando seu elo comum, o marido, faleceu. Ainda cabe sublinhar uma última forma de troca: os agradecimentos. Diz-se que agradecer é “dinheiro saamaka” (saamáka mooni), já que em oposição aos brancos e estrangeiros (bakáa), os saamaka deveriam pagar uns aos outros com palavras e cooperação. Nas cerimônias fúnebres, os agradecimentos são constantes. A cada passo executado, a cada kuútu, os deodë basiá, a família, os kabiténi e outras pessoas fazem questão de demonstrar gratidão a todos que compareceram, a todos que prestaram serviços, e também a Deus, aos antepassados e ao falecido, por terem permitido que tudo corresse bem. Nos kuútu, os agradecimentos são seguidos de fórmula convencional, dizendo “muito obrigado, obrigado, obrigado” (“gaántangí, tangí, tangí”) e batendo palmas ritmadas. Durante trocas cerimoniais tampouco faltam agradecimentos pela generosidade alheia. Citar sempre por nome cada pessoa, efusivamente, é muito importante pois as palavras e os nomes próprios possuem grande poder – nesse caso, de vinculação.

203 Num funeral em Botopási, no início de 2012, uma delegação de Kambalúwa, encabeçada por um homem daquela aldeia que fora criado pela falecida, distribuiu mais de 50 lençóis: 14 para os coveiros, 7 para os homem deodë basiá, 10 para as mulheres deodë basiá e 21 para a família da morta. Representantes de todos os grupos contemplados agradeceram enfaticamente. Um dos kabiténi chegou a dizer que “não há ninguém em Botopási que seria tão generoso e daria tantos presentes quando fosse a Kambalúwa”, ao que vários presentes concordaram. Rebaixar-se assim – demonstrando humildade, reconhecendo a magnanimidade do outro ao diminuir a sua própria – é um recurso da retórica saamaka que explicita seu ideal moral de desapego e liberalidade nas relações e nas trocas.

Dinheiro Apesar de circular muito em Botopási, o dinheiro ainda é pensado como uma substância estrangeira – a ideia de que agradecimentos são “dinheiro saamaka” o demonstra com clareza (cf. S. Price 1993 [1984]: 66-7). O que não quer dizer que o dinheiro não seja relevante no ciclo funerário, pelo contrário, gasta-se muito neles. É marcador de status proporcionar para parentes um enterro rico, oferecer muita bebida, comida e koósu, bem como comprar um caixão vistoso na cidade, fazer uma cova de cimento e adorná-la com cerâmica. Tudo isso custa dinheiro. Só o frete do avião para trazer o corpo, quando o falecimento ocorre na cidade, não sai por menos de 400srd. 151 O custo será dividido pelos membros mais próximos do mamá beoë do morto. Uma pessoa individualmente pode distribuir uma centena de koósu e uma caixa de rum, além de comida e outras bebidas. Um koósu custa 8srd em média cada, um litro de rum 35srd, de modo que os gastos atingem centenas de dólares surinameses facilmente. No funeral de sua tia materna, Kumumá gastou 600srd, que significavam para ele, então desempregado, vivendo de bicos, mais que o dobro de sua renda média mensal. Espera-se que parentes próximos que vêm da costa gastem ainda mais, posto que, morando em Paramaribo ou na Guiana Francesa, costumam ter mais recursos financeiros. Diversas vezes as famílias passam meses de relativa pobreza e privação depois de um funeral, mas logo começam a economizar de novo, um pecúlio para uma próxima morte. Uma consequência é a emergência de uma economia mortuária dentro e fora das aldeias. Na cidade, dentre os muitos gastos em um funeral, serviços terceirizados (como coveiros) têm de ser contratados e as famílias também gastam imprimindo panfletos com 151 Do início de 2011 a meados de 2013 o valor de 1srd (dólar surinamês) variou de R$0,48 a R$0,66. Não encontrei dados estatísticos, mas baseado no que ouvi em Botopási, a média de renda local não chegava a 400srd por mês para homens adultos.

204 hinos que serão entoados, fotocamisas em homenagem ao morto, pagando produtoras de vídeo para filmar a cerimônia e depois distribuírem DVDs das exéquias para os próximos. Podem pagar conjuntos musicais de kaseko e outros ritmos para tocar nos locais de velório (como Nieuw Combé) e charangas para o tocar no cemitério.152 Tal dispêndio funerário é eventualmente criticado por alguns saamaka. Há quem argumente contra a futilidade da riqueza marcada por rum e tecido que circula principalmente em eventos como funerais e casamento. “Ainda que alguns koósu sejam sempre bons de serem guardados como lembrança de um funeral, é melhor usar o dinheiro para gastar com seus parentes em vida do que depois da morte”, disse-me um informante que foi criado grande parte da vida na cidade. “Há tanta gente aqui no rio,” dizia ele, “que vive na pobreza, economizando para gastar exageradamente nos funerais.” Para além de presentear os vivos para confortar e alegrar a família, não lhe parecia fazer sentido preocupar-se tanto com as fofocas na aldeia sobre quem gastou muito ou pouco durante o ciclo funerário, quem presenteou muito ou pouco sob a tenda. Melhor seria gastar com coisas realmente úteis. Sua visão é bastante parcial, a maioria das pessoas valoriza as trocas cerimoniais. Nos anos 1960, à montante do rio saamaka, as mulheres referiam-se a dinheiro como koósu (S. Price 1993 [1984]: 64), tal era a capacidade do tecido em servir como parâmetro de riqueza. Até hoje, em discussões, homens e mulheres recorrem a argumentos do tipo “vamos contar quantos koósu cada um tem guardado em casa” em disputas a ver quem é mais rico. No dia a dia, o tipo de riqueza mais relevante no cotidiano acaba sendo não a dos koósu e sim a de papel-moeda e bens de consumo. Há uma economia monetária local, movimentada pelos trabalhos na costa e no garimpo, pela previdência social, pelo turismo e pelos empregos públicos. Isso faz com que habitantes das aldeias possam estabelecer pequenos negócios, padarias, bares, lojinhas, pousadas para turistas, etc. Consertos de barcos, cortes de madeira, construções de concreto, esses e outros serviços são pagos em dinheiro. Certas frutas cultivadas localmente, como ingá, mamoncillo e toranja são comercializadas 152 A economia mortuária na cidade é abordada por van der Pijl (2007). Tal fenômeno, em Paramaribo principalmente, aproxima-se da descrição feita por de Witte (2003) dos funerais asante em Gana, onde há uma crescente economia da morte, com cada vez mais serviços oferecidos para tornar os funerais suntuosos. A autora frisa que a entrada da economia monetária nos funerais não provoca uma transformação tão radical na economia “tradicional”, baseada em reciprocidade. No caso que analisa, o dinheiro é capaz de reforçar formas de reciprocidade previamente existentes, pode ser usado como “cola social” para gerar laços recíprocos, ocupando posições que antes eram preenchidas por doações em vinho de palma, por exemplo. Bilby (1990: 171-184) dá exemplos ilustrativos da monetarização da economia com a entrada do capitalismo na sociedade aluku, especialmente a partir do momento em que a Guiana Francesa torna-se um departamento ultramarino francês e muitos maroons ganham status de cidadãos franceses com acesso a certos direitos do welfare state europeu, como seguro desemprego e previdência social. O autor trata das mudanças provocadas por esse fato nas cerimônias fúnebres (ibid.: 200ss).

205 dentro da aldeia. O mesmo vale para alguns produtos da roça e da cozinha, como beiju, bolos, berinjela, quiabo, taioba, para citar apenas alguns. Aves domésticas, ovos, pesca e caça também são vendidas livremente, com a exceção da carne de anta, que deve ser dividida cerimonialmente pela população, e de grandes eventos como a caça de queixada e a pesca com timbó, que garantem carne grátis para todos os habitantes da aldeia. O dinheiro é usado para diversos fins. Entre os homens, que ainda são os que mais têm acesso ao papel-moeda, parte do que conseguem no cotidiano serve para comprar créditos de celular, gasolina, cerveja e cigarros, além de alimentos e de separarem um tanto para darem para suas esposas suprirem suas necessidades diárias. Muita gente esforça-se para guardar algum dinheiro para comprar bens mais valiosos: eletrodomésticos, televisões, antenas parabólicas, roupas, koósu, barcos, motores, madeira e tijolos para construir casas, terrenos na cidade, dentre tantas outras coisas. Também é costume doar alguns trocados para a igreja, aos domingos, e repartir algo com parentes que o necessitem. Em sua capacidade de meio de circulação e medida de valor, o dinheiro pode substituir, em grande parte das situações, outros objetos de troca, mesmo numa aldeia saamaka onde o capitalismo ainda não é o sistema econômico plenamente vigente. Um marido pode dar dinheiro para sua mulher, ao invés de caça ou pesca: utilizam a expressão “caçar com dinheiro” (hoondi ku mooni) para expressar que o ato de prover carne pode ser efetivado pela compra, mesmo que seja uma forma um pouco menos satisfatória de performar a masculinidade e o papel de provedor. O papel-moeda não é incapaz de promover laços entre as pessoas (cf. de Witte 2003). Todavia, em saamaka restam algumas atividades nas quais o dinheiro não é bem-vindo. Evitam, sempre que possível, pagamentos em dinheiro para certos serviços como amarrar um telhado para um particular ou realizar uma tarefa de interesse comum da aldeia – pintar a igreja, limpar o cemitério para a páscoa, construir um ancoradouro de barcos, organizar festas de natal. São tarefas coletivas, para as quais muitas mãos são necessárias, acabam por servir como mais uma forma de unir pessoas e grupos em torno de um objetivo comum, gerar laços e dívidas entre elas. Principalmente, enfatizam sempre que em trocas funerárias e tratamentos com óbia não deve circular dinheiro diretamente. É preciso compreender as razões por trás das exceções. Em Botopási, o dinheiro é fonte de muito mais conflitos do que as trocas baseadas em objetos. A não reciprocidade gera desavenças quando se trata de serviços, agradecimentos ou prestações rituais, porém questões envolvendo emprego assalariado ou dinheiro trazem muito mais problemas. As pessoas da aldeia afirmam amplamente que dinheiro gera desconfianças,

206 discussões, inveja, ganância. São recorrentes acusações de que uma ou outra pessoa está roubando ou desviando verbas (nján mooni, lit. “comendo dinheiro”) da aldeia ou de um grupo. Ouvi mesmo afirmações de que o dinheiro é uma “ferramenta do diabo”: ele faz você querer mais e mais, “escurece seus olhos” e desequilibra suas prioridades na vida. Não é coincidência que uma das formas mais temidas de espírito malévolo atualmente sejam os bakúlu, demônios comprados na costa para que se enriqueça rapidamente, que no entanto geram graves problemas para a matrilinhagem daqueles que os possuem, se não forem bem tratados (cf. Vernon 1980). Quando um óbiama cobra em dinheiro por um tratamento é visto com maus olhos. Nem mesmo merece o título de óbiama, associado a magias benfazejas: será chamado de bonuman (lit. “pessoa do osso”), o que os aproxima do charlatanismo. Um bonuman, mesmo que tenha poderes mágicos reais, não pode ser confiado, possui tendências a enganar seus clientes ou cobrar demasiado. Manter o pagamento em objetos, não dinheiro, é uma forma de afastar a possibilidade de ganância e fraudes no tratamento com óbia. Mas não podemos esquecer que pagar um óbiama sempre exige recursos financeiros: para pagar um tratamento relativamente simples, cinco koósu e uma garrafa de rum já custam cerca de 75srd. Green enfatiza a importância do rum na sociedade matawai: serve de pagamento simbólico após um trabalho; oferecer rum em festas e cerimônias traz prestígio; rum é o único pagamento para multas frente lánti ou uma linhagem; também é usado nas trocas matrimoniais; e, por fim, para pagamentos por serviços místicos para os ancestrais. Como o rum é comprado fora, tem preço fixo e é caro; poderia ser considerado uma forma estandardizada de valor relacionado com o mundo externo. De acordo com Green, para os matawai, “a rejeição do uso de dinheiro em negócios tribais ajuda a preservar a autonomia cultural” (Green 1976: 415).153 Como os matawai, os saamaka sempre dependeram de objetos estrangeiros em trocas cerimoniais. Já que os maroons nunca produziram localmente suficientes bebidas alcoólicas 153 Lenoir sublinha também a importância desses objetos nos funerais paamaka: “Anciões explicaram que pangi [m.q. koósu] e rum eram como 'dinheiro'. O morto estava embarcando em uma viagem e precisava desse tipo de dinheiro. Comida para a viagem vem em forma de bananas-da-terra dispostas no chão e ao longo de caminhos que levam à área da ke osu [m.q. deodë wósu]. Comida preparada também é fornecida no terceiro dia que segue ao enterro, com uma libação formal de comida. Os presentes são essenciais no processo dos rituais fúnebres e são consumidos ou usados pelos participantes. Os pangi servem como insígnias especiais para os fazedores de caixão e coveiros, pagamentos por serviços e bandeiras para o ritual que encerra o período de luto do cônjuge. O rum fornece o ingrediente para uma “brincadeira” alegre, que também é importante para os ancestrais” (1973: 167). Nunca escutei em Botopási afirmações assim, de que os mortos precisam de koósu e rum como dinheiro no além. Pelo contrário, ouvi afirmações de que os mortos não se importam demasiado com a riqueza de seu funeral, desde que não sinta que sua família está sendo demasiado avarenta.

207 nem tecidos, sempre houve fluxo de koósu e rum da costa. A economia desses povos sempre buscou algum sustento na economia colonial. No passado mais distante, pré-tratados de paz, supriam a necessidade de bens importados (tecido, álcool, sal, açúcar, sabão, armas de fogo, pólvora, objetos de metal etc.) sobretudo com saques às plantations. Depois, com a paz, os tributos pagos pelo governo holandês serviam para o mesmo fim, suplementando a agricultura de coivara, caça e pesca. Desde a segunda metade do século XIX, os maroons participaram dos ciclos da borracha, do ouro, de atividades madeireiras, mineradoras, extrativistas e também da economia urbana. O processo de proletarização tendo se acelerado ao menos desde o fim da guerra civil, nos anos 1990. Nas últimas décadas, a microeconomia local cresce devido ao turismo, aos ainda poucos mas relevantes auxílios do governo, e à maior facilidade de transporte para a costa (cf. Thoden van Velzen & van Wetering 1982, 1983; Bilby 1990; R. Price 1990: 201, 385-6). Pode-se supor que no passado, quando o meio de consegui-los era o saque, a troca de bens estrangeiros gerava prestígio para guerreiros. Posteriormente, estabelecido o tratado de paz e os tributos, os importados passaram para o controle daqueles que portavam cargos políticos oficiais e anciões, isto é, para lánti, o governo local, promovendo prestígio agora para eles. Óbiama, que enquanto tal não teriam acesso privilegiado a bens importados, mas são pagos sobretudo em tecido e rum, captavam essas dádivas por meio de uma forma paralela de prestígio, baseado em seus conhecimentos místicos. Num terceiro momento, de maior inserção no mercado de trabalho, ainda outra forma de prestígio passa a ser premiada com o acesso a bens importados: a capacidade de sucesso na economia colonial e global – inicialmente alcançada por barqueiros, madeireiros, seringueiros, garimpeiros, e hoje por tantos outros profissionais. A partir daí, e cada vez mais, impõe-se também uma forma paralela de riqueza, a do capital econômico, muitas vezes concorrente com a riqueza da dádiva. Hoje, ser rico (gúduma) pode significar o acumulo de bens para trocar ou de bens de consumo. Não raro as duas vão juntas, mas nem sempre, pois, como sabemos, os objetivos dos dois tipos de riqueza são bastante distintos: numa economia de mercado o objetivo é apropriar-se de bens, numa de dádiva é ampliar as relações sociais (Strathern 2006 [1989]: 222). Alguns são capazes de efetuar ambos paralelamente, não todos. No Alto Suriname, muitos dos ricos em dinheiro vivem relativamente isolados, pelos problemas de inveja, ganância e outras contendas que o dinheiro traz. Apesar da celebração a um maior acesso a bens de consumo, a chegada do dinheiro é sentida por muitos com pesar. Certo dia, quando duas mulheres idosas viram-se obrigadas a

208 comprar carne de tatu de um homem da aldeia, ouvi-as lamentar: “o dinheiro veio para nos estragar, o dinheiro tornou-se nosso chefe” (“mooni kó pói ú, mooni kó deo ú bási ”). Diziam que antes dividia-se, dava-se, agora tudo é vendido, até mesmo carne de anta, até mesmo mandioca e batata-doce. “Daqui a pouco vem gente vender cocô dizendo que é outra coisa”. Hoje todos dependem em maior ou menor medida de dinheiro para viver nas aldeias, mas há esferas nas quais o dinheiro não deve penetrar, ou ao menos não deveria. Esferas nas quais a ênfase na reciprocidade é chave, como trocas fúnebres. Há uma complementaridade entre as economias da dádiva e da mercadoria, posto que os bens a serem trocados nem chegariam à aldeia se não fosse o dinheiro. Gasta-se para comprar o que será ofertado, mas não se paga aos envolvidos em moeda, nem se oferece doações em dólares na casa do morto. A economia que opera em tal momento é a economia da dádiva, na qual circulam bens e serviços personalizados, criando laços entre as pessoas. Dentre os dois tipos de concorrentes de riqueza que correm na aldeia, riqueza de tecidos e garrafas e riqueza do dinheiro, sabe-se que uma delas não cria tão facilmente união entre as pessoas, que deveria ser o cerne das atividades funerárias.

Amarrando e (re)fazendo pessoas e grupos A lógica da dádiva e da reciprocidade percorre todos os atos rituais do ciclo funeral, especialmente o tái beoë, em seu efeito literal e metafórico de “amarrar o ventre” ou “amarrar a linhagem”. Quando trocam alimentos, eles retém em si o trabalho de produção (e portanto a divisão do trabalho): preparação do solo, semeio, colheita, processamento, cozimento, disposição cuidadosa dos pratos. Trabalhos personalizados, extensões das pessoas envolvidas e também das linhagens, posto que o solo é propriedade coletiva de cada matrilinhagem. Até aí, tudo funciona como uma economia da dádiva no sentido antropológico clássico. Ao trocar tecidos, rum e outros importados, uma dimensão a mais está contida nos bens: a relação com um mundo externo, da costa, da cidade.154 Relação que também encapsula o trabalho, mas mediada pelo dinheiro. Os bens que vêm da costa, ao penetrarem na economia da dádiva, efetuam o que poderíamos chamar de uma dupla alienação: como mercadorias, já que haviase alienado o trabalho dos que o produziram industrialmente; e como bens importados, pois ao 154 Quando o presente é um tecido decorado, uma camada de trabalho feminino de acrescenta ao objeto, tornando-se mais especial. Daí sua doação ser performada com especial ênfase pelo deodë basiá, que abre o pano para que todos vejam e ressalta sua beleza. Como afirma S. Price, “objetos embelezados decorativamente oferecem um meio particularmente valioso de expressar solidariedade, afeito e compromisso entre as pessoas, já que representam um evidente 'esforço a mais' e uma tentativa explicita de estender o valor de um objeto além de sua função utilitária imediata” (1993 [1984]: 61).

209 serem doados na casa do morto ou alhures, passam a alienar também seu caráter estrangeiro, não saamaka. Em se tratando de dádivas, alienação não é a melhor palavra, posto que não se trata de uma coisificação plena. As relações com o mundo externo continuam contidas nos objetos, ainda que de maneira obscurecida. Uma vez dentro do sistema de trocas cerimoniais (dos óbia, casamentos, funerais), objetos transfiguram-se na medida em que sua origem e caráter estrangeiros são eclipsados. Atravessada tal barreira, exclui-se o mundo externo no mesmo movimento que cria unidade interna, deixam de ser mercadorias importadas e tornamse dádivas locais. São capazes agora de cumprir a capacidade pessoalizada de gerar relações, de estender a pessoa do doador, objetificando-a no bem. E fazem-no com muito mais propriedade do que outros objetos e serviços que em situações cotidianas também geram algum nível de dívida e reciprocidade. Tornam-se o veículo material (re)criador de relações por excelência. Promovem, assim, não apenas “autonomia cultural”, como diz Green, mas interdependência interna. Em vários níveis: pessoas, linhagens, aldeias doam umas para as outras sob a tenda, assim criando-se enquanto unidades. Sempre em relação a outras unidades, sempre pronominalmente: quem doa o faz porque preenche algum papel de parentesco: é mánu, mujeoë, baáa, sísa, tatá, mamá, tío, avó, balá, sísa mái, suwági, mái ou pái do morto ou da família do morto. Ou porque pertence a um grupo relacionado: mamá beoë, tatá beoë, mánu beoë, mujeoë beoë, paípáí míi, mujeoë kó a mánu, wómi kó a mujeoë etc. Cada unidade de troca, doadora ou receptora, coletiva ou singular é (re)construída na casa do morto em relação com o falecido e com os demais doadores e receptores. Alguém só faz parte do grupo de mujeoë kó a mánu (mulheres que casaram com homens da matrilinhagem do falecido) em relação à conjuntura de trocas específica. isso pode parecer menos verdade para grupos que operam como corporados em outras situações, possuíndo outras formas de vinculação (como o mamá beoë, cuja unidade é também ancorada na terra e na vulnerabilidade aos kúnu) Ainda assim a troca cerimonial é a prática e a performance que, seguindo uma estética, faz aparecer essas relações que ativam ou mantém. Evidenciam-nas ao objetificá-las. A exigência de reciprocidade – que idealmente marca toda a fase adulta da vida de uma pessoa – é hipertrofiada em funerais. Neles as trocas são cerimonias, efetuadas com maior cuidado, há uma formulação estética maior da reciprocidade, toda uma forma de apresentar, dispor e expor o que está sendo trocado. Os critérios e estratégias das doações exigem maior elaboração. A objetificação ou (re)construção das relações é ponto central no ciclo funerário porque há necessidade de reconfigurar as relações, agora que um dos elos da

210 cadeia tornou-se outro tipo de pessoa, kootösëmbë, morto. Por isso o viúvo é tão importante: são as suas relações de afinidade que estão mais em jogo ali, precisam de mais trabalho para ser reelaboradas depois da morte do cônjuge – o que será efetuado também pelo luto e pela possibilidade de levirato. Similarmente, nos casamentos e nascimentos de criança, quando também os vínculos são alterados, troca-se tecidos, rum e alimentos porque se está reconfigurando as relações, criando novos tipos de pessoas (um marido, uma mulher, um sogro, um filho, etc.). De forma análoga mas menos enfática, isso ocorre noutros momentos de marcação da duração de pessoas e grupos, como aniversários e ano novo. Em tais momentos, não é a reelaboração, mas a continuidade das unidades e relações que está sendo celebrada, o que também exige dádivas. Já quando um óbia é pago em tecido e rum, a dádiva é pagamento por uma terapia que visa reestruturar relações internas e externas de uma pessoa, garantindo-lhe uma unidade saudável. A afecção tratada é fruto de desequilíbrios corporais e espirituais que apontam para “dívidas” com espíritos e parentes. Um tratamento com óbia é procurado quando alguém é afetado por maldições, fantasmas, divindades, feitiços, espíritos vingativos; todos apontam para as relações que compõem sua pessoa (cf. S. Price 1993 [1984]: 69; Strange 2014; Vernon 1989, 1992: 21-32). Daí também a insistência para que parentes de longe e visitantes de outras aldeias venham para as cerimônias fúnebres: a morte acaba sendo o momento da restauração das socialidades para além dos limites da aldeia, trazendo as pessoas para lá, amarrando parentes, afins e amigos, mesmo os distantes, em elos recíprocos, focando na recriação e reprodução da vida. Daí também a importância do flerte nos funerais, que veremos a seguir. A presença no circuito de trocas de amigos (máti) e pessoas de outras aldeias sem necessariamente vínculo de parentesco faz lembrar que a inevitabilidade da vinculação (condição de todas as relações baseadas na dádiva) revela uma continuidade entre as relações baseadas no parentesco e as da troca cerimonial (cf. Strathern 2006 [1989]: 248). Ou seja, os laços de parentesco – ou melhor, as inúmeras formas de ser parente – fundem-se e confundem-se numa necessidade mais geral de vinculação interna, de união. Mais que isso, demonstra que o parentesco, ainda que esteja no centro das atenções e das preocupações sobre para quem doar, é simultaneamente efeito e causa de relações específicas. O mesmo vale para a participação de lánti (enquanto o governo da aldeia e enquanto população da aldeia em geral) nos circuitos: a unidade da aldeia também é (re)criada no processo. Vimos no cap. 1 que cada aldeia possui unidade e abertura, autonomia e

211 interdependência. No ciclo funerário, o duplo aspecto é sublinhado: é dentro da aldeia que vão buscar a maioria daqueles que vão exercer cargos e prestar serviços nos funerais, bem como aqueles que mais doam e recebem bens, mas a necessidade de visitantes aponta para o fato de que a aldeia não pode manter-se sozinha. 155 Quando lánti doa ou recebe bens e serviços (e similarmente quando kabiténi doam e recebem bens), a capacidade da aldeia de agir como uma unidade frente a outras é realçada. Unidade que nada tem de indistinta: são as relações específicas da aldeia com outras que aparecem definindo seus limites externos e sua constituição interna. Uma aldeia unitária não é um conjunto amorfo de indivíduos iguais entre si, mas uma composição de linhagens, pessoas, líderes, anciões, vivos e mortos, territórios, construções, bens. Sua múltipla composição é justamente o que possibilita-a agir enquanto unidade. Aldeias doam porque seus membros possuem vínculos específicos com outras aldeias. Não é surpresa, assim, que os visitantes mais frequentes venham de aldeias do mesmo clã de Botopási. Nada muito diferente do que está acontecendo com as linhagens: as relações constituídas pelos múltiplos integrantes de um beoë (homens e mulheres, jovens e velhos, casados e solteiros, ricos e pobres, relacionados com esta ou aquela outra linhagem) é o que torna a linhagem capaz de agir como unidade frente as outras, bem como de doar e receber presentes como conjunto. Numa escala singular, o mesmo vale para as pessoas: cada uma é um emaranhado de relações, composta por um mamá beoë, um tatá beoë, um neoséki, certas amizades, certas posses, certos saberes, certos espíritos, um conjunto particular de afins. Ao doar, realça cada uma dessas linhas, bem como seu conjunto. Seguindo Strathern (2006 [1989]: 40), as pessoas podem ser entendidas como divíduos por conterem dentro de si uma socialidade generalizada. As divisões internas das pessoas são iluminadas pelos múltiplos vetores de troca que as envolvem.156 155 Autonomia e interdependência não se limitam às aldeias. Quando gaamá Befon faleceu, o funeral foi presenteado com dinheiro, bens, serviços, visitas, danças e músicas de outras tribos maroons, de tribos indígenas, de partidos políticos, de igrejas, de organizações não governamentais, do governo surinamês. Toda gama de grupos que se relacionam com pessoas, linhagens, clãs, aldeias e com os saamaka enquanto conjunto apareceram, além de todos os clãs e aldeias saamaka. Em momentos cruciais do ciclo, basiá anunciaram que “todos podem ajudar” (“híi sëmbë sa heépi”), “inclusive brancos”, pois a aldeia e a família não eram suficientes para levar a cabo tudo que necessitava ser feito. Os laços internos e externos da totalidade da sociedade saamaka ficaram evidentes naquele funeral. 156 Nem todas unidades estão em jogo durante as trocas cerimoniais. Nunca observei o clã Dómbi dar ou receber bens ou serviços durante funerais. isso aponta para o fato de que as trocas cerimoniais não são as únicas formas possíveis de se gerar união e unidade, de que certas escalas e certos grupos são relevantes, e portanto feitos aparecer mais claramente em outras situações e por meio de outras práticas e estéticas. No caso dos clãs, eles são mais relevantes no que diz respeito a disputas intratribais por direito a território e uso privilegiado de conhecimentos esotéricos (como óbia), algo que não está diretamente em jogo nos funerais (a não ser o do gaamá).

212 A fractalidade que chega ao nível infrapessoal ficará ainda mais clara quando descrevermos a ideia de neoséki. Por hora, basta entender que, quando doam, as pessoas agem em relação a diversos outros sociais, pois doam partindo de diversas relações. isso é o que faz que as possibilidades de troca sejam tantas, chegando ao limite de se dizer que todos podem doar para todos. Assim, tecidos, bebidas, alimentos e cooperação funcionam, quais agradecimentos, como “dinheiro saamaka” em sua capacidade de realçar quase todo tipo de relação intratribal. Diferente de outros tipos de dádivas bem conhecidos na literatura antropológica (como o kula e o moka melanésios), quase não há pessoas excluídas do circuito de “amarração de ventres”. Apenas crianças não participam das trocas: são pessoas incompletas, ainda incapazes de criar novas relações de afinidade por casamento, de gerar pessoas novas por filiação, ainda sem acesso a poderes como o óbia, sem possibilidade de gerar trabalho produtivo ou preencher cargos funerais. Fora elas, todo mundo que é da aldeia ou que é saamaka – homens e mulheres, líderes, velhos e jovens, casados e solteiros – pode receber algo num funeral. Assim, se há algo que lembra “alienação” aqui não é o apagamento de certos trabalhos e relações sociais em benefício de uma circulação impessoal de “coisas” (como na relação entre um operário e o fruto do seu trabalho num regime capitalista). Nem mesmo o obscurecimento de certos trabalhos e relações sociais em benefício de uma circulação que gera prestígio apenas para parte das pessoas que levam à introdução de bens no circuito de trocas (como em circuitos de dádivas exclusivamente masculinos). O que se “aliena” é o caráter estrangeiro dos objetos, para excluir parcialmente a economia de mercadorias da equação e para que seja possível criar outro tipo de dívida, a da dádiva, que gera vínculos, amarra ventres. Ao tornar os koósu e o rum em bens iconicamente saamaka, torna-se possível estender a pessoalidade de entes saamaka coletivos e singulares por meio desses objetos. Mas, novamente, apenas parcialmente. Nas dádivas, o outro está contido no objeto, tanto para o doador quanto para o receptor, e é nesse sentido que pode-se dizer que trocas objetificam as relações. Mesmo ao eclipsar o caráter estrangeiro dos tecidos e do rum, o outro, o bakáa (branco, estrangeiro, não saamaka) segue parcialmente presente enquanto origem última do objeto (comprado na costa), e portanto enquanto constituidor do próprio veículo capaz de objetificar as relações entre os saamaka. Os saamaka só podem ser saamaka, nesse sentido, em relação aos bakáa. Assim como um clã só faz sentido em relação a outro, uma linhagem em relação a outra, um matrissegmento em relação a outro, uma pessoa em relação a outra. As

213 complexidades das relações saamaka, internas e externas, estão assim encapsuladas e recriadas nos objetos que circulam nas trocas cerimoniais.

União e alegria Ao funcionarem como préstimos cerimoniais, é como se o valor de troca de tecidos, destilados e alimentos passasse a ser privilegiado frente ao de uso. Entretanto, nunca perdem plenamente o último, posto que o rum será bebido, a comida consumida, os panos vestidos. Até onde sei, não há impedimento a qualquer uso dos koósu recebidos como tái beoë: podem guardá-los, decorá-los, vesti-los, trocar num próximo funeral ou outra ocasião. Da mesma forma, os serviços que entram nos ciclos de trocas também envolvem a produção de valores (de uso e de troca) por meio de trabalho. Em parte por isso são dádivas e não mercadorias. Aqui a divisão entre valor de uso e valor de troca não opera. É amplamente reconhecido pelos saamaka que o interesse simbólico (criar laços) não se opõe ao interesse material (vestir, alimentar). São complementares. Até porque o “simbólico” não deixa de ser “utilitário”: criar laços é em parte também um interesse material, posto que são as relações (re)criadas com a dívida que possibilitarão a vida e o trabalho no futuro. Tampouco o “utilitário” resume-se a técnicas e práticas plasticamente neutras: trabalhar, comer e vestir fazem parte de uma estética, um conjunto de performances que geram modos de vida, socialidades. A sociabilidade é parte do que promove a socialidade. Falando de maneira mais próxima às afirmações nativas: além de trocar, também comer, beber, vestir-se bem, flertar, cantar, rezar, fazer as coisas em conjunto são formas de criar união entre pessoas. Mais de um informante explicou-me que as trocas podem ser consideradas tipos de consolo ou conforto (trowstu), servem para “proteger a alma” (tapá jú akáa), para que a pessoa sinta que os demais não a estão abandonando. Em Botopási, é extremamente frequente em kuútu e em conversas informais que se frise a importância da união entre as pessoas da aldeia. Eenheid, é a palavra holandesa que usam, e sua melhor tradução para saamaka, dizem, é lóbi (“amor”). A união deve existir entre as pessoas, dentro e fora das linhagens, na aldeia como um todo. Repetem muito que hoje em dia falta união em Botopási, as pessoas já foram mais próximas e generosas entre si, já se ajudaram mais sem procurar nada em troca, mas ao menos desde a guerra civil vivem num período de individualismo e de muitas brigas. Reclamam que hoje muitos se preocupam demais com dinheiro e de menos com o bem estar uma das outras.

214 Lóbi usado como verbo, é “amar”, “gostar”, “ser capaz de ir em conjunto com”. Dizer que “óbia não gosta de sabão” (“óbia án lobi sópu”) é dizer que são duas coisas que não deveriam ser postas juntas, pois uma anula o efeito da outra. Tratando-se de pessoas, faz sentido, para o nível de análise que estamos empreendendo, usar a definição de Schneider (1980: 50) de amor, “solidariedade difusa e duradoura”, para entender o que em Botopási chamam de “união” (eenheid ou lóbi). Uma cooperação mútua que não seja voltada para fins específicos e nem tenha uma duração determinada. Quando há amor, as pessoas “vivem bem” (líbi búnu) umas com as outras, não há feitiços, ataques de kúnu ou de divindades iradas. As pessoas devem ser solidárias umas com as outras para que todas vivam melhor, em harmonia, mutualidade. Assim como sangue dá união (eenheid) ao corpo de uma pessoa (ver cap. 2), amor é capaz de garantir unidade aos corpos sociais. União, aqui, é a capacidade de elementos díspares conectarem-se gerando sinergia, agirem como uma coisa só. Nesse sentido, é pragmaticamente diferente de “coesão social”, pois não parte do indivíduo como dado. O foco do desejo e necessidade de união pode ser o clã, a aldeia como um todo, um bairro, uma linhagem, uma pessoa. Muitas vezes tal necessidade é expressa em termos de parentesco, das obrigações que as pessoas têm entre si graças à genealogia e à afinidade. Köbben afirma: “os habitantes de uma aldeia ndyuka dizem: 'somos todos parentes' e na maioria dos casos isso é de fato verdade, ao menos se afins forem também considerados parentes.” (1967: 12). E reforça: [...] “Juntos somos uma grande família”, as pessoas dizem, “deveríamos fazer tudo juntos”. Expressões e exortações nesse sentido são ouvidas com frequência, por exemplo em assembleias. […]. exteriormente, a reputação da aldeia deve ser atestada, nada de lavar roupa suja em público e nada de comportamentos que possam danificar a reputação. Essas regras de conduta têm um fundamento religioso, também [...]: qualquer violação delas e os kunu e ancestrais tomarão medidas. Isso não é mera ideologia. Algo da “troca generalizada” mencionada por Sahlins é sentido por exemplo na divisão de caça grossa, quando os anciões e mulher mais velhas da linhagem do caçador devem receber sua parte. Similarmente na construção de uma cabana. (ibidem: 49)157

Ações como a divisão pública e cerimonializada da carne de anta são vistas como tradições importantes para reforçar a união na aldeia. Quando um homem caça uma anta, manda avisar na aldeia e grande parte da população vai até o local onde o animal foi abatido; ali fazem um rito para a divindade do local (gádu a kamían) e depois ajudam a carregar a 157 Encontro também grande proximidade entre a ideia saamaka de união e a ideia dos quilombolas do Erepecuru de uma “vida coletiva” ou “vida tranquila”, marcada pela boa distância: “Os Filhos [do Erepecuru] dizem que uma vida boa e coletiva é uma vida coletiva rio acima […,] encontra-se o equilíbrio correto entre viver com e sem seus parentes, entre trabalho, brincadeira e descanso, entre suas próprias necessidades, presentes e poses e as práticas de troca; isto é, entre sua própria existência e a dos outros. […] essa necessidade de paz não deve ser confundida com uma 'necessidade de coesão” euroamericana para superar as 'inclinações centrífugas dos indivíduos' […]. A vida pacífica dos Filhos não é dada pela necessidade de neutralizar a diferença entre as pessoas, mas antes pela de encontrar as distâncias corretas entre elas” (Sauma 2013: 17).

215 carne até a grande mangueira (gaán mánjan básu) no centro da aldeia, onde os pedaços são divididos entre todos que ajudaram, e mesmo entre muitos que não o fizeram. Atividades coletivas, sejam trabalhos como pintar a igreja ou erguer uma construção coletiva, cerimônias cristãs ou festas laicas com dança e bebida, também são maneiras de unir a população. Em escalas menores, pequenos encontros e trabalhos em conjunto também aproximam as pessoas, seja dividir a labuta na roça ou fazer um sipán paátu (lit. “agitar prato”), uma reunião entre homens na qual preparam uma refeição farta em grupo para comerem juntos. Não é apenas o ciclo funeral que une as pessoas, mas durante ele, esse será um foco dos aldeões, quase tudo que se faz entre a morte e o aitidei serve para promover união. Numa entrevista, um informante explica o objetivo da semana de trocas, comida, bebida, conversas e música que ocorrem na primeira semana após a morte: “Consolar” [troost] quer dizer, quando você está desolado, sabe? Então as pessoas vêm falar com você. Você está abatido, sabe? Você está desolado, uma pessoa próxima a você morreu, então as pessoas vêm ficar com você, falar com você. Digamos que […] uma pessoa morreu, então enterram hoje ou amanhã e todo mundo vai embora. As pessoas que do matrissegmento no qual a pessoa morreu vão ficar sozinhas, sabe? Assim, elas vão ficar tristes, desoladas... Por isso, aqui, as pessoas vêm ficar com elas até completar uma semana, só aí vão embora. Dentro dessa semana você percebe, no dia que a pessoa morreu, antes de ser enterrada, você vê tanta gente infeliz, não é? Mas já depois do enterro, quando estão hói wósu [“guardando a casa” do morto onde as atividades ocorrem], você vê que os filhos da mulher, ou da pessoa que morreu, elas próprias começam a sorrir.158

Deve-se enterrar “ku piizíi”, com prazer, celebração, alegria. Há, decerto, momentos solenes durante o ciclo funeral, ao cantar hinos, ao rezar, ao fazer um minuto de silêncio. Colocar o cadáver no chão e lavá-lo são trabalhos feitos sem qualquer tipo de leveza de espírito. A hora de carregar o caixão e o enterro são pontos onde a tristeza transparece muito, assim como os primeiros momentos após a morte e o anúncio oficial. Nessas horas, as mulheres choram ritualmente, de uma forma padronizada. Quando o morto é jovem, quando a morte foi trágica, os choros fluem com ainda mais força. Em situações assim, acontece até mesmo de se ver um homem chorar (não ritualmente), algo bastante raro em Botopási. 159 Mesmo nas horas de mais tristeza, quando alguém começa a demonstrar demasiado desespero, chorar alto demais, ou dizer que “quer morrer junto”, sempre aparece alguém para pedir para que se faça silêncio, pare de chorar, pois a vida deve continuar. 158 Bilby (1990: 204-5) sublinha que, apesar da dispersão dos aluku (a maioria hoje mora fora do território tradicional), os ritos que circundam a morte seguem reforçando a unidade clânica e a relação com o território. De fato, funerais são as principais oportunidades para as pessoas voltarem às suas aldeias, trabalharem juntas, reativarem altares. 159 Não devemos enxergar com etnocentrismo o choro ritual, vendo na suposta “espontaneidade” da expressão das emoções uma maior sinceridade das mesmas num mundo ocidental desencantado e pouco ritualizado. O choro feminino em saamaka, apesar de regrado, não é dissimulado. Como já argumentava Mauss (1999 [1921]: 330): “Notemos que este convencionalismo e esta regularidade não excluem de modo algum a sinceridade. Não menos do que em nossos próprios usos funerários. Tudo é, ao mesmo tempo, social, obrigatório e, todavia, violento e natural; rebuscamento e expressão da dor vão juntas”.

216 A diferença de tom entre momentos dos funerais e a rápida mudança entre eles aparece quando comparamos os hinos que são entoados durante as horas da síngi ndéti e as canções gospel que os seguem imediatamente, no boóko didía. A cadência é lenta nos hinos, cantados a capela, com seriedade, enquanto as músicas da madrugada são levadas no violão, por vezes com percussão improvisada e brincadeiras. Nas letras, mais dissemelhanças: os primeiros tratam mais da dor de Cristo, de pecado, da promessa da vida eterna; os segundos mais de amor, alegria e união. Observe que as das canções têm espaços para improvisação criativa, enquanto o formato dos hinos é mais rígido. Alguns hinos entoados com frequência:160 1. Na fesi vo da gloritroon / Vo Jezus Jehova / Tien Diante do trono glorioso / De Jesus Jeová / Dez mil doezend mooi pikien de tan,/ Dem singi gloria / Singi belas crianças de pé / Elas cantam glória / Cante glori-, glori, gloria! :,: gloria! :,: 2. Hoesoema tjari dem pikien / Na hemel jandaso? / Quem trouxe as crianças / Lá do céu do outro lado? / San meki dem kom mooi en krin? / Sa dem plisiri so? / Quem fez elas belas e puras? / Fará delas alegres Singi glori, gloria! :,: assim? / Cante glori-, gloria! :,: 3. We, Jezus srefi kali dem, / A lobbi dem pikien, / Bem, Jesus mesmo as chamou, / Ele ama as crianças, / Hem brodoe wasi, krini dem, / A poeloe zondoe krin. / Seu sopro limpou-as, purificou-as, / Retirou seus Singi glori, gloria! :,: pecados. / Cantam glori-, gloria! :,: 4. Na disi liebi diaso / Dem lobbi Jezus troe; / Ke, fa Nesta vida aqui / Elas amam Jesus de verdade; / Oh, dem de plisiri now, / Vo si hem hai na hai. / Singi glori, como estão felizes agora, / De vê-lo olho a olho. / gloria! :,: Cante glori-, gloria! :,: 5. Joe wani kom na Jezus toe / En singi nanga dem? / Você quer vir para Jesus também / E cantar com elas? / We, dan joe moese geersi toe / Wan reti boen pikin / Então você deve parecer também / Uma criança muito Singi glori, gloria! :,: boa / Cante glori-, gloria! :,: Hino 472, autoria desconhecida, da seção do hinário Vo dem pikin (Para as crianças). 1. Di wi de na disi liebi, / Di wi tan na disi gron, / Wi de na wan fetiliebi, / Hatti fu wi no de boen. / Ke mi Gado! / Da pikadu / Dati trobi reti reti, / Ruste no de kweti kweti 2. Ma na Gadokondre janda, / jandasei a no de so. / Fa dem engel njam plisiri! / Fa dem njam so switi bro! / Da pramisi / Wi ben kisi: / Wan gran zondei libi jete / Vo dem, disi bribi leti 3. Dati, troe troe, wan boenhede / Da wan grani, switi tem! / Meki ala soema frede, / Vo dem no moe lasi hem! / A de fiti / Reti reti, / Vo wi dwingi wi, vo waka / Na wi Masra Jezus baka

Enquanto estamos nesta vida, / Enquanto vivemos neste solo, / Estamos numa vida de conflito / Nosso coração não é bom / Oh meu Deus! / O pecado / Que perturba o justo! / A paz não existe mesmo Mas no reino de Deus no além / No outro lado não é assim / Como os anjos comem com prazer! / Como comem um pão tão doce! / A promessa / Que recebemos: / Uma grande vida de domingo chegará / Para os que creem nisso verdadeiramente Isto é mesmo uma sorte / A boa e honrada hora! / Liberte todas as pessoas, / Elas não devem perdê-lo! / É correto / Preciso, / Para compelir-nos, para andarmos / Atrás do Senhor Jesus

4. Meki dan wi ha plisiri, / Meki wi no lasi tem, / Vo wi teki hem manieri, / Vo wi ziel en skin ko krin! / Wan krin hatti / Sabi dati: / Hem sa kom si Gado fesi, / A sa finni wan boen plesi

4. Faça então que tenhamos alegria, / Não nos faça perder tempo, / Para tomarmos os modos dele, / Para nossa alma e corpo serem limpos! / Um coração limpo / Sabe que: / Aquele que vir a face de Deus, / encontrará um bom lugar Hino 634, de W. C. Genth, seção Vo da gemeente na tapo en vo da liebi vo teego (Para o povo do céu e para vida eterna).

160 Há hinos mais comuns em diferentes momentos, conforme seu tema: sobre a perda em em vigílias préenterro, sobre a morte e crucificação de Jesus no enterro, sobre a renovação em vigílias pré-aitidei, etc.

217 1. O Masra Jezus! sani joe ben misi, / Di dem ben tjari Oh, Senhor Jesus! aquilo que perdeste, / Quando joe na so wan plesi, / Vo kili joe na so wan ogri fasi, / carregaram-te a um lugar assim, / Para matar-te de Vo wi no lasi. maneira tão horrível, / Para que não percamos. 2. Da mi, da mi en ala mi pikado / Ben kom so hebi na Para mim, para mim e todos os meus pecados / mi Masra Gado; / A teki strafoe vo mi, now mi bribi, / Chegaram com força em Deus; / Foi punido por mim, Mi sa de liebi. agora eu creio, / Para que eu viva. 3. Da so mi Masra Jezus ben moe dede / Vo mi en ala Assim meu Senhor Jesus precisou morrer / Por mim e poti zondaar hede. / Ke, efi ala, ala soema hatti / Kan todos pobres pecadores. / Oh, se os corações de todas fili dati! as pessoas / Pudessem sentir isso! Hino 132, autoria desconhecida, seção Vo da pina en dede en beri vo wi Masra Jezus (Pelo sofrimento, morte e enterro de Jesus).

Em contraste, algumas das canções gospel mais cantadas em vigílias em Botopási: Téká lobi deo / Téká lobi deo [repete] Onde existe amor / Onde existe amor [repete] Naandeo piizíi deo / Naandeo táki láfu deo Lá existe diversão / Lá existe conversas e risos Téká lobi deo / Téká lobi deo [repete] Onde existe amor / Onde existe amor [repete] Hallelujah saí deo / Djalúsu án saí deo Aleluia existe lá / Inveja não existe lá [pode falar qualquer coisa boa] saí deo / [pode falar [pode falar qualquer coisa boa] existe lá / [pode falar qualquer coisa ruim] án saí deo qualquer coisa ruim] não existe lá Naandeo [pode falar qualquer coisa boa] deo / Naandeo Lá existe [pode falar qualquer coisa boa] / Lá não [pode falar qualquer coisa ruim] án saí deo existe [pode falar qualquer coisa ruim] Téká lóbi deo [repete] Onde existe amor [repete] Deé twálufu loo dí deo a dí lío akí / Domíneongë da wán u Os doze clãs que estão aqui no rio / Domíneongë é um de tu / Nooö mbéi de túu hái kó míti akí / Ku de kaakíti deles / Então que todos eles venham se encontrar aqui / u mása Com a força do Senhor Domíneongë sëmbë úun hópo bóo wái / Awaná, Abáisa Pessoas do clã Dómbi levantem-se e vamos nos ku Nasí / Matjáuneongë ku deé óto sëmbë / Bóo bóndji alegrar / Awaná, Abáisa e Nasí / Pessoas Matjáu com u sééi tidé a wán todas as outras pessoas / Vamos nos juntar hoje como um só Ú de sembe deé tá kái kéíki sëmbë / Ú án bóo paajá Nós, pessoas chamadas de cristãs / Não vamos mais mooön soo / Aluwási a dí tá pasá ku ú / Bóo bóndji u sééi nos espalhar assim / Apesar de tudo que acontece tidé a wán conosco / Vamos nos juntar hoje como um só

I goónlíba a kó soo / Gó sindó pakiséi ún líbi i ábi / O mundo ficou assim / Vá sentar e pensar sobre o tipo de Wöndë sondí nooö tá pasá vida você leva / Só coisas espantosas estão acontecendo I kë tá láfu / Ma já sa láfu / Sëmbë tá dëdë söndö síki / Você quer rir / Mas não pode rir / Pessoas estão Wöndë soni nöö tá pasá morrendo sem doença / Só coisas espantosas estão acontecendo I kë tá nján / Ma já sa nján / Sëmbë tá dëdë söndö síki / Você quer comer / Mas não pode comer / Pessoas estão Wöndë soni nöö tá pasá morrendo sem doença / Só coisas espantosas estão acontecendo I keo tá [pode-se falar outras ações] / Ma já sa [mesma Você quer [pode-se falar outras ações] / Mas não pode ação] / Sëmbë tá deodë soondö síki / Woondë soní nooö tá [mesma ação] / Pessoas estão morrendo sem doença / Só pasá coisas espantosas estão acontecendo I kë tá ... / Ma já sa ... / Sëmbë tá dëdë söndö síki / Você quer … / Mas não pode … / Pessoas estão Wöndë soni nöö tá pasá morrendo sem doença / Só coisas espantosas estão acontecendo

218 Gádu án dëdë / A dë ku líbi [repete] Deus não está morto / Ele está vivo [repete] Gádu án dëdë / A dë ku líbi / Mi tá fíi hën a mi híi Deus não está morto / Ele está vivo / Estou sentindo ele sínkíi em todo meu corpo Mi tá fíi hën a mi hédi / Mi tá fíi hën a mi máun / Mi tá Estou sentindo ele na minha cabeça / Estou sentindo ele fíi hën a mi fútu / Mi tá fíi hën a mi [pode-se falar nos meus braços / Estou sentindo ele nas minhas pernas qualquer parte do corpo] / Mi tá fíi hën a mi híi sinkíi / Estou sentindo ele em [pode-se falar qualquer parte do corpo] / Estou sentindo ele em todo o meu corpo

Os hinos são em sua maioria tirados do singi-boekoe, uma publicação moraviana que traduz em sranan as letras alemãs, enquanto a maior parte das canções gospel é em saamaka, foi composta por habitantes da aldeia vizinha e pentecostal, Futunaákaba. É interessante notar que, como os alimentos e receitas de pratos preparados para funerais, também as músicas possuem origens variadas. Da mesma forma os jogos dos quais trato mais à frente. Como os koósu e o rum importados já indicaram, não é preciso que algo tenha uma origem totalmente saamaka para que tenha efeitos socializantes sobre os saamaka – nem que seja “de Botopási” para que tenha o efeito de criar a unidade da aldeia. Mas ela precisa ser internalizada, feita local, obscurecendo mas não alienando sua origem exógena. Músicas alemãs ou de Futunaákaba acabam por se tornar típicas de Botopási uma vez que se tornam costumes ali. Ambos os tipos de músicas servem para honrar a Deus e aos mortos. Mas a questão do amor e da união é mais reforçada nas letras do segundo grupo. Além disso, há uma referência semivelada ao sexo na segunda delas. As reticências são preenchidas por uma interjeição, um resmungo que substitui uma menção direta ao sexo. Com efeito, a madrugada não é solene. Logo que cessam os hinos e as cadeiras são desalinhadas – antes todas viradas para a mesma direção, de frente para a mesa central –, o comportamento também se desalinha. Nos jogos de dama, baralho e cartas, falar alto e berrar não são problemas. Gritam com os dëdë basiá, exigindo esta ou aquela bebida, pedindo comida mais farta. Se alguém cochila sob a tenda, seus amigos podem amarrá-lo com cordas e panos, rindo e tirando fotos da brincadeira. A presença da sexualidade e do erotismo nos funerais não está apenas nos duplos sentidos de algumas canções. É verdade, Botopási, por ser cristã, não tem os mais animados nem os mais frequentados boóko didía do Alto Suriname. Vigílias em aldeias pagãs, onde contratam bandas e DJs para tocar, são para os solteiros as melhores festas do rio, o melhor momento para conhecer ou reencontrar amantes de outras aldeias, dançar sensualmente, flertar, e se tudo der certo ir à casa de algum conhecido ou a algum local escuro fazer sexo às escondidas. Nas exéquias dos gaamá, funerais paroxísticos, é um chiste dizer que “no enterro de um gaamá, ninguém tem marido nem mulher”. Espera-se, pelo menos jocosamente, que

219 haja muito sexo. Em Botopási a ausência da dança mitiga tal fator, mas parentes do morto e diversas visitas vêm às vigílias, de modo que o flerte é presente. 161 Há certa vigilância, fofocas e comentários: ouve-se cochichar que Fulano e Sicrana conversavam muito num canto ao redor da tenda e depois os dois foram embora com apenas meia hora de diferença entre eles. A bebida, a alegria, a reunião permitem que o sexo e o cortejo, temas já tão constantes e abertos nas conversas cotidianas em Botopási, pronunciem-se ainda mais. Não é apenas por estarem juntos, felizes e embriagados que os saramaka aproximam assim maneira morte e sexo. Um mito coletado por Price & Price (1991: 165-180; 219-242) em uma vigília indica a importância do flerte nas reuniões funerais. No mito, seis filhos prometem a seu pai um funeral ideal: o filho mais velho promete chorar; a filha mais velha promete cantar e dançar; o filho do meio promete muitos bens (sobretudo koósu a serem compartilhados com as visitas) e um belo caixão; a filha do meio promete comida em abundância para todos os presentes; o filho mais novo promete tocar tambor (sua gesta em busca desse bem cultural inexistente no tempo mítico será o foco do mito); e a filha mais nova promete fazer sexo com todos os visitantes homens que venham ao enterro. É claro que esse não é o comportamento esperado nem aprovado para uma parente de um falecido, mas no paroxismo típico dos mitos fica clara a importância dada à lubricidade nessas situações. Sexo, comida, trocas, choro, música e dança são colocadas em pé de igualdade na narrativa. A lavagem do cadáver aparece apenas de forma passageira no mito, indicando que certos cuidados com o morto e com seu contágio entram numa categoria distinta dos prazeres no evento da morte. Afirma-se em Botopási, já vimos, que lavar o cadáver é um agrado feito ao morto, bem como as seis atividades que os filhos fazem em nome do pai falecido no mito acima. A diferença está no fato de que a lavagem diz respeito tão somente ao morto, enquanto choro, música e dança, trocas, caixão, comida, tambores e sexo homenageiam o morto na medida em que tornam expressas publicamente – para outros vivos – uma riqueza de emoções, objetos e atividades no funeral. São presentes para o morto na medida em que são também presentes para os vivos que estão na tenda, na medida em que agregam pessoas em torno do falecido. Se choro pode cair na mesma categoria de sexo e música, isso significa que

161 Sem dúvida há maior contenção neste e outros aspecto dos funerais saamaka cristãos. Além das danças excluídas – bandáamba, tjeokë, djómbo seokeoti, kaseko, kawina etc. (ver nota 56, cap. 1), outros tipos de “excesso” também não aparecem em Botopási, como salvos de tiros. De acordo com Sally Price (1993 [1984]: 74-77), a bandáamba era também dançada em Dangogo por uma esposa quando seu marido chegava da costa, trazendo bens para ela, numa celebração que marcava o sucesso do homem no trabalho e a fidelidade da mulher. Trata-se de uma dança, portanto, que possui uma relação com a reciprocidade entre os sexos, bem como com a sensualidade.

220 a alegria e a tristeza aqui não são mutuamente excludentes, as emoções complementam-se ao serem justapostas ou alternadas. Há alternância de estados emocionais e posturas corporais durante o ciclo funerário. De maneira alguma a dor da perda do ente querido, o perigo da morte e dos fantasmas anulariam o erotismo, a fartura e alegria dessas reuniões. O corpo que chora, por vezes convulsivamente, é o mesmo corpo que ouve atentamente o kuútu, que ora e que entoa hinos civilmente, mas que se altera depressa, troçando, gargalhando, cantando e comendo prazerosamente. A transformação é mais pronunciada nas mulheres, que expressam mais vivamente seu sofrimento no choro ritualizado, mas vale para ambos os gêneros. Os momentos de comiseração, decoro e deleite são relativamente marcados: já vi mais de uma vez discussões sobre “esta não ser a hora de chorar”, ou alguém no entorno da tenda segurar seu riso para não atrapalhar aqueles que cantavam os hinos. Certa vez, uma viúva caiu em prantos durante os hinos para seu ex-marido, e a resposta daqueles que puxavam a cantoria foi cantar mais alto, para calar aquele choro. Em outra situação, uma senhora muito idosa sentouse na tenda em frente à casa de uma morta cujo enterro, ocorrido há cerca de um dia, não havia acompanhado. Perguntou aos que estavam ao seu redor por que estavam reunidos. Quando contaram para ela que aquela era um funeral para uma amiga sua, ela começou a chorar baixinho, o que provocou risos de jovens presentes, por ela ignorar até então o ocorrido (a falecida agonizara por muitos dias antes de morrer) e por chorar na hora errada. O trabalho dos coveiros é outro em que se percebe alternância de postura e emoções. O cemitério é um local extremamente perigoso, no qual espera-se respeito, seriedade e atenção. Muitos temem mesmo adentrar a área. Um dos momentos mais solenes de todo ciclo funerário é quando o corpo chega e começa a ser enterrado, ao som de rezas e de hinos. Mas basta a maioria das pessoas se retirarem, deixando os coveiros a sós, que o tom volta a ser como era quando eles estavam cavando: um clima relaxado, de chistes, lutas por esporte, fofocas, assuntos amenos. O que gera discussões um pouco mais sérias são apenas o objetivo central de seu trabalho, isto é, a cova em si, seu tamanho, disposição, os detalhes tão debatidos acerca de como se deve fazer as coisas. Como outros trabalhos coletivos, o dos baákuma implica cerveja, conversa, descontração, mesmo num local tão perigoso e numa situação tão tensa quanto a morte. Além disso, os coveiros naquele momento são um grupo e enquanto tal necessitam promover a união entre eles. Não vejo tal alternância como refletindo uma divisão rígida entre tempos sagrados e profanos de um ciclo ritual. Pois mesmo nos pontos mais aparentemente seculares dos

221 funerais, nos dias entre enterro e aitidei e nas madrugadas, a atitude de respeito com o morto é sempre constante, inúmeros cuidados são tomados, e mesmo as músicas que cantam rindo pela madrugada possuem caráter religioso. Tudo é “sagrado”, em algum nível, tudo é potencialmente perigoso, o que não significa que tudo precise ser sisudo.162 Reforço: o extremo cuidado com os quais os ritos fúnebres são levados a cabo e a grande importância que se dá a eles não são em função apenas do morto. A ideia é também alegrar os parentes desolados, trazer de volta a alegria; daí as canções, brincadeiras, banquetes. Isso explica a resolução do conflito entre o réveillon e a morte de Wénu, vista no capítulo 1. Em certo nível, enterros não são assim tão incompatíveis com a comemoração de ano novo, vida nova. Ambos contém em si o princípio de renovação pela união, comensalidade, troca e divertimento na aldeia. Ao separar em dois capítulos a descrição do ciclo funerário – um enfatizando os ritos de cuidado, outro as trocas cerimoniais – não quero sugerir que sejam coisas apartadas. É verdade, os primeiros podem ser vistos como uma troca negativa com o morto, que o mantém distante, as segundas como trocas positivas, que aproximam as pessoas. Apesar das diferenças, trocas são trocas, nenhuma visa apartação completa, nem proximidade demasiada: a meta é a boa distância. O objetivo que guia os funerais é duplo: união entre os vivos e homenagens ao morto, ambos por meio da participação em conjunto em atividades (lúdicas e/ou cuidadosas). Os objetivo podem ser alcançados de variadas formas. O não-dogmatismo, a pluralidade de formas para atingir os objetivos centrais dos funerais faz com que os de Botopási tenham suas peculiaridades, suas diferenças com relação a outras aldeias. Como vimos, as variações através do tempo e do espaço muitas vezes remetem a presença da igreja, mas não devemos tomar o cristianismo como único eixo ou motor de transformações. Em aldeias não cristãs, uma das principais atividades que marca as vigílias é o costume de reunir-se na casa do morto para contar kóntu (mitos ou fábulas, como o resumido acima) (cf. Price & Price 1991). Em Botopási contam kóntu em outras situações, sempre à noite, em casa, na roça, e são ouvidos também num programa da rádio saamaka Maifei. Os kóntu faziam parte dos funerais no passado, mas não fazem mais. De forma similar, um jogo 162 Kobben (1967: 24) afirma que também entre os ndyuka há um clima relaxado, sem mysterium tremendum durante o funeral, mesmo quando o morto é um capitão, e mesmo quando o espírito está se manifestando. A alegria em nada precisa contradizer a morte. Como afirma Reis: “Morte é desordem, e por mais esperada e até desejada que seja, representa ruptura com o cotidiano. Embora seja seu aparente contrário, a festa tem atributos semelhantes. Mas, se a ordem perdida com a festa retorna com o final da festa, a ordem perdida com a morte se reconstitui por meio do espetáculo fúnebre, que preenche a falta do morto ajudando os vivos a reconstruir a vida sem ele” (Reis 1991: 138).

222 de tabuleiro de origem africana, conhecido em saamaka como adjí ou adjíbóto era jogado nos funerais décadas atrás, mas hoje não existe mais na aldeia, tendo sendo substituído pelos jogos de damas, dominós e cartas.163 Até algum tempo atrás, ao “encher a cesta”, as mulheres que as dispunham no centro da tenda dançavam a bandáamba, estilo de dança solo com muito movimento nos quadris. Meus informantes dizem que o costume foi deixado de lado “por causa da igreja” (ainda que a igreja sempre tenha estado presente em Botopási), mas mulheres que vêm de outras aldeias, quando visitam, ainda podem dançar bandáamba. Por fim, também os toques de tambor foram excluídos dos enterros de Botopási, nas últimas décadas. A realocação das atividades têm efeitos concretos. A (re)criação da unidade da aldeia em ciclos funerários envolve também a (re)criação de tal unidade enquanto cristã, mais especificamente como uma unidade que encara e constrói seu cristianismo de uma forma própria “das pessoas de Botopási”. Isso inclui as variações internas dessa unidade: quando uma pessoa que é de Botopási mas que tem muitos laços em Futunáakaba morre, as vigílias podem fazer concessões ao estilo pentecostal. A religião e os costumes de quem está sendo enterrado é a primeira a ser levada em conta – até porque, se a pessoa era dali, supõe-se que seguia aquela religião e aqueles costumes –, mas a religião e os costumes dos convidados também é relevante. Um mesmo enterro pode ter traços pentecostais e “pagãos”, hinos e danças, pois o morto tinha laços com pentecostais e “pagãos”. Não é como se hinos, músicas gospel, rezas e trechos da Bíblia, entrassem no lugar de toque de tambor, música laica, danças e mitos apenas preenchendo posições estruturais que em nada alteram seu conteúdo. As unidades e os vínculos criados (com vivos e com o além) passam a ser outros, ainda que se retenha, de fundo, o objetivo comum: gerar união pela concentração espaço-temporal de pessoas, bens e atividades.

Herança Após o ciclo funeral, os laços estão recriados, a vida restabelecida. Mas o morto, mesmo à boa distância, não cessa ainda de ser uma questão para os vivos. É apenas um ano 163 Por ser um “africanismo” bastante patente, Herskovits dá atenção a este jogo (1929b, 1932). Afirma que o adjí serve para divertir tanto os vivos quanto o morto, que observa o jogo. Porém, devia-se interromper o jogo antes do anoitecer, posto que à noite o morto pode querer vir jogar junto com os vivos, algo que seria bastante perigoso. Em Botopási hoje cartas e dominós são jogados tanto de dia quanto de madrugada na casa do morto (e só nela). Damas podem ser jogadas em situações não relacionadas com a morte, de modo que há uma diferença na posição que tais outros jogos ocupam. Os jogos parecem dizer respeito e interessar muito mais vivos do que mortos. Interessante ainda perceber que tal ênfase em “jogar sozinho” (sem o morto) é bastante similar à necessidade dos coveiros “comerem sozinhos” (ver nota 141, supra). Nenhuma das duas coisas é enfatizada em Botopási, o que me faz pensar que a boa distância entre mortos e vivos não é exatamente a mesma ali, hoje, e nas aldeias pesquisadas no passado pelos casais Herkovits e Price.

223 depois do enterro, ou mais, que tratam da herança do falecido. Até a data chegar, algumas pessoas da família são designadas para cuidar dos bens, talvez dois homens e duas mulheres. Quando a hora chega, avisam as pessoas diretamente envolvidas, com uma ou duas semanas de antecedência, que chegou a data de púu lái a dooö (“retirar os bens de casa”). Não é preciso nem esperado que gente da cidade venha, com exceção dos mais próximos do falecido – filhos, sobrinhos matrilaterais, etc. A cerimônia ocorre pela manhã e é discreta, com poucos presentes além do matrissegmento, os kabiténi e talvez alguns vizinhos. Falarão com o espírito do morto, rezarão para Deus e trarão os objetos de dentro da casa para serem expostos e distribuídos: tecidos, louças, panelas, armas, móveis, etc. Depois darão de beber, provavelmente das garrafas de destilado que o próprio morto guardava, podem também comprar cerveja, refrigerante e preparar alguma comida para a ocasião. Os bens mais valiosos – casas, roças, motores de barco etc. – serão divididos no dia seguinte pelo matrissegmento em uma reunião particular (beoë kuútu). Aquilo que é dividido no púu lái a dooö – têxteis, armas, utensílios domésticos etc. – quando passa para pessoas da próxima geração, além de continuar cumprindo suas funções utilitárias, serve como memento do morto. Peças de tecido decoradas especialmente servem a tal fim, carregam a memória do corpo que as vestia, algumas são mantidas por décadas, mesmo que, velhas e fora de moda, não sejam mais vestidas. As pessoas presentes à cerimônia – capitães, a família e outros convidados – receberão bens de importância diferentes dependendo de sua proximidade genealógica e de intimidade com o morto. Aqueles que trabalharam durante o enterro, um ano antes, já não recebem nada, pois há muito foram destituídos de suas funções. Uma pessoa ausente, mas que tinha relações próximas com o falecido pode mandar um recado (mandá búka) de que quer receber algo. Mesmo no que diz respeito aos objetos menores, têm prioridade pessoas do matrissegmento da geração do falecido (irmãos e irmãs classificatórios, baáa e sísa) e da geração imediatamente inferior (sobrinhos matrilaterais de um homem, sísa míi, filhas de uma mulher, mujeoë míi), especialmente as de mesmo gênero, posto que a regra é matrilinear e boa parte dos bens materiais é marcado por gênero – mulheres não tem tanta necessidade de espingardas, nem homens de tipitis. Tecidos decorados, uma das heranças mais comuns e valoradas, também são marcados por gênero. Se tiver tido oportunidade, antes de morrer a pessoa pode ter doado alguns de seus objetos pessoais e/ou indicado sua preferência acerca de quem vai ficar com o quê. Como no caso da transmissão de um cargo político (ver cap. 1), a opinião do morto deve ser o principal

224 fator levado em conta, para consultá-lo podem usar oráculos. Como em Botopási oráculos só são usados privadamente, muito da decisão acaba recaindo sobre o tío (MB) do falecido. Em sua ausência, os irmãos mais velhos (gaán baáa), irmãos mais novos (pikií baáa), ou sobrinhos matrilaterais (sísa míi) tomam a frente. Como em outros kuútu, a decisão não deve ser unilateral, busca-se algum consenso, ainda que conflitos sejam frequentes em tal momento, velados ou não. É um assunto do matrissegmento, no qual nem mesmo o ancião da matrilinhagem – se for de outro segmento – deveria interferir. Um morto descontente com a divisão de seus bens pode atacar pessoas de sua família que acredite não estarem “vivendo bem”. Se o fantasma acreditar que pessoas que gostava estão sendo desfavorecidas – estando elas ou não nas posições genealógicas mais beneficiadas em heranças pela regra padrão – pode enfurecer-se.164 O bom tom diz que a matrilinhagem não deve ficar com tudo. Filhos e filhas de um homem, por exemplo, têm direito a receber alguma coisa, especialmente se tinham boas relações com o pai. Em geral, terras não devem sair da matrilinhagem – casas e roças, portanto, não iriam para filhos de um homem – mas mesmo isso pode ocorrer quando a ligação dos filhos com o pai era próxima, quando não houve conflitos entre os últimos e a matrilinhagem do morto e quando os terrenos não são muito grandes. Nesses casos, depois da morte dos filhos, saber se o terreno volta à matrilinhagem do pai ou se fica na de seu último dono é uma nova discussão. A transmissão de “bens sobrenaturais”, se posso assim expressar-me, segue ainda outras regras. As receitas de óbia idealmente devem ser transmitidas durante a vida, sendo a transmissão patrilateral bastante comum quando não se tratam de segredos de uma matrilinhagem, quando não são óbia particularmente poderosos. Objetos têm fim diferente de receitas. Às cuias, aos amuletos, às cordas, às garrafas, às braçadeiras e a outros objetos de óbia que uma pessoa possui, darão fim antes mesmo do aitidei, com a ajuda de algum especialista que, dependendo do caso, os descarta ou arruma (seeká) para que outros possam continuar usando-os. Quando a pessoa era médium de divindades ou kúnu, é o espírito quem escolherá quem irá possuir a seguir, em geral alguém da mesma matrilinhagem, mas não necessariamente do mesmo matrissegmento. Pode levar anos para que o espírito escolha um novo médium. 164 O sistema de herança de objetos um pouco varia de aldeia para aldeia. R. Price (1975: 127-130) trata de do tema em aldeias não cristãs. Nelas, recorrem mais a oráculos e fazem oblações quando ao “tirar os objetos de casa”. Em Futunaákaba, por influência da igreja pentecostal, a viúva têm voz ativa nas decisões sobre a herança.

225 Apesar de tratar-se também de um aspecto “econômico” da morte, as questões envolvidas na herança de terras são muito diferentes daquelas envolvidas nas trocas cerimoniais. E mesmo daquelas que envolvem a herança de objetos pessoais. Pois aqui não é preciso de nenhum esforço para criar laços entre as pessoas: o laço já é dado pelo próprio território. Na posse de casas e roças, isto é, de terra dentro da aldeia e em seus arredores, a lógica segmentar aparece com relevo. Nenhuma pessoa é dona de terras no Alto Suriname, elas a princípio são posse de um clã (loo). Nem mesmo gaamá pode decidir sobre o uso de um território, seja para construção de casas, para corte de roças ou para uso de recursos naturais. O líder supremo intermedeia conflitos, mas quem sabe sobre os limites das áreas entre os clãs são seus anciões, que baseiam-se em histórias dos antepassados para marcar as fronteiras: os primeiros a desbravar uma área, despoluir igarapés, lidar com os espíritos do mato, cortar roças e construir habitações teriam direitos sobre um local. O trabalho sobre a terra, e especialmente o trabalho inaugural, a humanização de uma área de floresta, é o que primeiro garante os direitos sobre ela. Mas muitas transmissões de posse ocorreram nos primeiros séculos da história saamaka, a medida que novos grupos de fugitivos foram chegando no Alto Suriname e que guerras e outros acontecimentos exigiram realocações. Os atuais donos de um território não necessitam ser os primeiros a trabalhar sobre ela, em geral são os últimos, o que porém não apaga certa ligação com um lugar, e certas prerrogativas sobre ele, dos pioneiros. Assim, saber detalhes sobre a qual clã pertence um território é campo de disputa entre especialistas nesta “geografia histórica” cercada de conhecimentos esotéricos, segredos e perigos (cf. R. Price 1975: 140, 2002 [1983], 1990, 2011). Porém, o clã apenas aparece em disputas com outros clãs hoje em dia em geral por direitos de exploração de recursos naturais como caça, madeira e minério. Dentro de um clã, há fronteiras territoriais entre as matrilinhagens (beoë), que seguem a mesma lógica das fronteiras interclânicas. A matrilinhagem e seu território são subdivididos em matrissegmentos (wósu déndu) e, em tal nível, o passado ao qual é preciso recorrer para entender o recorte do território é mais recente. Por isso, quando tratam da herança de terras de um morto, o grupo mais saliente é o matrissegmento. Ao decidir construir uma casa ou cortar uma roça, irão levar em conta quem já usou aquele espaço, especialmente a última a fazê-lo, tendo prioridade os descendentes imediatos matrilineares. Não havendo pessoas em tal posição interessadas no local, podem clamar o território pessoas da matrilinhagem crescentemente afastadas genealogicamente. Por relações de intimidade, afinidade ou parentesco patrilateral, pessoas de outras matrilinhagens podem obter um terreno que por regra não seria seu, mas isso

226 dificilmente acontece em áreas mais valorizadas, maiores e mais próximas do centro da aldeia. Doações, portanto, são possíveis e, uma vez doado, o terreno passa a pertencer permanentemente a um novo matrissegmento ou matrilinhagem. Empréstimos também ocorrem: uma pessoa pode permitir que outra plante uma roça num terreno que lhe pertence, desde que o restante do matrissegmento anua com a decisão. A princípio, depois de feita a colheita, o mutuante deixa de ter qualquer direito ali. Conflitos acerca de território, na aldeia e em seus arredores, são talvez a arena nas quais mais se enfrentam os saamaka entre si. Uma pessoa tem usufruto de um terreno a princípio até sua morte, se não quiser abrir mão dele. Quando o falecimento ocorrer, sabe-se que disputas podem surgir. Tudo dependerá do bom entendimento entre o morto e suas famílias: idealmente, para decidir quem fica com uma casa ou roça, levam em conta a vontade do morto e as necessidades dos vivos.165 Posse de terra é uma das questões mais espinhosas no que tange os maroons das Guianas. Seriam necessárias muitas páginas para explorá-la devidamente. Friso aqui apenas a relação que a terra cria entre mortos e vivos. No território está contido um laço inextrincável entre todas as pessoas de um clã, matrilinhagem e matrissegmento, vivas e mortas. É por sua mãe, trisavó ou ancestral apical ter plantado arroz num lugar que uma pessoa tem direito a plantar ali. A terra, sempre ligada a histórias e espíritos, serve como âncora desses grupos, dálhes materialidade. Só podemos chamar os segmentos de “grupos corporados” se compreendermos que o território é seu corpo. Como qualquer corpo saamaka, também comporta múltiplas relações, que se estendem para o passado e para o além. Talvez por serem a entidade máxima corporificada pelo território, os clãs não necessitem ser ressaltados e recriados em trocas funerárias (ver nota 156, supra).

A casa do morto como centro dos vivos Ouvi de mais de uma pessoa em Botopási um frase bastante curiosa: “quando eu era criança, a gente torcia para que alguém morresse, para que pudéssemos voltar para gandá [a aldeia] por um tempo”. Reverbera o provérbio que Melville e Frances Herskovits ouviram em 165 Casos complicados são de imóveis na cidade. Pela lei surinamesa, a transmissão de bens é cognática, de modo que os filhos teriam direitos a casas e terrenos de um homem falecido, mas não seus sobrinhos matrilaterais, o que conflita com as regras saamaka. Como não se trata de território ancestral, a matrilinhagem não terá muito como agir se a disputa envolver o sistema jurídico estatal. A prática onomástica patrilateral cada vez mais comum entre os saamaka – um pai “reconhecer” (herken) seus filhos, transmitindo a eles seu sobrenome – reforça ainda mais as pressões à patrilinearidade e à individualização da propriedade. Se um filho tem o sobrenome do pai, dificilmente perderá na justiça a propriedade de um imóvel fora do Alto Suriname.

227 1928: “Ninguém deve morrer, mas o cemitério não deve ficar ocioso” (Herskovits & Herskovits 1971 [1934]: 249). Os etnógrafos admitiram não ter compreendido a frase, creditada ao gaamá Djankusó. As duas frases iluminam-se, se entendermos que apontam para a necessidade de voltar para a aldeia a fim de congregar-se após uma morte. Ninguém quer morrer ou que parentes ou amigos percam a vida, mas quando ocorre uma morte na aldeia é momento de estar com as pessoas, unir-se, ajudar-se. No passado, há mais de 40 anos, quando não havia tantos empregos ou uma economia local desenvolvida, grande parte do tempo das crianças era passado com a mãe e outros parentes em bákasë, na roça, longe da aldeia (e com o pai, se não estava a trabalho na costa). Os que iam a escola vinham à gandá (aldeia) apenas para tal, ou para ir a igreja nos domingos, ou para eventos públicos na aldeia, dentre os quais funerais. Ainda que, supõe-se, não desejassem efetivamente a morte de ninguém específico, uma morte significava uma oportunidade de participar de uma festa com outras pessoas, além de sua família imediata. Como vimos, gandá e bákasë são um par de categorias opostas fundamentais na lógica espacial saamaka. A princípio, gandá é a aldeia, principalmente o seu centro, onde as pessoas vivem; bákasë a floresta, as roças, o cemitério, os espaços não plenamente humanos. A divisão é complexa, opera concentricamente: gandá pode referir à aldeia como um todo, qualquer local onde haja casas habitadas. Oposta a ela, em bákasë estão a floresta e as roças. Se observamos a divisão da aldeia em bairros (písi, lit. “pedaços”), o sentido de gandá especifica-se progressivamente. Quando se está em um local mais distante, mas ainda dentro da aldeia, referem-se à gandá como estando fora dali, nos pontos mais centrais (o que não quer dizer que consideram o local que estão como bákasë, pois estão ainda em um local habitado). Assim sucessivamente em pontos menos periféricos da aldeia, até chegar às áreas próximas ao ancoradouro principal, onde o mato foi primeiro cortado para a construção de casas: ali é indubitavelmente gandá. Aliás, o bairro central da aldeia não possui outro nome além de gandá. Acompanhando o mapa 1, pode-se dizer que quando se está fora da aldeia, as áreas 1 a 8 são gandá; quando se está em 7 ou 8, as áreas 1 a 6 são gandá; quando se está em 4, 5 ou 6, as áreas 1 a 3 são gandá; quando se está em 2 ou 3, apenas 1 é gandá. Na gandá “verdadeira”, isto é, no bairro de Botopási chamado gandá, ficam as principais edificação de uso coletivo: além do principal ancoradouro de barcos (hédi lampéési), que é a porta de entrada aldeia; a kuútu gangása, galpão onde fazem as assembleias gerais; o Beleids- en Bestuurcentrum, casa onde se reúne o conselho da aldeia; a gaán mánjan básu, mangueira sob cuja sombra fazem os anúncios de falecimento e dividem caça

228 grossa. Escola e igreja também ficam próximas. Ali não é o centro geométrico da aldeia, mas o centro humano, a área mais antiga, onde estão enterrados muitos dos óbia preparados há quase 120 anos para proteger Botopási. Os círculos também se expandem no outro sentido. Quando se está na aldeia, dizer que se vai a bákasë pode significar que se vai à roça. Mas quando se está na roça, dizer que se vai a bákasë significa dizer que se vai para a floresta. Nos arredores imediatos da aldeia ficam espaços de roça e capoeira (I, IV, V e VI, no mapa), já considerados bákasë, mas eles opõemse ao entorno mais selvagem, a floresta distante. Especialmente trilhando caminhos a partir de I e VI, o espaço vai abrindo até chegar a regiões muito longínquas cujos caminhos são mais desconhecidos, regiões que podem ser chamadas de gaán bákasë (“grande mato”, “floresta profunda”). Assim como há uma gandá que é “mais gandá”, à medida que se aproxima do centro humano da aldeia, ao afastar-se do mesmo há sempre uma bákasë que é “mais bákasë”, um local mais distante, mais selvagem, menos habitado. A agricultura é de coivara, as mesmas áreas estão sempre se alternando entre floresta e roça. Os saamaka diferenciam capoeira de mata virgem (kapeoë e páu goón), sabendo que a vegetação dos dois tipos de floresta é distinta, bem como as condições de sua utilização, devido à história do local, quem já o utilizou no passado e os espíritos que ali habitam. Ambas são bákasë, mas as matas virgens são mais selvagens, os espíritos delas (especialmente apukú, divindades da floresta) são provavelmente menos conhecidos pelos humanos, mais perigosos. Para complicar mais, outros espaços que não a aldeia possuem também suas gandá, seus centros, locais onde as pessoas vivem ou estão. Numa festa, a pista de dança onde está a maioria das pessoas é gandá naquele momento (mas os locais no entorno não são bákasë). Uma casa fixa na roça de alguém, mesmo que distante quilômetros da aldeia (e portanto em bákasë), é considerada gandá daquela região, da roça e área de caça utilizada pela pessoa e sua família imediata – fora dali, é “mais” bákasë. Ou seja, chamam a casa de Fulano na roça de “Fulano koondë gandá” (“centro da aldeia de Fulano”) em oposição ao mato que a cerca. Quando fazem um acampamento (kámpu) improvisado no mato para dormir durante uma expedição de caça, sair dele é ir a bákasë. Pequenos “centros” mais ou menos temporários são gandá em comparação a locais mais selvagens, nessa lógica concêntrica e diametral. O par gandá / bákasë evoca socialidades – prazeres, problemas e relações – distintas. Gandá, território dos seres humanos, é o local das festas, da união de pessoas e linhagens, dos assuntos públicos. Mas é também o local da fofoca, da cerimônia, de estar constantemente preocupado com as aparências, com o que os outros vão dizer, com feitiçaria. Mesmo dentro

229 de casa, pela proximidade das construções, uns podem ouvir o que os outros estão fazendo, há certa paranoia rondando gandá. Inversamente, apenas convidados frequentam a roça de uma pessoa, assim, bákasë é o local onde podem estar entre os seus, vestindo o que bem quiserem, falando sobre quaisquer assuntos abertamente, podem fazer seus óbia livremente. Por outro lado, bákasë possui perigos desconhecidos, animais ferozes e peçonhentos, espíritos misteriosos, locais assombrados. O ambiente mais doméstico, mais íntimo, a roça, é cercado pelo ambiente mais selvagem, a floresta, e faz parte dela. Gandá denota humanos vivos, entre si, formando unidades maiores, enquanto bákasë denota os humanos dispersos, em grupos menores, em relações mais diretas com os outros não humanos. Variações pendulares e sazonais entre os dois tipos de “territórios emocionais” são saudáveis e necessárias para a vida das pessoas e da aldeia. Ficar muito tempo em bákasë, como os relatos da infância de meus interlocutores demonstram, é ficar um tanto quanto isolado, por vezes entediado, e sob vários riscos. Após muito tempo em gandá, boa parte das pessoas sente a necessidade de fugir um pouco dos falatórios, das intrigas, da agitação, e quer passar um período mais bucólico caçando, plantando, colhendo frutos ou simplesmente relaxando em bákasë. Nos períodos de plantio e preparo do solo, quando todos estão na roça, a aldeia fica “fria”, desanimada, chata. Mas a roça não pode ser deixada muito tempo de lado, demanda cuidados constantes. Por isso, aliás, quem tem emprego fixo na aldeia enfrenta dificuldades em equilibrar seu tempo entre o ofício que está em gandá e traz dinheiro, e o trabalho da roça e do mato, que provém itens de subsistência. As duas formas de trabalho, como as duas formas socialidade, são codependentes. Assim podemos compreender a vontade que tinham, na infância, de que “alguém morresse, para que pudéssemos voltar para gandá por um tempo”. Estar em gandá, trocando, bebendo, comendo, cantando juntos, festejando, é cortar os isolamentos, é entregar-se à vida pública e seus vínculos. Estar copiosamente entre si, não plenamente entre iguais, mas entre humanos, entre vivos. A aldeia é grande, tem cerca de quinhentos habitantes, vários bairros. Nem todas as suas áreas são visitadas por todas as pessoas frequentemente. Mas durante a semana entre a morte e o aitidei – e mesmo antes, quando reúnem-se na “casa do doente” (suwáki wósu) para acompanhar a agonia de um moribundo – a aldeia concentra-se. Quando há uma tenda de pé na aldeia, onde foram ou estão sendo celebrados ritos fúnebres, cultos religiosos podem não ser celebrados na igreja, os basiá não conclamarão para a grande mangueira, os kuútu não ocorrerão nos galpões de reunião: chamarão as pessoas para a porta da casa do morto, mesmo

230 que seja num dos bairros mais afastados. Pode parecer estranho que em kuútu funerários tratem de tópicos cotidianos, como problemas de eletricidade, de uso das construções coletivas etc. Mas faz sentido se compreendemos que, durante tal período, a casa do morto parece ser mais gandá que qualquer outro lugar da aldeia. É na casa do morto que vão tratar dos temas que tangem a vida em comum das pessoas, pois é ali que as pessoas devem estar. O centro humano da aldeia se desloca para a casa do falecido. isso significa, por um lado, que o caráter humano daquele espaço onde as pessoas estão reunidas é reforçado, em contraposição ao cemitério em bákasë, onde os mortos reúnem-se e fazem seus kuútu. Mais gente, mais festa, mais alegria, mais comida, bebida e presentes circulando significa menos perigo de fantasmas. Significa também menos perigo de desagregação e desunião entre as pessoas no momento em que vínculos estão sendo redesenhados. A festa, assim, é bastante simbólica e bastante prática ao gerar união e conforto. A morte funciona aqui reativamente como uma força centrípeta. Reativamente porque parte de um acontecimento potencialmente desagregador, o falecimento, para – por meio de falas públicas, trocas, comensalidade, música – gerar uma potência coletivizante necessária para pensar grupos, pessoas e aldeias enquanto unidades capazes de união, de amor, de ação conjunta. Assim é possível entender a insistência dos habitantes de Botopási para que sejam enterradas no cemitério da aldeia as “pessoas de Botopási”, como vimos nas polêmicas acerca da morte de Soola (cap. 1). E a insistência para que os que moram longe venham sempre em funerais de amigos e parentes, mesmo que estejam distantes há anos. Hoje em dia, a unidade da aldeia deixa de estar evidente no cotidiano não apenas pela dispersão das pessoas por bákasë, mas também pela diáspora espalhada pela costa das Guianas e pela Europa. Não torcem mais para que alguém morra para ir à gandá, mas torcem para que, quando alguém morrer, todos venham para gandá. Pois a unidade das aldeias (como outras unidades) é refeita e reconfigurada em gandá no momento dos funerais. A mudança de ritmo que se nota na aldeia entre a semana que segue uma morte e dias normais indicam complementaridade, como há uma complementaridade entre gandá e bákasë, como há entre a economia da dádiva e economia monetária e entre a vida dentro e fora dos limites de gandá (seja para o mato e a roça ou para a costa e a Europa). No momento do funeral, o foco está no lado que gera coletivização, territorialização, união. Mas o movimento jamais exclui o lado oposto que o complementa. Coletivizar sempre gera um “subproduto” individuante. O esforço de união em vários níveis (pessoa, linhagem, aldeia, tribo) reforça cada unidade coletivizando-a, tornando unitário seu conjunto heteróclito, mas

231 também individuando-a frente às outras unidades que lhes são opostas (outras pessoas, outras linhagens, outras aldeias, outras tribos). Uma outra complementaridade sobreposta a essas todas é particularmente importante. O fato de que, enquanto maneiras de gerar “consolo” e “união”, as trocas estejam em pé de igualdade com outros atos (como comer, cantar, jogar) indica que a dádiva ritualizada não paira sobre a sociedade como uma força externa que cria coesão interna. Sem dúvidas, o “amarrar ventres” possui uma centralidade estética, é um ato destacado, que tem efeitos específicos

importantes,

poéticos

e

práticos,

mas

outras

atividades

possuem

complementarmente a mesma capacidade, e portanto a mesma importância. Devem vir em conjunto. Não adianta trocar sem comer, beber, dançar, flertar, rezar. Não adianta solenidade sem riso. Não adianta vivos sem mortos. Nos tecidos que são trocados estão encapsuladas relações com o mundo externo não saamaka, e também relações entre as pessoas saamaka que os trocam. Nas comidas, estão encapsuladas todas as relações que definem as atividades que possibilitam sua produção, compra e preparo. Nos jogos, nas músicas, tantas outras outras relações, para além e para dentro dos limites da aldeia. Relações que estão se dando ali, sob a tenda, mas que são frutos de outras relações e que projetam novas relações para o futuro. Toda a vida sob a tenda, enquanto conjunto dinâmico, é necessária para que toda a vida fora dela ocorra, em todos os conjuntos dinâmicos.

232

233

Capítulo 5: Espíritos vingativos e padrinhos espirituais Em saamaka muitas expressões idiomáticas usam os termos “morrer” ou “matar”. Relatando algum problema corriqueiro, digamos quando a chuva faz a viagem de barco turbulenta, ou o sol forte deixa o trabalho da roça mais pesado, dizem “quase morri!” (“bijna mi deodë!”). Antecipando grandes gastos, para construir uma casa, por exemplo, exclamam “já morri!” (“mi deodë kaa!”). Quando alguém demora a pagar algo que deve a um amigo, o credor pode dizer “você está me matando” (“i tá kíi mi!”). À primeira vista, pareciam-me apenas expressões de desconforto. Nada muito importante etnograficamente. A relevância das expressões ocorreu-me quando conversei com duas pessoas sobre os Dez Mandamentos. Bem diferentes entre si, ambas disseram-me coisas muito parecidas sobre o assunto: uma senhora de meia idade convertida ao pentecostalismo há 18 anos, que leva muito a sério as regras de sua denominação, e um homem de 45 anos, criado e batizado na igreja moraviana, que não frequenta os cultos dominicais e lida bastante com óbia. Eles afirmaram que, dos mandamentos, sem dúvidas o mais importante é o sexto, “não matarás”, pois subsome vários outros: “não furtarás”, “não adulterarás”, “não dirás falso testemunho”, “não cobiçarás coisa alguma do próximo”. Segundo eles, mentir, roubar, trair, invejar são atos que acabam levando à morte. Não instantaneamente, mas, como diz o ditado saamaka, “não é no dia que a folha cai na água que ela apodrece” (“ná i dáka dí uwíi tá kái a wáta a tá pói”). Os efeitos das ações nem sempre são imediatos. Roubar, enganar, tomar a mulher de alguém pode colocar a vítima em dificuldades, pode trazer para sua vida tristeza, pobreza, fome, problemas nos nervos e, a longo prazo, levar à morte. Uma visão expandida de assassinato opera aqui, pois há uma versão expandida de etiologia, de causas e consequências que levam a um infortúnio e a uma morte. Mesmo assim, um assassinato direto é sempre mais grave. Para um saamaka, matar é o pior pecado (zoondu) que se pode cometer. Para os ndyuka isso é um pouco diferente: praticar feitiçaria é o “grau zero da imoralidade”166, é o ato humano mais execrável. Não surpreende portanto que entre os ndyuka exista toda uma história de movimentos antifeitiçaria (cf. Thoden van Velzen & Wetering, 1988, 2004). Já em Botopási e, creio, em saamaka em geral, o grau zero de imoralidade é o assassinato direto. Há em saamaka feitiços (wísi) que podem levar à morte. 166 Conforme afirma Stuart Strange (comunicação pessoal, 2013). Entre os ndyuka, o assassinato e a feitiçaria podem ser vistos como estando em pé de igualdade, pois ambos geram kúnu. Parece-me que o temor ao feitiço é uma característica mais marcante entre os ndyuka do que entre os saamaka. Sobre a tradução de “zoondu” por “pecado”, ver nota 244, capítulo 7.

234 Mesmo assim, dizem que matar alguém diretamente, com um tiro ou uma faca, é pior do que matar por meio de feitiços, pois um assassinato nesses moldes é imediato, violento, enquanto que um assassinato por feitiço é quase sempre um processo demorado, que pode ser freado magicamente. Ademais, numa morte por feitiço, a identidade do feiticeiro e a causa mortis são sempre dúvidas, ainda mais sendo pouco difundido o uso de oráculos numa aldeia cristã, feito de maneira secreta. Se alguém deu um tiro em alguém há menos dúvidas em relação ao culpado. Continua havendo alguma, verdade, acerca das motivações do assassino: ele pode ter cometido o crime enquanto possuído por uma entidade maléfica ou enquanto enfeitiçado. De qualquer forma, o assassinato direto é o pior crime e a pena para ele é a pior punição humana legítima: o opróbrio, a expulsão perpétua da aldeia e do território saamaka. Nem a família do assassino falará mais com ele, cortará os laços, pois, do contrário, corre o risco de ser vista – por vivos e mortos – como cúmplice do assassino. Digo por vivos e mortos porque sobre o assassino recai um mal ainda pior que a exclusão, a abjeção pública ou qualquer punição humana. É a ira do kúnu, ameaça mais temida até que a feitiçaria. Os kúnu são uma das piores formas de mal ou perigo concebidas. São espíritos vingativos que surgem quando alguém é culpado (diretamente ou indiretamente) pela morte de alguém. O espírito do morto, tomado pelo desejo de vingança, atacará não apenas seu assassino, mas toda sua matrilinhagem (beoë), por toda a eternidade. Infortúnios, doenças e mortes são largamente creditados a ataques de kúnu. Uma ação maldosa ou descuidada que leva a uma morte gera um kúnu cujo objetivo final é a destruição total do beoë de seu provocador. Evitar a criação de novos kúnu e aplacar a ira dos já existentes são preocupações constantes para um saamaka, levando-o a calcular suas ações e a se aproximar de sua família. Afirmações nativas fortes acerca das consequências agregadoras do kúnu fizeram com que surgisse na literatura sobre os povos maroons das Guianas uma tendência a analisar o kúnu dotado de uma capacidade estruturante na vida dessas populações. Tendência nada injustificada, pois sua existência organiza muito da moralidade, estrutura social e parentesco locais, ao demandar unidade das matrilinhagens e comportamentos razoáveis de seus membros. Porém, não devemos imaginar os kúnu como uma “instituição central” capaz de promover coesão social por meio do medo. Princípios e ações agregadoras percorrem também as trocas, o eudemonismo dos ritos fúnebres (como vimos no capítulo anterior), outros espíritos e instituições também contribuem para a criação de laços entre as unidades sociais, fractalmente (como veremos nas próximas páginas).

235 Seis casos de kúnu Comecemos com alguns exemplos de como espíritos vingativos podem operar. Caso 1: Kúnu e loucura Uma mulher de Botopási casou-se com um homem também saamaka e foram morar na Guiana Francesa. Porém, “a maneira como ela estava vivendo não era boa”, dizem pela aldeia: ela arranjou outro homem, roubou dinheiro do ex-marido. O homem foi ficando triste, doente e acabou morrendo. Tornou-se kúnu da matrilinhagem da ex-esposa, tendo expressado sua ira através de um médium que possui. Dois homens em Botopási da matrilinhagem que tem este kúnu são considerados loucos (síki a hédi, lit. “doentes da cabeça”). Muitos afirmam (não publicamente) que o kúnu criado pela mulher, o espírito vingativo de seu ex-marido, é ao menos parcialmente responsável pelo desequilíbrio dos dois homens da família. Um deles foi concebido enquanto sua mãe tinha um caso extramarital. Quando ela engravidou, tinha um amante, e isso pode ser um dos motivos para que tenha vindo a enlouquecer. O rapaz morou muito tempo na cidade, tendo passado dificuldades financeiras e foi lá que desenvolveu os sintomas do que foi diagnosticado por médicos como esquizofrenia, para a qual hoje é medicado. O outro, sobrinho (sísa míi, ZS) da mulher que fez o kúnu, dizem em Botopási que era ladrão (fufúuma), roubava espingardas, comida e objetos pela aldeia, foi muito amaldiçoado pelo que fez. Temendo represálias, ele fugiu para o mato, onde viveu sozinho e isolado durante um tempo, alimentando-se de coisas que furtava das roças pelas quais passava, como frutos e animais, inclusive cobras, cuja carne é considerada interdita. Vários motivos influem na loucura desses dois homens: atos reprováveis de suas mães e pais, problemas na cidade, maldições rogadas, comidas tabu e o fato de terem feito coisas ruins contra outras pessoas, o que significa que coisas ruins vão acontecer de volta. Entretanto, o motivo de fundo, para a maioria das pessoas, era o kúnu da família. Uma pessoa que me explicava o caso disse que talvez tenha sido justamente o kúnu quem fez o homem roubar, trazendo-lhe maldições que contribuíram para sua loucura. Em Botopási, há uma matrilinhagem que possui um “síki a hédi deési” (remédio ou óbia para curar loucura), mas me disseram que um óbiama já examinou ambos e chegou à conclusão de que não há nada que possa fazer para ajudá-los, pois são casos de “pecado” (zoondu), isto é, kúnu. Caso 2: Um feitiço desviado Em meados do séc. XX, um reverendo da EBGS veio da cidade morar em Botopási com sua mulher. Era considerado um homem importante, que liderava com maestria cultos e

236 tinha boa relação com a aldeia. Até hoje é lembrado como figura importante do cristianismo local. Um dos homens de quem era próximo na aldeia, por razões que desconheço, foi atacado por feitiços de um terceiro, alguma inimizade sua. Porém, o homem era protegido espiritualmente (tápa) e provavelmente seu inimigo também, de forma que o feitiço não afetou o alvo nem refletiu para a origem: acabou sendo direcionado para o reverendo, que ficou doente (suwáki) em consequência. Foi levado para a cidade para ser tratado, mas acabou falecendo por lá. O morto, curiosamente, tornou-se kúnu da matrilinhagem de seu colega, e não do feiticeiro original. Isso na versão de pessoas da matrilinhagem que tem esse kúnu. Ouvi de outras pessoas uma versão mais curta, afirmando apenas que “fizeram mal” ao ministro por aqui e ele morreu, tornando-se kúnu – o que pode ser uma forma velada de dizer que o colega talvez seja mais diretamente culpado pela morte do clérigo.

Caso 3: Um igarapé assombrado Existe um kúnu antigo que marca um território adjacente à Debikeo Pási, a estrada que vai de Botopási até a policlínica. Não consegui descobrir muito sobre a história, a maioria dos meus interlocutores ou desconhece detalhes ou não os quis compartilhá-los. Ainda na época da escravidão, contaram, assassinaram uma pessoa e enterraram junto às pedras da boca do igarapé que corre ali. O fato ocorreu, portanto, antes de 1863, antes da fundação de Botopási, e persiste afetando o local e as pessoas. Os membros da matrilinhagem do culpado pela morte, i.e., da matrilinhagem que tem o kúnu, consideram todo entorno como interdito, é local tabu (tjína) para eles, que evitam a todo custo passar por lá. Até hoje uma pessoa da linhagem é médium do kúnu. Membros de outra matrilinhagem (dona do território), já fizeram roças nas cercanias, mas, mesmo o kúnu não sendo relacionado a eles, evitam atividades muito perto das pedras onde o morto foi enterrado. Certa vez um homem que cortou uma roça por ali ficou doente, sem sequer ter chegado próximo do igarapé, e creditou-se a doença ao perigo (hógi) que ronda o local. Pessoas que tampouco são da matrilinhagem que tem o kúnu já viram “espíritos feios” (taku jejé) por lá. Há quem insista em usar o local, afirmando que, se o kúnu não é seu, e se você não for lá fazer nada errado, nada acontecerá com você. Mas a área é pouco frequentada, especialmente sendo tão próxima de Botopási e portanto muito valiosa.

Caso 4: Uma morte não resolvida Há pouco tempo, morreu um homem de cerca de 40 anos em Botopási. Ele começou a ser acometido por terríveis dores nas costas que em poucos meses o impossibilitaram de

237 trabalhar e logo o deixaram preso à sua rede. Foi medicado com fortes analgésicos, mas de nada adiantou, morreu em semanas. Ele trabalhava construindo barcos, uma atividade pesada que certamente contribuiu para o problema nas costas. Mas desconfiam que ele tivesse sido enfeitiçado. Pouco antes de sua morte, o homem teria encontrado um maço de amooönma167 no forro de sua casa, indício fortíssimo de feitiço. Ele possuía uma rivalidade com um homem de sua matrilinhagem acerca do direito de uso de uma casa e também acerca de uma mulher, de modo que as principais suspeitas recaíram sob a desavença. Para descobrir se a morte era ou não devida ao feitiço deste seu parente (o que faria o morto virar kúnu de sua própria matrilinhagem), a melhor maneira seria esperar o espírito vingativo se manifestar através de possessão. Algo similar ocorreu, mas o falecido não “veio à cabeça” de um médium ainda propriamente como kúnu, buscando espiação por sua morte e demonstrando sua ira. Foi considerada uma possessão por kootösëmbë (“gente fria”, fantasma), na qual o fantasma falou muitas coisas desconexas, mencionou muitos nomes. Durante a possessão, relacionou sua morte a uma briga entre seu irmão mais novo (pikí baáa) e sua irmã classificatória (sísa) ocorrida na porta da casa de um antigo kúnu da matrilinhagem. Uma briga entre familiares ajuda tais espíritos a se vingarem, o que pode ser ainda pior se ocorrer num espaço ligado ao kúnu. Apesar da possessão, pelo que ouvi do caso, o morto ainda não havia dado seu veredito. Um homem que a presenciou aventava a possibilidade de que o morto estivesse querendo confundir as pessoas, ou de que o feitiço que o matou estivesse ainda agindo, de forma a confundir o próprio morto. Temiam que toda a confusão, tantas acusações talvez infundadas, gerassem brigas que poderiam trazer ainda mais um kúnu para a aldeia.

Caso 5: Suicídios possivelmente conectados Kwani, jovem de Botopási que morava em Paramaribo, morreu na cidade em 2011. Após uma desilusão amorosa, suicidou-se tomando gramoxone168. Por tratar-se da morte de um jovem forte, bonito e bem-humorado, de seus 30 anos, o caso gerou muita especulação. A versão mais simples que corria é que outro homem queria sua mulher e fez um feitiço para

167 Uma das plantas consideradas mais perigosas pelo saamaka, um dos ingredientes mais famosos em feitiços para atacar inimigos. Nada cresce em torno dela, ela domina completamente a área que a cerca e é difícil de ser retirada do solo. Daí seu nome, amooönma, algo como “que é mais que uma pessoa”. Há uma versão masculina (Dicranopteria flexuosa, samambaia-de-barranco) e uma feminina (Lycopodiella cernua, musgodo-mato) (cf. Andel & Ruysschaert 2011: 488, 493-4). 168 Gramoxone ou paraquat é um herbicida muito usado no Suriname e por todo o mundo. Por seu baixo preço, fácil acesso, alta toxicidade e inexistência de antídotos, é uma das substâncias mais usadas no terceiro mundo como veneno em suicídios (PAN Germany 2003). Entre os maroons, onde suicídios não são incomuns, o gramoxone parece ter substituído o uso de venenos vegetais “artesanais” (Bilby 1990: 616n46).

238 roubá-la, que funcionou: Kwani perdeu a mulher e acabou se matando. Se assim foi, Kwani se tornaria kúnu da matrilinhagem do homem que o enfeitiçou. Circulavam versões mais complexas. Alguns meses atrás, Tony, outro homem de Botopási, também se suicidara tomando gramoxone pelo mesmo motivo, sua mulher o deixara. Acontece que a mulher que o abandonou, culpada por sua morte, era da mesma matrilinhagem de Kwani, indicando que Tony teria se tornado kúnu desta família e o atacado. Kwani seria vítima não apenas de um feitiço e uma desilusão amorosa, mas de um kúnu que fez com que esses males o afetassem. A similitude entre a forma das mortes certamente inspirou tal versão, corrobora-a mas não a confirma. Outra versão vai ainda mais a fundo. A mãe da mulher de Tony seria culpada pela morte de seu marido, Dondo, que se tornou kúnu do beoë delas. Dondo, atacando a matrilinhagem da esposa, teria feito com que os problemas entre Tony e sua mulher ocorressem, culpando a última pela morte desse e trazendo mais um kúnu à linhagem. Por sua vez, Tony, agindo como espírito vingativo, teria feito a história se repetir e Kwani se suicidar, tornando-se ainda mais um kúnu da mesma linhagem. Uma espécie de recursividade da vingança: a primeira mulher causa a morte de Dondo, que ataca a linhagem, fazendo com que a segunda mulher seja culpada pela morte de Tony, gerando novo kúnu que ataca a matrilinhagem e faz com que a terceira mulher seja culpada pela morte de Kwani, terceiro kúnu. A princípio, mesmo que cada kúnu seja a causa última da morte do outro (Dondo da de Tony, Tony da de Kwani), ele é apenas indiretamente responsável pela morte, o espírito vingativo criado não atingirá a matrilinhagem do kúnu mais antigo, apenas da mulher que efetivamente foi o pivô do acontecimento que levou à morte.

Caso 6: Um cadáver no rio Em maio de 2013, encontraram no rio o corpo de Moiti, um homem de Malobí, aldeia à montante de Botopási. No dia anterior, já falavam de seu desaparecimento: ele participava de uma vigília em Gaánsééi, aldeia próxima à sua, no fim da qual teria dito que ia ao rio banhar-se, e sumiu. Seu telefone celular e seu maço de cigarros ficaram na beira d'água, indicando que provavelmente entrou no rio bêbado e afogou-se. A notícia foi recebida em Botopási com certo choque, pois Moiti era jovem e a morte foi trágica, um afogamento, encaixando-se na categoria de “morto feio”. As mulheres não o conheciam bem, mas muitos homens sabiam quem ele era, tinham lembranças de que costumava vir a Botopási quando havia algum morto de sua aldeia sendo transportado de avião. Gostava de “carregar o morto”

239 (tjá deodë)169, e sempre que vinha, visitava os bares da aldeia, pagava cerveja e rum com energético para os presentes. O morto em cuja vigília Moiti estava na noite trágica chamava-se Sango, havia falecido cerca de duas semanas antes, em condições misteriosas. Conversas truncadas diziam que, após uma briga conjugal séria, Sango tomou uma dose alta de remédios para nervos (zenuw)170 misturados com destilados e não mais acordou. Alguns diziam que a briga teria começado porque a esposa de Sango teria lido papéis ou mensagens de celular dele, outros porque ele descobriu que estava sendo traído e roubado pela mulher. Em todo caso, é possível, mas não certo, que tenha sido um suicídio. Uma teoria que ouvi sendo desenvolvida coletivamente, por três pessoas que falavam sobre Moiti, era que sua morte seria “kúnu ku kúnu” (“espírito vingativo com espírito vingativo”) ou “kúnu a kúnu líba” (“espírito vingativo sobre espírito vingativo”). Ou seja, a morte de Sango gerou um espírito vingativo na matrilinhagem de sua mulher, pois, se a briga do casal levou-o à morte, ela seria responsável pela morte dele. Um cônjuge não “viver bem” com o outro, enganá-lo ou maltratá-lo, pode ser suficiente para que o morto enganado torne-se espírito vingativo e ataque a matrilinhagem do enganador. Era possível, concluíram meus interlocutores, mesmo sem conhecer a história profundamente, que o espírito vingativo de Sango tenha matado Moiti, parente matrilateral da viúva. Ele não deveria ter ido ao funeral de um kúnu de sua família. Seria possível também, avançou um dos presentes na conversa, que o kúnu do recémfalecido estivesse agindo em conjunto com outros. O problema, dizia ele, é que, nos tempos atuais de progresso, desenvolvimento, desapego às tradições, quando o kúnu fica “velho”, pode ocorrer que a família a quem aflige esqueça-se dele. Eles então matam alguém para que voltem a dar-lhe a atenção devida. Se seguirem o ignorando, matará mais, até que reparem seu

169 Botopási tem uma das poucas pistas de pouso do rio, não é raro que corpos de falecidos de outras aldeias cheguem de avião. Horas antes da vinda da aeronave, um grupo da aldeia do morto chega de barco. Posicionam-se nas proximidades da pista de pouso, talvez na lojinha que fica há poucos metros dela, e põem-se a esperar. Algumas pessoas de Botopási, com amiúde um kabiténi, vêm ciceronear, permanecem conversando com os visitantes. No momento em que o avião pousa, as mulheres da aldeia do morto – com roupa de luto – começam a chorar alto. Quando o caixão desce da aeronave, o choro ritual se intensifica. Os homens erguem o caixão, revesando-se, e com rapidez o carregam até o ancoradouro onde deixaram seus barcos, todos os visitantes os seguindo em cortejo. O choro continua quando colocam o esquife em um dos barcos e seguem seu caminho, tocando, em tambores os toques que servem para comunicar com os espíritos. Antigamente, era uma regra que o caixão fizesse uma parada num dos pontos de reunião pública da aldeia (kuútu gangása) e ali as pessoas de Botopási rezassem para Deus e para o morto para que tudo desse certo, para que o morto não trouxesse problemas para a aldeia em sua passagem. O costume caiu em desuso. 170 Muito provavelmente Diazepam, mais conhecido no Suriname como Valium, onde é receitado com grande frequência para problemas de ansiedade, insônia e outros.

240 erro. Os mortos pelo kúnu – possivelmente o caso de Moiti – virariam kúnu também, e poderiam agir em conjunto, com o objetivo de acabar com uma família.

Origens dos espíritos vingativos A lógica pelo meio da qual os saamaka interpretam a causalidade das ações humanas leva ao que chamei de visão expandida de assassinato, isto é, a perspectiva de que toda espécie de mal causado a um terceiro pode levar à morte, podendo ser considerado um homicídio indireto. Partindo dessa ideia, há inúmeros tipos de situação a partir das quais kúnu podem se gerados: acidentes, assassinatos, feitiços, suicídios, brigas conjugais... Além disso, kúnu são também agentes, de forma que seus atos também podem ter como consequência a criação de outros espíritos vingativos. Sendo causa e consequência, boa parte da gama dos problemas que enfrentam os saamaka pode ser atribuída aos kúnu, e boa parte dos conflitos que se desenham na vida das pessoas é possível fonte de novos espíritos vingativos. Entender as ações dos kúnu é um desafio não apenas para o antropólogo, mas também para os nativos, posto que, sendo mortos, não são propriamente humanos, a lógica por trás de suas ações não é transparente para os que vivem. Ocorre muito debate acerca de cada atuação específica de espírito vingativo. O leitor terá percebido que boa parte dos casos apresentados acima traz um tom de incerteza, especulação, aparecem amiúde versões diversas para os acontecimentos. Várias das possibilidades que vimos acima não são muito mais que fofocas. Ainda assim, demonstram as maneiras como as pessoas de Botopási analisam seus infortúnios. Notamos alguns temas recorrentes. Vários casos de kúnu envolvem problemas conjugais, particularmente aptos a se tornarem temas de alcovitagem. Términos de relacionamentos são quase sempre momentos altamente tensos, sobre os quais é difícil saber precisamente o que aconteceu estando de fora. Daí as fofocas. Situações usuais de disputa, colocam pessoas contra pessoas, grupos contra grupos, causam mágoas e despertam rancores, por isso são combustíveis comuns para a criação de kúnu. Outro tema recorrente é o suicídio. Provocar a própria morte sabendo da possibilidade de se tornar um kúnu é uma forma frequente de desforra, em saamaka. Quando alguém se mata, é porque está passando por um período de sofrimento intenso e, em meio à dor, pode pensar em vingança contra quem lhe trouxe miséria. Não há vingança maior do que criar um kúnu na linhagem de seu desafeto, posto que as capacidades destrutivas de um espírito vingativo são maiores do que as de um ser humano. Em Botopási há quem argumente que o suicídio é um pecado, que “Deus não gosta de suicidas”, mas ele não deixa de acontecer, nem

241 de ser uma ameaça. O suicida não se torna kúnu de sua própria linhagem, mas da do culpado pelo óbito, de quem causou o mal que levou ao suicídio. Similarmente, ouvi um homem que pensava ser alvo de feitiçaria e temia estar diante da morte, conjurar com ódio aquele que acreditava estar causando os problemas dos quais sofria. Já procurara diversos tratamentos com óbia, que não pareciam funcionar. Num momento de desespero, disse que já não se importava mais, não “quebraria mais a cabeça” (boóko mi hédi) com isso, se morresse hoje ou amanhã, que morresse, não queria mais saber. Com ódio, exclamou: “quando eu morrer, morri, e aí vou matar todas as 'pessoas dele' (“té mi deodë, nooö mi deodë, nooö mi o kíi híi sëmbë fëeon ”). Não pretendia se matar nem queria morrer, mas consolava sua raiva com a certeza de que, se morresse, viraria kúnu e destruiria todas as pessoas da linhagem daquele que o fazia mal. Conflitos interpessoais são os problemas mais relevantes dos quais surgem os kúnu, quer envolvam feitiçaria, suicídio, assassinatos ou outros atos violentos. Pessoas que morreram com dívidas sérias a serem cobradas de alguém, ou que morreram com uma rusga muito grande contra outra família podem se tornar kúnu mesmo que a dívida ou a rusga não sejam imediatamente relacionadas com a morte. Conforme afirma Richard Price: Na teoria saamaka, quase qualquer ofensa interpessoal pode levar à criação de um “kúnu de fantasma humano” […]. Enquanto a criação de um kúnu é quase automática para alguns crimes, como assassinato, as consequências sobrenaturais de ofensas menores dependem na prática da boa vontade de ambas as partes e de sua relação política atual. Até mesmo o roubo de um canivete, por exemplo, pode levar à criação de um kúnu, mas apenas quando há animosidade entre os dois grupos envolvidos e o ofensor e seus parentes não conseguem compensar apropriadamente a parte prejudicada antes de sua morte (R. Price 1973: 88).

Entre tantas possibilidades, há kúnu mais e menos poderosos, mais e menos perigosos. A capacidade de gerar infortúnio de um espírito vingativo está relacionada com o poder da pessoa que morreu e com a gravidade do crime cometido contra ele. Kúnu derivados de tragédias mais sérias (assassinatos dentro de uma matrilinhagem, por exemplo) tendem a ser mais destrutivos. Muitas ações descuidadas ou mal-intencionadas podem gerar morte, mas uma ação direta, um crime mais violento (como um tiro à queima roupa) faz um kúnu mais irado e portanto mais perigoso. Além disso, o espírito vingativo de um falecido mais poderoso (mais velho, que sabe mais óbia, etc.) é também mais potente, por manter após a morte parte das características que tinha em vida, como experiência, influência, etc. Isso explica a pouca importância relativa que é dada, em Botopási, aos kúnu provenientes de animais.

242 Kúnu de animais e outros espíritos Existe a possibilidade de animais virarem kúnu.171 Em Botopási são assunto menos frequentes que espíritos de ex-humanos vingativos, mas ocorrem. Especialmente cobras: quando se põe fogo em uma roça e morre uma jiboia (vodú), ela pode virar um kúnu da matrilinhagem de quem a matou. Outras cobras constritoras, como a jiboia, possuem alma: a sucuri (gaán tatai ou bóma) e a gaán sëmbë u mátu172 também podem virar espíritos vingativos. Quando questionei um grupo de homens sobre quais animais poderiam virar kúnu, começaram por citar essas cobras. Depois acrescentaram cães (dágu), gatos (pusipúsi), onças (pëndeombéti), urubu-rei (gaamá tingifóo), jacaré (káima)... Disseram ainda que árvores também podem virar kúnu, em especial as que consideram ser moradas de apukú (espíritos da floresta), como samaúma (kankantíi), maior árvore da floresta e apuí (katu), uma árvore parasita. Similarmente, pedras no mato e akatási (um tipo de cupinzeiro que solta espuma) podem ser moradas de apukú, e queimá-los ou golpeá-los pode enfurecer o espírito e gerar um kúnu. Por fim, afirmaram que outras árvores podem virar kúnu, se tiverem “muita coisa em cima delas”, isto é, se tiverem espíritos vivendo nelas. Enquanto possibilidade lógica, qualquer animal, árvore ou ente que tiver alma (akáa) pode tornar-se espírito vingativo, mas na prática não é isto que acontece. Há certa ambiguidade a propósito da relação entre parte desses seres e os kúnu. Por exemplo, onças: quando estimulados, saamaka podem ver o espírito de uma onça morta como um potencial kúnu, não parecem pensá-los assim geralmente. Além disso, não é qualquer possibilidade de kúnu que mete medo. Muitas pessoas dizem que matariam qualquer animal que os tivesse prejudicando. Se uma jiboia estiver indo à roça ou a casa de alguém, pode-se tentar conversar com ela (pois compreende a linguagem humana) e tirar ela de lá. Se ela continuar voltando, a pessoa deve chamar um óbiama que possua a fórmula adequada para espantar a cobra do local. Se nada der certo, podem vir a matar a jiboia. O mesmo vale para os jacarés: especialmente os pequenos e pintados, que habitam igarapés, os jacarés-coroa (boongó), são considerados perigosos, não devem ser mortos e sua carne não é adequada para o consumo humano. Mas há pessoas que dizem já ter matado vários, e que os comeriam caso não tivessem outra opção. O mesmo vale para a kankantíi, árvore imponente considerada morada 171 Green (1978: 256-62) afirma que, no caso matawai, kúnu de humanos mortos são bastante raros. R. Price (1973: 89) afirma que, na matrilinhagem da qual era mais próximo, nos anos 1960, kúnu de jiboias eram mais comuns que os de humanos. 172 Literalmente “velho do mato”. Há entre os saamaka dúvidas acerca desta cobra. Alguns dizem que se trata de uma sucuri muito velha, outros que é uma espécie diferente de constritora. São extremamente raras de serem vistas, e são muito poderosas, capazes de hipnotizar suas presas. Seu calibre, dizem, chega a ser como o de um barril.

243 de apukú. Não se deve derrubá-las quando são adultas (quando seu tronco já não tem mais espinhos), mas há muitos que dizem que o fariam sem problema. A efetividade da ação de tais espíritos – enquanto kúnu ou outra forma de agência – depende sobretudo de dois fatores: a crença ou não neles, seu poder (kaakíti). Voltaremos ao problema da crença no capítulo 7. Os saamaka caçam, portanto matar animais é algo bastante comum, mas apenas se deve fazê-lo em autodefesa ou para se alimentar. É costume, antes e depois da caça, fazer uma prece para a divindade local (gádu a kamían), pedindo permissão pela vida que será tirada e explicando seus motivos para fazê-lo. A ideia geral é que bichos “de comer” não viram kúnu, a não ser que se mate eles sem motivo, aos montes, e não se faça uso da carne deles. Ouvi certa vez um ancião dizer, sem tanta convicção, que matar animais como ratos e formigas (que não se come) também pode ser forma de “colher kúnu” (píi kúnu). Mas isso dificilmente assustaria alguém, em primeiro lugar porque parece ser uma possibilidade rara, em segundo porque tais animais são pouco poderosos, dificilmente poderiam fazer um mal grave a alguém, mesmo sob a forma de kúnu. Derrubar árvores carregadas de frutas comestíveis é também considerado pecado (zoondu), mas não se imaginam kúnu de árvores frutíferas. Considera-se que apenas grandes predadores possuem almas, e tais animais não são considerados comestíveis, de modo que matá-los, quando não for por autodefesa, é injustificado. São esses animais cuja morte gera kúnu mais frequentemente. De qualquer modo, espíritos vingativos de cobras constritoras são menos temidos que espíritos vingativos de humanos. Em Botopási dizem que humanos são a criação em imagem e semelhança de Deus, logo são sempre mais poderosos, têm mais força (kaakíti) que os animais. Mais potência de agência, poderíamos dizer. Assim, seus kúnu são mais frequentes e perigosos. Certa vez, perguntei a um amigo se o komatí (espírito do jaguar) pode ser considerado um tipo de kúnu. Ele pensou bem e disse que sim, pois, da mesma maneira que os espíritos vingativos, se você não seguir as regras do komatí (“hói i weoti fëeon”), ele prejudica você e sua família, mesmo que em geral sua agência tenda a ser benéfica para aqueles a quem possuem. Mas minha pergunta não fazia muito sentido para meu amigo. Os kúnu permanecem para sempre assombrando uma matrilinhagem, enquanto que os komatí, que são considerados tipos de óbia, quais receitas mágicas, além de benéficos, nem sempre são transmitidos matrilateralmente. Certos kúnu são considerados possibilidades lógicas pelos meus informantes, isto é, eles afirmam que um kúnu originado de determinado ser vivo pode existir; outros efetivamente existem ou existiram, meus informantes já viram, ouviram, sentiram sua agência

244 ou conhecem relatos factíveis sobre eles. Onças, animais comestíveis e mesmo ratos poderiam vir a ser kúnu, mas na prática não são. Por outro lado, para além dos kúnu humanos, aparecem com alguma frequência kúnu de jiboias, sucuris, espíritos da floresta (apukú) e jacarés. Isso demonstra que a questão não é tipológica, de classes de entidades, mas de formas de agência, que nem sempre podem ser distinguidas com tanta clareza uma da outra. Ouvi mais de uma vez discussões sobre a relação entre kúnu e bakúlu. Esses pequenos demônios comprados na costa para conseguir dinheiro, quando não são bem tratados (quando não “seguem as regras” deles) atingem não apenas seu possuidor, mas toda sua matrilinhagem. Pela relação com o mamá beoë, há quem considere o bakúlu um tipo de kúnu. Ouvi até mesmo uma especulação etimológica, um homem que dizia que a palavra original seria “bakúnu”, mas que teria sido corrompida ao longo do tempo. Nem todos concordavam: uns diziam que os kúnu são um mal típico dos saamaka, enquanto os bakúlu são um tipo de mal dos kulí (indo-surinameses, que vendem os demônios, dizem em saamaka). Outros achavam que são de fato dois nomes para a mesma coisa, e que os kulí só vendiam os mais perigosos, ficando com os que causam menos danos para eles. Outros diziam ainda serem coisas completamente distintas, pois o kúnu nunca age fazendo o bem e os bakúlu, apesar de sua má índole e de serem extremamente perigosos, podem conseguir dinheiro, de forma que podem ser pensados como “instrumentos” (woóko soní). Além do mais, argumentava a pessoa que desenvolveu a última teoria, os kúnu muito dificilmente afetam os afins de alguém que está acometido por eles, enquanto os bakúlu fazem-no com mais facilidade. O que para uns aproximava, e para outros distanciava estas duas formas de espírito, kúnu e bakúlu, eram suas formas de agir.173 Se há dúvidas acerca das aproximações entre espíritos vingativos e outros tipos de espíritos, há uma diferença clara entre kúnu, espíritos vingativos, e joóka, fantasmas. Por um lado, ambos são espíritos (jejé) e, mais especificamente, espíritos de pessoas mortas cuja ação sobre os vivos é prioritariamente maléfica. As semelhanças acabam aí, fantasmas não são espíritos vingativos. Mesmo que, dada a visão expandida de causação (e de assassinato), grande parte das mortes possa ser vista como originada numa ação alheia (e portanto um assassinato capaz de gerar kúnu), nem toda morte gera espíritos vingativos. Há casos de mortes não problemáticas, sobretudo na velhice, sem confusões ou demasiado sofrimento, para os quais a possibilidade de kúnu não é aventada. Por outro lado, toda morte de ser humano gera joóka. Toda pessoa que perde a vida deixa de ter alma (akáa) e passa a ter (ou 173 Green (1978: 261) afirma que para os matawai os bakulu também podem ser considerados tios de kúnu.

245 ser) fantasma (joóka). Um morto pode prejudicar uma matrilinhagem de quem é kúnu e ajudar outra com quem não tem nenhuma vingança pendente, agindo, por exemplo, como ancestral (gaánsëmbë). Ele continua gostando de certos vivos, sua ira é direcionada a outros. Só se diz que um morto é kúnu quando ele age vingativamente contra uma linhagem e expressa seu ressentimento violentamente. Um espírito vingativo quase sempre se anuncia, deixa claras suas intenções e demandas. Assim, kúnu e joóka são intimamente relacionados, mas não são a mesma coisa. Não são exatamente dois tipos de entidades separadas, mas dois tipos de ação que podem coexistir em uma mesma pessoa morta. A multiplicidade que compõe cada pessoa, mesmo em vida, explode quando ela morre, posto que o corpo físico, visível, não mais lhe garante relativa unidade. Um morto pode agir quase como se fossem entidades separadas – ora kúnu, ora joóka, ora gaánsëmbë, ora neoséki... Mas apenas quase, porque continuam relacionadas entre si. Quase, pois o que interessa aos vivos não é exatamente a composição ontológica dos mortos, mas suas ações, e portanto a maneira como engajam as pessoas e podem ser engajadas por elas. O kúnu pode ser visto como um modus operandi de certos espíritos. Um aspecto atual do morto, criado pelo desejo de vingança, o rancor e o ressentimento (i)materializados. Em particular, são capazes de agir como kúnu certos seres especialmente poderosos e com tendência à ação maléfica. O cerne da ideia de kúnu – aquilo que primeiro vêm à mente quando usam a palavra – certamente são os espíritos vingativos derivados de pessoas que morreram em decorrência de ações equivocadas de outros humanos. Porque seres humanos são as criaturas mais poderosas concebidas por Deus e porque de suas ações deriva grande parte do mal do mundo. Grandes cobras constritoras são também relevantes e podem até mesmo ser o kúnu principal de uma matrilinhagem (gaán kúnu). A jiboia é considerada por muitos como a espécie de cobra que falou com Adão e Eva no Paraíso, sob a influência do diabo, fazendo-os cair em pecado. As cobras não são más, em si, mas são muito perigosas (hógi), algo mais relevante. São mais perigosas ainda que os jaguares, por sua furtividade e relativa imprevisibilidade – há muito mais vítimas de ataques de cobras do que de onças. Apúku também são seres bastante imprevisíveis, muitos deles possuem má índole, daí sua capacidade de serem kúnu. Igualmente considera-se a aproximação entre kúnu e bakúlu pela violência dos ataques de ambos e pelo direcionamento matrilateral de sua agência. Por outro lado, os komatí, espíritos relacionados ao jaguar, não costumam ser aproximados de kúnu pelo fato de serem entidades sobretudo benéficas, que ajudam os vivos. Por isso são óbia: forças

246 espirituais capazes de serem manipuladas para o bem dos seres humanos. Por sua indomabilidade e perniciosidade, os kúnu não são vistos como relacionados aos óbia.

Ações e reações O kúnu pode ser visto como uma particular forma de agência post mortem de certas entidades (humanos, cobras, apukú). Humanos sentem suas ações de duas formas: nos eventos trágicos que causam, infortúnios das mais variada espécie (a partir dos quais a agência é inferida); e por meio das possessões, nas quais vontades dos espíritos vingativos são explicitadas, tornadas audíveis e visíveis para os humanos. Os kúnu são tão salientes que parecem ser a primeira possibilidade que ocorre para as pessoas quando algo de ruim acontece. Junto com os feitiços, são as principais formas de explicação de infortúnios neste universo onde há pouco espaço para o acaso. Doenças graves, insucessos, loucura, acidentes, tudo pode ser creditado aos kúnu. Até atos violentos ou perigosos executados pelos vivos podem ser, no fundo, atribuídos à vingança de um morto, especialmente quando os atos não condizem com o comportamento usual da pessoa: ela pode tê-los feito devido à influência de um kúnu, que pode “escurecer a visão” (mbéi wójo kó dúngu), levando-a à cometer um descuido numa atividade que se domina ou agir violentamente sem razão aparente. Em especial a ocorrência sobreposta de diversos problemas com a mesma pessoa ou dentro de uma matrissegmento é facilmente atribuída à ação dos espíritos vingativos. Quando vários parentes matrilaterais próximos enfrentam dificuldades – um está com pressão alta, outro tem pesadelos recorrentes, outra tem sua roça arruinada, outra tem complicações na gravidez, outra enfrenta problemas com o marido – tudo indica que um mesmo kúnu está agindo. Lembrarão algum kúnu que foi causado por alguém do segmento, e esse será o principal suspeito de estar causando tantos males simultaneamente. O ideal, então, será agir em conjunto para aplacá-lo. Para o kúnu, a princípio, toda a matrilinhagem compartilha a culpa por sua morte indevida, e será alvo de sua vingança. Sob sua ótica, os beoë aparecem como um conjunto relativamente uniforme, para a qual uma única ação violenta é capaz de contaminar moralmente todos os seus membros. Punir um é punir todos. Assim, dentro de uma matrilinhagem ou matrissegmento, sempre que algo de ruim ocorrer, vão lembrar-se de seu parente e da ação que causou o kúnu. “A princípio o kúnu é moralmente cego, ataca pessoas sem levar em conta seu caráter ou seu envolvimento no delito original – desde que estejam na

247 categoria genealógica apropriada. Em geral, kúnu operam mecanicamente, não necessitam de provocação antes de cada golpe” (R. Price 1973: 88). Na prática, sendo as matrilinhagens bastante grandes, a maioria dos kúnu tende a concentrar seus ataques em segmentos menores. Fora os maiores, gaán kúnu174, espíritos vingativos amiúde concentram-se em parentes mais próximos ao culpado inicial por sua morte. Para além disso, não há consenso acerca de qual é o alvo prioritário do kúnu dentro de um matrissegmento. Já ouvi dizer que seria a prole da irmã (ZS ou ZD), ou seja, o kúnu causa doenças ou infortúnios particularmente quando o tío (MB) é culpado pela morte.175 Outras pessoas afirmam que os kúnu preferem atacar os mais velhos da família próxima, os anciões do matrissegmento. Escutei também que espíritos vingativos miram primeiro os membros mais frágeis da família, pessoas doentes, idosos ou crianças recém-nascidas. Mais uma vez, há especulação, baseada num raciocínio propriamente saamaka: fatores estruturalmente relevantes – certas relações de parentesco, certas fases da vida, certas condições físicoespirituais – são levantados para tentar dar sentido ao padrão de ataque dos kúnu, que em certo nível de detalhe parece imprevisível. A lógica de ação dos mortos segue de perto, nesse sentido, a lógica de ação dos vivos – na perspectiva dos vivos, claro. As evidências que levam as pessoas a creditar um infortúnio a um kúnu são de diversas ordens. Duas mortes dentro de uma matrilinhagem ou matrissegmento que ocorram em um espaço de tempo muito curto podem ser devidas a espíritos vingativos. Problemas ocorridos em certos ambientes ou eventos que favorecem a ação dos mortos, como cemitérios e funerais, também tendem a ser atribuídos aos kúnu, como as especulações no caso 6 (supra) demonstram. A similaridade entre eventos pode também associar para vinganças específicas, como no caso 5: várias pessoas relacionadas morrendo de maneiras similares (aqui, suicídio pela ingestão de gramoxone) indicam que as mortes podem estar conectadas por kúnu. Outro 174 Os gaán kúnu (“grandes espíritos vingativos”) são os mais poderosos que afetam uma matrilinhagem. Têm uma importância definidora na formação da união e das fronteiras dos beoë. Costumam ser muito antigos, remetem aos tempos das fugas das plantations e das lutas contra o poder colonial. Suas histórias entrelaçamse, portanto, com a história dos clãs, de modo que são um tanto quanto esotéricas. Nem todos são humanos, até onde sei há gaán kúnu que são cobras e há gaán kúnu que são apukú em diferentes linhagens de Botopási. Isso faz sentido, pois as dificuldades dos ancestrais saamaka, além das guerras, passavam pela relação com os novos e ainda inóspitos ambientes pelos quais fugiam, escondiam-se e tentavam estabelecerse. Nos “primeiros tempos” (fósuten), espíritos de animais e das florestas podiam ser tão perigosos quanto soldados brancos e negros traidores. Apenas especialistas, em sua grande maioria homens velhos, dominam estas histórias em detalhes, mas muitos jovens podem saber, ao menos por alto, trechos delas, já que elas afetam seu cotidiano. 175 A relação entre tío e sísa míi (MB e ZD/ZS) é saliente: filhos e filhas da irmã são os herdeiros prioritários de um homem, e o tio materno tem grande influência nas decisões mais importantes da vida das pessoas (escolha de casamento, indicações para cargos políticos etc.). Algo similar ao que Radcliffe-Brown (1952 [1924]) descreve para a África do Sul.

248 exemplo que ouvi: se você matar alguém sufocado num travesseiro pode acontecer do kúnu vir te assombrar no travesseiro e toda vez que você encostar a cabeça no travesseiro sinta dor. Há um contínuo possível entre a forma da morte e o mal que o kúnu fará. Espíritos de apukú que tiveram sua morada queimada podem causar queimaduras nas costas de alguém. Kúnu de cobras podem causar problemas gestatórios nas mulheres do beoë que assombra, enrolando as crianças na barriga de sua mãe, como as boídeas vivas fazem com sua presa. O processo de averiguar por meio de inferências os infortúnios e mortes é particularmente relevante em Botopási, pois como vimos não é comum o uso de oráculos públicos ali. Para determinar a causa mortis, não se valem nem do bungulá nem de outros oráculos (fíi) que toda a aldeia possa testemunhar. As pessoas podem recorrer a oráculos em particular, talvez usando roupas, unhas ou cabelos do morto. Ou ir a outras aldeias em busca de um óbiama que conheça algum oráculo que possa apontar a fonte do infortúnio ou da morte. Sendo as sessões particulares, seu resultado nem sempre chega a ser conhecido ou aceito pela população em geral, de modo que as especulações podem continuar. Sonhos são outra fonte de indícios acerca de morte e infortúnios, mas como são pessoais, e suas interpretações também variam, sofrem da mesma possível falta de confiança que os oráculos. Inferências são importantes, mas são apenas o primeiro passo. Para que sejam consideradas mais que fofocas e especulações é preciso confirmar as suspeitas levantadas pelas evidências. E, se oráculos ainda não livram de toda dúvida, a melhor maneira de se ter certeza do que aconteceu é esperar que o kúnu venha a possuir alguém, ou, como dizem, venha “gritar na cabeça de alguém” (bái a sëmbë hédi). Quando são espíritos vingativos advindos de não humanos, o corpo do médium expressa a não humanidade em sua performance: um espírito de cobra, quando possui alguém, faz o médium movimentar-se sinuosamente como uma serpente. O espírito escolhe quem irá possuir, selecionando uma pessoa dentro da matrilinhagem que afeta para ser seu médium. Como outras entidades capazes de possuir pessoas (komatí, apukú etc.), os kúnu acabam tendo uma relação de certa intimidade com seu médium, ainda que nada amigável. Após a morte de seu médium, o kúnu irá escolher uma nova pessoa dentro da matrilinhagem para a função. Mesmo enquanto não tem médiuns (quando seu antigo morreu e não surgiu ainda um novo), um espírito vingativo pode seguir atacando, e as pessoas podem seguir usando os métodos desejados para lidar com ele, ainda que agora um pouco mais no escuro, sem tanta certeza da reação do espírito. O médium é, portanto, um porta-voz do espírito.176 176 Os kúnu podem falar ao telefone. Ouvi o caso de um homem que era paípái míi (filho de um homem do beoë) de uma matrilinhagem que estava sendo afetada por um kúnu. O espírito vingativo estava enfurecido e o

249 Quando “sobe à cabeça” (gó a hédi) possuindo uma pessoa, o kúnu o faz para relembrar a linhagem do motivo de sua fúria e para exigir reparação. Pode falar sobre quem o matou e como, tornando mais claras as condições de sua morte e reorganizando as ideias das pessoas acerca do ocorrido. Sempre fala e repete seu nome, reafirma sua identidade. Será referido pelo nome da pessoa antes de morrer, ou por um novo nome que escolher. Ainda que as possessões não sejam exatamente eventos públicos, é comum chamar alguns kabiténi, basiá e anciões para presenciá-las, ajudando a dissipar dúvidas que a aldeia possa ter em relação ao ocorrido. Durante a possessão, faz ameaças e exigências à linhagem e mesmo depois de décadas de sua morte pode vir para chamar atenção de seus membros, se acredita que não está sendo devidamente tratado, com rezas, oferendas e respeito. É raro que um kúnu trate de assuntos não diretamente relacionados a ele, mas pode fazê-lo, por exemplo, para deixar claro que tal infortúnio que atingiu a linhagem que amaldiçoa não é fruto de sua ação, mas de outro mal, como um feitiço. Ou pode intermediar a relação com outros kúnu da família, com quem se reunir no além. Os kúnu podem ser invocados pelos vivos. Numa situação em que uma matrilinhagem ou matrissegmento está sofrendo muitos infortúnios e desconfiam da ação de algum espírito vingativo, podem fazer com que o kúnu “suba à cabeça” de alguém para conversar com ele através do médium, tentando entender o que está acontecendo, implorando para que ele pare de atacar, e perguntando o que devem fazer para que sua fúria arrefeça. Já ouvi também um homem invocar verbalmente a fúria dos kúnu de pessoas da sua matrilinhagem que afetavam a matrilinhagem de uma desavença sua, para que a atacassem. Trata-se de uma espécie de maldição bastante virulenta, portanto incomum, mas como aquele homem sentia que seu inimigo estava “acabando com sua linhagem” fazia sentido conclamar poderes capazes de fazer o mesmo em retorno. Como vimos no capítulo 3, um morto pode começar a agir como kúnu imediatamente após seu falecimento. Antes mesmo do enterro, antes mesmo da lavagem do corpo, um espírito vingativo pode iniciar sua vingança atingindo membros da matrilinhagem de quem fez mal para ele. Daí parte do cuidado nos ciclos funerários. Mas, para manifestarem-se através de um médium, os kúnu costumam demorar um pouco mais, pois têm o costume de reunirem-se em kuútu com outros kúnu. Podem fazê-lo para planejar um ataque conjunto, homem tinha a posição genealógica adequada para tratar com ele. Como a médium morava na cidade, ele ligou para ela, e o kúnu atendeu, demonstrando sua ira, assumindo a responsabilidade pelos infortúnios que estavam ocorrendo e explanando suas exigências. Tempos depois, quando achava que a família estava demorando muito para atender-lhe, o kúnu fez sua médium telefonar para membros da linhagem, para ameaçá-los.

250 somando suas forças no combate à matrilinhagem contra a qual compartilham seu desejo de vingança. Um ataque coordenado por vários espíritos vingativos é uma das piores desgraças que pode abater uma família. Afora reuniões com outros kúnu, não há qualquer elaboração sobre uma existência dos espíritos vingativos independente dos humanos. O ponto é que a agência de um morto só é vista como kúnu uma vez que é direcionada à vingança – seu planejamento, execução, alerta ou ameaça. Como são eternos, a quantidade de espíritos vingativos que afeta uma linhagem apenas aumenta com o tempo e, pior, seus ataques tendem a criar mais kúnu, somando mais forças destrutivas. Espíritos vingativos podem ser esquecidos, os saamaka estão cientes de tal possibilidade, mas o olvido não os impede de agirem. Como afirmaram meus interlocutores, ao discutir o caso 6, os kúnu que se sentem “abandonados” pela linhagem que afetam podem causar uma morte para que sua existência seja lembrada, ou podem influenciar outros kúnu mais novos em sua ação destrutiva. Daí o medo de situações de “kúnu com kúnu”, nas quais um espírito vingativo gera outros. Os kúnu querem destruir a matrilinhagem inteira, nunca perdoam, nunca cansam e nunca esquecem. E são cada vez mais numerosos. A soma constante de perigos no mundo, ação inexorável, leva por vezes os saamaka a visões fortemente pessimistas do futuro. Há medo de que espíritos maléficos possam acabar com famílias inteiras, aldeias, e até com o mundo. Certa vez, pela rádio local Maifei escutei um idoso contando que seu matrissegmento acabou, só sobrou ele, não tinha mais ninguém que possa chamar de sísa míi (sobrinho ou sobrinha matrilateral), nem baáa (irmãos, primos), nem sísa (irmãs, primas). Um dos piores cenários imagináveis para um saamaka. É preciso tomar cuidados. O principal deles é não provocar novos kúnu, ou seja, agir corretamente, para que disputas, dívidas, atos descuidados ou violentos não levem a mortes. É preciso união nas linhagens, para que nenhum de seus membros aja de forma imoral. Parentes próximos também não devem entrar em conflitos uns com os outros, para não criar novos kúnu e para não ajudar os que já existem a prejudicar os vivos. É importante também não “viver bem” com assassinos, sejam eles de sua matrilinhagem ou não. Pois quando um kúnu percebe que aquele que foi culpado diretamente por sua morte está sendo bem tratado por outras pessoas, pode vir a atacá-las também – mesmo que fossem queridas suas em vida, mesmo que não sejam da matrilinhagem do assassino. Por isso, quem cometeu um assassinato direto (com tiro, arma branca, ou outros) deve ser expulso da aldeia e do território saamaka para nunca mais retornar, e nem na cidade seus parentes e amigos devem voltar a ter boas relações com ele. Outros cuidados podem ajudar a aplacar a fúria dos kúnu já existentes. Há

251 óbia que “esfriam” um kúnu temporariamente, ainda que não exista nenhum que se livre deles de uma vez por todas. Quem possui uma divindade komatí, por exemplo, pode ter nele um auxílio contra os kúnu, posto que o espírito guerreiro é capaz de ver coisas que os humanos não veem, ajudando-os a se precaverem contra desgraças vindouras. Além disso, o komatí pode brigar com o kúnu, para tirá-lo, ao menos temporariamente, do caminho daqueles a quem protege. Um paípái míi da matrilinhagem pode sempre ajudar a lidar com espíritos vingativos. Sendo filho de um homem do beoë, ele não faz parte da matrilinhagem portanto não é afetado pela ira do kúnu, mas tem uma ligação forte da família e dessa maneira pode interceder junto ao médium, conversando diretamente com o kúnu sem temer seus ataques. Está na posição genealógica adequada para lidar com ele. Se forem preciso outros serviços – por exemplo, limpar um terreno onde a pessoa morreu – é também indicado que um paípái míi o faça, pois alguém do beoë o fazendo estaria correndo sérios riscos. O paípái míi sofrerá com ataques do kúnu se tiver afirmado que ajudaria e deixe de fazê-lo, o espírito pode sentir-se enganado e enfurecer-se ainda mais. A maneira mais comum de “esfriar o coração” (kootö háti) de um espírito vingativo, aplacando temporariamente seus ataques, é com oferendas e rezas. Em Botopási, aldeia cristã, o fazem escondido, “erguendo uma mesa” para eles em sua casa ou roça, com comida, aguardente, tecidos, keéti (argila branca) e outros ingredientes. Fazem também libações no solo para os kúnu, como fazem para outros mortos benéficos. Junto com as rezas (bégi), tais presentes são formas de atenuar parte da dívida que a linhagem tem com os espíritos vingativos. Isso normalmente é feito de madrugada na casa da pessoa que tem esse kúnu na cabeça. Se o médium mora na cidade, é importante que seja visitado sempre que possível, para “colocar as coisas na mesa” do espírito vingativo, isto é, fazer as oferendas. Não é incomum ir a aldeias vizinhas para lidar com casos de kúnu mais abertamente. Nos faáka páu de aldeias não cristãs – altares centrais onde se lida com diversos tipos de espíritos, antepassados e divindades –, pode-se fazer oferendas. Os altares dos gaán kúnu das famílias de Botopási estão em Pikísééi, pois lá estão presentes as mesmas linhagens, mais distantes das censuras da igreja, são melhor cuidados. Espíritos vingativos criam assim em seu entorno um círculo de trocas, linhagens de vítimas tornam-se credoras das de culpados, as últimas necessitam periodicamente entregar rum, tecidos e outros para as primeiras. Kúnu ficam particularmente irados quando sentem que estão sendo ignorados pela linhagem que afetam. Não se deve protelar quando se trata de kúnu, é preciso agir, falar com o

252 médium, buscar plantas para se proteger, fazer libações e oferendas. Eles não envelhecem, não esquecem, apenas se enfurecem mais, apenas causam mais dano. Mas há pessoas em Botopási que hesitam em buscar remédios contra os espíritos vingativos, além de rezas para Deus e para Jesus. Ninguém duvida ali da existência dos kúnu, mas há polêmicas acerca de como lidar com eles. Os cristãos mais fervorosos, sobretudo pentecostais, têm mais apego e confiança na potência protetora divina e muitos deles acreditam que negociar com os kúnu significa agradar a seres maléficos, diabólicos, de forma que não se deve rezar para eles, nem fazer libações, oferendas. Por outro lado, há aqueles que temem que as aldeias cristãs venham a “acabar mais rápido”, apesar de tenderem a serem mais “desenvolvidas” (ou melhor, por causa disso). Pois nelas não se cuida dos kúnu como deveriam, o que faria com que se enfureçam cada vez mais. Como os espíritos não se esquecem, os vivos não podem esquecêlos, nem mesmo se tiverem a ajuda Deus como proteção.

Catástrofes A religião de matriz africana dos creole surinameses, chamada winti, guarda enormes semelhanças com as práticas mágico-religiosas dos maroons, havendo equivalências quase ponto a ponto entre seus panteões, além de uma série de outras correlações (cf. Voorhoeve 1983; Wooding 1981). Entretanto, o kúnu é um fator de diferenciação entre as cosmologias, sendo inexistente ou, no máximo, uma preocupação marginal na economia emocional creole. Segundo Green (1978: 274n4), é possível que alguns creoles creiam em kúnu, especialmente no distrito de Para, onde o winti é mais forte, mas não dão a importância que os maroons dão a eles. Wooding (1981) diz que, em sranan, kunu é qualquer espírito hereditário de uma linhagem, não necessariamente vingativo. Herskovits & Herskovits (1936: 69, 455) afirmam haver uma espécie de versão enfraquecida do kúnu em Paramaribo, chamada mekunu, mas não desenvolvem o ponto. Meus informantes saamaka afirmam que os afrosurinameses não maroons não se importam com kúnu. De sua perspectiva, o desconhecimento e a descrença não protegem os creole nem ninguém desta agência nefasta. Não são apenas os maroons que sofrem com a ação de espíritos vingativos: apesar de não os saberem, todas as pessoas do mundo, incluindo os bakáa (brancos, estrangeiros, como eu), também são acometidos por kúnu. Alguns interlocutores insistiam para que o livro que eu fosse escrever tratasse de espíritos vingativos. Diziam: “às vezes uma pessoa morre e você não consegue entender porque, às vezes as coisas dão errado sem motivo, é errado ler essas coisas como mero azar, quem está agindo são os

253 kúnu.” Por isso seria importante eu ensinar o que aprendi em saamaka. Os brancos não acreditam em coisas como espíritos da floresta, de animais, dos rios, por isso desrespeitam árvores, pedras, bichos. Para a maioria dos saamaka, parece um absurdo que se cace por esporte, por exemplo. As pessoas podem sofrer consequências desses atos descuidados e maldosos. Pior ainda é as pessoas acharem que matam outras pessoas impunemente. A força de certas divindades, como apukú e cobras, pode não atingir com tanta força as pessoas que nelas não têm fé, mas o mesmo não vale para os kúnu, especialmente os de ex-humanos. Enquanto estive em campo, alguns acontecimentos que populavam os noticiários da TV e do rádio eram lidos usando a chave do kúnu. O terremoto que atingiu o Japão em abril de 2011 parecia, para meus interlocutores, uma consequência de males cometidos pelos japoneses ou seus antepassados, talvez pela participação na segunda guerra mundial ao lado dos nazistas, talvez em parte também por suas ações que passavam por cima de cuidados com o meio ambiente, destruindo pedras, árvores e animais em larga escala. Em maio de 2011, quando Osama Bin Laden foi morto por militares estadunidenses, pareciam absurdas, a quem assistia pela televisão, as imagens de americanos celebrando em praça pública um assassinato. É verdade, Bin Laden foi culpado por milhares de mortes, muitos americanos vivos e mortos desejaram sua morte, que finalmente veio. Ainda assim, aqueles que o mataram seriam acometidos pelo seu kúnu e aqueles que comemoravam a morte também poderiam sofrer. Em março de 2012, a aldeia acompanhava avidamente pelo rádio o julgamento da anistia concedida a Dési Bouterse e outros envolvidos numa das maiores tragédias da história recente do Suriname. Em 7, 8 e 9 de dezembro de 1982, quinze opositores do governo ditatorial encabeçado por Bouterse foram executados no Fort Zeelandia, então quartel general do exército surinamês. Um dos incidentes que marcaram o recrudescimento da ditadura que acabou culminando na guerra civil em 1986 (Brana-Shute 1986). Em 2010 Bouterse volta ao poder, agora eleito democraticamente, e consegue ser anistiado pelos crimes dois anos depois, em um tribunal que, na visão de meus informantes, não parecia nada neutro. O julgamento da anistia gerou muitos debates pela aldeia e muitas opiniões convergiam em apontar que a justiça surinamesa não era confiável, como também não o é o direito penal em geral. Não simplesmente porque juízes podem ser corrompidos com dinheiro, também porque são humanos, imperfeitos, de modo que são incapazes de julgar as pessoas com justeza. Apenas Deus é capaz de julgar. Um amigo professor disse que só acredita no direito natural (natuurrecht) e que nenhuma anistia é capaz de retirar o peso na consciência provocado por

254 um assassinato.177 Deus vai punir os culpados, esse é o melhor julgamento que pode haver. Por isso os saamaka só punem com ostracismo, dizia, não é papel dos homens condenar seus semelhantes. Que as penas sejam executadas por Deus e pelos mortos. Em outra situação, ouvi um grupo de homens discutirem que, algum tempo atrás, um grupo de “pessoas da igreja” (kéíkima) da Holanda veio a Botopási pedir perdão, na igreja da aldeia, pelos erros que seus antepassados cometeram. Não consegui descobrir quem seriam os religiosos, mas os erros a que se referiam eram as atrocidades cometidas durante o período da escravidão e nas guerras do poder colonial contra os maroons. Meus interlocutores interpretaram o pedido de perdão como motivado pela vingança dos kúnu, que os holandeses estariam sentindo. Percebendo que males no presente eram relacionados com males feitos por seus antepassados, teriam vindo aqui tentar expiar seus pecados. Os saamaka diziam que só pedir perdão assim não adiantaria. Eles deveriam vir ao Alto Suriname repetidas vezes, com “coisas de beber” para dar aos kúnu. Pois esses espíritos vingativos são particularmente “pesados”, foram muitas pessoas mortas, muitos “mortos feios”, muita violência, não é coisa que se resolva rapidamente. É verdade, os saamaka também mataram brancos naquela época, mas fizeram com algum direito de fazê-lo, pois era a única maneira de não perderem suas próprias vidas e as de suas famílias. Os saamaka, disseram-me, sempre tiverem tabu (tjína) de matar gente, sempre souberam da existência dos kúnu e os levaram a sério, de modo que não matariam alguém sem motivo, como os bakáa faziam e fazem.

O kúnu como instrumental moral O kúnu é um dos vetores centrais na economia cósmica da moral saamaka. No quadro que ajudam a desenhar, os mundos visível e invisível estão plenamente conectados, todos os atos têm peso, pois têm consequências que reverberam a longo prazo, agindo em cadeia e no limite afetando todo o mundo. Nesse sentido, traz à mente o conceito indiano de karma: se você fizer coisas ruins, coisas ruins acontecerão com você. O caso 1 demonstra como tal lógica pode operar para os saamaka: um homem que roubava acaba ficando louco, possivelmente por meio da agência de espíritos vingativos. Ideias similares aparecem em outras filosofias também: Köbben (1969a: 18) aproxima os kúnu das Eríneas, ou Fúrias da Grécia Antiga, divindades ctônicas da vingança. Porém, 177 A questão do peso na consciência apareceu algumas vezes nas discussões que ouvi acerca dos kúnu e de punições por crimes em geral. Sentimentos de culpa e remorso são capazes de fazer mal a um criminoso. Usavam muito a expressão frustatie (“frustração”). Cheguei a ouvir que a própria frustração, por ter causado mortes, já é “como um kúnu”, capaz de destruir a vida de uma pessoa.

255 os espíritos vingativos, qual concebidos pelos maroons, têm especificidades. Kúnu diferem das Eríneas por não serem personificações únicas, arquetípicas, da vingança: cada ato violento gera um kúnu específico. Uma diferença crucial entre as ideias de kúnu e karma é que, na filosofia saamaka, aquilo que age enquanto potência reparadora, retificando atos imorais, é uma força pessoalizada.178 Faz sentido dizer que os kúnu são instrumentos morais, mas não dizer que são instrumentos “de uma moral”, pois a moralidade não paira transcendente sobre os atos humanos. Kúnu são sempre espíritos de pessoas (humanas ou não humanas) e sua existência é sempre derivada de atos humanos violentos. A economia cósmica da moral aqui portanto é fundamentalmente humana. Dizem em Botopási: “enquanto existirem seres humanos, existirão kúnu” (“té líbisëmbë deo, kúnu o deo”). Por sua disposição, pessoas vivas são incapazes de agir sem eventuais consequências ruins, incapazes de impedir a criação de novos espíritos vingativos. A ideia que a maioria dos males do mundo são fruto da ação humana é extremamente difundida em Botopási. “Seres humanos são o diabo” (“líbisëmbë da didíbi”), ouvi dizerem. Os principais males que afetam os humanos provêm de ações humanas: kúnu, feitiços, maldições, assassinatos. Como, em sua vingança, espíritos agem motivados por sentimentos (também humanos) perigosos e violentos, a tendência a longo prazo não é de um equilíbrio cósmico moral, nem de uma evolução, mas de um aumento da violência, no limite a destruição completa de famílias e populações. O apego pela vida é o principal motor da ação dos espíritos vingativos. Um amigo disse-me que o principal motivo pelo qual não se deve matar alguém é porque “gente não sabe fazer vida”: não se sabe ao certo quantas vezes faz-se sexo até que ocorra a fecundação ou em qual ato sexual a vida nova é gerada; é Deus que escolhe como e quando o filho vem. Se não sabemos fazer vida, não devemos tirá-la. Quando uma pessoa jovem morre, as suspeitas e análises de possibilidades são intensas, de kúnu ou outra ação danosa. Como explicaram, “coisas novas não morrem” (“njoonku soní án tá deodë”), ao menos não de morte natural: uma árvore nova só morre se você cortá-la ou se for atacada por pragas, e o mesmo vale para pessoas. Como diz a letra da canção saamaka cantada nas vigílias de Botopási, “Pessoas estão morrendo sem doença / Só coisas espantosas estão acontecendo” (“Sëmbë tá dëdë söndö síki / Wöndë soni nöö tá pasá”), uma morte “não natural” é um evento espantoso. Sempre que um 178 É interessante notar que os saamaka tampouco possuem ideia semelhante à de mana ou axé, isto é, uma potência impessoal que permeia o mundo. A noção mais próxima é a de kaakíti, que seria melhor traduzida por “força”, mas sempre é relacionada a agentes específicos, sejam humanos, espíritos, plantas, animais ou Deus. Diferente do axé das religiões afro-brasileiras, a kaakíti é sempre pessoalizada.

256 jovem morre é porque alguém fez algo de ruim contra ele. A princípio, ninguém quer morrer, nem mesmo os velhos. Por isso existem, em saamaka, feitiços capazes de “trocar cabeças” (tooká hédi), fazer com que outra pessoa morra no lugar do feiticeiro quando a hora de sua morte chegar. O mal que afetaria aquela pessoa velha que está para morrer passa a afetar a vítima de seu feitiço. Mesmo nesses casos, quando uma pessoa enfeitiça outra para não morrer, ela estará gerando kúnu, por estar matando alguém. Matar, jovens ou velhos, gente ou bicho, é sempre condenável. É uma injustiça que se comete contra alguém que, como todo mundo, preza por sua vida. A vida é boa e ninguém quer se desfazer dela, pois não sabem como é o mundo do além. Por isso mortos são tão perigosos, sobretudo quando morreram recentemente e quando morreram violentamente ou subitamente. Se ninguém quer morrer, ninguém deveria matar, e, numa lógica de retribuição, a vítima de um assassinato adquire então o direito de agir como kúnu. A lógica é, por um lado, bastante direta. Quando se mata alguém, a vítima quer matar de volta seu agressor. Ela queria viver, mas sua vida foi impedida pela ação alheia. O impulso da vingança é quase incontrolável, de modo que, se o vingador não encontrar seu assassino, vai atrás de alguém da sua família. Porém, o “direito” à vingança é “concedido” apenas àqueles cuja vida foi ceifada. Uma vendeta familiar, digamos, não é motivo para matar alguém. Mesmo se a vítima tivesse cometido um assassinato na matrilinhagem de seu assassino anteriormente, ela ainda se tornará kúnu. Os sentimentos que levam a tal tipo de vingança podem até ser compreendidos, mas não seriam suficientes para tornar um assassinato impune. Apenas quem já morreu pode se vingar, e o faz justamente por não ser mais humano. Nesse sentido, apesar de maléfico, muitos dizem que o kúnu age de maneira certa. Dizem que dar razão a ele (deoën léti), viver bem com ele (líbi búnu ku ën), oferecer-lhe coisas e seguir suas regras (weoti) é a única maneira de frear sua ira. Inversamente, ninguém deve viver bem com assassinos, quando se trata de um assassinato direto. Não se pode comer a comida que um assassino oferece, não se pode conversar com ele, pois o kúnu que criou vai pensar que você está do lado dele, e pode agir. “Viver bem” com um kúnu é compreender o horror de um assassínio e puni-lo da maneira que vivos podem fazê-lo: isolamento. O assassino é expulso do rio Suriname e sofrerá com o opróbrio de seus parentes e antigos amigos onde estiver. Apenas quando um novo gaamá subir ao poder ele poderá ter direito de voltar, mas, mesmo assim, provavelmente não o aceitarão. Houve um caso na região que contradiz isso. Um assassino que matou uma pessoa da sua família a tiros foi perdoado, arrependido de seu pecado. Mas não foi acolhido em

257 Botopási, onde cometeu o crime. Buscou santuário na aldeia vizinha, Futunaákaba, onde o pentecostalismo do Volle Evangelie lida com tais questões de outra maneira. Lá é mais forte a fé no perdão divino e no poder da oração contra os kúnu. Ainda assim, não são todos que o aceitam e que convivem com ele em Futunaákaba. E ele não pisa em Botopási. Há uma contradição entre os ensinamentos cristãos e a lógica dos kúnu. Do lado dos espíritos vingativos, uma potência moralmente justificável pune eternamente os humanos; do outro, a crença na salvação e no perdão de todos os pecados pela aceitação de Cristo como Senhor. Mesmo que a Bíblia fale que Jesus veio para perdoar todos os nossos pecados, não são todos em Botopási que entendem que seja assim tão simples. Alguns especulam que os envolvidos na morte de Jesus dificilmente teriam sido perdoados, dizem que Deus perdoa pecados menores, mas faltas graves como assassinato, não. Deus e kúnu, entretanto, não se aproximem enquanto forças punitivas, nessa visão, pois “quem trabalha com kúnu é o diabo, Deus não trabalha com morte, não mata gente”. Tal contradição de fato é um problema. Quando perguntei ainda a outro amigo se o perdão virá para um assassino, quando ele morrer, ele disse que não sabia, afinal de contas, não se sabe direito o que acontece depois da morte, não se sabe como é a terra dos mortos. Por isso, disse escolher trabalhar com as duas coisas, com Jesus e com os kúnu, com preces a Deus e oferendas aos kúnu, pois “as duas coisas ajudam”. Cada um lida com problemas espirituais, físicos e morais dosando remédios e precauções à sua maneira.179 Em um ponto os kúnu não contradizem diretamente o cristianismo: o fato dos espíritos vingativos ajudarem as pessoas a “viverem bem” entre si. Certos ideais cristãos de agência moralmente correta – como o Decálogo – vão ao encontro de ideais saamaka. Os kúnu, bem como os ensinamentos bíblicos, forçam as pessoas a tomar atitudes moralmente responsáveis, corretas com seus semelhantes, ainda que por vias bastante diferentes. “Viver bem” (líbi búnu) para um saamaka é comer junto, divertir-se, ajudar no que for preciso, praticar a reciprocidade, não ser mesquinho nem ganancioso, não ser violento, não fazer feitiços, tomar cuidado para que acidentes não aconteçam. Mentir, cometer adultérios, roubar, desejar o mal, 179 Green também nota entre os matawai cristãos certa polêmica em torno do tema do perdão: “A mensagem do perdão de Cristo é um tema importante nos sermões e tem um apelo considerável em uma sociedade que é talvez excessivamente preocupada com culpa e vingança sobrenatural. A mensagem de perdão até mesmo levou alguns matawai a acreditarem que Cristo pode salvá-los da vingança dos kunu. Alguns anciões notam com desaprovação que essa ideia levou muitos jovens a crer que podem roubar e cometer outros crimes impunemente, i.e., sem medo da retribuição dos kunu. Mas tal ancião tradicionalista admite ele mesmo que os matawai viviam tradicionalmente num estado de medo excessivo: 'Você teme o que não compreende. A Bíblia explicou muitas coisas para nós. Agora entendemos as coisas e não mais as tememos'. A maioria dos anciões, entretanto, sustenta que 'assuntos de kunu e assuntos de igreja são completamente separados – nem mesmo Deus pode salvá-lo de um espírito vingativo que quer atacar você'” (1978: 265).

258 tudo isso é condenável porque pode levar a mortes, fazê-lo é “colher kúnu” (píi kúnu). Conhecer feitiços é uma arma importante para as pessoas, pois pode ser um anteparo contra feitiços dos outros, é preciso proteger-se. Ainda assim há quem diga que prefere não usar nenhuma forma de feitiço que possa vir a prejudicar inimigos, não querem fazer mal nem a quem lhes ataca, preferem morrer sabendo que não trouxeram kúnu para a linhagem. A possibilidade de espíritos vingativos é um dos mais relevantes fatores que colocam as pessoas num caminho ético. Em particular dentro de uma matrilinhagem, já que, sabendo que o kúnu provocado por um afeta a todos, seus membros irão fazer um esforço para que seus parentes também não cometam atos descuidados ou mal-intencionados. No que tange à ideia de retidão moral, o cristianismo saamaka é peculiar pela sua ideia de causação: o foco no “não matarás”, a compreensão de que ações que levam indiretamente à morte também podem ser consideradas assassinatos. Há outros atos imorais que também são dignos desta que parece ser a pior punição cosmologicamente concebida, a criação de um kúnu, mas eles todos dependem de uma visão expandida de causalidade e culpabilidade. Os espíritos vingativos seguem de perto a moral saamaka, explicitam-na. Aquilo que é visto como mais errado gera um kúnu “mais pesado” (mooön hébi). Matar um humano é pior que matar uma cobra, que por sua vez é pior que matar um macaco. Matar uma pessoa com um tiro é pior que matar com um feitiço, que é pior que matar com mentiras e roubos. Também a forma como os kúnu vingam-se corresponde com a forma que os saamaka punem quem fez mal para eles: distribuindo a culpa pelo parentesco. Em casos de crimes graves, como adultério ou estupro, se o acusado não for encontrado seu baáa (irmão classificatório matrilateral) pode sofrer o castigo em seu lugar, um espancamento coletivo pelos homens da família da vítima. Os kúnu, apesar de violentos, acabam fazendo uma coisa boa, que é gerar união no seio da família. São seres espirituais que agem como instrumentos morais. Uma moral personalizada e desejante. Uma moral na qual a origem do mal fundamentalmente repousa nas ações humanas equivocadas, mal intencionadas ou descuidadas.

Vulnerabilidades compartilhadas Um kúnu pode atingir mais de uma matrilinhagem. Se uma aldeia inteira estiver envolvida numa morte, o espírito vingativo pode atacar todas as linhagens que a compõem. Os atingidos podem estar envolvidos de maneiras distintas: num caso de assassinato encomendado, por exemplo, a vítima será kúnu tanto do assassino quanto do mandante. Após a morte, sem as limitações de um corpo físico, o morto é capaz de enxergar melhor os

259 acontecimentos e saberá tanto de onde veio o golpe quanto de onde veio a ordem. Mas será um vingador “mais pesado” do assassino do que do mandante, posto que seu ato foi mais direto e portanto “mais pesado”. No caso de uma mulher que morre quando seu marido não estava “vivendo bem” com ela, mas cuja causa mortis não é conectada com as relações conjugais, ela pode tornar-se kúnu tanto do marido, que tinha com ela uma dívida moral, quanto do assassino (mais uma vez, o kúnu mais pesado será o do assassino). Se uma pessoa recebe o convite para ir à roça de alguém e no caminho é morta, a lógica é a mesma: será kúnu da pessoa que o matou e também, com menos peso, de quem fez o convite. Percebemos que a criação de um kúnu não passa necessariamente por vontades, intenção de causar a morte. A interferência violenta no desejo de vida do outro dá origem aos kúnu, mas ela não necessariamente surge de uma vontade da parte do causador do mal. Tratase mais de culpa do que de dolo. Trata-se de responsabilidade. Falhas de caráter, erros repetidos, descuidos podem gerar kúnu – mesmo o excesso de proteção (caso 2). Isso reforça não apenas a proibição de grandes crimes, como assassinatos e adultérios, mas também o cuidado com a vida e o bem-estar do próximo. Deve-se ter todo zelo ao levar alguém que não conhece a floresta para caçar, pois ele está sob sua responsabilidade e se morrer num acidente pode virar seu kúnu. Mesmo que seja um amigo, ele não queria morrer e provavelmente vai culpar seus guias. Uma ação imprudente, mas a princípio inocente, pode ter efeitos nefastos quase idênticos a ações mal-intencionadas, perversas; roubar é em algum nível equivalente a matar; um acidente gera um kúnu da mesma forma que um tiro. Desejos e deveres, intenção e responsabilidade fundem-se em grande medida, havendo apenas uma diferença de grau, de “peso” entre atos mais ou menos culpáveis. Diferença que passa sobretudo pela maneira como o ato foi cometido, se de forma mais ou menos direta. A dimensão volitiva e o juízo do kúnu são determinantes para entender quem ele vai assombrar. Porém, mesmo tendo características de pessoas, os desejos dos mortos não são exatamente iguais aos desejos dos vivos. Uma pessoa morta por alguém de seu próprio beoë pode tornar-se kúnu de sua própria família, o que seria um paradoxo: ninguém quer destruir sua própria família. Entretanto, uma vez que alguém é morto injustamente, seu desejo destruidor é maior que a sua lealdade aos parentes. O apego à vida que perdeu torna-se maior do que seu impulso de união e proteção intralinhagem. Opera, paralelamente ao desejo humanizado de vingança dos espíritos, um componente quase “mecânico”, como diz R. Price. Em tal nível, a lógica de ação dos mortos difere da dos vivos.

260 Em outro nível, o da punição, porém as lógicas de mortos e vivos voltam a se aproximar. Em casos de crimes como adultério ou estupro, uma sanção pode ser aplicada a um substituto matrilateral do culpado. Da mesma forma que os homens, os kúnu distribuem a culpa e a punição pelo lado matrilateral. O espírito não vinga falhas morais de indivíduos, e sim de grupos. Não há indivíduo isolado, todos são frutos de um ventre. Ações de um afetam todos, pois são todos vulneráveis aos mesmos males, aos mesmos kúnu. Vulnerabilidade compartilhada significa culpabilidade compartilhada. As fronteiras entre os indivíduos são borradas no que diz respeito ao aspecto penal, seja orquestrada a penitência por vivos ou mortos. Membros de um mesmo beoë, especialmente se forem de um mesmo matrissegmento (wósu déndu) são intercambiáveis no evento de uma punição. Não é fácil que o kúnu de uma mulher afete seu marido, ou vice-versa. Por outro lado, feitiços são mais capazes de afetar um cônjuge, pois agem diretamente no corpo (sínkíi), e os corpos de um homem e sua mulher são muito próximos, “quase como se fossem do mesmo sangue”, explicaram-me. Apenas quase. A vulnerabilidade pode ser compartilhada de maneiras distintas, os corpos são afetados pelas potências danosas do mundo de formas diferentes. Feitiços são capazes de afetar afins e amigos (caso 2), mas o mesmo não vale para o kúnu, que opera na consanguinidade matrilateral, no beoë. *** O beoë pode ser descrito usando o jargão antropológico como grupo corporado exogâmico matrilinear. A palavra para “linhagem” e “ventre” (ou “barriga”) é a mesma, apontando para o fato de que todos os membros de uma matrilinhagem são em última instância descendentes de uma mesma ancestral apical, de um mesmo ventre. No caso do clã (loo) de Botopási, os Dómbi ou dómineongë, estamos falando de um conjunto de netas ou bisnetas de Momóimítji, a ancestral mais antiga recordada, que fugiu de uma das plantations do dominee calvinista Johannes Basseliers (cf. R. Price 2002 [1983]: 108-11). Cada uma de suas netas que gerou uma prole numerosa criou um beoë que até hoje carrega o seu nome: Adjumba, Aga, Ahosi, Bodji, Jaja, Toli... Quando falam de um beoë sem qualificadores, estão falando do mamá beoë (matrilinhagem). O tatá beoë (lit. linhagem do pai) é bastante relevante, como veremos, mas é fundamental notar que o tatá beoë é a matrilinhagem do pai, não uma patrilinhagem.180 Apesar da importância da filiação complementar, a descendência é pela via matrilateral. É pelo lado da mãe que se transmitem as principais heranças de uma pessoa saamaka: a terra e os cargos 180 Idem para expressões como mánu beoë (matrilinhagem do marido) e mujeoë beoë (matrilinhagem da esposa).

261 políticos oficiais. O “dono” de um cetro de basiá ou kabiténi, de um terreno dentro da aldeia ou em seu entorno, não é exatamente a pessoa, mas seu beoë. A pessoa possui direito de uso (ainda que muitas vezes vitalício) aos bens. Quando morrer, são os filhos e filhas de sua irmã (sísa míi, ZS e ZD) que terão direito a eles: a herança a princípio vai do tío (MB) para ego. Grupo exogâmico por excelência, o beoë é subdividido. Primeiramente em matrissegmentos (wósu déndu, lit. “interior de uma casa”), o que engloba a família matrilateral mais próxima genealogicamente, pelo menos uma avó (MM, avó) e seus netos, em geral também as irmãs da avó (MMZ, também chamadas de avó) e a mãe delas (MMM, tógbo); pode também incluir a trisavó (MMMM, nëneo). O wósu déndu é uma categoria expansível, definida a partir de ego para G±2, 3 ou 4, talvez mais. Pode ser nomeada: “o wósu déndu de Fulana” é toda a prole de Fulana e a prole de suas filhas e netas; mas não são nomes fixos, não há uma ancestral que é sempre referência para toda sua prole, abaixo da ancestral apical do beoë. Uma pessoa é membro do wósu déndu de Fulana e da mãe dela, Sicrana, de modo que dois parentes podem ou não pertencer a um mesmo matrissegmento dependendo da perspectiva a partir da qual se está contando o pertencimento. Uma divisão subsequente é o bóbi, (lit. “seio”), que podemos traduzir por segmento mínimo. Diz respeito apenas a uma mãe e seus filhos, engloba apenas a parentela matrilateral de G±1, as pessoas que mamaram num mesmo seio. As subdivisões são progressivamente exogâmicas: é uma regra não casar com pessoas de seu beoë, quando isso acontece gera muitas reprovações; mas casar dentro de um wósu déndu é uma interdição muito mais pesada, que dificilmente é quebrada; um casamento entre irmão e irmã, dentro de um mesmo bóbi, é algo praticamente impensável. Posse de terra, de cargos políticos, exogamia. Tudo isso define os beoë saamaka. Mas, na concepção nativa, há uma força maior por trás da definição e da unidade dos grupos: a vulnerabilidade compartilhada por todos os seus membros aos mesmos kúnu (ou a um kúnu principal, gaán kúnu). Ser membro de um beoë é ser afetado por um mesmo conjunto de espíritos vingativos. E como ser membro de uma linhagem é fator crucial na definição da pertença à tribo, a fortiori ser saamaka é ser afetado por kúnu. Isso não é uma conclusão lógica na qual cheguei, mas a reprodução de uma frase que ouvi, quando certa vez um homem afirmava (talvez por ser pentecostal) que ele não tinha kúnu. A resposta de seu interlocutor foi que, se ele não tem kúnu, não tem mamá beoë (matrilinhagem), portanto não é saamaka (saamáka nëngë, lit. “negro saamaka”). Vistos como intercambiáveis para várias instâncias legais nativas e alvos de um mesmo espírito vingativo, os membros de uma família precisam se aproximar, precisam

262 “viver bem” uns com os outros. Membros de uma mesma matrilinhagem devem vigiar as ações uns dos outros, partilhar bens e serviços, esforçar-se para que todos seus parentes estejam em boas condições. Afinal de contas, os mesmos males os atingem. Existe outra força sobrenatural, esta não-pessoalizada, que age como baluarte da união e da moral saamaka. Trata-se do fíófio, uma maldição que atinge aqueles que agem com falsidade e mentira, sobretudo dentro da família, mas também entre amigos.181 Quando se briga com um parente próximo, mas em interações finge-se estar tudo bem, mesmo sem o “coração limpo”, dizem que o fíófio vai pegar. O que significa que algo de ruim vai acontecer com os envolvidos. Sobretudo quando palavras maldosas e injúrias são proferidas hipocritamente. Um homem explicou-me que se trata de uma espécie de “controle de família”, que a obriga a viver bem. A existência de forças como espíritos vingativos e maldições é explicitamente colocada como o fator central agregador intralinhagens. As pessoas dizem com todas as letras que é por partilharem um mesmo kúnu que o beoë tem que se manter unido. Quem é afetado pelos mesmos males deve viver em harmonia para não auxiliar esses espíritos em sua missão de destruir a linhagem. Quando irmãos e irmãs (ou primos e primas, sobrinhos e sobrinhas, tios e tias) matrilaterais brigam, ajudam os kúnu a prejudicar a todos, pois criam uma situação perfeita para o espírito vingativo agir. Por isso um kúnu que atinge seu próprio beoë é particularmente violento: ele surge de uma rusga entre pessoas que deveriam ao máximo evitar conflitos entre si, pessoas de uma mesma matrilinhagem. Ademais, a existência dos kúnu gera dívidas entre entre matrilinhagens. Mesmo agindo de maneira terrível, o morto não deixou de fazer parte de sua família; nem o assassino, expulso do convívio social, deixou de ser parte de um grupo. A parentela do agressor tem de fazer pagamentos e visitas periódicas não apenas diretamente para a vítima morta, mas também para sua matrilinhagem. Tanto maiores quanto mais grave tiver sido o crime. Os préstimos são em tecidos e rum, principalmente, de modo que tais transferências somam-se às outras formas de circulação de dádivas que vinculam as pessoas – trocas em funerais, casamentos e outras fases da vida, pagamentos por óbia etc. A linhagem cobradora assim adquire algum poder sobre a devedora (cf. Green 1977a: 111; Köbben 1967: 19). Como dentro de cada tribo, clã ou aldeia, os kúnu são numerosos, quase todos grupos terão espíritos que se vingam de quase todos os outros. A imagem que resulta é de uma espécie de troca 181 Segundo Herskovits & Herskovits (1971 [1934]: 148-9), fíofio, além de uma maldição causada por inimizade mascarada, é também um inseto marrom que sai do nariz da pessoa quando ela morre devido a tal mal. Meus informantes não concordam. A maioria desconhecia qualquer inseto chamado fíofio. Um disse que de fato existe um pikí soní (lit. “coisa pequena”, inseto) chamado fíofio, que devora arroz, mas que nada tem a ver com a maldição familiar.

263 reparadora generalizada, em que as dívidas são multilaterais, desiguais e em desequilíbrio, já que mortos, como cônjuges, nunca são equivalentes entre si. Dádivas jamais cancelam a vingança, mas a arrefecem, fazendo da relação entre os grupos uma relação de dívida, não de inimizade. Os pagamentos, em conjunto com o próprio horror causado pelos kúnu, impedem que a vingança se desenvolva em vendeta, “troca de mortes” entre um ou mais grupos. As relações portanto não tomam o formato de espiral ou pêndulo, como entre os tupinambá (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985). Antes, de um novelo de interdependência, tão complexo quanto as trocas na porta da casa de um morto. O kúnu é uma agência maléfica que termina por ter uma consequência positiva, na visão nativa: gera união interna e externa nas linhagens. União que, vimos, é um dos maiores ideais de vida saamaka. Mas espíritos vingativos seguem sendo sobretudo maléficos. Como afirmou um interlocutor, kúnu não é instrumento de Deus, mas do diabo. É preciso frisar que a agência do kúnu gera união intralinhagem apenas indiretamente: são as ações ou reações de cada uma das pessoas que criam a unidade. Na cadeia de causalidade longa em que os kúnu operam, ações mal-intencionadas ou descuidadas das pessoas geram morte, o que significa que geram espíritos vingativos, cuja ação violenta afeta a matrilinhagem como um todo, por sua vez gerando uma reação e uma vigilância dentro da linhagem, cujo fruto é a união. A união é sempre causada por ações recíprocas, bem intencionadas entre as pessoas (vivas e mortas), seja na forma de proteção contra um kúnu, seja na forma de dádivas num ciclo funerário ou alhures, seja na forma de ajudas mútuas nos mais diversos aspectos da vida. A união é uma força primordialmente humana, que tende a apaziguar os efeitos nocivos de outras ações humanas sobre o mundo, a tribo, as aldeias, as linhagens e as pessoas. Mas uma força que depende do auxílio invertido de outras forças destrutivas sobrenaturais, como kúnu, fíofio, bakúlu. Uma força reativa, que busca restaurar as unidades do mundo, sempre em perigo de serem destruídas por ações humanas e não humanas violentas.

A linhagem do pai Antes de avançar na maneira como os kúnu criam grupos, apresento dois elementos que complexificam o quadro, começando pela matrilinhagem do pai. Em sua primeira monografia sobre os saamaka, R. Price marca a importância da paternidade, afirma que nessa sociedade a descendência é matrilateral, mas a filiação é bilateral (1975: 51-4). Köbben (1967: 39-43) enxerga entre os ndyuka “leves elementos patrilineares” que seriam elementos de dupla descendência – apenas elementos, não há cognatismo de fato. As obrigações com

264 relação ao tatá beoë, a matrilinhagem do pai, não são nem de perto tão intensas quanto aquelas com relação ao mamá beoë, a matrilinhagem da mãe. Nas questões de transmissão de cargos políticos e de posse da terra, quem fala é o tío (MB) e ou os anciões da matrilinhagem. Esperam que um adulto posicione-se muito mais ativamente, em questões de trabalho e de política, a favor de seu mamá beoë do que de seu tatá beoë. E é isso que de fato ocorre: as pessoas fazem parte antes de tudo da linhagem de suas mães. Mas todo mundo tem (ou deveria ter) um pai e um tatá beoë. O pai é fundamental nos ritos de passagem masculinos e femininos – quando o adolescente chega à idade de receber suas vestimentas de adulto, sempre que possível é o pai quem dá a primeira kamísa (tanga) e a primeira espingarda para o menino, ou o primeiro kojó (avental), e depois o primeira koósu (saia) para a menina. É verdade, nem todos os pais o fazem. Em última instância, o genitor escolhe se vai ou não criar sua prole, caso não seja casado com a mãe. Köbben (ibid.) aponta dificuldades de descrever a relação entre o pai e os filhos, devida à enorme variação dos casos individuais no Cottica. Há grandes possibilidades dos pais não cuidarem de seus filhos, mas em muitos casos a relação é de extremo cuidado e carinho. O que não significa que não existam expectativas relativamente padronizadas em torno de certos comportamentos. Um homem disse-me que, quando um homem engravida uma mulher, mesmo se decidir não dar nenhum tipo de suporte emocional ou material para ela, não pode ser demasiadamente criticado. Afinal de contas, já deu para ela e para a família dela o maior presente que se pode dar: uma criança. Ajudou a fazer crescer o beoë da mulher (o ventre e a linhagem). Mas se, de fato, os saamaka consideram as pessoas como o maior “bem” de todos (no duplo sentido da expressão), e se, de fato, uma prole sem pai está longe de ser um grande problema, isso não quer dizer que tudo que é esperado de um pai é a fecundação – a união do sangue menstrual com o sêmen a partir de atos sexuais repetidos. Para começar, o ideal é que os genitores da criança façam sexo durante a gravidez, pois o sêmen nutre o feto. Além disso, o suporte dado por um pai é visto como extremamente importante na vida e no desenvolvimento de uma pessoa. Faz dela mais sábia, mais forte. O próprio homem que disse que a criança em si já é um presente bom o suficiente para uma mulher tinha muitas reclamações em relação ao seu próprio pai: dizia que ele nunca o deu kamísa nem espingarda, não lhe ensinou a caçar nem a fazer teombë (arte em madeira). Tinha uma relação conflituosa com o pai que, agora, na velhice, demandava atenção e carinho de seu primogênito, apesar da ausência durante grande parte da vida. Conflito nada incomum, grande parte dos homens guarda distância de seus filhos, mas casos opostos também abundavam na aldeia: homens e

265 mulheres que tiveram em seus pais grandes exemplos de pessoas que lhes ajudaram durante a vida e continuam ajudando após a morte como espíritos bondosos e protetores. Como vimos no capítulo 4, o homem pode escolher doar uma valísi com bens para uma mulher que engravidou, mesmo que não queiram manter relações maritais. Assim pode construir, desde o começo, uma relação de proximidade com a criança. Tal relação idealmente prolonga-se por toda a vida e depois da morte. Os pais em geral não doam a seus filhos e filhas casas e territórios dentro ou em volta da aldeia, mas podem destinar, na herança, objetos valiosos para sua prole, como barcos, armas de fogo, eletrodomésticos. Da mesma forma, não é problema nenhum um homem ensinar e transmitir óbia para seu filho. Uma relação propriamente paternal com sua prole é algo voluntário para um homem. Justamente por não ser obrigatória, quando ocorre é um vínculo marcado pela liberalidade, tende a ser mais amistoso do que aquele entre um filho e sua mãe. E quando ocorre, é celebrado: é questão de caráter, em Botopási. Quem faz filhos numa matrilinhagem mas nunca ajuda a criá-los será visto como mau exemplo, um marido a ser evitado. Para além das exigências que se faz a um pai, há uma série de heranças transmitidas pela via paterna. O filho sempre tem alguma relação com o beoë e o loo paternos. Para homens, isso é particularmente marcado no que diz respeito às habilidades masculinas – bom desempenho na caça, na arte, na retórica parecem na maioria dos casos derivada do tatá beoë. Como diz o ditado, “macaco-aranha não gera bugios” (kwáta án tá palí babúnu), ou seja, filhos sempre se assemelham aos seus pais. Quando uma criança não tem pai reconhecido oficialmente, e existem mais de uma possibilidade acerca de quem pode ter sido seu genitor, fofocas na aldeia sempre levantam como indícios semelhanças físicas e comportamentais entre o filho e seu suposto pai a fim de descobrir quem especificamente deveria preencher o papel. Isso vale não apenas para talentos, mas também para traços físicos negativos. Compreendem em Botopási que muitas doenças passam pela via do pai, como alcoolismo e loucura. Além disso, “tatá míi hói tjína”, dizem os saamaka: tabus alimentares são herdados patrilateralmente, em grande parte dos casos. Essas interdições, tjína, são uma das características mais pessoais de cada divíduo. Podem incluir certos vegetais como quiabo, amendoim, pimenta, certos animais como caranguejo, jabuti ou piranha, ou categorias mais amplas como qualquer animal que viva na copa das árvores (mbéti a líba), qualquer ave (fóu), qualquer tipo de comida preparada na véspera (jéside njanján) ou qualquer tipo de comida acerca da qual tenha havido alguma briga, dentre tantas possibilidades. Comer sua tjína

266 significa correr o risco de graves efeitos físicos: dores, vômitos, diarreia, erupções na pele, tonteiras e, em casos extremos, até morte. As pessoas sempre contam o pertencimento ao grupo do pai em paralelo ao da mãe: um filho de uma mulher de Botopási com um homem de Tutubúka diz-se ao mesmo tempo “gente de Botopási” e “gente de Tutú” (botopásisëmbë e tutúsëmbë). Se seu pai vem de um clã notório por ter muitos feiticeiros, a pessoa terá de lidar com pilhérias de que também teria tendências a ser wísima. Se o pai é de uma aldeia onde há bons músicos ou jogadores de futebol, sente que pode herdar tais talentos de lá. A lógica é segmentar: quando o pai é de outra matrilinhagem da mesma aldeia, é a linhagem que conta como elemento diacrítico; quando as aldeias do pai e da mãe diferem, é o pertencimento à mesma que conta; quando a diferença é o clã, o marcador está aí; igualmente quando o pai é de outra tribo ou etnia. O filho de um homem ndyuka com uma mulher saamaka que mora em Botopási é jocosamente chamado por seus vizinhos de ndyukamá (“pessoa ndyuka”), e apontam a etnia de seu pai como fonte de traços como o formato de seu rosto e a cor de sua pele. A importância desse pertencimento complementar ao princípio matrilateral reside na função protetora do tatá beoë. Quando uma pessoa escorrega e desequilibra-se, topa pedra com o pé, ou toma um susto, para se proteger chama o nome da matrilinhagem de seu pai. Mais ou menos no mesmo tipo de situação em que um brasileiro poderia exclamar “Nossa Senhora!” ou “Meu Deus!”. Isso é chamado de djulá. Se um homem cujo pai é da linhagem Bodji pisa numa pedra escorregadia no rio, grita “Bodji!” para que seu tatá beoë ajude a segurá-lo.182 Da mesma forma, são os filhos dos homens de um beoë, os paípái míi, que ajudarão nos casos de kúnu. Pois são pessoas relacionadas com a linhagem, mas não vulneráveis aos mesmo espíritos vingativos. No ciclo funerário as pessoas da matrilinhagem do pai do morto possuem também papel destacado. Primeiro porque perderam uma pessoa relacionada a elas, de forma que devem chorar, doar presentes, participar das cerimônias ativamente. Além disso, por sua capacidade protetora, pela sua proximidade sem tanta vulnerabilidade, serão escolhidas pessoas do tatá beoë para cargos funerários. Não são tão facilmente afetadas por ataques do morto, dos kúnu e de outros espíritos, mas são ligados à família, de forma que sua ajuda nesses momentos é fundamental. Em outros momentos, o tatá beoë não precisa se envolver. Como nas questões referentes a luto e herança: são assuntos do mamá beoë. A questão do incesto é visto de forma bastante pragmática pelos saamaka. Por serem comuns brigas envolvendo marido, mulher, sogros e cunhados, casar-se com alguém de sua 182 Mais uma vez, de modo segmentar: as pessoas cujo pai é de outro clã, ao invés de djulá com o nome do tatá beoë, o fazem com o nome do clã do pai, nesse caso uma extensão da matrilinhagem do pai.

267 própria linhagem significa aumentar os riscos de conflitos que podem engendrar kúnu. O grande problema de casar dentro do principal grupo exogâmico (o mamá beoë), explicaram-me, é justamente que, quando os filhos de uma relação incestuosa tiverem algum problema, não terão um tatá beoë à quem djulá. Além de ficar sem vários benefícios econômicos e emocionais que a filiação complementar oferece, alguém sem tatá beoë não teria a quem recorrer em casos de infortúnio. Nos casos que existem em Botopási, quem é filho de um homem e uma mulher do mesmo beoë costuma djulá dizendo o nome do seu clã, para esconder o fato de ser fruto de uma relação imprópria. O subterfúgio, porém, não é efetivo como proteção, continuam sem o anteparo da matrilinhagem do pai. Sem uma linhagem “neutra” e próxima a quem recorrer em casos de kúnu. Ou em tratamentos com óbia: quando uma pessoa está se tratando de algo sério no território de seu mamá beoë, mas a cura não está dando certo, deve ir ao território do tatá beoë continuar o tratamento. Alguém nascido de um incesto não teria tal opção. Além do mais, doenças frequentemente vêm do beoë, de forma que, sendo fruto de uma só linhagem, a pessoa teria chance de carregá-las mais pronunciadamente.183 Casar com alguém de seu tatá beoë não é uma relação proscrita, mas tampouco é casamento preferencial. O problema é que são vistos como uniões próximas demais, nas quais problemas familiares tendem a confundir-se com problemas conjugais. Um exemplo extremo seria envolver o seu tatá beoë em questões de coesposas (kambósa), uma das relações mais tensas do leque do parentesco saamaka. Casamentos próximos permitem mais espaço para um sentimento negativo, o ciúme (djalúsu). A relação com o pai e sua matrilinhagem envolve antes de tudo as questões – tão caras para os saamaka – de amor, união e respeito. Sendo uma relação em grande parte voluntária, aponta para o desejo de reciprocidade e ajuda mútua em diversos aspectos da vida. Mas a proximidade corporal, social e espiritual da posição de genitor faz com que esta seja uma relação muito mais marcada do que as relações de amizade e mesmo de afinidade. Conforme afirma R. Price, homens saamaka tendem a afirmar que, numa situação em que tivessem que escolher, protegeriam antes seus filhos antes dos filhos da irmã, apesar da pertença ao grupo 183 Köbben afirma sobre os ndyuka do Cottica que, apesar da exogamia ter sido uma regra para os beoë no passado, nos anos 1960 o casamento com alguém de outro matrissegmento do mesmo beoë era polêmico, mas possível. Para seus informantes, isso seria possível porque os deuses estariam mais “calmos”. O relaxamento nas regras de exogamia tem vantagens (coisas e pessoas ficam no seu próprio bee), e desvantagens: “Se todos casassem dentro de uma aldeia, não teríamos mais afins (konlibi) vindo morar na aldeia. E então quem mediaria os conflitos? [...] Como um informante comentou num tom quase levi-straussiano: 'Suponha que todos se casassem dentro da matrilinhagem, não teríamos contato com outras aldeias e poucas pessoas estariam presentes em ocasiões como banquetes mortuários, apenas pessoas de nossa própria aldeia, isso não seria certo'” (1967: 21).

268 dos últimos, e da responsabilidade para com eles (1975: 53-4). A lógica é matrilinear, mas opõe-se a ela uma inclinação pessoal derivada das fortes relações emocionais voluntária entre pai e filhos. O tío (MB) é fonte de autoridade, mas o pai é volitivamente próximo. Uma versão peculiar das conotações evocadas aos saamaka pela matri- e patrilateralidade surgiu em um diálogo com um pentecostal. Ele afirmava que na Bíblia as linhagens descritas são sempre as do lado do Pai: o livro fala de Jacó, filho de Isaque, neto de Abraão; Salomão, filho de Davi, neto de Saul, etc. Essa seria a “linhagem de Deus” (Gádu lijn). Do lado materno haveria “a linhagem africana” (afiikán lijn), marcada por maldições (fuúku), espíritos vingativos. Por isso, o tatá beoë protegeria em assuntos como kúnu: seria uma forma de parentesco mais ligada a Deus. Não sei se a interpretação é idiossincrática ou difundida entre pentecostais. De todo modo, reforça as imagens distintas evocadas por cada tipo de filiação e também a pressão à patrilinearidade e ao patriarcado, propagada por instituições como a igreja (ver nota 165, cap. 4).

Padrinhos espirituais O segundo elemento a acrescentar é um modus operandi dos mortos bem diferente dos espíritos vingativos: os “padrinhos espirituais” ou “genitores sobrenaturais”, neoséki. Quando uma criança está nos seus estágios iniciais de desenvolvimento, passa por uma fase em que chora muito, fica fraca, recorrentemente doente. Trata-se de algo normal, ela está “procurando seu neoséki”. Nesse momento, o padrinho espiritual escolhe a criança e irá fazê-la “brotar” (nasí) e “crescer” (göoo) – a analogia aqui é com o desenvolvimento vegetal. O neoséki é alguém que já morreu, quase sempre da família da criança, muito frequentemente alguém de seu tatá beoë.184 Trata-se de alguém que tem um carinho especial por aquela criança (pela 184 Richard Price afirma que neoséki em casos raros podem ser espíritos da floresta ou cachorros de caça (2002 [1983]: 45). Não conheço casos assim, mas a possibilidade de neoséki não humanos existe. Um exemplo importante é o de Anake, o profeta que despertou o cristianismo entre os Dómbi. Uma das versões que ouvi de sua história é que seu neoséki foi um óbia ndyuka, Gaán Gádu (ver próximo capítulo). Um mito coletado por Richard & Sally Price (1991: 60-74) também demonstra a ligação entre cachorros de caça e os neoséki: um cachorro de caça se perdeu, e seu dono recorre a um óbiama para encontrá-lo. O óbiama diz que o cachorro seguiu uma trilha por onde humanos não passavam, habitada por um demônio que engolia pessoas e era resistente a armas de fogo e brancas, vulnerável apenas à agulhas. O homem então manda forjar uma trombeta capaz de chamar o demônio com sua doce música. O demônio vem, encantado, mas acaba atacando o homem que, tenta defender-se com armas, sem sucesso. O homem afinal ameaça o demônio com uma agulha e obriga-o a vomitar todas as pessoas que havia engolido, par a depois revivê-las com folhas (uwíi). Por fim o demônio vomita e revive o cachorro. O homem então enfia a agulha na moleira do demônio e a partir de então as pessoas podem reencarnar depois de mortas, como as pessoas reviveram depois de cuspidas pelo demônio. Note que o mito aponta para a relação entre a morte e o demônio – como dizem meus informantes cristãos, “Deus não trabalha com morte”. A fábula formula a reencarnação (na forma de neoséki) como uma instituição que vai contra o gosto do demônio, isto é, algo bom.

269 relação com seus pais ou por outro motivo) e a escolherá para nela reencarnar. A alma (akáa) do morto, seu princípio de singularidade, fará parte da pessoa da criança, emprestando a ela características físicas, espirituais e emocionais. Uma pessoa cujo neoséki era agressivo será agressiva, uma pessoa cujo neoséki era sovina será sovina, uma pessoa cujo neoséki era bem humorado será bem humorada. Características físicas, trejeitos, fisionomia também assemelham cada pessoa e seu neoséki. Principalmente, padrinhos espirituais transmitem para aqueles que “brotam” as suas tjína, seus tabus alimentares pessoais. Na literatura, neoséki já foi traduzido por “genitor sobrenatural” e por namesake (“xará” ou “homônimo”, em inglês). A escolha por namesake parece influenciada principalmente pela etimologia, mas não é fora de propósito: os saamaka enxergam uma relação especial entre pessoas que possuem o mesmo nome (sééi neo), assim como entre pessoas que nasceram exatamente no mesmo dia. Uma pessoa saamaka também tende a estabelecer uma relação com aquele que escolhe seu nome e com a pessoa que a tira de casa pela primeira vez, na cerimônia de púu míi a dooö (“retirar a criança de casa”) e com os padrinhos (pepe) que o batizaram (dópu) na igreja. São divíduos que compartilham entre si um componente relevante de suas pessoas, que doam à criança um traço de sua pessoalidade ou que abrem caminhos para os infantes. Já a escolha por “genitor sobrenatural” aponta para o papel do neoséki na “germinação” da criança. Escolho manter o termo no original na maior parte de suas ocorrências, para sublinhar a originalidade maroon desse agenciamento dos mortos. Utilizo eventualmente o termo “padrinho espiritual” para marcar as semelhanças entre o neoséki e o pai (ambos protegem, doam características para a pessoa, transmitem tjína). Simultaneamente, “padrinho espiritual” enfatiza tratar-se de uma relação de quase-parentesco contraída voluntariamente, como o compadrio, porém relativa ao mundo espiritual, invisível. Para “partir a criança” (paatí míi), isto é, descobrir seu neoséki, há ao menos dois oráculos. Um é simples: amarram um barbante no pulso do neném e outro no pulso da mãe; se o da mãe soltar primeiro, o neoséki será alguém do mamá beoë; se o da criança primeiro soltar antes, será do tatá beoë. O outro utiliza um oráculo chamado mungá, que consiste num pêndulo que fica parado se a resposta for não e se move se a resposta for sim. Começam sempre perguntando se o neoséki é da matrilinhagem da mãe ou do pai, depois vão refinando a busca até achar o neoséki específico (o processo chama-se paatí, porque estão “partindo” a criança entre os tatá e mamá beoë). Depois banham a criança com um remédio especial, à base de plantas locais, misturado e aplicado num buraco no chão. Em geral o fazem por volta do alvorecer e a criança só pode sair de casa na manhã seguinte. Normalmente, mas não

270 obrigatoriamente, a mãe também fica reclusa no dia. A “partição” pode ser feita antes ou depois de “tirar a criança de casa” (púu míi a dooö), tudo depende da saúde e desenvolvimento do bebê. Por vezes nem mesmo é feito.185 Todas as pessoas tem um neoséki, mas uma ou outra desconhece a identidade do seu. Muitos descobrem seu “padrinho” por inferências da família: vão notando características físicas e de personalidade na pessoa, que remetem a um parente falecido que teria motivos para querer “brotar” aquela criança, e assim chegam ao neoséki. Uma maneira frequente de reconhecer seu neoséki é por meio dos tabus alimentares (tjína) que são os marcadores corporais mais importantes transmitidos por tal forma de ressurreição. Tjína são quase sempre pessoais, pertencimento comum a uma linhagem ou aldeia a princípio não indica compartilhamento de restrições alimentares. Podem ter diversas origens. Quando transmitidas pelo neoséki muitas vezes são relacionada com a morte do padrinho espiritual. Afinal, um morto, agindo como neoséki ou outro, é sempre marcado por sua história, incluindo a situação crucial de sua morte. Um senhor de Botopási foi “brotado” por um homem que morreu com um golpe forte na cabeça bem no momento em que comia amendoim, isso faz com que o homem vivo hoje tenha tjína de amendoim. A esposa do mesmo homem contou que sua neoséki era a avó de seu pai (FMM, tógbo). A ancestral estava de luto pela morte de seu marido e quando ia fazer o ritual de “remover luto” (púu baáka), no qual é preciso que algum homem faça sexo com a viúva, escolheram um baáa (irmão classificatório) do falecido, como de costume. Mas a esposa do homem ficou com ciúmes de um eventual casamento em levirato (hói suwági), e por isso colocou uma pimenta forte na água que a mulher iria lavar suas partes íntimas. Na manhã seguinte, a viúva lavou-se com a água e sangrou até a morte. Depois de falecida, ela veio a se tornar neoséki da mulher que me contou a história, que não pode comer pimenta, é sua tjína, sempre que prova um pouco sua barriga dói e seu corpo todo esquenta. Esses episódios parecem aproximar os neoséki dos kúnu, mas nem toda interdição alimentar pessoal tem origem tão trágica. Cedo na vida, a pessoa normalmente já sabe quem é seu neoséki, pelas tjína, pelo físico, mas também pelo comportamento. A alma (akáa), lembremos, é o que faz a pessoa agir como age, é seu princípio pessoal mais único. É esse componente do parente falecido que ficará dentro da nova pessoa, em quem reencarnou, por toda nova vida. O que não quer dizer que eles sejam a mesma pessoa, nem que a vida deles necessariamente se assemelhará. Alguns aspectos, porém, serão similares, isso nunca falha: características marcantes do neoséki serão transmitidas para a criança. Podem ser traços mais gerais de personalidade ou coisas bem 185 Mais uma vez, é o cristianismo de Botopási que torna o uso de oráculos mais restrito, mas como neste caso trata-se de algo particular, em casa, não são poucos que decidem performam o paatí míi para seus filhos.

271 específicas. Uma criança que tenha um neoséki muito velho, da época em que os saamaka não eram acostumados com pessoas brancas, pode ter um pavor particular de bakáa, digamos. Lenoir (1973: 145-6) afirma que, para os paamaka, cada pessoa vive na terra quatro vidas completas. Após uma vida como humano, pode reencarnar em crianças e viver três vezes como neoséki.186 Perguntei aos meus informantes se isso procedia em saamaka e nenhum tinha ouvido nada de semelhante. Partiu daí um debate sobre se uma mesma pessoa poderia “brotar” (nasí) várias crianças simultaneamente: alguns achavam que não, pois cada pessoa é uma só, não poderia viver mais de uma vida de uma vez, nem como neoséki. Mas outros lembraram exemplos de um mesmo falecido que era “padrinho” de mais de uma criança da aldeia simultaneamente. A discordância pareceu-me resolvida quando ouvi um dos anciões mais sábios dizer que, quando morrer, pretendia “brotar” três crianças, para elas irem à escola, coisa que em seu tempo não teve oportunidade de fazer. Para ele, era claro que uma pessoa pode “brotar” várias crianças, da mesma forma que de uma só espiga de milho vários pés podem brotar. Por outro lado, é ponto pacífico é que cada pessoa tem um só neoséki.187 Pode ocorrer que mais de um espírito de morto que gosta da criança possam entrar em disputa para saber quem vai doar sua akáa a ela. Nesses casos o processo de “procurar o neoséki” é mais longo e problemático, a criança pode ficar tempos se sentindo mal, inquieta, chorando muito, mas uma vez resolvida a questão, o “padrinho” será como qualquer outro. O neoséki é só um, mas ele nunca está isolado. R. Price demonstra que esses “padrinhos espirituais” criam para seus “afilhados” uma espécie de “linhagem espiritual”. Belfón Abóikóni, o último gaamá saamaka, falecido em junho de 2014, possuía como neoséki Bôò, mãe de outro gaamá, Agbagó Abóikóni; Bôò por sua vez tinha como neoséki Lukéinsi, que fora médium de uma divindade da floresta muito antiga e muito poderosa. Para além de suas capacidades políticas e espirituais particulares, portanto, gaamá Belfón tinha espíritos de ancestrais poderosos vivendo em seu próprio corpo, tornando-o ainda mais vigoroso misticamente (R. Price 2011: 127). Já Tooy, óbiama informante de Price, tem como neoséki Pobôsi, um homem importante que no começo do séc. XX fundou uma igreja cristã 186 Ser um neoséki, em paamaka, de acordo com Lenoir, é considerado uma recompensa por não ter sido feiticeiro em sua vida humana. Parris (2011: 38) faz uma colocação semelhante sobre os ndyuka do Tapanahoni, afirma que, entre eles, feiticeiros não devem ser chorados para não se tornarem neoséki de ninguém, o que obviamente seria perigoso, o “afilhado” poderia vir a se tornar também um feiticeiro. Além disso, para os paamaka, o kúnu só possui médiuns por três gerações, mesmo que seja um gaán kúnu, depois tende a sumir (Lenoir 1973: 198). Notamos nesses aspectos transformações com relação ao pensamento saamaka sobre tais assuntos. Para meus informantes nem kúnu nem neoséki possuem uma limitação temporal em sua ação na terra. A relação entre neoséki e feitiçaria tampouco foi explicitada por meus informantes, mas R. Price afirma que um morto só pode tornar-se “genitor sobrenatural” se for bem enterrado (1990: 309n10). 187 Para os ndyuka, Vernon (1992: 27) afirma que cada pessoa pode ter um, dois ou três neoséki.

272 idiossincrática, com muitos seguidores, e era possuído por um espírito chamado Masa Hepima (idem 2008: 111-114). Isso garantiria a Tooy uma proximidade com esse espírito. Tooy ainda afirma que todas as pessoas, além dos próprios neoséki, guardam vínculos também com o neoséki de seu neoséki. No seu caso, isso reforça a ligação de Tooy com Antamá, importante ancestral que participou das guerras contra os brancos e possivelmente esteve presente durante a assinatura do tratado de paz com os holandeses no séc. XVIII. O neoséki de Pobôsi, era Kiinza, filha de Antamá, aproximando espiritualmente Tooy, por meio do neoséki de seu neoséki, ao vultoso ancestral (ibid.: 150-7). Não é difícil imaginar que mortos mais velhos, mais poderosos, sejam capazes de “brotar” mais crianças. O neoséki também aponta para um ideal de boa vida saamaka, uma pessoa “completa” tem mais chance de ser lembrada, invocada como antepassado e também de iniciar uma nova vida na terra como extensão de si em outros corpos. Antepassados particularmente importantes são gaánsëmbë, “velhos” ou “pessoas grandes”, capazes não de viver para sempre, mas certamente de ter uma agência mais longeva entre os vivos. O neoséki, portanto, coloca os vivos em uma relação corporal e espiritual direta com os ancestrais. O “padrinho” é sempre alguém que tem um carinho especial por seu “afilhado”, ajudará a cuidar para que a vida do novo corpo onde habitará seja boa, dando força espiritual, ensinamentos, sabedoria. Por isso o neoséki pode vir tanto do lado da mãe quanto do pai, ambas as famílias a princípio têm relações afetuosas com sua prole – ainda que de naturezas distintas. A dimensão volitiva do morto está mais uma vez em jogo: eles escolhem quem vão “brotar”. Quando perguntei a meus amigos se mulheres podem ser neoséki de homens e viceversa, eles afirmaram que isso é normal. Cogitam que um homem possa se cansar, em vida, de tanto “trabalho de homem” e por isso decidida ressuscitar em uma mulher. Um ancião (como no exemplo acima), já pode ter planos para seus futuros “afilhados”. A diferença óbvia com os kúnu é que são os bons sentimentos dos mortos que estão agindo – seu amor, seu cuidado, e seus poderes – quando decidem apadrinhar espiritualmente uma criança. O desejo de vida aparece aqui, como entre os kúnu, mas não como um apego vingativo à existência na terra e sim como uma oportunidade de uma nova estada parcial entre os humanos, que traz bons frutos para seus entes queridos. Lembremos, outros mortos amigáveis também podem ajudar os vivos – desde ancestrais muito antigos até parentes recém-falecidos. Os neoséki o fazem de uma maneira bastante específica. A diferença entre akáa e joóka, explorada no capítulo 2, é relevante. O espírito de um morto em geral não é pensado como akáa, alma, mas como joóka, fantasma. O

273 joóka, previamente inexistente na pessoa viva, vaga pelo mundo, principalmente pela noite, fazendo mal, é perigoso. É um espírito ruim que assombra casas, espaços da floresta e áreas do rio, que pode ser usado para fazer feitiços. A akáa é um princípio vital, sua única agência possível é dar vida, por isso vai para o corpo de novas pessoas vivas, fazendo-as brotar e crescer, tornando-se seu nëséki. Ainda que forme parcialmente o corpo e a personalidade, o neoséki é um componente da pessoa distinto da akáa. A alma, princípio individualizante é própria de cada pessoa, enquanto “padrinhos espirituais” podem ser compartilhados. Assim, cada pessoa tem dois princípios vitais: akáa e neoséki, que a formam enquanto gente viva.188 A akáa em última instância tem origem divina, coloca a relação individualizada entre a pessoa e o mundo. O neoséki, por outro lado, coloca a pessoa em relação íntima com parentes. Como afirma Vernon, “os nenseki vêm encarnar seus laços com a matrilinhagem – tanto a da mãe quanto a do pai, do avô e portanto as uniões de parentesco gerados pelo bee da mãe” (1992: 27). As diversas relações do mamá beoë são colocadas em jogo na composição corporal de um de seus membros. O corpo de cada pessoa é em grande parte uma iteração da substância matrilinear, mas o neoséki e o tatá beoë expandem a composição corporal para além de uma repetição do grupo corporado. Tjína e outras características herdadas pelo lado do pai e do neoséki (esse matrilateral, patrilateral, ou outros) estão dentre os elementos que cada pessoa têm de mais pessoal, princípios de individualidade que fazem cada um ser uma pessoa destacada dentro de sua composição genealógica. Fazem de cada pessoa única e, ao mesmo tempo, compósita. Uma espécie de “androginia linear” voluntária que configura os corpos. O neoséki implica o estabelecimento de uma relação pessoal singular entre vivos e mortos que elicia a individualidade de um vivente ao conectá-lo a um morto. A pessoa só se torna completa (mas nunca fechada), na medida em que seu corpo é parcialmente construído por um ancestral da linhagem de seu pai ou de sua mãe.

Pessoas, grupos e vulnerabilidades As pessoas de Botopási possuem um grande apego à ideia de união. O atual capítulo e o anterior se encadeiam numa tentativa de compreender o que é essa união, noção para a qual, curiosamente, usam um termo em holandês (eenheid) ou traduzem em sua própria língua por “amor” (lóbi). Ainda no primeiro capítulo desta tese, vimos como as unidades que estão em 188 Como vimos a literatura sobre a noção de pessoa afrosurinamesa (maroon e creole) aponta para outros componentes da pessoa, além de neoséki e akáa. Para a análise que pretendo do assunto nesta altura, bastamme esses dois elementos, mas um estudo detido da pessoa saamaka apontaria para uma maior complexidade.

274 jogo aqui, aquelas para as quais se prega união – tribo, clã, aldeia, linhagem, família – estão em um jogo constante de abertura e fechamento, autonomia e interdependência. Podemos dizer que a máquina social saamaka está montada sobre forças centrípetas e centrífugas. Uma estrutura de cargos hierárquicos quase piramidal é contrabalanceada pelo foco na liberdade individual e pela solidariedade maior com os segmentos menores – a aldeia frente a tribo, a matrilinhagem frente a aldeia, o wósu déndu frente ao beoë, o bóbi frente ao wósu déndu. Os mortos são parte do que coloca a máquina em movimento, ativa e reativamente. Uma morte causa uma fissura nas relações pessoais que devem ser reconstruídas no ciclo funerário por meio de festa, convivência, comensalidade e trocas cerimoniais – de união, enfim. Um espírito vingativo causa uma ameaça a um grupo que precisa ser rechaçada por meio da ação coletiva moralmente orientada: preces, oferendas, cuidados, vigilância, paz – união, enfim. Os grupos saamaka, em diferentes níveis, precisam pensar-se enquanto unidades por estarem num esforço constante de sobrevivência frente a diversas forças destrutivas do universo, sobrenaturais ou não, mas sobretudo pessoalizadas. Um esforço de agrupamento consciente existe, desde a etnogênese maroon, em um período de grande adversidade, contra a escravidão, a potência militar colonial, os perigos da floresta e de traições internas. Para os saamaka, a união deve sempre ser feita, alcançada ativamente ou reativamente. Os kúnu demonstram antes de tudo que ameaças comuns, vulnerabilidades compartilhadas, são fatores que levam os maroons a agregarem-se. Nesse caso, ameaças de um outro não-humano, ex-humano, gerado pela culpabilidade coletiva dentro de um grupo corporado que leva uma atitude violenta ou descuidada de um membro do mamá beoë a atingir todos os descendentes de uma mesma ancestral. Os neoséki e o papel do tatá beoë acrescentam outras dimensões de vulnerabilidade, de proximidade e de união. Temos aqui associações largamente voluntárias: um pai ajuda a criar uma criança se quiser; um neoséki escolhe “brotar” uma criança numa família com quem tem relações de afeto. Produzem uma relação corporal de vulnerabilidade compartilhada (as tjína), bastante diferente da eliciada pelos kúnu. R. Price nota que aqueles que compartilham um neoséki possuem uma relação particular. A morte de alguém com a quem se compartilha um “padrinho espiritual” coloca o vivo em risco de ser levado por seu morto para o além, de forma que ela tem que tomar uma série de precauções até o límba uwíi do falecido (1990: 309n10). Uma relação portanto que guarda similaridades com a relação de cônjuges e consanguíneos próximos. Köbben (1967) e R. Price (1975) nos informam que quem compartilha o mesmo tabu alimentar possui a capacidade de quebrar os kándúu (óbia que protegem propriedades particulares) uns dos

275 outros sem sofrer as consequências dessas armadilhas mágicas. Apesar disso, pessoas que possuem a mesma tjína e pessoas que compartilham um neoséki não são conceitualizados como grupos ou categorias particulares (como acontece em casos conhecidos na literatura antropológica, de tabus alimentares ligados a totens por exemplo). Em saamaka, as pessoas nem costumam saber as tjína umas das outras. A “linhagem espiritual” na qual os neoséki inserem cada pessoa não é uma linhagem no sentido de um grupo corporado, mas uma “ascendência” particular para cada pessoa, que só é traçada a partir de sua perspectiva. Não tem qualquer existência enquanto grupo, é no máximo um conjunto de agentes mortos que auxiliam um único vivo. No que tange às tjína, portanto, a unidade que parece estar sendo criada não é coletiva, mas pessoal. Tal vulnerabilidade é uma marca corporal da composição espiritual e genealógica da pessoa. A tjína é um dos marcadores mais profundos de individualidade mas, como derivam sobretudo da matrilinhagem do pai ou do padrinho espiritual, notamos que se trata-se antes de uma dividualidade, isto é, da pessoa enquanto uma unidade aberta, composta internamente por múltiplas associações heterogêneas, coletivas e pessoais. Como diz Marilyn Strathern, características corporais registros de interações que formam o íntimo das pessoas. As pessoas são um microcosmo de relações, relações que estão em movimento, e podem ser nutridas ou descartadas, posto que cada pessoa é vulnerável à disposição corporal e aos desejos alheios (2006 [1989]: 204-5). R. Price afirma: “A identificação de um homem com o loo de seu pai [e com a matrilinhagem dele] revela uma função importante do conceito saamaka de paternidade: diferenciar entre parentes matrilineares com os quais a maioria da interação social se dá” (1975: 53). Estamos muito próximos do que Meyer Fortes chama de filiação complementar: Já que a família bilateral é o elemento central na teia do parentesco, a filiação complementar fornece a ligação essencial entre um grupo de irmãos e os parentes do genitor que não determina a descendência. Assim, um grupo de irmãos não é apenas diferenciado dentro de uma linhagem, é adicionalmente distinguido por referência a seu laços de parentesco fora da unidade corporada. Este dispositivo estrutural permite níveis de individuação dependendo da medida em que a filiação do lado não corporado é elaborada (Fortes 1953: 33).

Já que estamos tratando de tabus alimentares, nos aproximamos ainda mais de Fortes. O autor dizia que comer é uma atividade autônoma e individual, mas suscetível à regulação voluntária por incorporar elementos do ambiente externo à pessoa. Assim, tabus alimentares funcionariam como “veículos materiais de transações e de relações de força vinculativa moral e ritual. […] Em suma, comer presta-se singularmente à imposição de regras” (1987 [1966]: 140). Animais seriam particularmente adequados a objetificar imperativos morais porque são “bons para proibir” (ibid.: 144). Tal visão dos tabus alimentares e da filiação complementar é

276 exageradamente jurídica. Passa por uma ideia de que pessoas são aglomerados de papéis e status, e também que fenômenos sociais tem antes de tudo a função de regular as vidas. Ainda que eu tenha notado a grande importância da ideia de weoti (regras) na filosofia saamaka, não me parece fazer sentido resumir a vida das pessoas à anuência ou desacordo com elas. No ponto em questão, temos duas instituições – tatá beoë e neoséki – que se prestam, sim, à diferenciação pessoal frente ao beoë, à criação de unidades menores, mas não como forma de criar figuras jurídicas mais específicas. O que Fortes (e R. Price) fazem, com a análise funcionalista, é inverter as afirmações nativas: a relação complementar com o tatá beoë não ajuda a individuar pessoas, ele faz parte do que as pessoas são, do que as torna, no final das contas, divíduos. Os tabus alimentares nos ajudam a pensar não a imposição de imperativos morais (não há nada imoral em comer pimenta, quem não tem tal tjína pode comê-la livremente), nem os sistemas classificatórios (num sentido douglasiano ou lévistraussiano). O que as tjína iluminam é como ancestrais e ou parentes patrilaterais “comem juntos”, ou melhor, “deixam de comer junto” com uma pessoa específica, aproximando-se corporalmente ao dividirem uma mesma vulnerabilidade. Colocando lado a lado kúnu e neoséki, temos duas modalidades distintas de vulnerabilidade compartilhada. No primeiro caso, provêm da violência e das atitudes imorais, e seu efeito é gerar a pertença a um grupo corporado, bem como a própria definição desse grupo. No segundo caso, temos uma vulnerabilidade pessoal, sem qualquer peso moral, que aparece como índice da relação íntima com uma pessoa. Cada kúnu é uma nova relação predatória que reforça uma rede de relações solidárias preexistentes entre os membros de linhagens (e entre os beoë uns com os outros) a partir de um outrem espiritual. Cada neoséki gera uma relação solidária nova, dois a dois, que reforça laços de solidariedade desenhados anteriormente (um neoséki escolhe uma criança por amor à sua família). Já a relação com o tatá beoë aponta para vulnerabilidades compartilhadas (as tjína) que são índices no corpo da prole da relação de afinidade entre dois grupos corporados e, além disso, aponta para as vulnerabilidades não compartilhadas, para as quais a proteção paternal ou da matrilinhagem do pai enquanto grupo corporado é extremamente útil (ao djulá, na ajuda com os kúnu etc). Por fim, as trocas rituais e demais formas de sociabilidade do ciclo funerário apontam para uma vulnerabilidade que é comum a todos os habitantes de uma aldeia e a todas as pessoas relacionadas a elas (o risco de ataques do morto logo que faleceu), contra a qual há um contraesforço de união festiva. Nenhuma dessas instituições é mais importante que as outras.

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Capítulo 6: Cristianismos saamaka

Paulus Anake e os moravianos O problema da história saamaka, das narrativas de fésiten – dizia um amigo em meus primeiros meses de trabalho de campo – é que os anciões que as conhecem escondem muita coisa; além disso, cada um tem uma versão diferente sobre os fatos, é difícil saber o que realmente se passou. Mas sobre uma parte da história de Botopási não há dúvidas, disse, e contou-me sobre a fundação da aldeia. Os dómineongë vieram de Sofibuka, aldeia localizada entre os locais onde hoje estão Futunaákaba e Debikeo. Lá houve um grande problema envolvendo um homem chamado Anake, que foi possuído por “um espírito da igreja” (kéíki jejé). Isso fazia com que ele andasse pela aldeia falando sobre Jesus, lendo versículos da Bíblia de suas palmas, coisas do tipo. A certa altura, ele cavou no principal ancoradouro da aldeia um óbia, que lá ficava enterrado, como proteção para a aldeia inteira. Fizeram kuútu e decidiram dividir Sofibuka. As pessoas que queriam adotar a igreja cristã foram fundar Futunaákaba e Botopási, as não cristãs fundaram Pikísééi. Assim apresentaram-me pela primeira vez a história (geschiedenis) de Botopási. Narrativas históricas, para os saamaka e demais maroons das Guianas, são valiosas e perigosas. Dizem respeito a eventos, pessoas e locais chave para as formações, consolidações e transformações dessas sociedades: os sofrimentos durante a escravidão, a fuga das plantations, a guerra com o poder colonial, os tratados de paz, a fundação de aldeias, os encontros com divindades na floresta e no rio, os conflitos internos, as relações com ameríndios, com outros grupos maroons, com a cidade e com os ciclos econômicos que atravessaram. Transmitida por fragmentos genealógicos, epítetos pessoais, toponímia, provérbios, canções e outros modos de comunicação, a história diz respeito à política segmentar maroon, ajuda a regular as disputas entre os clãs, linhagens e matrissegmentos no que tange à posse de terra, à transmissão de cargos, ao domínio de fórmulas mágicas, às relações com divindades, antepassados e espíritos vingativos (cf. R. Price 2002 [1983]: 7-13; Parris 2011: 90ss). As histórias mais antigas falam sobre os séculos XVII e XVIII, apontam sobretudo para a genealogia das linhagens e a política interclânica, são conhecidas principalmente por especialistas, homens mais velhos, particularmente interessados e atentos a fragmentos que juntaram ao longo de sua vida e que podem servir de referência para disputas atuais.

278 Em Botopási, a história de Paulus Anake aparece como uma camada mais recente do passado que serve de referência importante, pois marca a chegada do cristianismo ao clã Dómbi e a fundação de quatro das cinco aldeias atualmente pertencentes ao clã. A versão resumida acima – narrada por um homem que não carregava particularmente nenhuma autoridade (ou mesmo interesse profundo) no assunto – é uma espécie de vulgata local da história, uma “história coloquial”, para simplificar. Certos eventos ocorridos na passagem do século XIX para o XX são de conhecimento mais público, em parte por serem mais próximos cronologicamente, em parte porque não apontam diretamente para questões polêmicas como posse de terra e de cargos políticos. O que não significa que inexistam versões e perspectivas diferentes, e certas pessoas conheçam mais detalhes que outras. Anake é um personagem mais recorrente nas conversas e polêmicas cotidianas em Botopási do que outros grandes heróis do passado, os ancestrais que fugiram das plantations, os homens que lutaram contra os brancos, as mulheres que fundaram as matrilinhagens. Reconto sua história aqui partindo de fragmentos narrados diretamente para mim ou ouvidos em conversas entre pessoas de Botopási, e das versões existentes na literatura histórica e antropológica, que por sua vez baseiam-se sobretudo no relato do missionário moraviano então residente entre os saamaka, Izaak Albitrouw, um ndyuka da região de Sara Kreek, testemunha ocular dos acontecimentos (Albitrouw 1978). Não pretendo apresentar uma interpretação definitiva nem comparar versões escritas e orais dela. 189 Diferente daquele interlocutor para quem era um problema saber “o que realmente se passou”, busco aqui apenas uma visão que dê conta da maneira como esses acontecimentos são pensados atualmente em Botopási por aqueles que não são especialistas, uma história coloquial que me auxilie a compreender o cristianismo atual em Botopási. *** Quando ocorre o episódio protagonizado por Anake, missionários moravianos já estavam presentes no Alto Suriname há 135 anos. 190 A origem da igreja chamada dos Irmãos Morávios remonta à região da Boêmia, hoje parte da República Tcheca, em 1457 (cf. Unitas Fratum 2009: 9). Um reavivamento, ocorrido na Saxônia na década de 1720 – quando o conde 189 Algumas pessoas alfabetizadas de Botopási já leram a versão editada dos diários de Albitrouw, bem como outros livros publicados sobre o assunto, incorporando tais leituras em suas visões da história de modo crítico. Separar uma visão “acadêmica” e uma visão “nativa” dos acontecimentos, para meus objetivos seria algo artificial. 190 R. Price (1990) narra em detalhes as primeiras cinco décadas da presença dos missionários alemães entre os saamaka. Para esse primeiro período, baseio-me sobretudo em sua versão, construída a partir de uma síntese de trabalho em arquivos moravianos e coloniais e uma pesquisa etnográfica profunda. A história saamaka nas décadas entre 1820 e 1890 ainda é uma lacuna na literatura e tampouco eu coletei muitas informações sobre essa época.

279 de Zizendorf torna-se o líder espiritual da comunidade de Herrnhut – incentivou aos morávios a evangelização em terras distantes, iniciando aquele que é largamente reconhecido como um dos primordiais movimentos missionários protestantes, tendo levado herrnhuters a terras tão distantes quanto Lapônia, Groenlândia, Armênia, Pérsia e Ilhas Virgens Dinamarquesas. A denominação chega no Suriname em 1735. Nas primeiras três décadas de presença morávia na colônia holandesa, concentraram seu trabalho com ameríndios, sem muito sucesso. Logo que os tratados de paz com os maroons são firmados, na década de 1760, os missionários passam a ser vistos como tendo serventia nos esforços de “pacificação” dos ex-escravos. 191 Foram usados, então, como intermediários na relação entre os saamaka e a colônia: missionários alemães chegam a ocupar, entre 1795 e 1813, a posição de posthouder192 do Alto Suriname (R. Price 1990: 54-64). Desde que chegam em 1765 no território saamaka – acompanhado pelo posthouder que ali estava desde o tratado de paz, três anos antes – os missionários foram relativamente bem tratados. Os saamaka entendiam que aquele contato com o mundo dos brancos os facilitaria o acesso a bens da costa, e que os alemães poderiam alfabetizar alguns jovens. Mas o cristianismo em si não foi tão bem recebido: houve resistência, sobretudo feminina, sobretudo quando mortes de crianças e outros infortúnios ocorridos nas aldeias onde se fixavam os missionários eram associados à fúria das divindades e dos espíritos de ancestrais pela presença daquela “concorrência religiosa”. Os missionários não apenas diminuíam em seu discurso os espíritos louvados pelos saamaka, como também quebravam tabus de divindades locais e eventualmente incentivavam a destruição de “ídolos” por parte dos convertidos (ibid.: 128-139 e passim). Figura central nesse primeiro período foi Alabi, do clã Awaná (filho de Abini, então gaamá), um dos meninos colocados sob tutela missionária para aprender a ler e escrever (ibid.: 94-7). Em 1770, Alabi emociona-se com as pregações do missionário Stoll e logo passa 191 A ideologia e a teologia dos moravianos não se opunha, então, à escravidão: “Sua aceitação pessoal da instituição [da escravidão] como parte dos planos divinos, os levava a pregarem aos escravos uma mensagem de submissão passiva – uma mensagem que um fazendeiro poderoso do Suriname notou ser 'não apenas para o benefício dos escravos, mas aumenta os lucros de seus mestres também'. Mas seu tratamento dos escravos como seres humanos (aos olhos de Deus), em todos os aspectos iguais a seus mestres (exceto em sua situação secular) criava uma abertura ideológica no sistema escravista que encorajava a rebelião, ainda que indiretamente. Num nível pessoal, os moravianos aceitavam totalmente a escravidão, criticando apenas os abusos 'inumanos' de seus mestres sádicos” (R. Price 1990: 418n13). 192 Oficiais da colônia morando entre os maroons, em sua maioria militares holandeses. Posthouders tiveram presença estratégica em cada uma das tribos maroons do Suriname da época do tratado de paz até o século XX. Sua importância foi maior até a abolição do tráfico de escravos, em meados do XIX, quando a política colonial em relação aos maroons era isolacionista. Dentre suas funções estava intermediar a entrega dos tributos do governo às lideranças maroons (cf. de Groot 2009: 149-161; R. Price 1990: 341-2n22).

280 a testar as divindades locais, a ver se resistem ao poder do Deus cristão, tendo destruído alguns poderosos óbia e matado animais sagrados, jacarés. Em 1771 é batizado, ganhando o nome de Johannes. Em 1783, torna-se o terceiro gaamá da história saamaka, posto que mantém até sua morte.193 Apesar da tenacidade que Johannes Alabi teve em sua fé cristã durante a vida, de seus esforços para convencer outros saamaka e da posição de líder supremo que exercia, foram apenas 29 adultos e 49 crianças saamaka convertidos entre 1765 e 1813, quase todos com relações de parentesco com Alabi. Comparativamente com outras missões morávias, a de saamaka não era, à época, considerada bem sucedida, apenas a fé de Alabi permanecia dando esperança aos missionários (ibid.: 265). Em 1788, teve início um “grande avivamento” na aldeia Kayana, do clã Langu, em parte incitado por viagens para proselitismo feitas por Alabi e pelos missionários. No entanto, o movimento não sobreviveu ao fechamento da missão em 1813, que ocorreu, segundo os missionários, por problemas de ambiente e saúde, mas principalmente pela pouca esperança que os morávios tinham então no progresso de seu trabalho (ibid.: 251-69). Mesmo sem seus “guias” brancos, Alabi manteve-se fiel ao cristianismo até seu leito de morte. Durante décadas, “todo o peso de preservar o cristianismo entre os saamaka recaiu sobre os frágeis ombros de Alabi e seus parentes que compartilhavam de sua fé” (ibid.: 272). Apenas em 1840 a missão moraviana reabriria, fundando, logo depois, a aldeia de Ganzé, onde descendentes cristãos de Alabi foram morar. A história da primeira fase do missionarismo cristão entre os saamaka não é contada com tantos detalhes no cotidiano, mas Johannes Alabi (ou Arabi) é personagem citado com frequência na história oral coloquial do cristianismo em Botopási, por ter sido o primeiro saamaka a ser batizado pelos “brancos da igreja” (kéíki bakáa). Foi ele, dizem, que aos poucos foi agregando parte de “sua gente” em torno do cristianismo, direta ou indiretamente. Primeiro, seus parentes e membros de seu clã Awaná; depois, saamaka mais distantes. Há quem sustente em Botopási que Anake e Alabi tinham contato pessoal, que Anake visitava Alabi em Tutubúka antes de seu episódio de possessão. Pela história dos livros e arquivos, a informação não procede, posto que Alabi teria morrido na década de 1820 (ibid.: 273) e Anake teria nascido por volta de 1855 (Thoden van Velzen & van Wetering 1988: 124). De todo modo, isso demonstra uma continuidade direta na história do cristianismo saamaka. 193 Por Alabi não participar da maioria das cerimônias “pagãs” – como quando divinação era necessária – muitas das funções que caberiam ao gaamá eram exercidas por outros líderes, como Antama (clã Langu) e Gbagidi (Matjáu)(R. Price 1990: 230-1, 412-3n1). Os saamaka tiveram apenas mais um gaamá cristão, um neto de Alabi, Frans Bona (clã Agbó), entre 1870 e 1886, nessa época o líder Bongootu (Matjáu) cumpria funções rituais importantes para os saamaka não cristãos (ibid.: 419n14, 412-3n1, 422-3n20).

281 Anake dependeu de Alabi (e de seus sucessores, encapsulados na sua figura) para iniciar o movimento que culminou na fundação de Botopási enquanto aldeia cristã. Dependeu também da existência das missões em Ganzé e Kofikampu, no médio Suriname, fundadas em meados do século XIX, hoje citadas como importantes comunidades cristãs, referências na história do cristianismo maroon. Missionários alemães levaram o cristianismo para o rio, mas seus nomes e agências perderam relevo com o tempo. O batizado e as ações do saamaka Johannes Alabi são tidos como os eventos mais relevantes da adoção do protestantismo na região. Anake nasceu e cresceu num período de importantes desenvolvimentos na história religiosa dos maroons do Suriname. As missões morávias se fortaleciam à jusante do rio Suriname, em Ganzé, Kofikampu e no Sara Kreek, espalhavam-se pelos Rio Saramacca (onde vivem os matawai) e Coppename (onde vivem os kwinti), chegando aos territórios ndyuka em 1835 (Cottica) e 1850 (Marowijne) (Veernooij 2009: 64). O missionarismo católico entre os saamaka se inicia em 1874, em Berg en Dal, à norte de Ganzé (ibid.). 194 Ao mesmo tempo, modificações nos termos dos tratados de paz em 1835 e 1856 e principalmente a abolição da escravatura em 1863 alteram a relação entre os maroons e o mundo costeiro. Ao invés de uma política isolacionista, que tentava evitar o contato entre os grupos maroons e os escravos das plantations, agora o governo colonial buscava transformar os “negros do mato” em “membros úteis da sociedade” (de Groot 2009: 22-3). Ainda que os maroons não tenham integrado-se plenamente à economia colonial no séc. XIX, tiveram papéis importantes nos ciclos da madeira e do ouro ao longo do século, o que provocou mudanças nas relações internas das tribos (cf. Thoden van Velzen & van Wetering 1983). Figura importante na época, que não posso deixar de mencionar, é Johannes King. De Ziel (1973) conta que King era um matawai que viveu entre c.1830 e 1898. Em sua juventude, teve uma doença durante a qual teve visões do céu e do inferno, e uma indicação de Deus para procurar os moravianos, que receberam-lhe em 1857. Em 1860, King exorcizou pessoas possuídas por divindades e destruiu os “alteres pagãos” e óbia de sua aldeia, tendo ali fundado uma igreja. Após 1864, ordenado por Deus, King passa a fazer viagens evangelizadoras pelos territórios de outros povos maroons, tendo passado pelo rio Suriname em 1866 e mantido 194 As missões católicas entre os maroons das Guianas foram particularmente bem sucedidas entre os paamaka, onde, nos anos 1970, católicos eram mais numerosos que moravianos (cf. Lenoir 1973). De Beet & Sterman (1981: 217-8) afirmam que o padre católico Morssink nas décadas de 1920 e 1930 fez um grande esforço para trazer o catolicismo para os matawai e saamaka, colocando-se numa posição combativa contra o “paganismo”, mas também contra o moravianismo. Em geral, missionários católicos eram mais tolerantes com práticas “tradicionais” (como tambores e óbia) do que protestantes. Hoje em dia, há uma aldeia católica no Alto Suriname, Ligolio, mas, devido à sua pouca relevância para a população em Botopási, não me deterei na história do catolicismo entre os saamaka.

282 relações com saamaka nas aldeias próximas a Ganzé. De Beet & Sterman (1981: 177-233) relatam em detalhes o papel de King na evangelização dos Matawai. Noah, irmão de King, foi gaamá matawai e teve muitos conflitos com o “missionário maroon”. Após a morte do irmão, King chega a assumir brevemente o posto de líder de sua tribo em 1895. King deixou escritos um diário de suas viagens à terra dos ndyuka (King 1973 [189x]) e um Livro dos Horrores (Skrekiboekoe) com descrições de suas visões (idem 1995 [1886]). Seu principal legado foi a capacidade de “traduzir” para os maroons a palavra de Deus de forma mais efetiva que os missionários eram capazes de fazer. Por ser matawai, King é menos lembrado em Botopási do que Alabi, mas seu nome surge quando falam sobre os primórdios do cristianismo maroon. Nesse contexto surge um culto entre os ndyuka, centrado numa poderosa divindade chamada Gaan Gadu ou Gaan Tata (“Grande Deus” ou “Grande Pai”). Teve início na virada da década de 1890, em Santigoon, a aldeia maroon mais próxima à Paramaribo, onde habitam ndyuka, matawai e saamaka. Ali, sacerdotes fundiram altares, óbia, oráculos, espíritos e divindades preexistentes, criando esse novo Grande Deus, que propunha a destruição de muitos óbia antigos (mas não todos, por exemplo os komatí foram mantidos intactos) e uma nova maneira de combater a feitiçaria. Diferente do que ocorria antes, quando os oráculos contra a feitiçaria só eram usados após a morte de uma pessoa, Gaan Tata passa a suspeitar e investigar permanentemente também os vivos, demandando fidelidade de atitudes e sentimentos, olhando no coração das pessoas e revelando o mal escondido nos pensamentos. Feiticeiros passam a não receber funerais e seus bens são em parte descartados na floresta, em parte recolhidos pelos sacerdotes de Gaan Tata no rio Tapanahoni. A divindade e a forma como tratava da questão da feitiçaria e do mal eram novas no contexto maroon, bem como a organização centralizada e hierárquica de seu culto, que se propunha geral para todos os maroons afetando diversos aspectos da vida das pessoas. Anteriormente, havia um equilíbrio maior, no qual cada divindade e seus sacerdotes agiam em questões mais pontuais, os poderes eram dominados por clãs distintos, espalhando-se pelos grupos. Isso nunca deixou de ocorrer, as antigas divindades nunca foram totalmente destruídas, mas houve uma tentativa de centralização por parte dos sacerdotes de Gaan Tata. O culto espalhou-se rapidamente entre os diversos povos maroons, adquirindo peculiaridades em cada local, agregando novas características e novos óbia a Gaan Tata (Thoden van Velzen & van Wetering 1988: 122). Em nenhum lugar foi tão relevante quanto no território ndyuka, onde permaneceu como o principal culto religioso até a década de 1920. Foi de certa forma substituído pelo culto a uma nova divindade, Na Ogii (“O Perigo”), cujo

283 sacerdote Atjaimikule revive panteões dos apukú, espíritos da floresta (idem 1982: 59-65). Posteriormente, nos anos 1970, o profeta Akalali tornou-se médium de Na Ogii e trouxe novas reformas no culto (idem 2004: 195-222). Mais recentemente, um homem chamado de Gaanga ou Da Kownu colocou-se como continuador de Akalali, tendo seu movimento alcançado um auge por volta de 2005. Dentre tantas reformas, o culto a Gaan Tata em si nunca deixou de existir, ainda que de maneira mais paroquial.195 *** Narram, em Botopási, que Akodi, homem do Jaja beoë (uma das linhagens Dómbi) era casado com Boobi (ou Sembelobi), uma mulher do Bodji beoë. Eles não conseguiam ter filhos, apenas natimortos. Para resolver isso, foram à terra dos ndyuka atrás de uma poderosa divindade que chamam em Botopási de Djukagadu (“divindade ndyuka”), aquela que os ndyuka chamam de Gaan Gadu ou Gaan Tata. O espírito não apenas lhe deu um filho, como também o “brotou”, tornou-se seu neoséki. O menino foi chamado de Anake Asalobi. A literatura afirma que em 1890 sacerdotes de Gaan Tata no Tapanahoni já enviavam instruções para os altares e oráculos da divindade que foram instalados no Alto Suriname. Na aldeia dómineongë Sofibuka, de acordo com os diários de Albitrouw, Akodi e Boobi eram os guardiões do altar de Gaan Tata, que ganhava popularidade. Ali, a ordem de livrar-se de velhos oráculos, altares e objetos de culto aparentemente começou a ser implantada, seus sacerdotes queriam que todos passassem a adorar apenas Gaan Tata (Thoden van Velzen & van Wetering 1988). Mas nada disso foi mencionado a mim por meus informantes saamaka. Mesmo quando perguntei diretamente aos mais interessados no assunto, nenhum deles soube me dizer se o Djukagadu perseguia feiticeiros, ou se destruiu óbia mais antigos de Sofibuka. Tal parte da história pode ter perdido a relevância contemporaneamente. Entre 1891 e 1892 morre Apai, irmão de Boobi.196 Na época já adulto, Anake é escolhido para participar dos ritos fúnebres de seu tío como carregador do caixão, junto com 195 A história é complexa, inicia com a fusão de óbia ndyuka antigos, como sweli gadu (importante nas lutas contra os brancos no século XVIII), e outro culto já existente à Gaan Gadu, acrescentando a eles novos espíritos. É possível perceber, no culto de Gaan Tata, certo caráter que tende ao monoteísmo, mas este é lido mais como um contra­ataque “pagão” ao cristianismo do que como uma “adaptação” maroon do mesmo (de Beet   &   Sterman   1981:   198;   Thoden   van   Velzen   &   van   Wetering   1983:   134n11).  Thoden van Velzen escreveu extensamente sobre a história de Gaan Tata e dos cultos ndyuka que pretenderam substituí-lo, reformá-lo ou transformá-lo ao longo do século XX (cf. de Beet & Thoden van Velzen 1977, 1995; Thoden van Velzen 1978; Thoden van Velzen & van Wetering 1982, 1983, 1988, 2004; Parris 2011. 196 Este parágrafo e os seguintes são baseados sobretudo em um texto escrito por Justus Eduards para ser lido na grande festa de comemoração aos 115 anos da aldeia. Representa, portanto, uma versão algo oficial, a ser divulgada para centenas de presentes (saamaka e não saamaka) naquela ocasião pública. Albitrouw (1978) é citado como fonte para o texto, junto com Kent (1979) e entrevistas com saamaka membros da EBGS. Acrescento a ele detalhes relatados a mim por outros informantes em situações menos formais. Qualquer erro contido neles não deve, obviamente, ser creditado a Justus, apenas a mim.

284 um homem chamado Asempe. Fariam a divinação do cadáver. No terceiro dia da cerimônia, Anake começa a se comportar de maneira estranha e acaba fugindo para o mato com Asempe. Moradores de Sofibuka e de aldeias vizinhas voltaram sem sucesso de uma longa busca na floresta. À noite, os carregadores retornaram a Sofibuka, correndo em direção ao faáka páu, o altar dos antepassados. cai no chão e seu corpo começa a tremer, sua boca coberta de espuma. Ele perde a consciência e quando acorda começa a falar coisas sem sentido. Ficava andando para trás e para frente, não comia, falava sem parar, mas ninguém o compreendia. Após três dias, Anake começa a profanar vários óbia locais. Entre eles, a temida Gaan Tata tetéi, amarrando em uma pedra e jogando no rio esse que era um dos objetos centrais do culto de Gaan Tata, justamente aquela divindade que ajudou a trazê-lo ao mundo, seu neoséki. Anake maculou objetos sagrados ao colocá-los em contato com sangue menstrual, um dos principais tabus dos óbia maroons. Destruiu altares e casas de divindades. Imaginavam, nesta altura, que algo terrível aconteceria com Anake, com a aldeia ou com o clã inteiro, que as divindades reciprocariam com violência os ataques feitos contra elas. As pessoas ficaram com medo de ir ao mato e à roça. O rio foi considerado poluído, não entravam em barcos, tomavam banho ou bebiam de sua água, tendo de recorrer a igarapés. Gaamá Akoosu foi alertado e teria colocado a responsabilidade por qualquer infortúnio ocorrido no rio, até Sara Kreek, nas mãos dos dómineongë. Apenas Izaak Albitrouw, o missionário ndyuka residente em Tutubúka ia normalmente para o rio. Paulatinamente, ao perceber que nada de errado acontecia com ele, os saamaka foram voltando a usar o rio. Enquanto isso, Anake começou a realizar cultos. Não dormia, passava dias e noites andando, sentado nas árvores ou rezando no chão. Todos compreendiam que ele estava sendo possuído por um espírito até então desconhecido ali. Alguns acreditavam que era um espírito maligno (taku jejé), outros afirmavam ser um espírito da igreja cristã, outros ainda que era o espírito do próprio Deus criador que se manifestava.197 A situação em Sofibuka, ao longo dos meses, foi ficando insustentável. Anake aparentemente tentava estabelecer regras para a aldeia, regular todas as atividades locais. Alguns afirmam que ele chegou a bater em seu pai e 197 Uma possibilidade levantada é que seria o espírito vingador de Rasmus Schmidt, missionário dinamarquês em Ganzé, que em vida teria batizado e educado a mãe de Anake e empregado o pai dela (van Renselaar & Voorhoeve 1962: 203). Thoden van Velzen & van Wetering (1988) afirmam que Hiob, pai da mãe de Anake, fora um fiel cristão influenciado por Schmidt. Boobi e duas de suas irmãs converteram-se, formando com outras pessoas um círculo que, mesmo depois de perder contato com os missionários, considerava-se uma espécie de elite da aldeia. Aparentemente todos os sete ex-cristãos tiveram influência na importação de Gaan Tata e na sua colocação como “rei” das divindades, mas foram o pai e a mãe de Anake que viajaram ao Tapanahoni atrás da Gaan Tata tetéi, tendo introduzido a divindade em Sofibuka. Anake era uma pessoa influente antes do espírito o possuir pela primeira vez: tinha óbia de komatí e apukú e era vidente (lukumá), além de ter alguma proximidade com gaamá Akoosu, tendo portado o cargo honorífico de fisikái.

285 ameaçou bater em sua mãe; que seu comportamento era estranho e confuso, como o de um louco; que queria que os homens agissem como seus escravos, e as mulheres estivessem à sua disposição; que amaldiçoava e insultava os mais velhos que vinham exigir explicações. Isso tudo, em conjunção com os espíritos irados de mortos e divindades que por ali vagavam, fez com que decidissem deixar Sofibuka de vez. O fato de que nada de grave acontecera com Anake levou muitas pessoas a começarem a ter fé naquele espírito que o possuía. Mas nem todos, houve forte discordância dentro do clã sobre como lidar com as mudanças propostas por Anake, se era momento de adotar a igreja cristã ou não, onde erguer uma nova aldeia e sob a liderança de quem. Alguns queriam seguir à risca as visões e recomendações de Anake; outros queriam a igreja, mas não a liderança de Anake; outros ainda rejeitavam completamente o cristianismo. Isso culminou numa quadripartição de Sofibuka: os seguidores de Anake fundaram Futunaákaba; os que não queriam o cristianismo fundaram Pikísééi; os que decidiram por adotar a religião moraviana, sem o comando de Anake, fundaram Botopási, a alguns minutos de caminhada de Sofibuka, e Abénásítónu, poucas horas à jusante do rio.198 *** Há alguns pontos polêmicos acerca dessa história, tal qual é discutida hoje em dia em Botopási: sobre o caráter do espírito que possuiu Anake; sobre a forma de domínio exercido por ele em seus seguidores; e sobre a ordem em que as aldeias foram “cortadas”, i.e., fundadas, e quem estava presente e foi responsável por cada fundação. O último ponto não interessa muito para o propósito aqui, pois diz respeito a reivindicações de precedência por parte de linhagens e aldeias, entrelaçadas em detalhes bastante específicos da política intraclânica.199 Já questões acerca do caráter do espírito que possuía Anake e seu estilo de liderança afetam diretamente a visão acerca do papel da igreja em Botopási. Alguns residentes de Botopási atuais chegaram a conhecer Anake pessoalmente. O líder espiritual de Futunaákaba morreu em 1949, a maioria dos que lembram dele hoje tem memórias ainda de infância. Um informante que era barqueiro nos anos 1940 diz que levava 198 Ao longo dos sécs. XVIII e XIX abandonos de aldeias eram muito comuns. Não apenas migrações forçadas pela guerra com a colônia, mas também por motivos como infortúnios provocados pela ira de uma divindade local (cf. R. Price 2002 [2983], 1990). 199 Por exemplo: discutem se Futuná teria sido fundada antes ou depois de Botopási, o que significa discutir quando uma área de habitação temporária se torna uma aldeia, posto que elas todas foram construídas em locais onde antes houvera roças de pessoas. Discutem se Akiemboto, capitão do clã Dómbi à época, estaria presente no “corte” (i.e. fundação) de Botopási, o que traria prerrogativas para a sua matrilinhagem . Discutem a importância de Akodi, pai de Anake, no “corte” de Futuná, o que implica discutir a importância de sua matrilinhagem, o Jaja beoë, no local. Pessoas deste beoë afirmam que Anake jamais foi abandonado pelo seu pai, apenas pela família de sua mãe – grande parte do mamá beoë de Anake (Bodji beoë) o deixou, tendo ido fundar Abénásítónu.

286 com frequência os doisri bakáa (“brancos alemães”, os missionários moravianos) a Anake, indicando que este manteve contato com a EBGS em suas últimas décadas. Outro informante, já bastante idoso, que cresceu em Futuná, contou que, quando jovem, morava perto da casa de Anake. Na época, não se reuniam na igreja, sentavam-se juntos em qualquer lugar da aldeia para rezar, o que continuou acontecendo por um tempo depois que Anake morreu, com os seus continuadores. Quando, ainda criança, o mesmo homem caiu de um pé de inajá e quebrou sua perna, foi carregado diretamente até Anake, que deu instruções sobre quem deveria curá-lo e como. Sua recuperação foi lenta, mas bem sucedida. Tal história prosaica, que lembra Anake como um líder atencioso, aponta para uma característica de Futuná muito sublinhada na literatura: Anake tornou-se mais que um mentor religioso, ele comandava diversos aspectos na vida da aldeia. Críticas a Anake são muito frequentes hoje em dia em Botopási. Dizem que ele instaurou uma espécie de ditadura em Futuná. Tudo deveria ser da forma que ele mandava, quem não o obedecia poderia ser expulso da congregação e até mesmo da aldeia. Contam ainda que a propriedade privada foi abolida, ninguém podia mais gozar livremente do fruto de seu trabalho. Tudo era controlado por Paulus Anake, todos deveriam servi-lo como se fosse um chefe, um profeta, uma divindade. As pessoas deveriam adorá-lo. Há quem diga, criticando o povo de Futuná, que isso até hoje de certa forma ocorre: “hoje em dia, por lá, eles adoram Anake como um deus, colocando fotos dele no altar da igreja”. Ao contrário, em Botopási, hoje como no passado, os habitantes teriam mantido-se mais fiéis aos ensinamentos dos “brancos da igreja” que, seguindo a Bíblia, apontam que somente Jesus e Deus devem ser adorados. Por outro lado, Anake Asalobi chegou a ser batizado pelos moravianos, recebendo o nome cristão de Paulus. O batismo indica, para alguns de meus informantes de Botopási, que a igreja que existia em Futunaákaba até meados do século XX era, no fundo, moraviana, apesar dos mandos e desmandos de Anake e das distorções do cristianismo que introduziu. É importante frisar que cerca de duas décadas depois da morte de Anake, Futuná converteu-se ao pentecostalismo, aprofundando as diferenças religiosas com Botopási. Há quem diga que Anake obrigava todas as meninas que atingiam a idade adulta a fazer sexo com ele antes de fazê-lo com seus maridos. Que ele teria “aproveitado” de sua própria mãe, Boobi, Levando-a, com outros membros de sua linhagem, a fundar Abénásítónu, longe de Anake. O ancião que morava perto de Anake diz que nunca viu isso acontecer, que seria uma mentira inventada para macular a imagem do antepassado. Mas a ideia de que Anake abusava de mulheres é bastante difundida em Botopási, seria uma prova de que “o que

287 ele estava fazendo não era de Deus”, de que Anake não era profeta, não falava com Deus, apesar de ter visões que poderiam ser de inspiração divina. O caráter do espírito que possuía Paulus Anake é pivô de polêmica entre os dómineongë. Na literatura, o nome desse espírito aparece como Santa Jejé Jezus Pikin (“Espírito Santo Filho de Jesus”), em Botopási dizem que seu nome era Tata Heépima (“Pai Salvador”). Anake, lembremos, tinha como neoséki um óbia, o próprio Gaan Tata ou Djukagadu. Já ouvi um homem especular que seria na realidade Gaan Tata que, tendo se tornado parte de Anake, agia através dele, era o que possibilitava que o profeta demonstrasse tanto poder espiritual. Outros acreditam que de fato tratava-se de um espírito próximo ao Deus criador, bondoso; mas, tendo Anake cometido tantos pecados e erros, o espírito teria distanciado-se do médium ao mesmo tempo em que grande parte dos dómineongë afastaram-se dele e, talvez, no final de sua vida, Anake tenha apenas fingido as possessões por Tata Heépima. A possibilidade de se tratar do kúnu de um missionário fingindo ser um outro tipo de espírito (cf. van Renselaar & Voorhoeve 1962: 203) foi rapidamente descartada por todas as pessoas com as quais eu conversei. Seria, mais provavelmente, um “espírito da igreja”. Os habitantes de Futunaákaba e aqueles de Botopási que frequentam a igreja pentecostal, por outro lado, tendem a defender Paulus, dizendo que o espírito de Mása Gádu (o Deus cristão) falava diretamente através dele, da mesma maneira que falava através dos evangelistas que escreveram a Bíblia. Uma senhora de Botopási, pentecostal há décadas, afirmava que “foi uma boa coisa que ele fez, ao destruir os óbia de Sofibuka”, pois depois da divisão daquela aldeia “apenas as pessoas que conseguiam viver sem óbia foram para Futunaákaba. As de Botopási e de Pikísééi não conseguiam viver sem essas coisas. Mesmo as daqui [Botopási], indo para a igreja, não conseguem viver sem óbia, elas vivem dos dois lados, com a igreja e com o óbia.” Como as opiniões dos saamaka de hoje, as imagens de Anake pintadas por cada um dos missionários que o conheceram ao longo da primeira metade do séc. XX diferem muito umas das outras. Foi um personagem complexo (cf. Thoden van Velzen & van Wetering 1988: 419n5). Podemos distinguir, a partir da bibliografia que se baseia nesses relatos, características messiânicas, proféticas e iconoclásticas em suas ações. Em mais de 50 anos de duração, seu culto foi mutante. Em diferentes períodos, diferentes características parecem ter destacado-se mais ou menos. Num primeiro momento, o missionário maroon moraviano Albitrouw competia com Anake pela legitimidade da tradução do cristianismo para os saamaka de Sofibuka e região. Muitos seguidores de Anake acabaram passando para o lado de

288 Albitrouw, por discordarem da forma daquele organizar a igreja e a aldeia. Posteriormente, Anake teria aproximado-se da versão mais oficial do cristianismo, porém sem jamais perder totalmente o controle de sua congregação, afirmando-se sempre como líder religioso autônomo.200 Fato indisputado na narrativa sobre Anake hoje em dia em Botopási é que ele foi batizado pelos moravianos, mas é também comentário frequente dizer que ele nunca deixou de ser um poderoso óbiama, e que era polígamo.201 Para Renselaar & Voorhoeve, sua igreja possuía características originais: “ele instituiu algo parecendo um serviço de igreja no qual lia das palmas de suas mãos e cantava. Ele também estabeleceu algo como batismo, no qual o candidato, ajoelhado à sua frente, recebia uma pancada na cabeça” (1962: 202). Thoden van Velzen & van Wetering (1988) confirmam, dizendo que em Futunaákaba, Paulus Anake foi aceito como messias, representante de Deus na terra. Lia trechos de Bíblia de suas palmas, falava em alemão, vestia becas vermelha e brancas. Seus seguidores cantavam hinos morávios para ele. Um misto do cristianismo, qual apresentado pelos missionários alemães e divulgado por Albitrouw, com características inovadoras derivadas de suas visões e inspirações do espírito que o possuía. Enquanto profeta, Paulus Anake prometia a seus seguidores saúde, prosperidade, fertilidade e vida eterna. Teve visões de enormes barcos, cheios de bens, chegando no ancoradouro de Futunaákaba, ruas largas, cheias de lojas, todos os moradores ricos e felizes (de Beet & Thoden van Velzen 1977: 100-1). Durante a primeira fase de seu culto, Anake e seus seguidores esperavam o milênio, chegando a interromper os trabalhos na roça por longos períodos à espera da volta de Jesus. Mas o fim do mundo não veio e Anake aos poucos foi criando uma nova ordem sociorreligiosa na aldeia que fundou, agindo como messias e inserindo um novo sistema de trabalho e divisão de bens taxado por comentadores de “comunismo primitivo”. De acordo com Thoden van Velzen & van Wetering, em Futunaákaba, Anake transformou a igreja numa espécie de farmácia-laboratório onde experimentava com plantas, tornando-se um herborista reconhecido pelo rio. Afirmava que a propriedade privada era a raiz de todo mal e incentivava as pessoas a trabalhar em roças comunais. Outras atividades e propriedades também foram tornadas comunais, e sob elas Anake tinha prerrogativa de distribuição: bens importados, beiju, caça e pesca, canoas, etc. Mas não se sabe exatamente o quanto dos bens era compartilhado. Aparentemente, Anake 200 Segundo Thoden van Velzen & van Wetering (1988: 126-7), Anake chega a se aproximar também da igreja católica. Além disso, Anake se distancia do gaamá ao longo de sua vida, muitas fontes apontam para seu relativo isolamento. 201 Aparentemente, tinha três esposas, uma em Dán, uma em Pikísééi e uma que o deixou para ir fundar Abénásítónu.

289 tinha um comando despótico na aldeia, em grande parte sustentado por promessas de vida eterna para seus seguidores, e de expulsão de todos os demônios da face da terra. As pessoas dependiam de sua permissão para quase tudo. Ele mandava os homens caçarem, as mulheres cozinharem, banharem-no e até fazer sexo com ele. Doenças entre os seguidores eram consideras frutos de pecados contra Anake, e eram tratadas apenas após confissões (Thoden van Velzen & van Wetering 1988: 127-34). De acordo com os autores, seguidores de Anake eram predominantemente mulheres, pois a maioria dos homens trabalhava então na Guiana Francesa como barqueiros na atividade aurífera (idem 1982: 54). Quanto à iconoclastia, não é claro exatamente quais óbia Anake destruiu, além dos referentes ao culto de Gaan Tata, ou quais haviam sido destruídos anteriormente, pelo culto de Gaan Tata. Renselaar & Voorhoeve afirmam que “os atos negativos de Anake eram direcionados contra todos os antigos deuses e especialmente ao culto de Gaan Tata, um elemento estrangeiro na religião saamaka. Nem todos os deuses foram descartados, no entanto” (1962: 204). Divindades com capacidade de cura e de defesa contra os brancos teriam sido mantidas. O espírito que possuía Anake teria alertado às pessoas que Gaan Tata era uma divindade maléfica: matava pessoas, roubava suas possessões, deixava-as sem enterrar, sem choro e sem lavagem de corpo. Anake portanto teria feito com Gaan Tata o que seu culto havia feito com outras divindades: destruiu seus altares; derrubou sua árvore sagrada (um pé de taperebá), poluiu seus objetos e jogou-os no rio, por fim dizendo que apenas ele, Anake, deveria ser venerado (Thoden van Velzen & van Wetering 1988: 123-4). Ademais, muitos tabus teriam sido abolidos ou temporariamente revogados, em particular relacionados à menstruação e ao incesto (ibid.: 132). Tampouco meus informantes em Botopási souberam dizer (ou quiseram me falar) exatamente o que Anake teria destruído, para além da Gaan Tata tétéi. Mas dizem que boa parte do que ele profanou, quebrou ou jogou fora pôde ser salvo ou reconstruído – algo nada incomum ao lidarem com esse tipo de poder –, e posteriormente levado à Pikísééi, onde seguem em atividade a grande maioria dos óbia mais poderosos do clã Dómbi. Gaan Tata teria se tornado, depois do ataque de Anake, tabu para os dómineongë, que não podem mais ser sacerdotes da divindade. Parte dos guerrilheiros do Jungle Commando tentaram trazer um altar de Gaan Tata para Botopási durante a guerra civil nos anos 1980, mas foram rapidamente impedidos, por causa da proibição. Pessoas do clã Dómbi ainda podem recorrer aos altares daquilo que chamam de Djukagadu existentes em outras aldeias saamaka.

290 Paulus Anake conseguiu manter a liderança de Futunaákaba até sua morte, em 1949. Na década seguinte, dois de seus netos tornaram-se profetas, um falando em nome da divindade Jejé fu Waarheid (“Espírito da Verdade”) e outro de Man fu Tuú (“Homem da Verdade”), mas nenhum dos dois parece ter alcançado grande sucesso (Thoden van Velzen & van Wetering 1988: 128).202 Para todos os efeitos, Futuná manteve-se como uma aldeia da EBGS até 1967 (ou 1969, dependendo da fonte), quando o pentecostalismo chegou à aldeia com o missionário americano James Cooper. As consequências dos atos de Anake seguem polêmicas. A discussão acerca da positividade ou negatividade de suas ações e das regras por ele criadas estendem-nas até o presente, colocando corolários relevantes para questões atuais de sua aldeia e de toda a tribo.

Três aldeias, três religiões Esta convoluta história de transformações religiosas começa pouco após o tratado de paz dos saamaka, tem seu ápice cerca de cem anos após, e se estende por outros cem mais. Deságua na tripartição religiosa das aldeias Dómbi contemporâneas: Pikísééi lida com óbia e práticas relacionadas, Futunaákaba é pentecostal e Botopási moraviana. Todas lado a lado convivem num contínuo trânsito no qual religião, parentesco e política se misturam. As aldeias estão a menos de uma hora a pé uma da outra, formam uma única aglomeração do clã, e não é arriscado afirmar que não há ninguém em qualquer das três aldeias que não tenha parentes nas outras duas. São as mesmas matrilinhagens presentes, ainda que umas sejam mais poderosas aqui do que ali. O fluxo de pessoas, espíritos e coisas é intenso.203 O momento da fissão de Sofibuka foi um momento de definição acerca da maneira de incorporar o cristianismo à vida saamaka. O acontecimento não se limita ao clã Dómbi, mas diz respeito sobretudo a ele. O clã Awaná já tinha um histórico de relação com o cristianismo, por Alabi. O clã Langu, que experienciou um avivamento ainda no final do século XVIII na aldeia de Kayana (R. Price 1990: 251-9), também manteve relações com o cristianismo. Foi fundada posteriormente em seu território uma aldeia católica, Ligólío. Mas havia pessoas de outros clãs que, por fé, laços de parentesco ou outros motivos, resolveram juntar-se ao cristianismo com os Dómbi. Disse-me um informante: 202 Anake e seus netos, é importante dizer, não foram os únicos casos de profetas e messias saamaka que teriam misturado o cristianismo com a “religião tradicional” ao longo da segunda metade do século XIX e da primeira do XX (cf. Veernooij 2009: 65; de Beet & Thoden van Velzen 1977: 104). Esse tipo de fenômeno talvez nunca tenha deixado de acontecer entre os maroons. 203 Abénásítónu, por sua relativa distância (algumas horas de barco à jusante), é menos presente na vida cotidiana das outras três aldeias, ainda que, quando alguém morre lá, deva ocorrer o basiá bái em Botopási, o que indica uma ligação profunda.

291 Quando cortaram Botopási foi como uma aldeia dómineongë, mas era para todas as pessoas com quem eles tinham relações naquele tempo, que viviam juntas, que queriam estar na igreja, mas não da maneira que Anake queria. Elas poderiam viver em Botopási. Por isso, até o dia de hoje em Botopási, além das pessoas do clã Dómbi, você tem pessoas dos clãs Nasí, Papóto. Ancestrais destes clãs, Nasí e Papóto, estavam juntas quando se cortou Botopási.

As fundações de Botopási, Futunaákaba e Pikísééi podem ser lidas como escolhas por projetos religiosos e políticos (ou cosmopolíticos) autônomos e distintos entre si, mas profundamente relacionados. Escolhas bastante conscientes, longamente discutidas em kuútu, certamente influenciadas por embates políticos e por relações de amizade, aliança, filiação e descendência. Um ponto de inflexão no qual se fez necessária a definição de novas regras para lidar com divindades, magia, Deus, os brancos, e uns com os outros. Um ponto em que a moral e a ética politico-religiosa se trifurca, atualizando diferentes transformações possíveis. Por mais que seja criticado pelos atuais moravianos de Botopási, por mais que haja dúvidas sobre se sua inspiração era de fato divina, por mais que ele tenha tomado atitudes despóticas, costuma-se destinar a Paulus Anake algum respeito, por seu poder e por sua história. Ele trouxe algo bom aos dómineongë, colocou grande parte do clã no “caminho de Deus”. A questão de como seguir tal caminho é que separou os seguidores do profeta daqueles que buscaram um cristianismo mais ligado à EBGS. As estritas regras de Anake iam contra muito da lógica saamaka, no que tange à divisão de bens e terra, à liderança, à liberdade individual e à relação com os espíritos que habitam o mundo. Por isso muitos não quiseram sua liderança. A morte de Anake não significou que Botopási e Futunáakaba tenham aproximado-se em termos religiosos, pois apenas 20 anos depois missionários americanos tiveram sucesso em converter os habitantes daquela aldeia do moravianismo para o pentecostalismo. Em certo sentido, as estritas regras que têm de seguir os pentecostais hoje em dia trazem um mesmo tipo de estranhamento, um mesmo tipo de desagrado a moravianos de Botopási. A conversão implicou uma série de mudanças nas regras que guiam a vida em Futuná, acerca das quais nos deteremos abaixo. O que se manteve estável foi o fato de que, no passado e no presente, o que mais diferencia as três aldeias Dómbi são suas afiliações religiosas. Isso não se distancia em momento nenhum de questões políticas e de parentesco, e aponta para um equilíbrio dinâmico entre autonomia e interdependência das aldeias em todas essas esferas. Pikísééi é uma aldeia mais plural, poderíamos dizer. É mais populosa, e a lógica aditiva das práticas religiosas saamaka que ali vigoram não procura com tanto empenho uma centralização institucional da religião pública. Pikísééi é vista como “aldeia pagã”, marcada pelo azan em sua porta, onde abundam casas, altares e cerimônias de óbia. Se for preciso

292 dizer que Sééi tem uma “religião oficial”, seria a “religião tradicional saamaka”, isto é, o conjunto de práticas de óbia, de culto aos ancestrais, aos gádu e aos kúnu. Porém, reúne-se em Sééi uma congregação pentecostal, pequena, mas com encontros frequentes. Também em Sééi há uma das maiores comunidades rastafári do Alto Suriname, centrada num grupo diminuto mas influente de homens, que não deixam de trabalhar com óbia. Botopási, por outro lado, pretende-se mais monolítica. É consenso dizer que é uma aldeia da EBGS, que sempre foi assim e que querem permanecer assim. Mesmo os habitantes mais críticos à igreja – que mais trabalham com óbia, que dizem que a igreja é “coisa de branco”, que os saamaka devem se fiar na sua cultura – afirmam que Botopási deve permanecer cristã. Pois é assim que estão acostumados, foi na igreja que foram criados. Quando for necessário lavar-se com óbia, basta fazê-lo em Pikísééi ou em sua própria casa, onde ninguém da igreja pode interferir. Vejamos agora como está organizada a igreja moraviana em Botopási, e como são os cultos regulares na igreja, para depois entender ao que ela se contrapõe, e como.

O funcionamento da igreja em Botopási A Igreja Moraviana ou Igreja dos Irmãos Morávios carrega tal nome graças à sua origem tcheca. Seus integrantes também são chamados de herrnhutters pela ligação com Herrnut na Alemanha, um de seus principais centros histórico. O nome oficial da organização clerical é Unitas Fratrum. No Suriname, os moravianos e sua igreja são referidos como anitri204 ou pela sigla EBGS (Evangelische Broedergemeente Surinam, lit. “Congregação Fraternal Evangélica do Suriname”). Estima-se existir atualmente entre 700 mil e um milhão moravianos pelo mundo.205 A Unitas Fratrum é organizada em Províncias da União, Províncias de Missão e Áreas de Missão, decrescentemente independentes. O Suriname é uma Província da União e portanto não responde a nenhuma instância superior em suas decisões, participa horizontalmente dos Sínodos da União (a mais alta reunião de cúpula, a cada sete anos) e do Conselho da União (comitê executivo da união das Províncias). Até hoje os moravianos seguem sua tradição missionária, por exemplo por parte da Igreja Moraviana surinamesa na Guiana Francesa ou da jamaicana em Cuba. (cf. Unitas Fratum 2009).

204 A palavra tem origem alemã. Dizem que sua etimologia remete à incompreensão de algum termo usado pelos missionários por parte dos falantes do creole surinamês. Não consegui descobrir qual termo. 205 De acordo com http://www.moravian.org. No Suriname, o censo de 2012 indica 60 mil moravianos (cerca de 11% do total no país), um número quase igual ao de pentecostais, e inferior ao de católicos (117 mil). Outras formas de cristianismo somam cerca de 31 mil pessoas.

293 Para a maioria das pessoas de Botopási pouco interessa a estrutura da igreja para além do Suriname. Talvez em parte pela independência que a posição de Província da União garante à EBGS diante da Unitas Fratum: há muito tempo, as decisões locais da província não passam diretamente pela aprovação dos bispos europeus. Como meus informantes, quando falo da “igreja moraviana” no presente etnográfico, refiro-me à EBGS. Quanto à hierarquia clerical, também sigo a terminologia nativa: bisschop (“bispo”), o mais alto cargo moraviano no Suriname; dominee (“reverendo”), todos aqueles que são ordenados ministros pela EBGS; aannemers ou ainéimu (“obreiros”) e dienaars ou dinái (“servos”), fiéis que ajudam na organização de suas congregações. Especificamente, aanemmer é um membro da EBGS que, tendo sido batizado quando criança, escolhe, na adolescência, passar pelo avondmaal (“consagração”) na igreja, um processo equivalente ao catequismo católico, confirmação da fé em Cristo. Apenas quem passou por esses passos e é considerado “obreiro” pode celebrar cultos na igreja, organizar a coleta de dinheiro, ou ser padrinho oficialmente em um batizado. Para se tornar dienaar é preciso ser escolhido, dentre os obreiros, como um exemplo de cristão de sua comunidade. Tais escolhidos são chamados para fazer um curso na EBGS e ganhar o novo grau de “servo”, que garante mais envolvimento com a igreja e mais prerrogativas de participação dos cultos. São os servos que em geral organizam o altar, varrem a igreja, tocam os sinos. O caminho para ser dominee é outro, é preciso cursar um seminário teológico. Após o ordenamento, um reverendo pode galgar degraus na carreira e tornar-se presbítero ou até bispo. Quando Botopási foi fundada, o foi como uma igreja da EBGS. Desde antes de construírem uma igreja propriamente dita, faziam cultos num galpão de uso coletivo. Nunca houve presença de missionários europeus em Botopási. Nos primeiros anos, contam, eram as pessoas dali, os anciões, que ministravam os serviços religiosos. Eles buscaram treinamento oficial da EBGS na cidade e foram também auxiliados pelas pessoas de Tutubúka e de outras aldeias moravianas do rio Suriname. Albitrouw, por exemplo, visitava Botopási e com alguma frequência oficiava cultos ali. Quando finalmente começaram a receber pessoas com ligação formal à Igreja Moraviana na aldeia para estadias de longo prazo, foram todos afrosurinameses (afora os que ficaram por curto tempo). Dentre os reverendos que residiram em Botopási por períodos mais longos, foram-me listados seis creole, dois ganzeoneongë206, um homem de Tutubúka e dois de Botopási. Os primeiros quatro eram creole e apenas os dois últimos eram nativos de Botopási. Nas primeiras décadas da aldeia, portanto, todos os 206 Nativos do território saamaka no médio Suriname, mais próximo à cidade, onde estavam as aldeias cristãs de Ganzé e Kofikampu antes da construção da hidrelétrica.

294 reverendos eram creole, nos últimos 40 anos aproximadamente, a maioria era maroon. Dentre eles, os mais lembrados são dominee Monsels e Kent. O creole Monsels estabeleceu-se com sua esposa na aldeia por muitos anos, chegaram a ter filhos durante sua estadia em Botopási, “as crianças que ele batizou chegaram a terminar a escola”, dizem. John Kent, um ganzeoneongë, presente em Botopási por cerca de 15 anos, é tido como um grande exemplo de reverendo competente, inteligente e de boa retórica. Hoje em dia é bispo da EBGS e a principal conexão de Botopási com o alto escalão dessa igreja. Aproximadamente desde 2005 Botopási não possui mais reverendo, a EBGS não tem mandado mais gente para estabelecer-se na aldeia, alegando não haver quadros suficientes para preencher todos os postos no interior e sublinhando que os saamaka, já ligados há muito tempo com a igreja, devem tomar as rédeas da atividade cristã em suas aldeias. Antes disso, houve curtos períodos de um ou dois anos em que ficaram sem reverendo, mas em geral havia alguém fixo. Desde então o que se tem feito é enviar os “obreiros” ou “servos” da aldeia dispostos a oficiar os cultos para a cidade, para curtos treinamentos que os habilitem para tal, mesmo que não sejam consagrados em ordens de ministério. Durante o período que estive na aldeia, foram pessoas nessa condição que estiveram à frente dos cultos, primeiramente um homem, depois três mulheres revezando entre si. Suas funções incluíam escolher os hinos a serem cantados, os trechos da Bíblia a serem lidos, os temas do sermão, e ministrarem a palavra durante a maior parte do serviço. Eventualmente, algum pastor experiente, não residente na aldeia, era convidado a dirigir um culto na igreja. Quando é necessário batizar crianças, precisam de alguém com ordenamento oficial da igreja, chamam um reverendo da cidade para uma cerimônia coletiva. Há insatisfação em relação a isso. Ainda que o contato oficial com a EBGS nunca tenha sido cortado, temem que a distância possa abrir espaço para o crescimento do pentecostalismo na região.207 Ademais, circulam pela aldeia reclamações de que os homens e mulheres que têm cumprido esse papel não possuem a competência necessária, a educação formal apropriada, a retórica sacerdotal apurada ou um estilo de vida adequado para a posição. Há fofocas e boatos sobre praticamente todos os habitantes da aldeia e aqueles que celebram os cultos não são exceções. Para muitos frequentadores da igreja, é difícil dar o devido respeito às pessoas que sobrem no púlpito, pois são conhecidos por toda a aldeia, 207 Veernooij (2009: 67) afirma que desde o sínodo de 1992 a EBGS aboliu diferenças formais entre suas congregações em Paramaribo e no interior, tirando das últimas uma marca de “segunda classe”. Isso teria validado a “marronização” do moravianismo no Suriname, as ênfases e permanências trazidas pelos maroons ao cristianismo.

295 assim como suas rusgas de família, boatos acerca de seu passado e conflitos atuais. Quem comanda a igreja deveria levar uma vida exemplar, não pode ter problemas públicos, dizem, o que é muito difícil em uma aldeia onde todo mundo se conhece. Algumas das pessoas que oficiam os cultos atualmente, por exemplo, pregam no púlpito em saamákatoongö, o que foge aos costumes locais. Desde que se lembram, os reverendos em Botopási pregam em sranan, visto como mais apropriado, afinal, é nessa língua que são treinados pela EBGS, nela estão impressas as Bíblias 208 e hinários moravianos. Como todos na aldeia, compreendem bem o crioulo da capital, não haveria porquê fazer os cultos em saamaka. “O certo é que na igreja se fale holandês ou sranan”, disse um dos membros mais ativos da igreja em Botopási, “assim, se um estrangeiro vier aqui e sentar na igreja, vai entender tudo.” Parece não haver ninguém em Botopási que preencha todos os requisitos exigidos pelos escrupulosos fiéis para oficiar os cultos. Há pessoas de Botopási com posição oficial na igreja, ministros e reverendos, mas nenhum deles mora na aldeia atualmente, ainda que a visitem com alguma frequência e dirijam os cultos quando o fazem.209 De todo modo, as atividades não podem parar. “Os kéíki bakáa [“brancos da igreja”] há tempos deixaram a igreja daqui nas mãos das próprias pessoas de Botopási. Então, vamos tomar ela nas mãos”, ouvi num sermão de domingo. E, de fato, hoje, tudo na igreja é organizado pelos nativos da aldeia, especialmente pelo chamado kerk bestuur (“conselho da igreja”). O conselho da igreja era composto em 2013 por vinte pessoas, quatro homens e 16 mulheres, quinze obreiros e cinco servos. Os servos, em conjunto com as três mulheres que oficiavam os cultos, eram mais ativos na organização da igreja, sobretudo os hédi dinái (“servos líderes”, um homem e uma mulher) e os dois tesoureiros (um homem e uma mulher). Eram os principais responsáveis por diferentes decisões envolvendo a igreja, contatar a coordenação da EBGS, limpar o prédio, organizar o espaço dos cultos, coletar as ofertas, administrar os gastos, bater o sino sempre que apropriado, guardar apetrechos como cordas e catafalco usados em enterros e escolher o local onde a próxima cova será cavada no cemitério. É costume também que um obreiro esteja à frente do grupo que lava o cadáver, nos ritos 208 Nos anos 1990, foi publicado o Novo Testamento em saamaka, sob o título de Gadu Buku (Livro de Deus), pela International Bible Society (1998), após décadas de trabalho de campo e de tradução dos linguistas do Summer Institute of Linguistics. A tradução do Velho Testamento ainda está em curso. Sendo uma edição pentecostal, é mais popular entre os seguidores do Volle Evangelie do que entre os da EBGS. Além do mais, muitos saamaka alfabetizados têm dificuldade de ler sua própria língua, posto que não há estandardização e o saamaka não é ensinado nas escolas. 209 Problema é similar ao que ocorre com os professores. São poucas as pessoas jovens de Botopási com formação religiosa ou profissional que se dispõem a trabalhar e morar na aldeia (ver nota 226, infra).

296 fúnebres. Todos os vinte, servos ou obreiros, são “trabalhadores da igreja”, podem ser chamados de fésima u kéíki (“líderes da igreja”). De acordo com um deles, “o fundamental é que todos aqui [em Botopási] são cristãos, todos são gente de igreja (kéíki sëmbë), mas alguns estão mais perto de Deus, por isso fazem trabalho na igreja, seja limpando ou organizando coisas.” Eles têm o direito, também, de sentarem-se nos bancos mais à frente, nos cultos. Pelo mesmo motivo, os homens do conselho da igreja estão impedidos de praticar poliginia: polígamos devem, a princípio, sentar no fundo da igreja, o que conflitaria com suas funções de organização dos cultos.

Os cultos dominicais Excetuando as datas comemorativas, os serviços religiosos em Botopási ocorrem aos sábados às 19h30, aos domingos às 9h, e às segundas às 7h. Os mais velhos costumam dizer que no passado as pessoas frequentavam mais a igreja, mesmo nos cultos dos sábados e segundas. Da mesma maneira, afirmam que em sua infância havia mais exigência na escola com o estudo religioso. Hoje, os cultos dos sábados e segundas são vazios, raramente mais de dez presentes, praticamente apenas membros do conselho da igreja. Por vezes os cultos de segunda deixam de acontecer por baixo quórum. Quando acontecem, os cultos de segunda duram cerca de meia hora, seu intuito é abrir a semana de uma maneira abençoada, para que todos os trabalhos andem bem. Os de sábado, que duram cerca de uma hora, fecham a semana e são centrados em hinos. Domingo é o dia de igreja, de fato. A lotação varia, há manhãs em que a igreja fica repleta com talvez a metade da aldeia assistindo ao culto e há aquelas em que os espaços vazios são mais numerosos que os ocupados. Em geral, mulheres adultas são mais assíduas que homens, como o número de mulheres “servas” e “obreiras” também é maior do que de homens – mas elas também são mais numerosas na aldeia de modo geral. Num domingo normal, os sinos tocam pouco antes das nove da manhã, indicando que os serviços estão para começar. As pessoas vão bem vestidas, homens dando preferência a camisas sociais brancas ou azuis, mulheres também vestindo roupas alinhadas nos mesmos tons, muitas adornadas com chapéus, lenços na cabeça, bijuteria ou ouro. Crianças pequenas também vão endomingadas. A igreja fica próxima ao rio, cercada de casas e possui um pequeno jardim à sua volta. As paredes são brancas, com trechos da Bíblia escritos em sranan, portas e janelas verdes. Apesar de bem iluminado por grandes janelas e um pé direito alto, as lâmpadas fluorescentes ficam ligadas. Há um mezanino onde fica um órgão elétrico que acompanha os hinos. Tabuletas com números indicam nas paredes os hinos do hinário que

297 serão entoados naquele dia, em ordem. O altar, num palco, fica coberto por um pano branco, nele um microfone está disponível para quem for falar. Às suas costas, as duas portas que dão para a sacristia são adornadas com teombë saamaka de alta qualidade. Homens entram pela porta oeste, mulheres pela leste e pela central, ao sul. Os bancos à esquerda do púlpito são reservados às mulheres, especialmente as mais velhas e assíduas; os da direita aos homens, também especialmente os mais assíduos; os à frente são mistos, ocupados principalmente por mulheres jovens e crianças. Domingo dia 14/4/2013 não foi um dia especial, por isso é representativo de um culto dominical em Botopási. Não estava particularmente cheio: quando os sinos tocaram pela última vez e as conversas cessaram, às nove horas, a igreja tinha 15 homens, 9 mulheres e cerca de 20 crianças, mas depois de iniciados os trabalhos, mais mulheres foram chegando. Quem ministrou o culto naquele dia foi uma das três servas que então estavam responsáveis por isso: uma senhora bastante respeitada que, além de posição no kerk bestuur possui cargo de basiá. Ela vestia uma roupa imaculadamente branca e falava alternando sranan e saamaka. Como sempre, o início do culto se deu com um hino, cantado de pé. Depois, a basiá leu alguns salmos da Bíblia em sranan e a palavra do dia do almanaque da EBGS. Seguiu-se, como de costume, um revezamento entre hinos, rezas, falas, leituras bíblicas e um sermão mais longo. A maioria dos hinos eram indicados pelas tabuletas na parede e acompanhados pelas pessoas em seus hinários. Naquele dia, foram cantados sete, além de mais dois que não estavam na tabuleta mas eram conhecidos por todos de cor, dispensando o hinário. São escolhidos baseando-se na temática do dia: por exemplo, quando decidem homenagear os idosos, podem cantar o hino 415, que fala sobre a fé durante a velhice. Mas há um punhado deles que são frequentes, como o 600 (da seção Prijze- nanga tangisingi, “Cantos de louvor e gratidão”), entoado também em enterros. Apesar de algumas interseções, há hinos que não são cantados em cerimônias fúnebres e há hinos que não são cantados em cultos ordinários. Também a ênfase muda de uma situação para outra: durante os ciclos funerários, os hinos devem ser cantados em cadência mais lenta e em tom mais solene e grave. Em qualquer situação, os hinos mais longos não costumam ser cantados até o final, em geral seguem apenas as primeiras duas ou três estrofes. Na hora de iniciá-los, são as pessoas mais assíduas que “puxam” (hópo) as melodias e dão o tom para os restantes. Em diversos deles, homens e mulheres fazem vozes diferentes, enchendo a igreja com o som do contraponto.

298 Orações são chamadas em saamaka de bégi, (“prece”, “pedido”, “súplica”). Algumas são feitas em pé, outras sentados. A final costuma ser feita em genuflexão, as pessoas ajoelhadas no chão, de cabeça baixa e torso postado sobre os bancos. Grande parte são preces não canônicas, isto é, pedidos de proteção dirigidos a Deus em tom formal, mas improvisado.210 São orações protestantes comuns. É comum também rezar o Onze Vader (o Pai Nosso em holandês) ou Begi Tata (o mesmo, em sranan). A Oração do Senhor foi a única oração com texto canônico que ouvi em Botopási – esse tipo de reza é incomum na maioria das denominações protestantes, mas não na Unitas Fratrum. No dia em questão, a mulher que oficiava o culto pediu a Deus, em saamaka, bençãos para os kabiténi, os basiá, os gaánwómi (“anciões”) da aldeia e para as pessoas que estavam doentes naquele momento, para que melhorassem. Se, por desígnio divino, não se curassem, que Deus mostrasse o que fazer. O sermão daquele dia, seguindo com o tema apresentado pelo almanaque da EBGS, discursou sobre Jesus ser o “bun herder” (“bom pastor”), que conhece seus mbéti (“animais”) e quer guiá-los para lá. “Jesus é a dooöbúka (“frontispício”) do Paraíso, sem ele você não entra no céu”, disse a pregadora. Em outro momento, leu de João 8:1-11, em saamaka, o trecho em que Jesus, no Monte das Oliveiras, impede o apedrejamento de uma adúltera dizendo “aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.” Em sequência, iniciou um hino que servia de resposta a esse trecho, tirado da seção Vo de reti kristenlibi (“Para a vida cristã correta”) do hinário. Espera-se que o tom do sermão seja enérgico e cativante, carregado de uma retórica cristã que toca e convence as pessoas. Sobre os sermões de John Kent em Botopási, o grande exemplo de reverendo saamaka, ouvi a seguinte descrição: “Era impressionante ouvi-lo falar. Ele parecia que sabia dos pecados das pessoas. Se você dormia com a mulher de alguém, no outro dia ele dava um sermão sobre adultério, como se ele soubesse de tudo! E colocava você com o estado de espírito culpado, com vontade de pedir desculpas para aquele a quem fez mal.” esse parece ser o ideal que esperam das falas no púlpito, mesclando assuntos corriqueiros com parábolas bíblicas e pregações morais sobre como viver bem enquanto cristão. Há sempre um momento em que aproveitam a reunião das pessoas sob o teto da igreja para falar de assuntos variados, por vezes não ligados à religião: se o time de futebol de Botopási ganhou um campeonato na cidade, se há algo a ser comunicado sobre os sistemas de água e eletricidade da aldeia, se irão receber alguma visita oficial nos próximos dias, se há em vista algum kuútu importante etc. Agradecem a eventuais visitantes à aldeia que estão no 210 Apesar da cadência pausada, não se assemelha muito com o modo de fala dos kuútu, não há píkimá, não há perguntas para saber se os presentes ouviram e entenderam o que foi dito.

299 culto, falam sobre o enterro de alguma pessoa relacionada a Botopási que tiver morrido. Naquele domingo, falaram rapidamente sobre a utilização do vrouwencentrum, (“centro das mulheres”), uma edificação coletiva da aldeia que estava sendo então utilizada como creche, organizada pelas mulheres da aldeia, e precisava de que um voluntário cortasse a grama em seu entorno. Como a igreja é um espaço frequentado por muitos, de união das pessoas, as mensagens dadas ali se espalham por toda a aldeia sem necessidade de conclamar um kuútu. Foram passadas duas coletas de ofertas, em momentos distintos. Em ambas, um homem recolheu as ofertas dos homens e uma mulher as das mulheres, com os kolekti páu (“pau de coleta”), recipientes com uma longa haste de madeira e um saco de pano verde, e vasos de cobre usados como esmoler. Como me explicaram, a primeira coleta vai para os gastos locais da igreja, a segunda para ajudar as pessoas mais pobres da aldeia. A maior parte das pessoas coloca moedas, mas há quem doe notas de valor mais alto, especialmente em dias festivos, nos quais a igreja tem mais gastos. A indicação, sempre dizem, é “dar o quanto seu coração mandar”. Depois de recolhido o dinheiro, dois dos servos carregam os recipientes até o altar, ao som de um hino cantado de pé. O encerramento do culto foi com um homem que não é obreiro nem servo, mas é assíduo na igreja. Algo também comum: pessoas que não fazem parte do conselho da igreja e não são “líderes” frequentemente se voluntariam para falar algumas palavras na igreja, fazer uma prece, ler trechos da Bíblia, contar parábolas, dar testemunhos. O homem puxou um hino que não estava na tabuleta e um Pai Nosso em holandês. Ao levantarem-se, como sempre, os presentes se cumprimentaram com apertos de mão e saudações de “blesi sonde” (“domingo abençoado”) e rumam para suas casas e afazeres, em geral de lazer, posto que é uma regra moraviana e de Botopási guardar os domingos. Esse foi um dia usual na igreja de Botopási. O serviço dominical talvez tenha durado uma hora e meia. Mas, em situações especiais, o culto pode se estender por até três horas, especialmente em feriados religiosos como Natal, Páscoa e Pentecostes, quando cantam também litanias do hinário.211 Feriados civis, como a noite do 31 de dezembro, o primeiro de 211 São os principais eventos do calendário cristão em Botopási. O Natal (bëdáki ou kerst) é celebrado em sua véspera, 24 de dezembro, com um culto noturno; no dia 25 vão à igreja de manhã e de tarde; e no 26 há um derradeiro culto pela manhã. A Páscoa começa na Quinta-Feira Santa (Witte Donderdag, lit. “quinta-feira branca”), com a limpeza do cemitério; na Sexta-Feira Santa (Goede Virjdag, “sexta-feira boa”) há um serviço religioso matinal e um vespertino, no qual ocorre a morte simbólica de Jesus; no Sábado de Aleluia (Stille Zaterdag, “sábado silencioso”) terminam de limpar o cemitério; na madrugada do Domingo de Páscoa (Eerste Pasen, “primeira páscoa”), há uma cerimônia no cemitério que simboliza a ressurreição de Cristo, e mais um culto pela manhã; tudo é encerrado na Segunda-Feira de Páscoa (Tweede Pasen, “segunda páscoa”) com mais um serviço religioso matutino. Pentecostes também é divido em um primeiro e um segundo dia (Eerste Pinkster e Tweede Pinkster), havendo um culto pela manhã no domingo e um ao meiodia de segunda. Em todas essas datas são comuns celebrações fora da igreja, à tarde, com esportes, comida,

300 janeiro, o ketikoti (dia da emancipação dos escravos no Suriname, primeiro de julho) e datas comemorativas como dia das mães e dia dos pais também são celebrados especialmente na igreja, muitas vezes com apresentações musicais de crianças ou adultos. Em tais datas especiais costumam ser chamados para ministrar a palavra convidados especiais, saamaka ou de outras origens: já vi moravianos matawai e javaneses falarem na igreja de Botopási. Sendo feriados, também é frequente ver turistas holandeses sentados nos bancos da igreja. Outra atividade que ocorre em feriados são as doações competitivas: importâncias maiores são colocadas na coleta e, ao fim, conta-se separado o que foi doado por homens e por mulheres, a ver quem contribuiu mais. Quando há um falecido na aldeia é bastante comum que os serviços religiosos de sábado ou domingo sejam celebrados sob a tenda na porta da casa do morto. Além disso, como vimos no capítulo 3, os momentos mais importantes do ciclo funerário (o enterro, o aitidei e o limbá uwíi) são pontuados com mini cultos cristãos, nos quais o oficiante fala algumas palavras, faz orações e puxa hinos. Além, é claro, de preces espaçadas durante todo o ciclo e dos hinos varando a madrugada durante os boóko didía. Havendo um morto, mesmo cultos ordinários na igreja costumam referenciar o falecido, lembrar de sua vida, de sua morte, rezar para que chegue ao Paraíso. De forma similar, fatos marcantes ganham referências nos domingos de igreja. No mês que antecedeu a Páscoa de 2011, por exemplo, dois episódios haviam espantado a aldeia: uma senhora se perdeu na floresta, demorou mais de um dia para ser encontrada, por sorte ainda com vida; e um jaguar começou a invadir a aldeia à noite, devorando as galinhas e porcos que eram criadas ali, sendo abatido apenas uma semana depois. No Domingo de Páscoa, o então ministro da igreja de Botopási lembrou desses acontecimentos, marcando que ambos acabaram bem, “graças à ajuda de Jesus Cristo. Se Botopási não fosse uma aldeia cristã, as coisas talvez tivessem acontecido de modo diferente”, disse.

Outras kulturu, outras religiões e outras denominações Mesmo com todo orgulho que a gente de Botopási tem de sua igreja, a EBGS e a Unitas Fratum não são isentas de críticas: por sua relativa distância atual com a aldeia e pela falta de um reverendo residente; por ser menos rígida do que foi no passado. Também pela desconfiança que os saamaka parecem ter de qualquer organização formal, de qualquer bebida e música, a não ser nos dias que antecedem o Domingo de Páscoa, pois neles deve ser guardado o silêncio em respeito à morte de Cristo. Feriados civis também são acompanhados por festas seculares à tarde ou à noite.

301 concentração de poder decisório, dos governos nacionais ao gaamá, do Papa aos pentecostais americanos e aos moravianos da cidade e da Europa. Aventam que na igreja moraviana, como em todas as igrejas, existam pessoas desonestas nas posições mais altas, que tomariam dinheiro dos fieis para colocar sabe-se lá onde. Trata-se antes de uma suspeição geral que uma acusação a membros específicos da cúpula da EBGS. Pois tudo que é estrangeiro parece ser, para os saamaka, potencialmente perigoso e corrupto, ainda mais quando distante e poderoso. Uma cisma histórica, reforçada pelos problemas contínuos do contato com o mundo da costa. Apesar disso, em Botopási estão satisfeitos com sua sedimentada tradição moraviana. Observam as práticas religiosas e as crenças de outros povos e denominações com um misto de fascinação e, por vezes, leve preconceito. Os saamaka referem-se aos conjuntos das práticas mágico-religiosas de diferentes povos (inclusive deles próprios) usando o termo sranan kulturu. Mais especificamente, a palavra designa práticas não organizadas institucionalmente: igreja (kéíki) é uma coisa, kulturu é outra. As ideias aproximam-se, em seus aspectos mágico-religiosos, kulturu e kéíki ambas podem ser denominadas como crenças, fés (biíbi ou geloof), mas as últimas diferem sobretudo por sua organização centralizada e por sua origem principalmente estrangeira. Kulturu engloba, além de religião e magia, também folclore, danças, roupas e arquitetura tradicionais, afinal, nada disso está separado. A ideia de kulturu serve, no Suriname, para marcar diferenças entre tradições, expressões objetificadas de práticas e crenças vistas como pertencentes a uma população. Assim, um saamaka pode ser cristão, mas os óbia são a kulturu dos maroons. Um óbia particular, um objeto ou uma receita, pode ser chamado no singular de wán kulturu (“uma cultura”), relacionando profundamente a materialidade de certos objetos e práticas com as tradições e costumes dos povos. Cada povo tem sua kulturu, suas tradições (tradities), conhecimentos. Em Botopási falam sobre as kulturu dos javaneses, dos indianos, dos chineses, dos índios, dos haitianos, e de outros povos, em geral referindo-se às artes mágicas, às práticas de possessão, às medicinas não ocidentais, às performances rituais, aos objetos de culto ou de arte. A noção de kulturu não é exclusivamente saamaka, é difundida por todo o Suriname: o winti, religião de matriz africana dos creole, pode ser chamada pelos próprios praticantes de “nossa kulturu”, marcando que as igrejas cristãs não estão contempladas nessa particular apropriação do termo “cultura” e ao mesmo tempo evitando o termo de conotações negativas afkodrei (idolatria) (van Wetering 1995: 211-2). Uma visão que se aproxima da noção de cultura que Wagner (2010 [1975]: 54) chamou de “sala de Ópera”, isto é, que alguns podem ter “mais que os outros”, diferente do conceito de cultura que se desenvolveu na antropologia, mais

302 “democrático”. Com a diferença que a kulturu não é exatamente “alta cultura: aponta sobretudo para tradições não europeias, ligadas a populações ou grupos étnicos. Cada uma pode ser enxergada, de cada ponto de vista, como mais ou menos poderosa, mais ou menos maléfica que as outras. Kulturu são coisas a serem preservadas, quer seja em museus, quer seja vendida e performada para turistas, quer seja praticada em segredo. Voltando à saamaka, quando colocadas lado a lado, as ideias de fási ou guwénti fási (modo de fazer as coisas [com as quais se está acostumado], ver nota 79) e a de kulturu parecem acomodar-se na divisão proposta por Carneiro da Cunha (2009) entre cultura e “cultura”, isto é, entre um sistema de “pressupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que interagem entre si” (a versão antropológica do termo, similar a fási) e uma apropriação vernacular do termo, reflexiva, metalinguística, utilizada em contextos interétnicos (cultura com aspas, similar a kulturu). O kulturu pareceria, assim, com o kastom melanésio, uma forma indígena de autoconsciência cultural, que para Sahlins seria um fenômeno característico do fim do século XX (1997: 127). Utilizado, entre os saamaaka, como um termo estrangeiro – marcando um registro específico, o de uma “língua franca” de uma “sociedade plural”, amiúde em contextos comparativos –, de fato o kulturu aproxima-se da “cultura” qual descrita por Carneiro da Cunha. Mas há uma diferença fundamental: a cultura com aspas seria aquilo que é compartilhado por todos os membros de um grupo. Assim, “segredos” e/ou aquilo que é direito de conhecimento específico de apenas alguns membros do coletivo seriam excluídos dela – ao menos na reflexão ameríndia acerca do termo. Para os saamaka, pelo contrário, os principais exemplos de sua própria kulturu, aquilo que os faz mais únicos frente aos demais povos que conhecem, são precisamente aquilo que têm de mais secreto, e portanto mais valioso: seus óbia.212 Não vejo muito sentido em separar uma “cultura em que vivem” e outra “sobre a qual refletem”, cada uma com lógicas distintas, uma interna, outra externa, uma com aspas, outra sem. Mesmo porque os saamaka refletem tanto sobre fási quanto sobre kulturu. Apenas não enxergam nenhuma das duas como um “sistema de crenças” ou “rede invisível de significados”. Os termos podem ser usados como sinônimos, ambos poderiam ser traduzidas por cultura enquanto formas de organizar uma política das diferenças (Sahlins 1997). A diferença é que fási, como a expressão já indica, é um modo de fazer as coisas, aponta para uma pragmática das ações e relações, enquanto kulturu aponta para aspectos mais 212 Para uma boa apropriação da discussão antropológica acerca dos usos nativos do termo cultura, e para a versão Xakriabá da diferença entre cultura e segredo, ver Costa e Santos 2010.

303 objetificados, materializados, da alteridade e de si diante outrem. Um óbia é um kulturu, usar óbia para curar-se é a fási maroon. Na visão de meus interlocutores, diversos poderes existem pelo mundo, de forma mais ou menos oculta. Não se questiona a efetividade dos poderes e saberes de nenhuma kulturu alheia, apenas se são coisas “boas” ou resumem-se a feitiçaria, “magia negra”. Sendo o conhecimento sobre práticas religiosas de outras etnias por vezes distante, amiúde chegam a saamaka mais boatos negativos do que informações positivas. Quando se trata de afrosurinameses, porém, observam mais proximidades. As práticas dos outros grupos maroons são vistas como praticamente idênticas às dos saamaka, havendo mais diferenças em detalhes e especialidades do que em questões fundamentais como os tipos de divindades, espíritos e óbia. Já os creole (neongë) possuem kulturu “fortes”, dizem, especialmente na região de Para, onde estão centros antigos de winti. Nessa religião, traços essenciais, quais toques de tambor, estilos de possessão e características de divindades aproximam-se bastante dos que existem nas aldeias maroons. Por outro lado, os creole são vistos pelos saamaka como mais influenciados pelo cristianismo e pelos brancos do que os maroons. Percebem semelhanças, mas marcam sua distância e superioridade. Os maroons orgulham-se muito de serem os maiores detentores dos saberes africanos em toda a região. No Caribe, imaginam, talvez estejam atrás apenas dos haitianos. Nas Guianas, possuem as magias mais efetivas, as divindades mais poderosas. Pessoas de todas as etnias vêm ao Alto Suriname buscar tratamentos com óbia, por vezes dispensando mesmo a medicina ocidental em nome de receitas que curam picadas de cobras, ferimentos de armas de fogo, ossos quebrados. Políticos e outras figuras de importância no país buscam a proteção de óbiama maroons, pois sabem que não há especialistas mais versados nas artes místicas. Talvez só aqueles que foram em busca de óbia na África estejam mais bem preparados espiritualmente do que os maroons, dizem em Botopási. Voltando às “igrejas”, meus informantes refletem sobre o judaísmo e sobre o islamismo, mas, nas aldeias, nenhuma dessas fés é praticada. No fim das contas, quando falam de igreja, no Alto Suriname, quase sempre falam de cristianismo. O cristianismo esotérico é digno de curiosidades e especulações muito próximas às feitas em relação às kulturu de outras etnias. Não são incomuns em Botopási conversas sobre os Rosa Cruz e os Maçons, sobre livros de magias medievais, ou sobre os Evangelhos Apócrifos que a Igreja Católica esconderia. Porém, limitam-se a mais uma forma de curiosidade distante, crítica e ressabiada. A visão sobre o catolicismo também não parece ir muito além disso, pelas conversas que ouvi.

304 Para além de certa mistificação da figura do Papa, da riqueza e dos segredos do Vaticano, a Igreja Romana (lumúsu ou Rooms Katholiek) é pouco relevante para as pessoas de Botopási, mesmo havendo uma aldeia católica no Alto Suriname. Por parte de alguns, há rejeição ao culto a Maria (“nada de santa tem, é apenas a mãe de Jesus, as orações e preces não devem ir a ela”), bem como ao uso de imagens na igreja, mas nada disso é uma grande preocupação em Botopási. Outras denominações presentes no Suriname, como Calvinistas, Mórmons e Testemunhas de Jeová também são pouco mencionadas na aldeia, ainda que os últimos pareçam estar ganhando alguma popularidade com alguns saamaka da cidade. O que acaba sendo relevante mesmo são as religiões praticadas em e no entorno de Botopási: principalmente o movimento rastafári, o moravianismo e o pentecostalismo. Há adeptos do movimento rastafári no Alto Suriname. A inexistência de organização centralizada no movimento, porém, coloca-o em uma posição ambígua: não é referido como “igreja” pois não há edifícios, cúpulas ou sacerdotes oficiais, tampouco costuma ser descrito como kulturu. O movimento rastafári costuma ser chamado, em Botopási, de uma “fé”. O primeiro rastafári teria aportado no Alto Suriname por volta de 1979, um homem chamado Alembo, que após um período morando na cidade para estudar, entrou em contato com as ideias do movimento jamaicano e as trouxe para o território saamaka, primeiro em Botopási e depois em Pikísééi. Em nenhuma das duas aldeias foi bem aceito, era criticado por suas restrições alimentares (sal, carne vermelha), pelos dreadlocks e sobretudo pelo consumo de maconha. Indicando a forte influência da cultura jamaicana no Suriname, rastafári tornouse uma moda em Paramaribo nos anos 1980 e, depois de Alembo, também no Alto Suriname. Meus amigos que chegaram a dizerem-se rasta quando jovens retrospectivamente analisam que eles próprios, como muitos outros com quem conviviam à época, pouco sabiam as origens e ensinamentos do movimento, pouco conheciam a história de Haile Salassie. Ao longo do tempo, porém, um grupo mais fiel foi se formando, principalmente em Pikísééi. Por suas crenças, foram muitos perseguidos, mas conseguiram afirmar-se, hoje sendo figuras importantes naquela aldeia: há um rasta que tem o cargo de basiá; a posição de sacerdote do importante óbia Mavungu está nas mãos de um deles; e os rasta também estão no comando do Saamaka Marron Museum (Museu Maroon Saamaka), importante atração turística em Pikísééi. Seguem enfrentando forte resistência, especialmente de pentecostais e outros cristãos fervorosos, que chamam Salassie de “falso profeta”, de joóka (fantasma, termo derrogatório para morto). “O único filho de Deus é Jesus,” ouvi de um pentecostal, “Salassie não é nada.

305 Deus não trabalha com maconha.” Por outro lado, são respeitados por outros cristãos e não cristãos por levarem a sério os engajamentos religiosos que escolheram. Não cabe aprofundar-se nas questões que envolvem os rasta saamaka. O que merece destaque aqui é o fato de que seu movimento apresenta simultaneamente continuidades e rupturas com as formas mais antigas de cristianismo na região (protestantismo histórico, catolicismo e pentecostalismo). Lembremos que os rastafári pregam que Jesus foi profeta e/ou filho de Deus, há dois mil anos e, depois dele, o imperador etíope Haile Salassie I também o foi. É uma modalidade afrocaribenha de cristianismo. O movimento rastafári, por sua organização não centralizada e pela sua lógica aditiva e anti-iconoclástica (ao menos entre os saamaka) apresenta uma alternativa para os que visam adotar alguns ensinamentos e poderes do cristianismo, sem deixar de praticar óbia, e ainda incorporando preces a um novo, mais recente, e negro messias: Salassie. Não deve ser mera coincidência que o cristianismo venha fincar-se com força em Pikísééi, aldeia não cristã de forte contato com o cristianismo; ou que Alembo, o primeiro rasta do rio, há anos tenha deixado o movimento e tornado-se um reverendo de destaque na EBGS da cidade. Dilemas e polêmicas muito similares aproximam conversões ao movimento rastafári e a outras denominações cristãs.

Os pentecostais Pinkstergemeenten (pentecostais) e Volle Evangelie (VE, Evangelho Pleno) são nomes comuns dados às igrejas pentecostais no Suriname. Em Botopási, não costumam especificar denominações e congregações, referem a todos os pentecostais como “do Volle Evangelie”, ou “da igreja de Futuná”. A igreja presente em Futunaákaba é ligada ao Evangelie Centrum Suriname (Centro do Evangelho Suriname), considerado o maior grupo pentecostal no país, fundado por James Cooper nos anos 1960. Já a congregação que se reúne em Pikísééi é afiliada à Church of the Living God International (Igreja do Deus Vivo Internacional), que foi fundada em 1903 no Alabama, e cresceu no Suriname na década de 1980. Na visão dos moravianos de Botopási, porém, não há muita diferença entre elas. Mesmo pentecostais parecem enxergar todas as igrejas do Evangelho Pleno como uma unidade e elas de fato são ligadas por uma Associação que as abarca.213 213 Uma figura pública tida como grande referência atual para os pentecostais de Futuná é o líder da Vereniging van Volle Evangelie en Pinkstergemeenten in Suriname (Associação de Igrejas de Evangelho Pleno e Pentecostais do Suriname), o bispo e televangelista Steve Meye, pastor dos Gods Bazuin Ministries (Ministérios da Trombeta de Deus”) e, desde 2011, conselheiro religioso oficial do presidente Dési Bouterse, convertido em 1999. Como grande parte dos pentecostais surinameses mais influentes, Meye nasceu no Suriname e foi educado em teologia numa Escola Bíblica estadunidense.

306 Nos anos 1960, o pentecostalismo era jovem no Suriname, as primeiras missões norteamericanas estabeleceram-se na então colônia holandesa no começo daquela década (cf. Veernooij 2009: 66-7; Kerkipasi s/d). Menos de dez anos depois da chegada desses missionários, um deles, James Cooper aporta em Futuná acompanhado de um dos homens mais influentes da aldeia, Gotali. Era 1967 ou 1969, falecera já há cerca de 20 anos. Gotali e Cooper se conheceram em Brokobaka, onde trabalhava Gotali, recentemente convertido, “nascido novamente”. O americano passa a fazer visitas frequentes ao Alto Suriname, tendo sua base em Futunaákaba, mas evangelizando por várias aldeias ao redor. Os cultos em Futuná foram ganhando popularidade, muitas pessoas foram se afastando da EBGS. Aos poucos, guiados pelo kabiténi e anciões da aldeia, Futunaákaba torna-se uma “aldeia do VE”. Nem todos os habitantes dali, porém, ficaram satisfeitos com as mudanças introduzidas pela denominação, vários deixaram a aldeia, alguns mudando-se para Botopási para fugir das estritas regras da nova igreja.214 Saamaka pentecostais fizeram questão de frisar para mim que muitos dos costumes (guwénti) atuais de Futuná que diferem dos de Botopási são atribuídos ao Volle Evangelie, mas na verdade são costumes da aldeia que remetem aos tempos de Paulus Anake. Desde seu primeiro episódio de possessão, e desde a fundação da nova aldeia, novas regras vieram de sua inspiração e se tornaram tradições em Futuná, seguidas até hoje. Várias foram alteradas durante a vida de Anake, outras depois de sua morte, outras ainda com a chegada do VE. Mas, por desconhecimento e algum preconceito, há quem confunda as inovações que de fato chegaram nos últimos 40 anos, desde Cooper e as inovações que chegaram há 120, desde Paulus. A autonomia e especificidade de cada aldeia e das regras de cada uma delas remetem à sua história e não podem ser resumidas à religião que vigora atualmente (ainda que dependam também disso). De qualquer maneira, na visão dos não pentecostais, as regras de Futunaákaba e/ou de sua igreja parecem um tanto radicais, mesmo quando comparadas com outras aldeias cristãs. Álcool e cigarros são oficialmente proibidos em Futuná, a poliginia é mais duramente criticada, há mais restrições a práticas como óbia e preces para kúnu. Não há igreja pentecostal em Botopási, mas há cultos celebrados na casa de uma das fiéis mais antigas dentre os “nascidos novamente”. A casa fica num local não muito central da 214 Em Paramaribo, corre pela boca de pentecostais não maroons uma versão dessa história bastante diferente de todas que eu ouvi no Alto Suriname: dizem que Cooper chega ao Alto Suriname e em pouco tempo converte toda uma aldeia pagã em cristã. Como parto da perspectiva saamaka (que certamente é a mais interessada no assunto), devo dizer que a versão exagera a importância do missionário americano. Cooper é bastante admirado pelos pentecostais de Futuná, mas nenhum deles perde de vista a maneira como as conversões aparecem como continuações da história da aldeia – que já era cristã e que tivera um líder messiânico, Anake, no passado recente.

307 aldeia e sua aparência é a de uma residência comum. Dentro há apenas algumas cadeiras, uma pequena mesa e alguns enfeites como bandeirolas e flores. Nas noites de terças e sábados, talvez cinco a dez fiéis, a maioria mulheres, reúnem-se com seus filhos pequenos para um culto pentecostal (aos domingos costumam ir à Futuná). Todos se vestem de maneira simples e o ambiente tem algo de informal na maior parte do tempo, com as crianças brincando ou dormindo pelo chão. O culto é ministrado pelo pastor de Futunáakaba, homem daquela aldeia. Acompanhados de uma pandeirola, cantam canções gospel em saamaka e sranan. Durante as orações, as pessoas fecham os olhos, abrem suas palmas e cada uma faz suas preces em voz baixa, o que cria uma algaravia de sussurros fervorosos, mesmo nas vezes em que o pastor ou outra pessoa ora simultaneamente em voz alta. Há coleta. Quando o pastor dá seu sermão, baseia-se em trechos da Bíblia que cada um dos fiéis lê de sua cópia que trouxe de casa. Temas como o pecado, o inferno e o dia do julgamento são mais recorrentes que nos cultos moravianos. Num sábado de 2014 em que participei do culto, o pastor leu o capítulo 6 do Apocalipse (no qual abrem-se os sete selos) e refletiu sobre o fato de que sinais do fim dos tempos já se apresentavam, como a falta de respeito das crianças por seus pais e a chegada de muitas doenças que não têm cura, como AIDS, pressão alta, diabetes, ebola e uma epidemia que então assustava o país, o vírus chikungunya. Ele disse que, quando o mundo se acabar, não devemos lastimar, pois quem entregou a vida a Jesus será salvo, irá ao reino dos céus. Muitos pentecostais saamaka “nascidos novamente” recebem durante os cultos o espírito divino em seus corpos. Quando acontece, falam Santa Jejé toongö (a língua do Espírito Santo), caem no chão, movem seus corpos de maneiras incomuns. Aqueles que passam pela experiência fazem questão de diferenciá-la de possessões por espíritos de mortos e divindades que acontecem com médiuns saamaka não cristãos. Há semelhanças, pelo caráter não humano dos movimentos corporais que acompanham a possessão e pela glossolalia (cada classe de divindade saamaka tem sua língua esotérica). A principal diferença é que divindades são consideradas demoníacas pelos pentecostais, enquanto a possessão pelo Espírito Santo é divina. Além disso, uma possessão por divindade ou por morto é descrita em saamaka como o espírito “indo à cabeça” (gó a hédi), e os pentecostais afirmam que quanto o Espírito Santo os toma, isso não acontece apenas na cabeça, mas em todo o corpo. Em Botopási, ironias com relação aos cultos pentecostais correm em conversas. Riem e zombam do tom fervoroso e das possessões pelo Espírito Santo. Mais sérias são as críticas ao fato de que pastores pentecostais usam a palavra apostel (apóstolo) como antenome. Os ataques à presunção pentecostal podem ser duros. Escutei um discurso irado:

308 Quem são eles para se comparar aos apóstolos? Eles não podem competir [nján fája] com os verdadeiros apóstolos. Agora, qualquer um da igreja se diz apóstolo, mas aqui, neste mundo de pecado, não pode haver apóstolos. Ao se dizerem mensageiros [tjábúkama] de Deus o que fazem é se mostrarem grandes mentirosos. Os líderes das igrejas, aqueles que dizem saber mais sobre tudo, que acusam os outros de estarem pecando e praticando idolatria [afgoderij], são sempre os piores. Aqueles que fazem as pessoas os seguirem, fazerem tudo o que mandam, estão na realidade agindo como ditadores, não como apóstolos. Hoje em dia, talvez até existam mensageiros de Deus, mas é preciso prestar muita atenção para saber se não são apenas adivinhos [waarzegger, isto é, charlatões].

Tais críticas podem ser vistas como extensões das direcionadas a Anake. Passam pela ideia corrente da imperfeição humana e por uma desconfiança das lideranças que colocam sua palavra como voz de comando, daqueles que apontam erros nos demais sem enxergarem os seus próprios, pelo falso moralismo, enfim. As acusações de charlatanismo derivam disso. Alguns especulam que as possessões pelo Espírito Santo sejam mero teatro, enquanto outros perguntam-se se o pastor não usaria algum deési (remédio) para induzir o transe. Para alguns, o problema é que certos líderes pentecostais se veem como Paulus Anake, sua palavra sendo regra, seu status superior, mas eles não teriam legitimidade divina ou secular para tal. Para outros críticos, a aproximação faz sentido, posto que tanto as regras de Paulus Anake quanto as pentecostais divergem dos costumes saamaka e moravianos. Nesse sentido, distanciar-se de Paulus Anake é distanciar-se da tradição (mais antiga e mais recente) de Futuná, afastando-se assim também do Volle Evangelie e marcando sua associação com a EBGS. Algumas pessoas pentecostais falam em missionar entre os próprios saamaka, falam que seria importante que seguidores do VE fiquem em suas aldeias para influenciar os outros. Por isso fazem suas reuniões em Botopási mesmo, não vão sempre a Futuná. Porém, ir pregar o pentecostalismo fora de sua aldeia, seja entre saamaka cristãos ou “pagãos” é algo visto como tendo poucas chances de sucesso. “Se você chegar em Dán ou Kambalúwa e começar a falar de Jesus”, dizem, “as pessoas não aceitariam, perguntariam 'quem é você, que veio de outra aldeia, pra vir falar isso aqui?'” A autonomia político-religiosa de uma aldeia está em jogo nesse tipo de questão. O proselitismo de um agente externo, mesmo que saamaka, significa a tentativa de impor, de fora para dentro, uma “maneira de fazer as coisas”, uma definição da situação (e de Deus, e do mundo). Aí está o grande problema dos pentecostais para muitos moravianos: julgam que sua relação com Deus é mais verdadeira, mais cristã, em uma arrogância e pretensão de quem não vê seus próprios defeitos. Uma das principais diferenças entre o VE e a EBGS, costumam frisar, está nos ritos funerários. Eles não fazem enterro “da maneira que estamos acostumados” (kuma fá ú guwénti), disse-me um saamaka moraviano. Cabe lembrar, esta é também vista como uma das maiores diferenças entre saamaka cristãos e não cristãos. Os líderes da igreja de Futuná dizem

309 que sua ideia é seguir a Bíblia o mais de perto possível, “só andar por este caminho”. Por isso, lá foram abolidas cerimônias como limbá uwíi e aitidei, consideradas por parte dos pentecostais como perda de tempo. “As pessoas fazem elas para conversar, beber e fazer sexo”, disse-me um homem durante a escavação de uma sepultura no cemitério de Futuná, claramente enfatizando um dos lados das cerimônias fúnebres saamaka, aquele que é voltado para a união entre os vivos. Por isso instituíram um boóko didía apenas, antecedendo o enterro. Por outro lado, não abriram mão totalmente da separação entre mortos e vivos, como vimos. A separação é feita logo no enterro (e não é reiterada em cerimônias posteriores), feita apenas com palavras, evitando a “confusão” e demora com que é performada nas aldeias “pagãs”. Nessa visão, a separação ritual resistiria mais para agradar a saamaka de outras aldeias que estejam presentes, acostumados com o procedimento, posto que Deus já opera a separação sem serem necessárias súplicas. Ainda assim, a manutenção do ato não deixa de ser relevante. De maneira similar, a distribuição de koósu para a família do morto ainda existe em Futuná, ainda que também com menos destaque do que em outras aldeias. Não há lái mánda, porém, pois “na Bíblia fala sobre enterrar os mortos, mas não fala nada sobre presentes”. Nesse caso, informou-me um pentecostal, trata-se de uma tradição que na verdade havia sido deixada de lado em Futunaákaba e foi reinstaurada pelo Volle Evangelie. Assim, momentos rituais importantes – que apontam para as relações entre mortos e vivos, e para aquelas dos vivos entre si – seguem existindo em Futuná, entretanto perdem a ênfase na medida em que as relações entre Deus e os humanos são ressaltadas. Para aproveitar o lado das conversas, comidas, bebidas e flertes, jovens de Futuná não deixam de frequentar boóko didía em outras aldeias. Aliás, mesmo lá não são todos que frequentam a igreja. Cigarros e álcool são consumidos às escondidas, apesar da atitude policialesca dos mais próximos à igreja. Existe poliginia, ainda que seja criticada e ainda que seus aderentes tenham de sentar no fundo da igreja, como forma de punição 215. O que não quer dizer que as diferenças entre as aldeias sejam de fachada. Futuná, em parte por sua diminuta população, em parte pela história de Anake, em parte pela comunhão promovida pelo VE, coloca-se como uma comunidade mais coesa. Há mais bens e espaços de uso 215 Aqueles que já estão casados com mais de uma mulher quando de sua conversão não necessitam abandonar nenhuma delas, a igreja pentecostal apenas não consagra nem aprova novos casamentos poligâmicos. Em Botopási, dizem, o mesmo tratamento seria destinado aos polígamos, mas não é o que acontece de fato. Nunca vi qualquer reprimenda aos homens que têm mais de uma esposa, apenas ouvi dizer que eles não poderiam fazer parte do conselho da igreja. R. Price (1990: 425n29) afirma que, no século XVIII, os missionários moravianos permitiam que um convertido polígamo mantivesse suas esposas, mas não poderia tomar mais depois da conversão, e que tampouco poderia ser apontado como helper ou servant (i.e., aannemmer ou dienaar, obreiro ou servo).

310 comum, e as pessoas de lá orgulham-se do bom desempenho de suas crianças na escola. “As pessoas de Futuná”, ouvi de um pentecostal, “por seguirem Paulus, foram inferiorizadas [butá a básu] por muito tempo, mas com a escolaridade formal, conseguiram erguer-se de volta.” A réplica de Botopási segue a tônica das críticas a Paulus Anake e de certo modo também às críticas à EBGS da cidade: dizem que também no Volle Evangelie há corrupção, abuso de poder, mesmo dentro de Futuná. Como se não bastasse, certos líderes daquela igreja se colocam como apóstolos, acham que sua palavra é lei, julgam a todos. Percebo nos habitantes de Futuná, mesmo naqueles que não foram “renascidos em Cristo”, uma visão mais negativa dos óbiama, das negociações com espíritos de mortos e práticas afins. “Aqui não temos medo de tantas besteiras como kúnu”, disse-me um dos membros daquela igreja. As conversas que mais me abriram portas para compreender o pentecostalismo saamaka foram com um par de mulheres de Botopási, ambas com mais de 50 anos, adeptas do VE há praticamente duas décadas. Frequentam tal igreja em Sééi, Futuná e organizam os cultos em Botopási. Uma delas deixou bem claro que teme, sim, os kúnu, estas “ferramenta do diabo” [didíbi woóko lái]. Disse: “estes espíritos não param de te prejudicar, nem mesmo quando você frequenta a igreja. É preciso rezar para Jesus para que ajude, mas a luta nunca acaba.” Ela está sempre disposta a ajudar seus irmãos e parentes matrilineares para lidar com espíritos vingativos e feitiçaria, desde que aceitam tratamentos que se resumam a preces cristãs. É bastante crítica de métodos como oráculos, óbia e oferendas. Afirmava: Deus fez as plantas para o mundo ficar bonito e, se soubermos que elas ajudam em alguma coisa, podemos usar. Mas chamar joóka [fantasmas] para colocar “em cima” das plantas, para ficarem mais potentes, isso é influência do diabo. Em nenhum lugar na Bíblia diz que devemos fazer esse tipo de coisa. É na Bíblia que está escrito como deve-se viver.

Na visão dela e de outros pentecostais, quando da divisão das aldeias, apenas os poucos que conseguiam viver sem óbia foram para Futuná, atrás de Paulus, e parece continuar sendo assim. Ela própria fazia uso dessas coisas até entrar para o VE, mas, conseguiu se livrar. Já foi acusada de hipocrisia por aqueles que dizem que ela usa exatamente as mesmas plantas, os mesmos compostos, para banhar-se, apenas chamando-os de uwíi (folha) e não de óbia. Mas para ela a coerência é clara: a diferença está nas coisas que se coloca “em cima” das plantas, os espíritos chamados com libações, palavras, caulim e oferendas. A crítica dessas senhoras ao compromisso entre cristianismo e “paganismo” que observa nos moravianos é severa. Dizem que a maioria das pessoas em Botopási não parece levar uma vida realmente cristã. No comportamento sexual, por exemplo: há muito adultério e promiscuidade em Botopási, e isso causa vergonha [dá sén] a Deus. Quem está na igreja deve se casar na igreja. Na Bíblia está tudo que é importante, nela está escrito como deve-se viver,

311 como homens e mulheres devem relacionar-se. Um problema, afirmam, é que em Botopási ninguém conhece a Bíblia direito, nem os evangelhos, não guardam passagens na cabeça. No Volle Evangelie, para ministrar cultos, é preciso passar por quatro anos de estudos bíblicos, enquanto na EBGS atualmente “qualquer um sobe no altar e fala”. Uma ideia dessas pentecostais é que os moravianos escondem grande parte da verdade sobre Deus, como se indicassem o caminho mas não levassem até o destino. De nada adianta dizer que acredita em Deus, em Jesus, e não frequentar a igreja: mesmo quem for bom e crer em Jesus, se não for à igreja, vai para o inferno. A crença leva necessariamente à igreja, e a crença é a única salvação da alma. Daí a insistência para que as pessoas próximas, de quem gostam, voltem suas vidas para Jesus (biá líbi gó a Jezus), pois só assim alcançarão a vida eterna (líbi u téégo). Ao mesmo tempo compreendem que palavras nem sempre são suficientes, tal ideia tem que entrar nas pessoas, elas mesmas devem tomar a atitude de mudar suas vidas. “Eu mesmo”, disse-me uma dessas mulheres, “não entendia a palavra de Deus. Fui batizada e criada na escola da EBGS, mas não entendia o que ouvia, as histórias sobre a crucificação, sobre o Espírito Santo vindo à Maria. Ouvia também na igreja, mas não entendia.” Disse que, antes, vivia em dois caminhos, pois ao mesmo tempo em que frequentava a igreja ia rezar para ídolos [bégi pindi gádu], lidava com mortos e divindades que, hoje percebe, são diabos. “Foi minha mãe que me fez andar desta maneira, nestes dois caminhos, pois ela própria também andava nos dois caminhos. Mas eu não guardo rancor dela [téi ën fu hógi], pois ela também não entendia.” Foi quando uma tia sua morreu, em Futuná, ouvindo o discurso durante o enterro, que ela disse ter percebido que, como as demais pessoas de Botopási, ela não estava no caminho certo, não conhecia nem entendia a Bíblia, e que em Futuná era diferente. Percebeu que se não mudasse sua vida não iria para o Paraíso junto com aquelas pessoas da aldeia vizinha. Aos poucos, foi se entregando a Jesus; finalmente, converteu-se e foi batizada novamente. Apesar de certo exagero nas críticas, os saamaka pentecostais parecem de fato mais dedicados à leitura cotidiana da Bíblia do que os moravianos. Isso os leva para um caminho de maior fundamentalismo e rejeição a determinadas práticas “tradicionais” saamaka, ao mesmo tempo em que os torna mais focados em temas cristãos como o pecado, o apocalipse, o paraíso e o inferno. Nessa visão, seguindo o Gênesis, foi Deus quem fez o homem, do barro, em sua imagem e semelhança, soprou a vida neles. “Muitos brancos dizem que os homens vieram dos animais, dos macacos, mas não é verdade. Deus fez Adão e Eva e os colocou no

312 paraíso. Porém o diabo colocou o pecado [zoondu] nas pessoas. Um espírito do diabo [didíbi jejé] estava sobre a serpente, como um espírito de Deus estava sobre Anake”, explicaram-me. “Depois disso, todos os seres humanos ficaram marcados pelo pecado. Ao nascer, mesmo sem ter feito nada, estamos em pecado, como uma maldição divina [gádu fuúku]. Porém, Deus ama os seres humanos, e por isso mandou seu filho para tirar o pecado original de nossas vidas”. Mas se não acreditarmos em Jesus, de nada adianta Deus ter nos dado seu filho. Apenas aceitando Jesus nos livraremos da maldição e nossos pecados serão pagos. “Muita gente crê em Deus, mas não em Jesus; isso não é o suficiente”, ouvi numa fala que demonstra um maniqueísmo raro para os fiéis da EBGS, mas não para os pentecostais, “há dois caminhos [pási] apenas, duas maneiras [fási], apenas”, bem como há dois tipos de espíritos (jejé): os de Deus, os do diabo. A luta contra o demônio nunca cessa, apenas quando este mundo chegar ao fim e Deus criar um novo, a paz chegará. O novo mundo, para os escolhidos, para os crentes, será como o Paraíso de Adão e Eva, onde não é preciso trabalhar para comer. Por isso, “devemos nos esforçar para não ir para o inferno”. Uma divergência crucial entre pentecostais e protestantes históricos, em saamaka como alhures, é a questão do batismo. As diretrizes da Unitas Fratum adotam o Credo Niceno, isto é, a fé de que, para a salvação, não há necessidade de um segundo batismo, o sacramento feito na primeira infância é suficiente (cf. Unitas Fratum 2009). Já os pentecostais defendem o batismo no Espírito Santo, uma imersão no Espírito, representado pela água, feita depois de adulto e por escolha própria. Defendem o segundo batismo baseados na descrição de Pentecostes no Novo Tentamento, que dá nome ao movimento de renovação. Na visão de alguns pentecostais de Botopási, a ideia da EBGS de que se deve batizar apenas quando neném é mentira, é uma enganação que os alemães trouxeram para os saamaka. O batismo no Espírito Santo deve ser voluntário, e é o batismo mais importante, pois representa a renovação da fé e o conhecimento do contato com o Espírito Santo. É um “nascer de novo” (nieuwe geboorte). Em Futunaákaba, costumam fazê-lo no rio ou nos igarapés, na cidade, é comum fazerem em piscinas. O que interessa é que se mergulhe a cabeça na água, diferente da EBGS, que apenas molha a cabeça da criança. Para os moravianos, ao ato de dópu (“mergulhar”, i.e., o batismo) acresce-se um significado diferente. Muitos sabem que há divergências teológicas acerca desse sacramento e que a Bíblia diz que Jesus batizou gente adulta, mas a ideia de batismo surge com mais frequência relacionada ao pertencimento a uma denominação. Mesmo as pessoas de Botopási que não vão aos cultos dizem que são da EBGS porque foram batizadas nessa igreja, porque foram na escola moraviana e porque cresceram numa aldeia

313 dessa denominação. Ser batizado, portanto, é parte do que define a relação íntima, formacional, entre a pessoa cristã e a igreja. Nesse aspecto, o batismo é tão relevante quanto a socialização. Daí que os “renascidos”, aqueles que foram batizados de novo, causem um incômodo para os protestantes históricos: rejeitaram aquela igreja na qual nasceram, cresceram e foram batizados, rejeitaram suas raízes, suas tradições. Também separa saamaka pentecostais de moravianos e “pagãos” a questão do perdão. O discurso do Volle Evangelie é de que todo o crime é perdoável, desde que o culpado se arrependa efetivamente, confesse seus pecados publicamente na igreja e entregue sua vida a Cristo. Jesus perdoa todos os pecados, até o maior de todos, o assassinato. Muitos saamaka não pentecostais acham estranho e suspeito que pessoas procurem a igreja depois de fazer coisas ruins, posto que as consequências dos pecados não vão simplesmente sumir com um mero arrependimento, sempre há retorno pelo que é feito. Já aconteceu de um homicida confesso buscar refúgio em Futunaákaba. Como todos aqueles que cometeram um assassinato direto, que puxaram o gatilho ou desferiram o golpe que matou uma pessoa, mesmo que não intencionalmente, esse homem havia sido banido para sempre do território tradicional saamaka. O kúnu que ele causou atacava violentamente as pessoas de sua matrilinhagem e matrissegmento. Mesmo com o perdão em Futuná, esse homem ainda está proibido de entrar em Botopási, onde cometeu o crime e, em Futuná não são todas as pessoas que falam com ele, pois muitos temem a ação do espírito vingativo que ele causou: as pessoas podem o perdoar completamente, mas o kúnu não. Porém, dizem em Botopási, o mesmo não ocorreu com um feiticeiro (wísima) que confessou ter matado muitas pessoas magicamente. Após ter começado a ficar doente, temendo que as mortes que carregava estivessem cobrando seu preço, ele teria tentando entrar na igreja, mas mesmo tendo confessado seus pecados, não foi aceito, pois dentre suas vítimas estavam pessoas influentes na igreja de Futunaákaba. A crítica dos moravianos é dupla: por um lado, os pentecostais jogariam com dois pesos, duas medidas, ao aceitar ou não o arrependimento dos pecadores que buscam sua igreja; por outro, tal política do perdão faz com que as igrejas pentecostais da cidade estejam cheias de criminosos, traficantes e assassinos, que entendem que ali podem ter santuário. O próprio presidente e exditador Dési Bouterse é citado como exemplo: culpado de diversas mortes durante seu regime, teria se convertido pentecostal numa manobra política e religiosa, buscando a imagem de homem religioso. Para muitos saamaka, isso soa como hipocrisia ou como incompreensão das forças punitivas que agem no mundo.

314 Outra crítica dura ao Volle Evangelie, ligada à última, é sobre o papel do dinheiro em sua teologia. Ex-criminosos iriam aos cultos com malas cheias de dinheiro, dizem, e teriam mais chances de serem aceitos pela contribuição que trazem para os cofres da igreja. “O dinheiro está no meio de tudo, estraga todas as coisas”, ouvi de um saamaka moraviano em uma discussão. Ele dizia que a EBGS pode ter problemas ligados com dinheiro, mas não são tantos, nem tão explícitos, até porque as ofertas dos fiéis à igreja costumam ser mais modestas, não há exigência de dízimo. A tais críticas, um pentecostal retrucou, dizendo que pagar o dízimo é uma coisa boa: “na igreja eles abençoam o dinheiro que você entrega, e você acaba recebendo muito mais em troca. A benção [blesi] tem poder. Se alguém roubar o dinheiro, não faz diferença, pois a pessoa desonesta vai se dar mal e a benção de quem doou não será perdida.” As visões negativas do pentecostalismo existem em parte devido a certo temor frente ao avanço da nova igreja. Os moravianos se veem perdendo espaço, pois os cultos do VE são mais animados, atraem mais pessoas, seu proselitismo é mais militante. “Na EBGS você só chega, ouve, canta e vai embora”, disseram-me, enquanto no VE parece haver mais interação e comunhão com a igreja e entre seus membros, que chamam-se de irmãos e irmãs [baáa e sísa]. O movimento pentecostal é minoritário no Alto Suriname, ainda assim, sente-se alguma ameaça às tradições moravianas, o que incomoda tanto os mais beatos quanto aqueles mais ausentes dos cultos, satisfeitos com a relativa liberdade que a EBGS permite para as práticas “pagãs”. A postura mais dura do pentecostalismo é enxergada com receio. “Tudo que é kulturu é mal visto pelo Volle Evangelie”, ouvi em uma discussão sobre aquela aldeia, “até coisas como o basiá bái, os kabiténi e basiá”, instituições políticas que raramente entram em conflito com o cristianismo. Além disso, não os agrada, claro, que falem mal das pessoas de Botopási, que as usem como exemplo de vida ruim ou “pouco cristã”.

Paganismo Ao chamarem práticas como óbia de kulturu, entendo que os saamaka distanciam-nas da ideia de um todo sistemático. Os cultos a divindades tampouco são entendidos como “igrejas” (kéíki), quais a pentecostal e a moraviana. Resta a dúvida sobre como exatamente referir-se, então, a essas práticas e ideias. Como já deve ter ficado aparente ao leitor, ao longo da tese evitei usar expressões como “religião tradicional saamaka”, que seriam saídas rápidas para categorizá-las. Em primeiro lugar, porque um dos pontos que defendo é que o

315 cristianismo não necessita ser oposto a uma “tradição saamaka” que seria “original”. Falarei mais sobre isso abaixo. Em segundo, porque inexiste em saamaka qualquer termo que satisfatoriamente traduza “religião”, a não ser, talvez, kéíki, “igreja”, mas como vimos este é usado apenas para o cristianismo e outras religiões mais institucionalizadas. Práticas como o óbia cairiam mais na categoria sranan de kulturu. As interações com espíritos de mortos e divindades, bem como as receitas mágicas saamaka não estão em par com as atividades “de igreja”, ainda que em diversos contextos (como funerais) estejam sobrepostas, justapostas, ou opostas. A “religião tradicional saamaka”, se existe, tem baixo grau de hierarquização institucional: há grandes óbiama, há médiuns de espíritos poderosos, há anciões sábios das matrilinhagens, mas não há um centro do conhecimento religioso. Práticas saamaka que envolvem o sobrenatural (tudo aquilo que “trabalha com o vento”) não caem em uma categoria apenas, estão dispersas e envoltas no dia a dia, relacionadas mas não unificadas em uma só “religião de matriz africana”. Fazem óbia ao sair para caçar; ao buscar força para trabalhar ou cura para uma aflição; ao fazer a corte ou praticar sexo; ao fazer preces para divindades do solo antes de plantar e colher, para as do rio ao empreender uma viagem de barco, para kúnu ao serem atacados, para parentes mortos ao necessitar de ajuda, para grandes ancestrais ao tomar uma decisão política... Da menstruação à escolha de um local para abrir uma roça; de uma partida de futebol à sucessão do gaamá, tudo pode passar por gádu, por óbia, por mortos. O mesmo não vale para as igrejas. Há quem faça uma prece a Jesus antes de começar o trabalho na roça, antes de comer. O Deus criador está presente em grande parte das falas e eventos públicos e privados da aldeia. Mas não se trata de um recurso exclusivo, e o cristianismo não toca em certos aspectos da vida que outras práticas “religiosas” podem tocar. Por exemplo: não se reza para aumentar o prazer do sexo, mas há óbia para isso. Não são todos os moravianos de Botopási que rezam antes de cada trabalho ou antes de cada refeição. E há inúmeras circunstâncias em que é a antepassados, divindades e magias que é preciso recorrer, não (apenas) a Jesus e a Deus. Neste ponto, o pentecostalismo parece de fato ser diferente, seus fiéis abraçam o poder da oração a Cristo em mais situações, infundem o cristianismo em suas vidas cotidianas de modo mais pleno. Justamente por isso, abrem mão e criticam com mais veemência atos que chamam de “pagãos”. Dito isso, é importante entender que a igreja produz, além de efeitos nas relações entre pessoas e espíritos, consequências nas relações entre as pessoas. Da perspectiva cristã, a frequência à igreja traria união à aldeia e garantiria respeitabilidade às pessoas. Isso não é

316 algo muito posto em questão pelos críticos do cristianismo em Botopási. Podem desconfiar da hipocrisia de uns e outros que dizem não mexer com óbia mas o fazem ocultamente; ou que se colocam como grandes kéíkima (“pessoa de igreja”, beatos), guardiões da moral cristã, mas que em sua vida cometem pecados como todo mundo. Ainda assim, ir à igreja aos domingos é uma atitude considerada positiva mesmo por aqueles que não o fazem, é um momento das pessoas estarem unidas sob um mesmo teto, buscando harmonia, louvando o criador. Por isso vestem-se bem para ir, por isso cantam e rezam em uníssono, por isso apertam as mãos uns dos outros, ao término do culto. A igreja é ícone da tão almejada união, em Botopási, bem como da ordem e do progresso, características positivas que desejam ver na aldeia. Há quem diga que a igreja não passa de um “clube” (feléniki wósu) onde as pessoas se reúnem para rezar, que Deus não está só lá e que seria igualmente válido, em termos espirituais, orar em casa, ter uma relação individual com Deus. Mas mesmo esses não deixam de reconhecer que o ato de louvar a Deus com uma certa frequência, na companhia de pares, sob um mesmo teto, pode trazer consequências positivas para a aldeia.216 Daí provêm visões negativas com relação às aldeias saamaka não cristãs, mesmo por parte de pessoas que possuem visões bastantes positivas da kulturu saamaka. Há uma ideia geral de que os “pagãos” tendem a ser menos progressistas, mais “atrasados”. Os cristãos usam, para referir-se às pessoas e aldeias não cristãs, o termo heiden (pagão), obviamente pejorativo, ainda que muitas vezes seja usado em tom neutro, e ainda que haja alguma admiração por certas características das aldeias não cristãs. A igreja é vista simultaneamente como fruto e fonte do progresso, do desenvolvimento (ontwikkeling), pois vem dos brancos, da costa, do mundo desenvolvido, trazendo consigo escolas, remédios de branco (bakáa deési) e novas regras que promoveriam uma vida mais civilizada, com menos brigas, menos violência explícita, uma rejeição maior da feitiçaria. Por comparação, as aldeias “pagãs” estariam mais presas no passado, viveriam num mundo menos modernizado. Dizem que os “pagãos” preocupariam-se demais com kúnu e óbia, teriam resistência a procurar médicos para afecções simples que não necessitam de interveniência espiritual. Que os mais velhos, por lá, não gostam de usar roupas ocidentais (como calças), insistindo em vestir kamísa no cotidiano, as mulheres em andar de seios desnudos. Que lá começam a vida sexual muito cedo e têm muitos filhos, o que faria com que as pessoas 216 Sobre o papel da igreja nas comunidades matawai, de Beet & Sterman afirmam: “nas aldeias à montante a igreja adquiriu um significado especial como símbolo de uma noca comunidade que dá unidade à congregação de pessoas que estão de outra maneira divididas por princípios de parentesco e localidade” (1981: 227). A frase faz sentido para Botopási.

317 passassem dificuldades financeiras. Há quem afirme que as aldeias não cristãs estariam mais propensas à violência, que lá ocorrem mais brigas públicas entre coesposas e que desentendimentos entre homens chegam mais facilmente às vias de fato, pois faltaria para as pessoas a noção do amor cristão, ensinada pela Bíblia. As primeiras escolas do rio foram fundadas por missionários, e muitas aldeias não cristãs demoraram a permitir a construção de escolas, mesmo laicas, em seu território. Assim, a maior tendência à falta de escolaridade que até hoje existiria entre os “pagãos” gera ridicularizações, pela dificuldade que os saamaka não alfabetizados tem em compreender e pronunciar o holandês, por sua suposta maior ignorância de “coisas de escola” (matemática, geografia, ciências naturais etc.). Esse último fator traria dificuldades para os “menos desenvolvidos” em conseguir bons empregos, em ser empreendedores, o que os obrigaria a ganhar dinheiro em atividades como o garimpo, passando longos meses distantes de suas aldeias, deixando-as vazias de homens adultos. As mulheres e crianças que lá permanecem passariam dificuldades durante o absenteísmo masculino, obrigando-as a venderem seus bens para sobreviver.217 Isso tudo para não falar de outras diferenças que já citei, a respeito de rituais funerários: as pessoas de Botopási não gostam de tradições “pagãs” como a da demora no enterro do cadáver, o luto mais prolongado para viúvos e viúvas, os maiores gastos nos funerais, a cova mais funda e o caixão maior, o serviço mais pesado e as regras mais estritas para os coveiros, os cemitérios separados para crianças, leprosos e taku deodë. Sob certos aspectos, as críticas que as aldeias pagãs recebem da parte dos moravianos de Botopási não são tão diferentes das críticas que os mesmos fazem aos pentecostais de Futunaákaba. O conteúdo das ironias e dos descontentamentos difere, mas de fundo permanece a ideia de que as tradições de sua própria aldeia são as mais apropriadas, as suas regras são as mais justas. Afinal, são aquelas com que as pessoas estão mais acostumadas, são as regras que lhes foram passadas na escola e por suas mães, pais e tío. E a recíproca é verdadeira. Saamaka não cristãos acusam saamaka moravianos de se deixarem influenciar demais por ideias vindas dos brancos, de abandonarem seus gádu e óbia, de arrogância, individualismo, ganância. Pentecostais acusam moravianos de seguirem as regras da Bíblia apenas até “o meio do caminho”, de ainda serem demasiado apegados à noções pagãs, de não frequentarem o suficiente a igreja, de viverem no escuro, ainda longe da luz, da verdade e da união oferecida por Jesus.

217 Sobre o absenteísmo masculino, ver R. Price 1975 e de Beet & Sterman 1978.

318 Da perspectiva de cada um, sua aldeia, sua denominação, seu clã, sua linhagem tendem a ser vistos como “mais corretos” que os demais. Mas as opiniões não são preto no branco. Os próprios moravianos, mesmo os bastante beatos, também refletem sobre o uso da palavra heiden (pagão). Sabem que o termo é derrogatório, que usá-lo é taxar os não cristãos de burros, ignorantes, equivocados, o que, apesar das críticas, sabem que não procede. Para começar, há certa dúvida em saber onde haveria “mais união”, se nas aldeias cristãs ou nas não cristãs. Pois, se por um lado, os cultos cristãos são vistos como locais de união da aldeia, se a palavra de Deus prega o amor, por outro, no cotidiano, as aldeias como Pikísééi, que mantiveram seus gádu e óbia, parecem por vezes mais coesas, menos individualistas, as pessoas ajudam mais umas às outras, mais dispostas a dividir alimentos e bens, ao invés de querer vender de tudo, até mesmo frutas. E mesmo os “pagãos” não deixaram de importar elementos estrangeiros que lhes interessam: hoje todas as aldeias têm eletricidade, lojinhas, as pessoas usam serras elétricas e tratores, viajam para a Holanda e para a cidade... Quem pode dizer que Gujába, a mais populosa aldeia do rio, que é pagã, não tem ontwikkeling? Aldeias menores ficam vazias de homens adultos por longos períodos, verdade, mas durante tal afastamento, quem fica ajuda-se mutuamente, confiam em quem guarda os objetos e casas dos ausentes, as mulheres aprendem a trabalhar “como homens” na roça, na pesca, na construção de casas. Quando os homens retornam, tendo terminado um período prolongado de trabalho, ou quando retornam às suas aldeias para cerimônias fúnebres ou rituais de wási gádu (“lavagem de divindade”, grandes festivais para komatí e outros), vêm com muitos bens para distribuir, as aldeias ficam cheias, as festas são grandes. A verdade é que meus interlocutores não tinham certeza acerca de quais costumes – “pagãos” ou cristãos – são mais efetivos em trazer união para uma aldeia. Ademais, como já deve ter ficado claro, o apego e o respeito dos não cristãos aos seus gádu e óbia não são apenas fonte de críticas, há também admiração pelos seus conhecimentos, pela manutenção dos saberes e forças diretamente herdados dos grandes antepassados. Deixálos de lado é perigoso. Por parte de alguns, existe mesmo um temor de que as aldeias cristãs venham a “acabar mais rápido”, por estarem se esquecendo de como lidar com forças do local onde vivem, espíritos de mortos e divindades que podem atacar se forem ignoradas. A visão saamaka cristã sobre seus amigos, parentes e vizinhos “pagãos” oscila em grande frequência. Ora são vistos como atrasados, violentos, selvagens, ora como estando em maior comunhão entre si, menos contaminados pelas mazelas do mundo dos brancos, mais sábios sobre histórias e tradições do passado, mais aptos a lidar com forças espirituais diversas. É como se

319 operasse, em Botopási, uma modulação dos tropos ocidentais sobre as sociedades tribais: o primitivo e o de bom selvagem, que valem para observar suas diferenças com relação a outros povos, mas também discrepâncias internas à tribo saamaka. 218 Tal ambiguidade existe justamente porque a ideia de progresso, de desenvolvimento, também tem um sabor dúbio para os saamaka.

Desenvolvimento A literatura afirma que Paulus Anake, em suas visões proféticas, previu e prometeu para os dómineongë um futuro como o de uma cidade europeia, próspera, com grandes barcos no ancoradouro, com lojas, sem privações, com saúde e muitos filhos. A demora na chegada desse novo tempo teria feito com que sua ideologia fosse sendo alterada, perdendo as ênfases milenaristas (Thoden van Velzen & van Wetering 1982: 55). O desenvolvimento é um desejo maroon certamente mais antigo que os acontecimentos em Sofibuka e hoje talvez seja possível dizer que tal futuro chegou, ao menos parcialmente. Há turismo por todo o Alto Suriname, incluindo alguns hotéis luxuosos; quase todas as aldeias têm pelo menos um weonkë (lojinha em que se vendem produtos importados), em várias há pequenas padarias e outros estabelecimentos; há duas policlínicas que investem em profilaxia e curam problemas simples, três pistas de pouso de avião que levam doentes graves para a cidade em menos de uma hora; a mortalidade infantil caiu; barcos de motor cruzam o rio sem cessar durante o dia; à noite, quase todas aldeias são iluminadas por geradores; algumas têm sistemas de água encanada ou durotanks para reservar água da chuva para os períodos de seca; podendo comprar alimentos, já não há tanta fome nos períodos de escassez, as pessoas podem se abster de comer caça considerada “de fome”, como gambás, teiús e ratos do mato. Mas o progresso é sempre um horizonte. Cria um desejo que aponta para o infinito, uma eterna aspiração por mais progresso. Certo fim de tarde, um jovem de vinte e poucos anos comentou comigo, em tom pensativo: “aqui ainda vai virar cidade. Talvez demore cem anos, talvez eu não vá ver, mas aqui vai virar cidade.” Impossível não lembrar de Anake. O que não quer dizer que os saamaka sejam gananciosos ao não se contentarem com o nível de desenvolvimento do Alto Suriname. O conforto e a segurança possibilitados pelas inovações tecnológicas poderiam ser muito maiores. Quando comparam-se com a situação das 218 Ideias similares surgem quando se fala em Botopási sobre os ameríndios: parecem por demais resistentes ao mundo moderno, parados no tempo, sem ambições de progresso, gente do mato (busisëmbë). Mas o discurso sobre eles se altera quando lembram que os ameríndios têm conhecimentos profundos sobre o mato, os animais, as plantas e certos espíritos que nem mesmo em centenas de ano na floresta surinamesa os saamaka conseguiram acumular.

320 demais populações do Suriname, os habitantes do interior do país sabem que os benefícios do desenvolvimento que chegam a eles ainda estão muito aquém do que seria justo. Ainda mais quando tantos recursos que geram a riqueza do país – madeira, ouro, água – vêm dali, do território por direito das populações ameríndias e maroons, largamente desfavorecidas. Sentem-se, com toda razão, explorados. O sistema de saúde no Alto Suriname ainda é relativamente ineficiente; não há eletricidade 24 horas por dia; faltam empregos e serviços nas aldeias. Na cidade, tendem a ser proletarizados e marginalizados, a ter empregos piores e a serem descriminados. O desenvolvimento é ligado ao mundo da costa, dos brancos, implica novas velocidades, largamente estrangeiras. O progresso exige e proporciona uma vida mais rápida. Um dos mais relevantes e prosaicos símbolos são os telhados de zinco, objeto de desejo de quase todo lar saamaka: apesar de mais caro e mais quente, e de fazer escorrer a água da chuva de modo a gerar incômodas poças de barro nos caminhos de terra da aldeia, o zinco dura muito mais que os quatro ou cinco anos de um teto de palha, não exige um esforço coletivo para sua colocação, e dá uma aparência mais moderna às casas. Apesar disso, construções coletivas recentes, mas emblemáticas, como o Beldeis- en Bestuurcentrum ou as casas usadas como pousadas para turistas são feitos com belos tetos de palha trançada, afinal, são ícones visuais do que é uma aldeia saamaka. Serras elétricas, tratores, motocicletas, barcos a motor economizam radicalmente o tempo e o esforço despendidos para efetuar trabalhos e deslocações necessárias. Em comparação com os objetos que substituem (machados, carrinhos de mão, canoas), trazem efeitos deletérios (seu barulho assusta a caça, seu óleo suja o rio), que são entretanto considerados menores que seus benefícios. O problema principal dessas coisas todas é que são caras. Exigem que as pessoas tenham empregos, quase inexistentes no interior, fazendo com que muitos mudem-se para a cidade, ou que passem a vender madeiras, frutas, legumes, carne e serviços que poderiam ser compartilhadas com parentes e amigos. O redesenho das relações de produção e distribuição de bens acaba acarretando no redesenho de relações de parentesco, afinidade, conjugalidade e amizade, cada vez mais pautadas pela economia monetária, algo visto quase universalmente em saamaka como negativo. A praticidade dos caixões comprados na cidade e das tumbas de cimento também acompanham similares redesenhos nos rituais fúnebres. Dão status aos enterros de quem pode pagá-los, mas no mesmo movimento reconfiguram as prioridades nos gastos funerários, tirando parte do foco dos investimentos nas trocas de tecido, comida e bebida. Não é

321 incomum a acusação de que os “pagãos” seriam tolos de gastarem tanto em seus funerais. Mas os gastos em que incorrem os cristãos para as exéquias talvez apenas tenha sido deslocado para outras preocupações. O caso dos késima é saliente: construir caixões parece nunca ter sido algo particularmente relevante em Botopási (quando comparada a aldeias não cristãs ou a tribos como os ndyuka), mas o que ocorre, com a “terceirização” da produção esquifes é que tal função ritual tem praticamente se perdido nos últimos anos, para o lamento daqueles que gostariam de ver as coisas sendo feitas como antigamente, e sem gastar dinheiro. Além disso, tradições saamaka moravianas como a de enterrar o morto o mais rápido possível, a princípio no dia seguinte do falecimento, também têm relações com as velocidades trazidas pelo progresso. Tal prática facilita a vinda de pessoas da cidade, que podem acompanhar o enterro e logo depois voltarem para seus lares, e facilita também a vida daqueles que têm trabalhos na aldeia, que não precisam deixar suas atividades por um período demasiado longo, podem limitar a interrupção para apenas a semana que precede o aitidei. De forma similar, saamaka cristãos apontam como uma das vantagens de não lidarem tanto com gádu e óbia o fato de não terem de passar por períodos de confinação em tratamentos “com espíritos”, de não terem de seguir tantas regras.219 Em suma, o progresso envolve novas formas de lidar com o tempo e com o trabalho, de contá-los e economizá-los, que frequentemente se chocam com um modo de fazer as coisas saamaka, visto como anterior, primevo. Para economizar toda uma semana de trabalhos derrubando as árvores antes de queimar uma roça, é preciso comprar uma serra elétrica, ou pagar alguém que o tenha, o que significa que é desejável ter um emprego. Mas ter um emprego muitas vezes significa ter menos tempo para cuidar da roça, não poder despender de três dias em uma expedição de caça, e voltar-se assim para arroz e carne de frango importados, o que exige mais dinheiro. Os choques demandam reflexão e reordenamentos, tanto na lógica temporal econômica e existencial “saamaka” quanto na “do progresso” (i.e., “dos brancos”). Algum desenvolvimento parece desejado por todos, em Botopási. Mas não de qualquer maneira. Se o desenvolvimento tem um lado bom, se “abre o olho” das pessoas, como disse-me um informante, ele também traz muitos problemas. “Ontwikkeling fökoopu” (“o desenvolvimento é um problema”), resumiu outro informante: uma aldeia mais 219 Existem polêmicas acerca de quando se tratar com óbia e quando recorrer à medicina ocidental. Há críticas em relação àqueles que resistem em ir a um médico para afecções que poderiam ser perfeitamente tratadas com um comprido (péíki). Mas os saamaka sabem também que a medicina dos brancos, por sua separação radical das esferas corporal, psicológica e espiritual não é capaz de lidar com todos os problemas que sua nosologia mais holística compreende. E sabem que para muitos comprimidos existem remédios análogos, feitos de plantas, tão ou mais eficazes. Por outro lado, tratamentos para doenças como diabetes e pressão alta são vistos como positivos por todos os saamaka.

322 desenvolvida é uma cheia de pedra, ferro, mais quente, mais desagradável, tem menos árvores, menos animais. E, assim, tem menos liberdade para cada um viver como quiser, caçando e plantando em seu território, sem depender de dinheiro, de estrangeiros. Determinar como o progresso chegará à aldeia, tomar as rédeas e definir a situação é o problema. Grandes projetos no Alto Suriname geram polêmicas dentro da aldeia. Ronda há alguns anos a informação de que o governo surinamês em parceria com o brasileiro estuda abrir uma estrada de Paramaribo para o Brasil, passando pelo território saamaka. As vantagens disso são evidentes para muitos: maior facilidade para chegar na cidade, em hospitais e escolas, a provável chegada de uma linha de transmissão junto com a estrada, talvez a possibilidade de expandir o comércio das aldeias para brasileiros. Mas lembram-se que talvez o comércio não venha a ser comandado por saamaka, mas por chineses ou brasileiros; que a caça e a pesca na região seria prejudicada; que criminosos poderiam vir pela ou ir para a fronteira, trazendo violência para as aldeias; que os recursos da floresta e do solo poderiam ser mais facilmente explorados por estrangeiros sem autorização saamaka; enfim que o lucro e as benesses do progresso que uma estrada traz consigo não seriam tão desfrutados pelos locais. Os saamaka já foram enganados antes por projetos como esse. Especialmente quando o lago da hidrelétrica Afobaka (cf. R. Price 2011) inundou grande parte de seu território tradicional e não trouxe o desenvolvimento qual desejado para as aldeias que foram deslocadas, hoje consideradas repletas de problemas sociais pelos habitantes de Botopási. E seguem o sendo trapaceados, com a exploração de ouro no norte de seu território, madeira e turismo por todo ele, que trazem poucos benefícios aos saamaka, fazem apenas enriquecer alguns poucos, sobretudo poderosos e corruptos. Não pretendem ser enganados novamente, apesar de quererem desenvolvimento, não o aceitarão sob condições que fujam ao seu controle. Se preciso, dizem em momentos mais exaltados, partirão para mais uma guerra. Há uma geografia do desenvolvimento. A ideia geral é que, quanto mais distante uma aldeia está da costa, quanto mais à líbasë (montante), menos desenvolvida ela tende a ser, quanto mais à báusë (jusante), mais bens e serviços da cidade chegam, trazendo progresso. Outros fatores, como a presença de uma pista de pouso, de escolas, de igreja, ou a proximidade de uma policlínica também influem no grau de desenvolvimento de uma aldeia específica. Botopási, estando a meio caminho entre o porto de Atjooni à jusante e os afluentes Gaan Lio e Piki Lio à montante, está mais à líbasë que tantas outras aldeias, mas é considerada uma das que mais cedo se desenvolveu, sendo comparada talvez apenas com as aldeias que hoje estão em torno do lado de Afobaka, das quais o acesso a Paramaribo é por via

323 terrestre. A visão dos adultos de Botopási é que a aldeia tem um passado dourado, nesse sentido. “Os bens [búnu] do desenvolvimento, durante muito tempo, só vinham para cá, antes de qualquer outra aldeia no rio”, afirmou um informante. Próxima à clínica Debikeo, possuindo há tempos igreja, pista de pouso e escola, era uma aldeia de muito destaque. Mas isso está ficando no passado. Os habitantes sentem que as coisas pioraram muito, especialmente desde a guerra civil dos anos 1980 e 1990 – que foi mais violenta na região do Cottica, mas que teve em Botopási um de seus principais palcos no Alto Suriname. Falta união (eenheid). Nesse sentido, para muitos, apesar do cristianismo, Botopási fica atrás até mesmo das “aldeias pagãs”, hoje em dia. Sentem que a tendência à desagregação, que o progresso já trazia, teria sido agravada pela guerra. Um saamaka artista plástico, residente na Holanda, diz que a guerra a pior coisa que já aconteceu na aldeia. Em 1995 ele retornou a Botopási, depois de 15 anos distante e diz que ficou chocado com o que encontrou. Casas foram destruídas, queimadas pelos soldados do governo em represália à presença de guerrilheiros na aldeia. Para além disso, parecia-lhe que toda a lógica de ocupação mudara. Quando chegou, mal sabia mais se localizar na aldeia onde nasceu e cresceu. Antes, havia mais espaços livres entre as casas, mais árvores. Agora constroem todas próximas, uma em cima da outra, talvez por medo do isolamento, na época da guerra. Mas, se as pessoas se aglutinaram fisicamente, se as casas se uniram, as pessoas se afastaram, há menos solidariedade. Exemplificou: “antes, quando se caçava e pescava era normal compartilhar com as pessoas. Hoje quem o fizer é chamado de burro. Só se vende as coisas, não se dá nada. Até frutas são vendidas!” Desse ponto de vista, a guerra civil parece ter trazido para a aldeia animosidades veladas. Por um lado, animosidade externa: por seu papel preponderante no conflito, por ter abrigado muitos guerrilheiros do Jungle Commandos que não eram bem vindos em outras partes do rio, Botopási teria sido amaldiçoada (sibá) por muitas pessoas e até hoje sofreria as consequências disso. Por outro lado, animosidade interna: entre aqueles que participaram da guerrilha ou a apoiaram e aqueles que eram contra sua presença ali. Muitos sentiram-se injustiçados pelas ações dos guerrilheiros, por seu confisco de bens e de espaços, pela forma violenta com que tentaram “convencer” homens jovens que não queriam pegar em armas a fazê-lo. É verdade, irrupções de violência física eram mais frequentes no passado, todos dizem. Hoje brigas de mão ou com armas são pouco comuns, e mesmo punições físicas consideradas legítimas – como o espancamento de um adúltero – são evitadas, muitos preferindo exigir apenas uma multa em rum e tecido do culpado. As hasúa, lutas-livre por

324 esporte, também são mais raras. Apesar disso, as divisões que ocorreram na aldeia durante o conflito armado entre os que apoiavam ou se juntaram aos guerrilheiros do Jungle Commandos e aqueles que não queriam a sua presença na aldeia reverberam. Commandos foram amaldiçoados, enfeitiçados, e até hoje têm de se proteger misticamente desses ataques. Ex-guerrilheiros e seus críticos hoje convivem como vizinhos, deixaram a maior parte das rusgas no passado, mas memórias e tensões permanecem latentes, impedindo a tão desejada união entre os aldeões, atrapalhando os trabalhos e projetos coletivos que poderiam reerguer Botopási a seu posto de aldeia modelo de desenvolvimento. Outrossim, independentemente da guerra, mas certamente aceleradas pelas transformações que vieram em seu rastro, vieram mudanças na convivialidade da aldeia. No que diz respeito às relações de gênero cruzado, por exemplo: antigamente, dizem, o ciúmes (djalúsu) era maior, os homens não devam nem “oi” para mulheres casadas que não eram de sua família sem que o marido viesse tirar satisfações. Era mais difícil casar com alguém de fora da aldeia, as negociações eram mais complexas. Os ensinamentos da escola e da igreja diminuíram esse tipo de conflito, argumentam. As crianças, porém, eram antes mais respeitosas e interferiam menos na vida dos adultos, dizem. Hoje tudo parece mais permissivo, segundo os homens mais velhos, com um toque de romanticismo saudosista em suas palavras. Os kuútu eram mais formais, praticamente só kabiténi, basiá e anciões falavam, mulheres não abriam a boca. Também a relação de respeito com as pessoas que detêm cargos políticos na aldeia parece ter se tornado menos rígida. Decisões de kabiténi são mais facilmente contestadas, e há mesmo quem fale abertamente mal do gaamá. O último ponto tange também numa maior proximidade dos maroons com a política partidária desde o pós-guerra. Nos anos 1960, políticos de Paramaribo como Johan Adolf Pengel, do partido NPS220 de maioria creole, começaram a tentar se aproximar de seus businengre brada (“irmãos negros do mato”, i.e., maroons), até então largamente alheios à política partidária. Num momento em que as eleições polarizavam-se sob clivagens étnicas, a 220 Os partidos citados são: NPS – Nationale Partij Suriname (Partido Nacional do Suriname), fundado em 1946, de base creole, que governou o país sob o presidente Ronald Venetiaan após o fim da ditadura, de 1991 a 1996, e depois novamente entre 2000 e 2010; NDP –  Nationale Democratische Partij  (Partido Democrata Nacional), fundado em 1987 pelo então ditador Dési Bouterse, baseado num discurso multiétnico consegue   eleger   o   presidente   Jules   Wijdenbosch   em   1996   e   Bouterse   em   2010;  PBP – Progressieve Bosneger Partij  (Partido Maroon Progressista), extinto; BEP – anteriormente  Bosnegers Eenheid Partij (Partido da União Maroon), atualmente Broederschap en Eenheid in de Politiek (Fraternidade e União na Política), o mais antigo partido maroon em atividade, fundado em 1973, hoje de maioria ndyuka; ABOP – Algemene Bevrijdings­ en Ontwikkelings Partij, (Partido da Libertação e do Desenvolvimento Geral), de maioria ndyuka, liderado por Ronnie Brunswijk;  BP­2011 –  Broederschap in Politiek  (Fraternidade na Política), dissidência majoritariamente saamaka da BEP.

325 disputa entre hindustanis e creoles dava a tônica da política na colônia, e os últimos perceberam que poderiam ter como aliados os afrosurinameses “do mato”. Mas a aproximação entre creoles e maroons nunca ocorreu de fato. Nas eleições de 1969 e 1973, as últimas antes da independência do Suriname, partidos maroons como o PBP e a BEP já concorreram (Dew 1996 [1978]). Após o fim da ditadura de Dési Bouterse e da guerra, nos anos 1990, a importância das campanhas políticas nas aldeias maroons intensificou-se. Além da BEP, surge um novo partido maroon, ABOP, liderado pelo ndyuka ex-líder guerrilheiro Ronnie Brunswijk, e mais recentemente a BP-2011. Maroons também vieram a se afiliar a partidos etnicamente mistos, como o NDP e outros menores. As eleições de 2010 foram apertadas e para conseguir maioria no parlamento, o NDP de Bouterse teve de compor um governo de coalizão com a ABOP de seu antigo inimigo Brunswijk. Assim, maroons passaram a compor o atual equilíbrio delicado da situação no parlamento surinamês, ainda que questões de interesse direto deles, como a legislação de seus direitos coletivos, andem a passos lentos. Nos períodos que antecedem as eleições, durante o “tempo da política”, a atividade em Botopási fervilha, sendo as afiliações partidárias na aldeia bastante pulverizadas, com a ABOP, o NDP e a BEP tendo particular força. Trocas de favores quais cargos em partidos ou empregos públicos, construções e benefícios coletivos para a aldeia são largamente negociadas no ano que precede o pleito. Todos esses aspectos do progresso, pelos quais passei com pressa, são aspectos da relação com o mundo dos bakáa, dos estrangeiros, dos brancos, da costa. Como ocorre desde o início da história maroon, a relação é tensa. Implica tentar capturar elementos daquele mundo sem cair nas suas armadilhas, sem abrir mão de seus princípios, sem destruir-se, sem assimilar-se. Daí tanta hesitação e ambiguidade.

Ser originalmente saamaka Igreja e escola são provavelmente as duas instituições que mais simbolizam o desenvolvimento e o mundo dos brancos, para os saamaka, pois são simultaneamente fruto e motor do progresso. As aldeias mais resistentes ao progresso são aquelas que recusam-se a ter uma escola; as que mais cedo se aproximaram dos brancos são as que possuem igrejas. Um informante certa vez disse que não são apenas “pessoas de igreja” que buscam o desenvolvimento, mas a igreja ajuda muito, “pois ensina como as pessoas devem viver, como se portar bem.” Nada surpreendente: educação e cristianismo andam juntos. Durante muito tempo era função dos enviados da EBGS à aldeia para comandar a igreja também lecionar na

326 escola. Por isso, estrangeiros que no passado ocuparam postos clericais em Botopási são referidos tanto por dominee (reverendo) quanto por meosítë (professor). Hoje não é mais assim, não há mais clérigos da EBGS residentes em Botopási e os docentes na escola atualmente são de diversas origens e afiliações religiosas. Enquanto estive em Botopási, houveram professores javaneses, creole, ndyuka, hindustani e dogla (de ascendência mista). Sylvia de Groot, ao falar sobre Ma Cato, importante personagem ndyuka do séc. XVIII, detentora da divindade chamada Gwangwela, afirma: Os ndyuka pediram educação formal de 1760 em diante. Inúmeras vezes tentou-se cumprir seus pedidos, sempre resultando em desapontamento; os brancos eram incapazes de educar sem misturar o cristianismo. Em contraste com os saamaka, os ndyukas recusaram-se a aceitar isso. O argumento era sempre que aceitar o cristianismo traria a maldição da mãe tribal Cato e do deus Gwangwela sobre o clã no comando. Essa foi também a resposta dada ao famoso missionário autodidata Johannes King, que teve de ir embora sem fazer nenhum progresso (de Groot 2009: 99 – grifos meus).

O interesse inicial dos saamaka nos missionários alemães era que eles ajudassem a educar as crianças, alfabetizando-as, ensinando-as a melhor lidar com o mundo dos brancos, a melhor negociar bens e a paz com o governo colonial. O cristianismo acompanhou a alfabetização, no caso de Alabi e outros, mas penetrou no mundo saamaka aos poucos. Ao clã Dómbi só chegou na virada do séc. XX. De todo modo, em comparação com os ndyuka, os saamaka tendem a ser vistos como mais receptivos historicamente à influência religiosa externa. O que não é incorreto, mas pode passar uma falsa impressão: como diz de Groot, os ndyuka já estavam interessados na educação europeia desde o século XVIII e hoje, em certos aspectos, parecem mais sujeitos à influência do mundo da costa do que os saamaka. Os ndyuka, na visão saamaka, parecem ter mais desenvoltura com a política partidária, com a burocracia estatal, alcançam mais posições de destaque no universo urbano pós-colonial. Enquanto isso, os saamaka são taxados de busbusi sma (“gente do fundo do mato”) por alguns ndyuka, por serem mais tímidos na cidade, por ainda permanecerem, nesta perspectiva, distantes demais da costa. Costumam ser, aliás, associados aos espíritos da floresta, os apukú. O que isso quer dizer? Apenas que em certos aspectos os saamaka parecem mais permeáveis à influência externa – no que tange a religião por exemplo – e em outros são os ndyuka que mais se aproximaram dos estrangeiros. Seria difícil comparar qual das tribos permanece “mais maroon” ou “menos branca” que a outra em termos gerais. O mesmo vale, em escala reduzida, para as aldeias do Alto Suriname. Como dito, aquelas à montante (líbasë) tendem a ser consideradas menos desenvolvidas que as de jusante (báusë). Quando cheguei ao rio dos saamaka, dizendo que queria aprender sua língua e cultura, frequentemente pessoas de Botopási diziam que eu deveria ir para montante, pois lá

327 falam “tuútuu saamáka” (“saamaka de verdade”). Sotaques ligeiramente diferentes marcam a fala de jusante e de montante.221 Além disso, quanto mais a jusante, mais estrangeirismos do sranan e do holandês são percebidos na língua. Em Botopási, palavras saamaka para números, dias da semana, meses do ano raramente são usados, utiliza-se os termos em holandês. Para ouvidos destreinados, por vezes é difícil saber se certas expressões são em língua sranan ou saamaka. Termos estrangeiros abundam tanto que há quem diga que em aldeias como Botopási o que se fala é mookísi saamáka (“saamaka misturado”), quase uma outra língua. Um certo exagero, mas é corrente a ideia de que a língua “original” está nas aldeias de montante, e particularmente em aldeias não cristãs. Ouvi que, certa vez, veio um homem de Malobí (aldeia “pagã” à montante) para um kuútu em Botopási e que não gostou do uso de expressões estrangeiras, falou que aquele parecia um kuútu de brancos, não dava para entender o que estavam falando. Grande parte do que tende a ser considerado marca de originalidade cultural está na língua. Outro diacrítico importante é o uso de vestimentas tradicionais, especialmente a kamísa masculina. A kamísa é um dos presentes que um pai deve dar a seu filho quando este atinge a idade adulta, todo homem em Botopási deve ter pelo menos uma. Mas seu uso é raro, mesmo em ocasiões festivas, a maioria anda mesmo de calças e bermudas. A kamísa parece ser reservada para momentos em que é importante estar vestido “à maneira saamaka”, em grandes reuniões como o kuútu anual da aldeia, ritos de passagem como o de apresentação de um bebê à comunidade ou o réveillon. Nas aldeias não cristãs que conheço, também é raro o uso de kamísa no cotidiano, mas há mais ocasiões onde são exigidas, como ritos para divindades, enterros etc. Também há mais homens, sobretudo velhos, que a utilizam no dia a dia.222 Viver como um saamaka, disse-me um amigo, é usar kamísa e não calça; é caçar sua 221 Por exemplo: “montanha” em jusante é “kúnunu”, em montante é “kúun”. 222 Diversas peças compõem a indumentária saamaka. Para homens, além da kamísa: tapá kootö, um pano decorado ou não que pende do pescoço e do ombro; ahoomáun dúku, uma faixa de pano colocada sobre o ombro; gangáabáka angísa, um lenço amarrado no pescoço. Para mulheres: koósu, panos decorados usados como saias; kojó um lenço que cobre os pelos pubianos de garotas púberes; angísa,um lenço amarrado na cintura que substitui o kojó quando uma mulher se casa; hédi angísa, lenço na cabeça que marca o luto. Para ambos, os sepú, faixas de perna utilizadas na canela ou na batata da perna. Algumas peças são exclusivas de situações formais ou rituais (ahoomáun dúku, gangáabáka angísa, sepú, hédi angísa). Outras são utilizadas no cotidiano. As mulheres maroons andam de koósu quase sempre, muitas inclusive na cidade. Homens usam tapá kootö com frequência, acompanhado ou não de uma camiseta. Sobre a arte têxtil maroon, ver S. Price 1993 [1984]; Price & Price 1992, 2005 [1999]. Sendo em muitos casos os panos decorados, são exemplos da arte maroon nas Guianas, artigos populares como souvenir para turistas. Vestir-se “à maroon” significa ser ainda mais facilmente reconhecido como tal na cidade, o que pode ou não ser desejado: há muito preconceito, mas há também orgulho étnico a ser ressaltado. Escolhi a kamísa como exemplo, mas poderia entrar em detalhes sobre o uso de cada uma das peças como demarcador de diacríticos culturais. Em geral, mulheres tendem a se vestir de maneira mais “tradicional” que homens, usam quase sempre koósu. As maiores questões trazidas pelo desenvolvimento para mulheres em tal aspecto são o uso ou não do kojó na juventude, e a exposição ou não dos seios.

328 própria carne, plantar seu arroz, e não comprá-los em lojas; é dar tangí (agradecimentos), doar coisas para familiares e amigos, evitar dinheiro; é respeitar basiá e kabiténi. Em meio a tais signos de autenticidade, o cristianismo ocupa uma posição algo incômoda. Se óbia são os remédios, as divindades e as kulturu saamaka, a igreja, numa visão dicotômica, apontaria para o “não saamaka”, ou para o “menos saamaka”. Usar óbia, ter relações com divindades, tudo isso faz parte da ideia de “saamaka verdadeiro”. Como já apontado, por um lado, cristãos ironizam a falta de escolaridade dos saamaka “pagãos”, por outro admiram sua maior intimidade com os saberes ancestrais e sobrenaturais. Quem é mais próximo dos gádu e dos óbia terá “mais kulturu”, dominará mais feitiços, saberá como lidar com infortúnios. É algo a ser respeitado e temido, por seu poder, mas também é algo a ser reverenciado por sua fidelidade às tradições. Há receio, por parte dos saamaka cristãos e em geral, acerca da perda de contato com seu passado, com suas origens. Isso não é algo que eles querem que ocorra. Parte do valor das narrativas de féstiten, que contam seu passado heroico, vem daí. Quando Richard Price fez seu trabalho de campo no Suriname, nos anos 1960 e 1970, os 20% dos saamaka que eram cristãos eram vistos por seus informantes (não cristãos) como menos originalmente saramaka. “Sem dúvida, também eu tinha uma percepção romântica – nunca totalmente perdida – que saamaka não cristãos eram (como eles mesmo veem) 'verdadeiros' saamaka, com os saamaka cristãos (novamente, como os demais saamaka os veem) em algum ponto pelo caminho acidentado que leva ao odiado mas ambiguamente sedutor mundo dos 'brancos'” (R. Price 1990: xii-xiv) Quando narra a conversão de Alabi, afirma que o mesmo aos poucos deixa de ser “totalmente saamaka”, cede à pressão missionária e desenvolve uma “nova persona” (ibid.: 119). Os missionários moravianos do século XX tinham a mesma percepção. Price cita um deles: Todas as atividades cotidianas – remar, pescar, andar no mato, limpar uma roça, plantá-la, colhê-la, cantar, dançar – são infusas de religião, a principal questão para um bush negro que torna-se cristão é como seria possível permanecer saamaka: como ele ainda pode andar, comer, ter filhos e curar doenças sem a antiga religião. Isso implica o início de uma nova vida cuja forma ele mesmo deve criar (Vlaanderen apud R. Price 1990: 329-30n3).

Dizer que adotar o cristianismo implica abandono de parte do modo de vida tradicional, na medida em que significa aproximar-se dos costumes brancos é uma afirmação possível. Mas ela deve ser entendida em sua complexidade e em meio à polifonia das afirmações saamaka sobre o assunto. O próprio Price matiza a visão de seus informantes sobre a perda de “autenticidade cultural” trazida pelo cristianismo, e sumariza as diferenças que percebe nas aldeias cristãs:

329 […] não há tambores tradicionais (mas as pessoas batucam em caixas de madeira); não há altares para ancestrais (então as pessoas fazem libações e falam com seus antepassados dentro de suas casas); apesar de tabus hortícolas serem iguais em todo lugar, não há cerimônias públicas para espíritos das florestas, deuses-serpentes e assim por diante (mas os cristãos ainda têm tais divindades em suas cabeças, “chamando-os” para propósitos de divinação e cura dentro das casas das pessoas, e visitam aldeias vizinhas não cristãs quando suas divindades necessitam de atenção especial); crimes contra pessoas ainda levam à criação de espíritos vingativos (mas eles são aplacados com oferendas feitas dentro de casa); a poliginia é desaprovada (mas tolerada), com homens que têm mais de uma esposa forçados a sentar nos bancos no funda da igreja; como em Bambey [aldeia saamaka do final do séc. XVIII], funerais são rápidos e têm lugar em cemitérios perto das aldeias – contrastando fortemente com aqueles dos demais saamaka; e a influência da cidade, por meio do ministro e professores creole frequentemente presentes, significa que os cristãos amiúde falam uma versão srananizada do saamaka, além de algum holandês, que mulheres cozinham doces típicos da cidade, que roupas da cidade são muito mais comuns, e que as pessoas celebram o dia da emancipação (um grande feriado na cidade sem significância histórica para os saamaka). […] para muitos dos saamaka de montante, os descendentes cristãos de Alabi e Sialoto [sua esposa] são dificilmente considerados saamaka; para a maioria dos últimos, os demais saamaka são “pagãos” (R. Price 1990: 277).

Faz sentido, para um saamaka, contrapor saamáka fási e kéíki fási (“modo [de fazer as coisas] saamaka” e “modo da igreja”). Falam de “aldeias de igreja” e “aldeias pagãs”; de “gente de igreja” e “gente de aldeia” (i.e, não-cristãos). O corte entre “igreja” e “paganismo” parece ser produzido primeiramente pelo próprio cristianismo, em sua lógica exclusivista, mas é certamente adotado por saamaka não cristãos, como os informantes de Price. Mas não podemos nos basear num purismo que não é levado às últimas consequências pelos próprios nativos. Contrastes existem e operam, mas apenas parcialmente, localizadamente. Dizer que não cristãos são “mais saamaka” e a fortiori que cristãos seriam “menos saamaka” é uma formulação problemática, para dizer o mínimo. Pois o que está implícito nela é que entre o “mais” e o “saamaka” há um “tradicionalmente”, e não podemos partir de uma ideia de tradição estanque, que iria contra a noção saamaka que parece mais capaz de expressar algo parecido: fási, “modo de fazer as coisas”. O costume, visto assim, é mutante no tempo e no espaço. Não há modelo original, apenas transformações, atualizações particulares. Saamaka cristãos certamente se aproximam mais do que “pagãos” de certos costumes ou tradições dos bakáa (brancos). Porém, os novos costumes surgidos de tal aproximação não são bakáa, continuam sendo saamaka. O cristianismo, qual praticado em Botopási, não existe em nenhum lugar do mundo àquela maneira, nem no Brasil, nem em Roma, nem na Morávia, nem mesmo em Paramaribo. Quando se fala em um “cristianismo saamaka” a ênfase deve estar tanto em cristianismo quanto em saamaka. Tampouco o cristianismo tem um original: todas as suas instâncias empíricas são atualizações particulares de um grupo de transformações. É preciso fazer dois parênteses. Primeiro, estou traduzindo a palavra bakáa como “branco”, mas a tradução é imperfeita. Bakáa significa “estrangeiro”, “branco”, “holandês”, dependendo do contexto. O núcleo da ideia de bakáa aponta para uma europeidade ou

330 euroamericanidade indistinta, que se consolida na figura dos brancos que são mais relevantes na história do Suriname: holandeses. Porém, a igreja moraviana é dos doisri bakáa, “brancos alemães”, que já são uma modulação da ideia de bakáa.223 Não há tantos holandeses moravianos: o calvinismo era a denominação mais presente entre os neerlandeses que colonizaram o Suriname. Apesar da importância histórica, o censo de 2012 aponta brancos como menos de 1% da população surinamesa, e mesmo na época colonial sempre foram esmagadora minoria em termos estatísticos. O que nos leva ao segundo parêntese: hoje em dia, não parece existir um cristianismo bakáa (no sentido de “branco”, “europeu”) no Suriname. Especialmente quando se está falando dos moravianos. Após quase três séculos no Suriname, a EBGS parece ter se tornado uma das principais expressões da cultura afrocreole na costa do país, a mais autêntica “igreja de negros” (blakaman kerki), de acordo com van der Pijl (2007), ou o modelo de cristianismo afrosurinamês, para van Wetering (2002: 214). O moravianismo encontrou uma pedagogia, uma voz, uma teologia que se confunde com etnia. Há maroons, javaneses, indosurinameses e outros na EBGS, mas seus grandes ícones foram e são creoles. Ser da EBGS, em muitos casos, é uma forma de se afirmar creole. O que não quer dizer que, na visão saamaka, ser moraviano significa tornar-se creole, até porque os maroons possuem visões negativas dos afrosurinameses da costa, não desejam ser demasiado aproximados deles. A relação aqui é também ambígua: missionários alemães foram ao Alto Suriname ainda no século XVIII, o que marca a independência do contato com o cristianismo por parte dos saamaka; mas depois disso reverendos creole estiveram em Botopási e foram importantes na história local do cristianismo. Assim, a igreja significa parte de um caminho que leva à aproximação com os brancos, mas não deve ser ignorado o papel intermediário dos creole no trajeto. O progresso é uma aproximação com o mundo dos brancos, mas também com o mundo não branco da costa. No fim das contas, o que existe em Botopási são atualizações particulares, modulações específicas de modos de vida cristãos e saamaka. Uma combinação de ambas que difere tanto do cristianismo europeu quanto do moravianismo creole; tanto dos costumes saamaka “pagãos” quanto dos costumes saamaka pentecostais. Em certos momentos, isso fica particularmente claro: funerais são eventos onde as discrepâncias se manifestam. Mas ritos funerários de aldeias saamaka cristãs não deixam de ser ritos funerários saamaka. Mesmo com as enormes mudanças provocadas pelo moravianismo, não são como os funerais moravianos 223 Além disso, os creole, afrosurinameses não maroons, quando estão em territórios maroons, podem também ser chamados de bakáa, posto que são estrangeiros em suas terras (cf. Köbben 1969b: 127n9), o que demonstra a complexidade da noção de bakáa.

331 creole. O primeiro enterro de uma saamaka que vi foi na cidade. Falecera a tia de um amigo, que morava na Holanda, seu corpo foi trazido para ser enterrado em Paramaribo. Eu disse a ele que queria acompanhá-lo, para ter a oportunidade de “ver um funeral saamaka”. Imediatamente um homem presente corrigiu-me, dizendo que não, o funeral que eu veria não seria um funeral saamaka, seria um “funeral da cidade” – quando alguém fosse enterrado na aldeia, eu veria um “verdadeiro funeral saamaka”. De fato, depois percebi, as diferenças eram imensas, apesar de ambos os funerais serem moravianos. Da perspectiva de seus habitantes, um funeral em Botopási, por mais que seja cristão, por mais que não tenha danças, tambores, oráculos (além de outras ausências) segue sendo um “verdadeiro funeral saamaka”.224 Mesmo com todas as mudanças provocadas pelo cristianismo, mesmo com todo o desejo de desenvolvimento, os costumes saamaka não são vistos como “coisas do passado”. Quando perguntei a um informante, crítico da igreja, se de maneira geral ele preferia as regras “pagãs” de Pikisééi ou as cristãs de Botopási, ele respondeu: “não posso dizer que prefiro as de Sééi, pois vivi a vida toda aqui, sou membro da igreja, estaria falando mal de mim mesmo. Mas precisamos do outro lado também, precisamos ir a Sééi de vez em quando. Os dois modos de fazer as coisas dão soluções [oplossing] para nossas vidas.” Deu-me dois exemplos: acha bom que em Botopási tenham menos medo de taku deodë que em Sééi, mas acha ruim que em geral, em Botopási tenham menos respeito aos kúnu do que na aldeia vizinha. Olhando para o futuro, acredito que as diferenças de grau – mais ou menos estrangeirismos, maior ou menor economia monetária nas aldeias, etc. – tenderão a perder muito de sua relevância, à medida que o progresso avança por todo rio e aldeias como Botopási perdem seu posto de “vanguarda” do desenvolvimento no Alto Suriname. Outras permanecerão, posto que a maioria dos saamaka rejeita com afinco o cristianismo e não deixará de seguir certos costumes “pagãos”.

Visibilidade De Beet & Sterman (1981: 357) elencam três efeitos da chegada do cristianismo entre os matawai: desaparição de instituições socioculturais tradicionais; declínio do caráter público de um número de instituições socioculturais; e diferenciação em crença individual e envolvimento nos dois sistemas de crença. Apesar da escolha problemática de vocabulário 225, 224 Outro ponto relevante é a menstruação. Para R. Price, “de uma perspectiva saamaka moderna, a maior diferença de conduta entre cristãos e não cristãos envolve a menstruação” (1990: 426n31). Ver nota 62. 225 Eu não traduziria práticas quais divinação do cadáver e uso de óbia como “instituições socioculturais tradicionais”, e não chamaria o conjunto dessas e outras práticas de um “sistema de crenças”.

332 os três pontos parecem relevantes para os saamaka. Não tenho certeza se o último é de fato um efeito do cristianismo, pois em aldeias não-cristãs há diferenças individuais de envolvimento com determinados cultos e diferenças de crença ou fé em determinados poderes. Ainda assim, é patente que em Botopási algumas pessoas se associam mais ao cristianismo, outras mais a divindades e óbia. O desaparecimento de certas práticas em Botopási (como o uso de tambores para falar com espíritos) sem dúvidas é um dos efeitos mais relevantes da presença do cristianismo. Mas parece-me particularmente importante pensar no declínio do caráter público das práticas que não desapareceram. Pois a igreja, em Botopási, tem muito a ver com visibilidade. No jái kuútu, reunião anual da aldeia, em 2013, um tema polêmico foi a proposta do governo surinamês de abrir uma segunda escola em Botopási. A escola ali existente só vai até a sexta série, obrigando os pais que querem que suas crianças concluam o ensino médio a mandá-las para a cidade. A ideia da nova escola seria uma boa novidade para todos. Porém, a proposta seria construir uma lánti sikooö, “colégio do governo”, laico, e as pessoas de Botopási queriam uma escola da EBGS, como a que já existe ali. O medo era que uma do governo viesse a “estragar a igreja” (pói kéíki). Com uma escola laica, talvez não possam fazer boóko didía no caso de uma morte... Esse tipo de desenvolvimento eles rejeitam, diziam. Durante o kuútu, um dos homens tomou a palavra e argumentou: “se a escola não for da EBGS, as crianças não vão saber que existe um Deus, que não se deve matar. Logo logo, vão estar dando tiros por aí. Não vão aprender hinos, nem mesmo para a Páscoa”. Outro homem foi enfático ao dizer que “a cristandade é nosso chefe, é mais importante do que o governo.” Ele mesmo não frequenta a igreja, diz, “mas foi a EBGS que me formou e quero que meus filhos frequentem uma escola da EBGS.” Apenas uma pessoa se posicionou a favor da nova escola, dizendo que, se viesse uma escola não moraviana, não recusaria, pois “temos que aproveitar o que nos é oferecido.” Havia também quem ponderasse que a escola da EBGS já não é mais a mesma. O ensino religioso anda displicente, muitos dos professores enviados não são cristãos, não conhecem os hinos nem a Bíblia. Um dos kabiténi, ao fim, decretou: “o povo de Botopási já falou: quer uma escola da EBGS.” Mas lembrou que a própria igreja não é mais a mesma. “Botopási ajudou a fazer a EBGS crescer, mas as pessoas de Botopási que foram para a cidade e se tornaram professores não têm interesse de voltar aqui para ensinar.” 226 O 226 Há muitos saamaka professores no Suriname, inclusive gente de Botopási. Entretanto, preferem não lecionar no Alto Suriname, especialmente em sua própria aldeia. Dizem que, com a intimidade, a cobrança dos pais dos alunos recai muito fortemente sobre eles. Os pais, conhecendo o professor e sua família, vão reclamar quando acham que seu filho foi destratado na escola, quando discordam de algo que foi dito na sala de aula; a autoridade do docente não se sustém.

333 comentário de outro homem a isso foi: “nós somos EBGS”, logo deveriam eles mesmo tomar as rédeas e fazer as coisas, deixar de reclamar da igreja da cidade. Outras polêmicas similares também correram a aldeia enquanto lá estive. Houve um boato de que os pentecostais queriam construir uma igreja em Botopási. O boato provou ser infundado, mas, enquanto havia dúvida, muitos foram os que se revoltaram com a pretensa ousadia do projeto. No passado, já tentaram construir uma igreja do VE em Botopási, mas, pelo que me disseram, foram impedidos. “Aqui é uma aldeia da EBGS, quem quiser ir para o VE que vá para Futuná”, afirmavam, “estão desafiando a aldeia.” De fato, há reuniões pentecostais frequentes em Botopási, frequentadas por um grupo de fiéis assíduos, que não são acossados por sua escolha religiosa. Mas a construção de um prédio “da igreja de Futuná” ali seria demais. O pentecostalismo – mais ou menos como o óbia – pode existir ali, mas não deve ser demasiado público ou oficial. As igrejas pentecostais parecem, em seu modo de instalação, funcionar de maneira mais molecular que a moraviana. Futunaákaba é a única aldeia oficialmente pentecostal no Alto Suriname, mas há congregações e igrejas espalhadas por diversas aldeias oficialmente “pagãs”, como Pikísééi e Tjaikoondë. Na cidade e em outros rios, crescem a olhos vistos. Como o movimento rastafári em Pikísééi, são capazes de se manter vivos em uma aldeia sem o apoio da liderança política instituída, sem o status de religião oficial. Seguem uma lógica menos institucional, infiltrando-se capilarmente na comunidade e ali crescendo aos poucos. Já no caso das aldeias EBGS (Botopási, Abénásítónu, Tutubúka e Pókigoon), o que ocorre é uma identificação profunda entre aldeia e denominação religiosa. A polêmica acerca da escola, acredito, dificilmente ocorreria em uma aldeia não cristã. Há diversas escolas católicas ou moravianas nas aldeias oficialmente sem igreja; Bófókulé, curiosamente, tem uma escola ligada à religião Baha'í. Mas nas aldeias moravianas, pelo menos em Botopási, a ideia é que a EBGS deve ocupar a aldeia sozinha, sem presença de instituições de outra denominação, e nem mesmo de instituições laicas, quando existir uma opção moraviana para elas. Há uma ideia não unânime, mas corrente, de que os kabiténi de Botopási devem ser frequentadores da igreja. Quando começaram discussões sobre um novo cargo de capitão que possivelmente se abriria para uma das matrilinhagens da aldeia, um dos principais aspirantes tinha a seu desfavor o fato de que era frequentador do VE em Futunaákaba. Partidários de outro dos cogitados para o cargo afirmavam que deveriam instituir em Botopási, “como se fosse um tabu”, que todo kabiténi deve ir à igreja. Um capitão vinculado à igreja da aldeia vizinha “pode até ser de Botopási, e morar em Botopási, mas seu coração está lá. Talvez não

334 queira participar de aitidei e outros 'kulturu soní' ['coisas culturais'] que as pessoas de lá desaprovam.” Um kabiténi pentecostal numa aldeia EBGS não poderia participar de todas as ocasiões que o cargo exige. O argumento, ainda que fortemente enviesado em direção a um dos pretensos candidatos ao posto de capitão, não está distante de outras afirmações que circulam pela aldeia, de uma certa exigência (nem sempre cumprida) de que os capitães e basiá sejam frequentadores da igreja. Isso garantiria a eles certa respeitabilidade, que tanto combina com a postura esperada de um capitão, a imagem de homens sérios, religiosos, preocupados e ligados profundamente com a aldeia e sua história cristã. Além disso, reforçaria o laço que deve ser reforçado: aquele entre a igreja moraviana e Botopási. A enorme maioria das pessoas, mesmo aquelas que não frequentam a igreja, orgulhamse que Botopási seja uma aldeia de igreja (kéíki koondë) e particularmente que seja de uma denominação com a história e brio de que a EBGS goza no Suriname. Disso não abrem mão, “quem não quiser a igreja vá morar alhures”. É um projeto religioso e político. A existência de pentecostais é tolerada enquanto não for demasiado visível, enquanto Botopási mantenha-se como aldeia da EBGS. Ninguém impõe regras que restrinjam a fé dos demais, ninguém impede que os pentecostais façam seus cultos, mas eles ocorrem em uma casa discreta, em uma área não central da aldeia. Como vimos, o batismo é um dos pontos que opõem pentecostais e moravianos do clã Dómbi. Para além da polêmica teológica entre o batismo na infância e o batismo adulto, a importância dos batizados reside no fato de que eles marcam um pertencimento a uma ou outra denominação cristã. Os moravianos com muita frequência evocam o argumento de que “se você foi batizado na EBGS, você é da EBGS”, o que, é claro, costuma ser rebatido pelos pentecostais convertidos, que falam de seu segundo batismo com orgulho. O compadrio, diferente de outros contextos227, não tem saliência entre os saamaka. O que é relevante num batizado, portanto, não é a relação de quase parentesco que ele cria entre pares específicos, mas as relações que cria entre uma pessoa e uma instituição religiosa, o que quer dizer também a congregação, a comunidade que se reúne em torno da igreja. Tal relação torna-se importante em parte por ser estabelecida numa cerimônia pública de sagração da criança frente à congregação. O batismo de certa maneira é a contraparte “de igreja” da cerimônia de púu míi a dooö (“tirar a criança de casa”), na qual a criança, com cerca de um mês, é apresentada à comunidade, numa festa. As duas cerimônias, a cristã e a não cristã, são

227 Para um exemplo da importância do compadrio entre quilombolas do Pará, ver Sauma 2013: 101ss.

335 realizadas com todas as crianças em Botopási: uma marca seu pertencimento à EBGS, a outra à aldeia. Em conjunto, dão visibilidade a um duplo pertencimento. O caráter público da igreja não diz respeito apenas à divisão entre pentecostais e moravianos. Ele aparece de forma clara quando pensamos em práticas como óbia. Botopási não tem faáka páu, o altar público dos espíritos; não tem o azan que protege do mal; os ancoradouros de aldeias não cristãs; não tem grandes casas de óbia. Porém, enterrados no solo de Botopási estão garrafas cheias de ingredientes e outros objetos que poderiam passar despercebidos, mas que foram lá colocados por óbiama com o intuito de proteger magicamente a aldeia. Muitos são invisíveis, outros aparecem apenas após uma chuva, com a erosão do solo. Mas todos sabem que estão lá. Quando alguém entende que problemas ocorrem na aldeia por descontentamento de divindades e espíritos de antepassados, lembram que “não foi a Bíblia que enterraram em Botopási quando ela foi fundada”, foram óbia. Eles nunca deixaram de estar sob a terra, protegendo os habitantes, apenas não são tão visíveis quanto o edifício da igreja. Usar óbia, fazer oferendas a divindades e kúnu são atividades praticadas por grande parte dos habitantes da aldeia, frequentadores da igreja ou não. Mas o fazem de uma forma velada, em ambientes privados: suas roças, na parte traseira e menos visíveis de suas casas, ou em aldeias vizinhas. Não há altares públicos, ou óbia de madeira nos caminhos da aldeia.228 Há mesmo cristãos mais ferrenhos que no discurso se colocam enfaticamente contra tais práticas, mas que, em situações de tensão e perigo – um ataque violento de um kúnu, digamos – acabam recorrendo a elas. Voltemos às ideias apresentadas no capítulo 1 acerca do termo lánti (povo), em particular em sua oposição a famíi (família). Tomando o par como marcador do que é público, geral do povo da aldeia (lánti) e do que é particular a grupos menores ligados pelo parentesco (famíi), a igreja de Botopási certamente está atrelada ao primeiro polo. Os terrenos considerados pertencentes a ela – o cemitério e a própria igreja – não são territórios de nenhuma matrilinhagem em particular, são de toda a aldeia. A igreja é dirigida na aldeia por um conselho da igreja (kerk bestuur), que tampouco é liderado por uma matrilinhagem específica. Sua neutralidade em termos de divisões interlinhageiras firma a igreja em solo público, de lánti. O que cada um faz em suas casas e terrenos, mesmo em termos de práticas 228 A principal exceção são os kándúu, amuletos usados em propriedades como casas, roças e árvores frutíferas para evitar roubos. Tais objetos necessitam ser visíveis, pois de outra forma os ladrões ignorariam sua presença e fariam o roubo – sofreriam as consequências, é verdade, mas a ideia do kándúu pode ser mais evitar o roubo antes que ele aconteça do que necessariamente punir o ladrão.

336 religiosas, é assunto de cada um. Mas quem entrar em Botopási deve compreender sem dúvidas que aquela é uma aldeia saamaka moraviana. É importante notar, voltando mais uma vez ao capítulo 1, que no contexto de uma aldeia saamaka, o que é mais visível não necessariamente é mais decisivo, mais marcante ou mais relevante. Não podemos esquecer do poder da domesticidade, das mulheres e jovens, frente ao poder público dos líderes políticos e anciões, ainda que o primeiro seja em muitas situações eclipsado. Da mesma forma, não podemos imaginar que, por serem mais ocultos, os óbia seriam menos importantes que os cultos dominicais. Vimos, há um desejo em Botopási de que os kabiténi e basiá frequentem a igreja. Ademais, os mais velhos são mais assíduos nos cultos dominicais que os jovens. A igreja cristã garante certa distinção de respeitabilidade às pessoas: ser visto na igreja todos os domingos é signo de que se é uma pessoa séria, dedicada à comunidade, que respeita Deus, conhece os hinos de cor. Ser um bom óbiama, por outro lado, é fonte de uma reputação largamente vista como positiva, é um grande orgulho para um saamaka, mesmo em Botopási, ser reconhecido como alguém versado nas artes místicas. Só que isso não é algo a ser alardeado em qualquer situação, as receitas dos óbia são secretas, seus conhecedores não divulgam com facilidade seu saber, para se protegerem de ataques de invejosos e de pedidos insistentes para que apliquem suas fórmulas por pagamentos baixos. A respeitabilidade pública emprestada pela igreja e a reputação idealmente discreta que acompanha o conhecimento de magias e espíritos não precisam entrar em conflito. 229 Um dos membros do conselho da igreja de Botopási, um “servo” que também tem assento de ancião no conselho da aldeia, é paralelamente óbiama do mais importante óbia terapêutico de sua matrilinhagem. Ajuda a organizar os cultos cristãos, as finanças da igreja e ao mesmo tempo guarda importantes conhecimentos mágicos de sua família. Uma distinção não mina a outra, são dois tipos de atividades importantes da aldeia nas quais está engajado. Apenas sua posição da igreja é mais pública, ele é visto três vezes por semana na igreja, e seu papel de óbiama só aparece quando sua ajuda é necessária. Reputação e respeitabilidade, nesse sentido, não operam apenas no nível individual, também linhagens e aldeias carregam o lustre de terem óbia particularmente poderosos ou de 229 Uso reputação e respeitabilidade baseando-me no sentido dialético que dá aos conceitos Wilson (1973). No contexto que estudou, a Ilha de Providência, a reputação é associada a relações horizontais (sobretudo entre homens), públicas mas que não passam por canais oficiais: a reputação de um bom músico ou um bom pescador, por exemplo; já a respeitabilidade diz respeito a relações hierárquicas e de classe, como o respeito que cria em torno de si um cristão devoto, educado e rico. As categorias não se encaixam perfeitamente no contexto saamaka mas, usadas livremente, podem ser guias para pensar os dois tipos de distinção aos quais me refiro.

337 serem especialmente pias em seu cristianismo. Em Botopási, é o segundo lado que desejam enfatizar publicamente. Ser uma aldeia cristã significa, ao menos idealmente, ser uma aldeia unida, pacífica e desenvolvida. Em grande parte por isso a igreja – mais especificamente a EBGS, denominação historicamente importante no Suriname – deve ser visível. A igreja de Botopási fica num ponto central da aldeia. É bastante visível. Em suas paredes há escritos em sranan (língua franca do Suriname, mas também língua creole por excelência). Duas de suas portas são feitas em caprichado teombë, entalhes de madeira saamaka dos mais tradicionais. Temos no edifício uma cristalização da visibilidade almejada para o cristianismo da aldeia, das influências externas que a religião representa naquele espaço, e do fato de que, apesar disso, aquele segue sendo um local originalmente saamaka.

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Capítulo 7: Magias, divindades, Deus e outras crenças A composição de uma aldeia saamaka comporta a relação interna entre as pessoas que a habitam e a relação externa delas com aldeias vizinhas e com o mundo da costa, mas também abrange a relação com espíritos e forças diversas que povoam a aldeia e o mundo. Para entender a aparentemente simples afirmação de que Botopási é uma aldeia saamaka cristã é preciso deter-se – como fizemos no capítulo anterior – sobre o passado e o presente do cristianismo, atendendo para questões sociológicas que se colocam a partir da adição de um conjunto de ideias e práticas de origem externa aos costumes saamaka previamente existentes. É preciso, também, aprofundar-se em problemas de ordem moral e cosmológica que tal adição coloca. Questões, portanto, deontológicas, sobre como relacionar-se com os seres do mundo. Neste capítulo, descreverei os óbia (objetos e receitas mágicas), os gádu (divindades da floresta, do rio e do solo), as diferentes visões acerca deles e os engajamentos que decorrem. Tratarei também de expor ideias acerca do Deus criador, da Bíblia e de Jesus, e as polêmicas que as cercam. Isso nos permitirá compreender as diversas posições que as pessoas adotam com relação a temas como o pecado, o mal, o perdão e o poder da fé.

Óbia Conceitos como jejé, óbia e gádu (espírito, magia e divindade) definem os aspectos mais relevantes do mundo sobrenatural saamaka. Digo conceitos porque tais palavras designam mais do que seres e poderes sobrenaturais com os quais os saamaka lidam. São noções que ajudam a descrever, delinear a partir de determinadas características, seres e poderes que habitam o universo, organizando sua multiplicidade algo caótica em algo mais inteligível, em algo com que podem relacionar-se, engajar-se. Não é simples definir óbia. São controversas as discussões nativas para compreender o que, exatamente, conta como óbia. O conceito designa principalmente compostos, objetos e receitas nos quais plantas possuem um lugar central, mas que podem incluir também metais, minerais, ossos, estátuas, garrafas e ingredientes secretos conhecidos como bioongö. A maioria dos óbia são receitas de banhos, emplastros e beberagens que servem para se proteger de feitiços, para curar doenças e ferimentos, para sorte na caça, para atacar inimigos, para ganhar mais disposição, dentre tantas outras coisas. Thoden van Velzen assim define óbia maneira: De acordo com os ndyuka, enormes poderes habitam no universo, a maioria inexplorados e mesmo desconhecidos pelos homens. Um obia é aquela parte dessas forças que se tornou disponível para a

340 humanidade, é benéfica para os seres humanos e assumiu uma forma definida, de modo que pode ser distinguida de outras forças sobrenaturais. Um obia escolhe qualquer tipo de recipiente: um amuleto, um pacote, ou mesmo um ser humano. Remédios dos europeus também são chamados de obia.[230] O que separa obia de outras forças sobrenaturais é a influência benéfica que manifesta, sendo a cura do corpo e da alma como o critério final (1978: 93).

No capítulo 2 vimos ser possível opor analiticamente jejé e óbia, quando dizemos que jejé são forças invisíveis dotadas volição, e óbia são forças que, por sua materialidade, podem ser manipuladas pelos humanos. Seguindo a dicotomia traçada por Thoden van Velzen & van Wetering (2004: 26) poderíamos dizer que, numa tradução à moda antiga, óbia e jejé representariam respectivamente os aspectos fetichistas e animistas da teologia dos maroons das Guianas, o primeiro apontando para o lado visível e manipulável das forças invisíveis, o último para seu lado indômito, as forças pessoalizadas imateriais que afetam os humanos (cf. Pires 2009, 2011a, 2011b, 2014a). Mas os polos não estão de fato apartados: entidades muito poderosas como os gaán óbia (“grandes óbia” que cada clã possui, como Mavungu, dos Dómbi) podem ser chamadas de óbia em seu aspecto mais prático e relacionado diretamente com os humanos, e de jejé em seu aspecto mais “abstrato” e personalizado. São objetos ou coleções de matérias usadas por pessoas para fins concretos (Mavungu encontra pessoas perdidas no mato) que também possuem vontades e personalidade, comunicam-se via possessão, fazem demandas aos vivos, possuem toda uma vida, com família e morada em outro plano. O fato de, por diferentes aspectos, um mesmo ente poder ser chamado de jejé ou óbia (e também de gádu, como veremos na próxima sessão) faz-me tratar tais palavras como conceitos. Elaborei anteriormente a hipótese de que é possível manter a separação entre jejé e óbia proposta por Thoden van Velzen & van Wetering, porém compreendendo que, ao invés de potências distintas, os dois conceitos apontam para vetores possíveis das forças sobrenaturais do mundo: jejé as designa quando agem volitivamente sobre os humanos, óbia quando são tratadas como matérias a serem manipuladas pelos humanos. Para os maroons das Guianas, os óbia são acima de tudo benéficos.231 Curam, protegem. Há forte identificação entre os maroons e tal conhecimento mágico-religioso, do qual se orgulham. Óbia é a principal expressão da kulturu maroon (na acepção vista no capítulo anterior), de sua tradição e de seu saber, ao ponto de um óbia específico poder ser

230 Isso não procede para os saamaka. Remédios europeus são chamadas de bakáa deési, “remédio de branco”. 231 Numa conversa, um amigo fez uma aproximação que julgo ser incomum, mas que representa bem o caráter positivo do termo em questão: disse que Deus é óbia. Pois Deus ajuda as pessoas de uma forma muito parecida como os óbia ajudam as pessoas. Como veremos, para os saamaka, Deus é acima de tudo um criador benevolente.

341 chamado de “um kulturu”. Pela capacidade terapêutica, divinatória, protetória e bélica de seus óbia, os maroons são notórios em toda a região das Guianas.232 Os óbia trabalham com véntu, o que é dizer que neles entram em jogo forças espirituais, sobrenaturais. Alguns são propriedades de seres da floresta, outros de antepassados, sendo preciso fazer libações para espíritos ao utilizá-los. Alguns não apenas pertencem a espíritos, como também são tratados como pessoas, como divindades: possuem nomes, poderes e vontades próprias. Outros, porém, não são mais que remédios, receitas, objetos que em nada se parecem com pessoas. Quanto mais poderoso for um óbia, mais secreta será sua receita, seu modo de ativação. Os mais poderosos são propriedades de clãs ou linhagens, sua aplicação pode custar caro para o paciente, geralmente em tecidos e rum, mas na cidade muitos sacerdotes de óbia cobram em dinheiro. Mesmo relacionados com espíritos e divindades diversas, um ponto pacífico para meus interlocutores era a ideia de que o poder dos óbia reside sobretudo nas plantas e foi nelas colocado pelo Deus criador, que as tornou disponíveis para o conhecimento e manipulação humanas. Ao fazê-lo – ouvi –, Deus queria que as pessoas não só se alimentassem das plantas, mas também “fizessem outras coisas com elas”. A comparação com os alimentos não é fortuita, reforça a ideia de que os poderes são cedidos por Deus para usarmos apenas quando precisarmos. A mesma ética que guia a caça (não matar um animal quando não for comê-lo) guia os óbia. Quando há uma grande crise, como a guerra civil, os grandes óbiama não hesitam em recorrer a grandes e poderosos óbia adormecidos, mas não é recomendável despertá-los em situações banais. Aprende-se o óbia de uma doença quando se é afetado por ela. Não é de bom tom usá-los para fins mesquinhos. Apesar de serem sobretudo magias benéficas, imperfeitos como são, os seres humanos podem usar tais poderes de maneiras negativas. Entra aí o reverso de óbia: os wísi (feitiços). Wísi pode ser entendido como um forma particular de óbia, ou, melhor, um uso particular de óbia. A mesma receita usada para curar uma doença pode ser usada para causá-la, a manipulação do mundo a partir desses compostos funciona em mão dupla. Assim, o que 232 No caribe anglófono, obeah tem um significado próximo. São práticas mágico-religiosas de matriz africana pouco centralizadas, que as pessoas buscam com fins de cura e proteção. Entretanto, de acordo com Bilby & Handler, toda uma tradição de interpretação por parte de brancos escravistas, que passa por missionários e por leis contra a liberdade de culto, chega à academia: um discurso que considera os obeah como o uso de forças sobrenaturais acima de tudo antissociais. Tal visão, que fez essas práticas sofrerem sansões legais do Estado, tem alguma penetração no uso cotidiano da expressão, nas Índias Ocidentais. Mas, para seus praticantes, “obeah é um termo guarda-chuva que engloba uma ampla variedade e extensão de práticas e crenças relacionadas com o controle ou canalização de forças sobrenaturais espirituais por indivíduos e grupos particulares para suas próprias necessidades ou em favor de clientes que buscam ajuda” (2004: 154). Ver também Brown 2003 sobre obeah e morte na Jamaica.

342 diferencia óbia de wísi é a intenção do praticante. Wísi é, em suma, taku óbia, “óbia feio”, “óbia ruim”. Já ouvi um homem argumentar que curar uma doença não deixa de ser “enfeitiçar a própria doença”, de modo que todo óbia é também um pouco wísi, formulação incomum, mas não absurda. Não havendo distinção substancial entre óbia e wísi, resta é a distinção entre óbiama e wísima, curandeiro e feiticeiro. Ambos usam basicamente os mesmos poderes, mas um para curar ou proteger, outro para atacar. Ser wísima é ser imoral, é fazer mal às pessoas, talvez matá-las. Ser óbiama é ser um conhecedor das folhas e das forças da natureza que as usa para curar e ajudar as pessoas. Certas fórmulas mágicas são sempre wísi, pois só servem para fazer o mal, como os usados para matar pessoas, qual a chamada kái akáa (“chamar alma”). Um “óbia feio” desse tipo é sempre feitiço, pois matar é sempre ruim, mesmo num contexto em que possa ser necessário, como o de uma guerra. Matar alguém por feitiço sempre gera kúnu, nunca é plenamente justificável. Há poderes que podem cair na categoria de wísi por serem malfazejos, mas que não são óbia. Forças que independem de substâncias vegetais ou mesmo de qualquer suporte material que não o som: maldições chamadas fuúku e sibá. São imprecações: expressões de indisposição ou inimizade, sobretudo por meio de palavras, dirigidas contra alguém, capazes de prejudicar seu alvo.233 Mesmo quando se trata de receitas mágicas benéficas, não é sempre simples definir o que conta como óbia. Há polêmicas em relação à definição destes poderes, sobretudo por duas noções que se avizinham: uwíi (planta) e deési (remédio). Uwíi significa em geral erva ou folha, mas as que me refiro aqui especificamente são folhas, galhos, cascas de árvores, raízes, todos os vegetais que servem de ingredientes centrais nas receitas usadas por maroons em sua terapêutica. Quando falam de “folhas do solo” (goón uwíi) em geral referem-se aos usos protetores das plantas. Deési é remédio: se for um remédio estrangeiro, receitado por um médico, será chamado de bakáa deési (remédio de branco); uma receita baseada em plantas locais também é chamada de deési. Pode servir para curar desde dores de cabeça e pressão alta, até afecções por espíritos, mortos e feitiços, pois nesta nosologia não há divisões claras entre males físicos e espirituais (cf. Vernon 1989, 1992). Há sobreposição de significados entre uwíi, deési e óbia, uma mesma receita pode ser descrita por qualquer um dos termos: 233 Sibá e fuúku podem ser usados como sinônimos, a diferença parece ser de grau. O sibá seria mais brando, nem sempre “pega”, e em geral há remédios para aplacá-lo. É pouco mais grave do que simples acusações informais ou fofocas, que, se forem frequentes, já podem ser suficientes para prejudicar alguém. O sibá parece ter formas pouco definidas, é a verbalização de um sentimento negativo direcionado, é desejar que alguém se dê mal, que as coisas não funcionem para ela. Já o fuúku é uma praga mais grave, mais elaborada, usada em situações sérias, e contra a qual há poucos remédios conhecidos.

343 kootösëmbë óbia (óbia para espíritos de mortos) é também kootösëmbë deési (remédio para espíritos de mortos) ou kootösëmbë uwíi (planta para espíritos de mortos). É seguro afirmar que, mesmo uns sendo mais assíduos que outros, para um fim ou para outro, todo mundo utiliza algum tipo de erva em Botopási, mesmo os mais tenazes cristãos, mesmo os pentecostais. Certas fórmulas e usos são bastante difundidos, utilizados por quase todo mundo na aldeia, como as diversas espécies de vegetais que, sozinhas ou em conjunto, são chamadas de taánga sínkíi uwíi (planta para corpo forte), e servem para dar vigor físico. O que muitos postulam, porém, é que há uma diferença entre simplesmente usar o poder que vem das plantas, colocados nelas por Deus, e combinar os vegetais com outros ingredientes mágicos, chamando espíritos – antepassados ou divindades – para dar mais força aos compostos. Essa diferença implica no que é legítimo ou não, enquanto cristão ou saamaka, adicionar aos compostos. Tal distinção separa as fórmulas mais corriqueiras, mais simples, que em geral usam apenas vegetais na composição, dos óbia complexos e poderosos, mais secretos, que têm nome, donos e associações com espíritos e antepassados específicos. Mas o fato é que duas pessoas podem estar usando a mesma receita básica, uma chama-a de deési e invoca Deus ao usá-la, outra chama-a de óbia e, além de Deus, utiliza caulim234 e faz uma libação de rum para os antepassados, dizendo alguns nomes de mortos, ao prepará-la. Obviamente, a diferença faz com que deixem de ser a mesma receita. Diferente das divindades, vistas pelos cristãos mais fervorosos como um poder demoníaco que deve ser evitado a todo custo, os óbia – ou ao menos os poderes fitognomônicos que estão em sua base – são associados a Deus, de modo que taxá-los simplesmente de maléficos não é usual. Os poderes das plantas não são malignos, dizem os pentecostais. Maligno é associá-los a espíritos de antepassados ou de divindades, estes sim ligados ao diabo. Maligno, anticristão, é pedir auxílio aos apukú (espíritos da floresta) para que ensinem óbia, falar nomes de antepassados ao preparar uma receita de plantas, fazer libações para que a força dos espíritos somem-se às das ervas e dos demais ingredientes. Maligno é fazer de uma uwíi ou deési um óbia. O nome que se dá a um composto, nessa visão, depende dos ingredientes não vegetais que se adiciona a ele. Num fim de tarde, na roça de um amigo, acompanhei a conversa de dois homens, que, apesar de cristãos, estavam revoltados com as acusações de “idolatria” que as igrejas fazem 234 Keéti, argila branca, que em português pode ser chamada de caulim ou pemba, é um ingrediente em grande parte dos óbia, que lava e marca o corpo dos óbiama e de seus pacientes, as estátuas das divindades e outros objetos (cf. R. Price 2008: 423n1). Por sua frequência nos rituais “pagãos” de óbia, e por ser um diacrítico bastante visível entre estes e os usos “cristãos” das folhas e remédios, acaba sendo utilizado, junto com as libações em rum, como sinédoque das diferenças.

344 aos saberes e práticas tradicionais maroons. Discutiam sobre o sentido da palavra afgoderij (idolatria), termo que as igrejas usam, com frequência, para denominar negativamente os óbia e os gádu. Um deles afirmou que “idolatria”, se é algo ruim, deve significar fazer aos outros aquilo que você não quer que façam com você. Ou seja, “idolatria” é o mesmo que wísi, feitiço. “Mas as pessoas da igreja, todas”, disse, “lavam-se com folhas [uwíi], mesmo que neguem.” O outro complementou, dizendo que a partícula god (“Deus”, “divindade”) na palavra afgoderij refere-se aos jejé, aos espíritos. Eles entendiam que, na visão iconoclástica de algumas igrejas, um remédio é idolatria quando envolve espíritos, quando chamam nomes de ancestrais, usam caulim, fazem libações, etc. Mas, para estes homens, não haveria grandes diferenças: se os espíritos que chamam para auxiliar numa receita são benfeitores, se o objetivo em utilizá-la é se curar ou se proteger, se o óbia não vai fazer mal a ninguém, então não pode ser visto como anticristão. Se não está fazendo mal a ninguém, não é proibido por Deus, então óbia não pode ser idolatria. Em outra situação, presenciei uma discussão sobre a origem histórica dos óbia. Um homem perguntou se foram trazidos pelos ancestrais saamaka da África ou se foram divindades que ensinaram as fórmulas a eles, já no Suriname. Ele certamente sabia que a versão mais difundida é que certos óbia, como alguns komatí, foram trazidos escondidos por pessoas escravizadas nos navios negreiros, mas lhe parecia improvável que conseguissem fazê-lo se foram capturados, como frequentemente se diz, por um ardil dos brancos. Se foram pegos na África de surpresa, não teriam como separar óbia para trazer furtivamente. Um pentecostal argumentou que, se assim foi, todos os uwíi foram descobertos na floresta surinamesa, o que significaria que foram espíritos, principalmente os apukú das matas, que os ensinaram aos antepassados, por inspiração ou por possessão. Usá-los, portanto, seria colocarse sob os apukú. Outro homem, esse bastante avesso ao cristianismo, disse que parte do ardil que trouxe os negros para a América foi justamente usando a Bíblia e que, por isso, recusa-se a usar o mesmo livro agora. “Nossos uwíi são melhores”, sentenciou. Uma opinião rara, mas que é sustentada por alguns saamaka, é dizer que Jesus usava óbia. Quando transformou água em vinho nas bodas de Canaã, quando andou sobre a água do Mar da Galileia, ou quando trouxe Lázaro de volta à vida, Cristo fez tais milagres usando óbia. Talvez andasse com uma bolsa cheia de ervas, especulou certa vez um informante. “Mas a igreja não quer que saibamos dessas coisas”, afirmou, e prosseguiu dizendo que não apenas Jesus sabia dessas coisas fabulosas. Não apenas ele fazia milagres. “Na época da guerra contra os brancos, os saamaka voavam, levantavam pesos incríveis, transformavam-se em

345 pedra ou pau podre para esconderem-se. Esses óbia ainda existem, ainda que não sejam usados com tanta frequência.” Debates assim são recorrentes. Pentecostais rogam a seus familiares para que não se lavem com óbia, evitando mesmo passar muito perto de barris que contenham fórmulas mágicas, ou pisar no chão onde foram derramadas. Pessoas menos beatas argumentam que não há nada de perigoso nas folhas que estão usando, que as pessoas de igreja muitas vezes desconhecem as diferenças entre as ervas e as receitas, acreditando que todas têm o mesmo tipo de potência. Chegam a dizer: “quem não quiser saber de óbia pode mudar-se para Futuná”. Os mais contemporizadores apenas pedem para que se evite usar óbia em locais nos quais passantes possam ver, não apenas para não levantar polêmicas, mas também para não criar especulação sobre qual tipo de problema estão tentando resolver com a magia, para não abrir espaço para fofocas. Afinal, em Botopási óbia não é proibido, mas é privado.

Gádu Voltando à oposição entre jejé e óbia, resta ainda um conceito que interage com eles: divindade, gádu. Numa primeira mirada, pende para o lado de jejé, pois divindades são antes de tudo seres espirituais, imateriais, dotados de volição. Porém, são tipos de espíritos específicos, relacionados a entes não humanos: especialmente animais, mas também árvores, pedras e humanoides semi-invisíveis da natureza. Apesar de, por sua incorporalidade, as divindades serem consideradas jejé, são diferentes dos espíritos de mortos (como fantasmas e kúnu), pela origem ser não humana. Além disso, o tipo de relação mais instrumental que podem estabelecer com os humanos faz com que certos gádu sejam tratados como sinônimos de certos óbia. Uma exposição curta como a que segue é incapaz de fazer jus à complexidade do conceito, apenas apresentarei de forma esquemática os entes sobrenaturais saamaka mais relevantes para localizar o leitor. As divindades que habitam o mundo saamaka são muitas pois, como me disse um amigo, fazendo um uso bastante particular da retórica cristã saamaka: “a Bíblia ensina [gádu búku léi] que existem muitas coisas no mundo, no mato, na água, no escuro. Algumas dessas coisas falam com Deus, essas são as divindades boas; outras não e por isso podem prejudicar”. Abaixo do Deus criador, há diversas classes de divindades. Os mais recorrentes em Botopási são os komatí (jaguares), apukú (seres do mato) e papagádu (jiboias). Cada tipo de gádu tem seus toques de tambor, suas rezas, suas línguas esotéricas, suas casas de culto, seus altares, suas estátuas, suas regras. Cada um tem a capacidade de possuir pessoas e ao

346 fazê-lo emprestam características dos seres com os quais são relacionados para os corpos de seus médiuns. “Ter um komatí” é o mesmo que “ter um óbia de komatí”, ou seja, ser possuído pelo espírito do jaguar com certa frequência, comunicar-se com ele em sonhos e visões, estabelecendo uma relação duradoura. Se guardar as regras ou os tabus (weoti ou tjína) de seu gádu, a pessoa pode aprender receitas de óbia, receber avisos e auxílio acerca de perigos que corre e entrar em contato com todo um corpus de conhecimento esotérico (pela divindade diretamente ou por outros médiuns do mesmo tipo de espírito). Quando um médium morre, seu gádu pode ser transmitido para alguém de sua família patri- ou matrilinear, dependendo da anuência da própria divindade. Os komatí são associados principalmente aos espíritos dos grandes felinos predadores, mas também ao urubu rei. São deuses guerreiros cuja origem remete, na visão saamaka, à sua herança africana, muitos desses óbia teriam sido trazidos nos navios negreiros, escondidos. Apesar de violentos e perigosos, suas relações com os homens são sobretudo benfazejas. São quase exclusivamente masculinos, protegem os homens que possuem seus óbia, tornam-nos mais fortes, mais rápidos, invulneráveis a balas e cortes. Os apukú são espíritos da floresta. Para humanos são invisíveis, vivem em clareiras no mato nas quais parece haver gente, mas onde ninguém nunca habitou. Apukú são donos de locais na floresta, vivem em árvores como as kankantíi (samaúma, maior árvore da floresta), katu (apuí, árvore parasita cujo tronco abraça outras árvores), em akatási (cupinzeiros que espumam) e em pedras, por isso tais coisas não podem ser golpeadas, derrubadas ou queimadas. Quando alguém o faz, quando alguém quebra as regras de seu território ou quando alguém comete alguma violência grave no local, os apukú podem se tornar kúnu da matrilinhagem do culpado. Apúku podem ser femininos ou masculinos, malignos ou benfazejos, podem ajudar as pessoas com conselhos ou deixá-las loucas. Os papagádu, ou vodúgádu surgem em geral para as pessoas, principalmente mulheres, quando uma jiboia (vodú) é morta, muitas vezes ao queimar uma roça. São nesses casos considerados kúnu, mas, sendo simultaneamente gádu, podem ser domesticados, tornado-se menos danosos do que espíritos de humanos mortos. Quando possuem suas médiuns, fazem as pessoas se arrastarem pelo chão e se moverem sinuosamente, como cobras. Outros tipos de gádu incluem os watewenú, relacionados às anacondas (bóma) e às poderosas cobras gigantes do mato (gaán sëmbë u mátu). Os káimagádu ou boongó, divindades ligadas ao jacaré-coroa, um réptil listrado relativamente pequeno que vive nos igarapés. Os töneo e os wénti, relacionados à água e às wátamamá, figuras humanoides, como

347 sereias, que habitam as profundezas (cf. R. Price 2007: 132ss, 2008: passim). Os adátu, divindades ligadas aos grandes sapos (gaán toodö), vistas como auxiliares de komatí particularmente fortes (ibid.: 217). Os íngigádu, divindades poderosas e sábias relacionadas a “índios do mato”, que não se confundem com fantasmas de índios humanos. Os tipos de gádu podem ser encaixados em “panteões”, referentes ao espaço onde vivem: matas, águas e solo. Apukú, komatí, íngi, adátu podem ser considerados como “divindades das matas” (mátugádu); wénti, töneo e watawenú como “divindades da água” (wátagádu); e papagádu como “divindades do solo” (goóngádu). Tal classificação é tentativa e ambígua, divindades podem ter proximidades com mais de um elemento: as divindadescobras têm relação com a mata, com o solo e com a água; divindades-anfíbio têm relação com o solo e com as matas; divindades-jacaré têm relação com a água e com o mato. O céu (líba) poderia entrar como um outro panteão, ao qual pertenceriam divindades-urubu.235 A divisão em “panteões” aponta para uma outra expressão do mundo (sobre)natural, a que, para mim, é a menos clara: seres chamados de wátamamá, goónmamá e mátumamá (que podemos traduzir por mãe d'água, mãe do solo e mãe do mato). Como todas as coisas foram criadas em pares por Deus, dizem em saamaka, cada um tem seu equivalente masculino: wátapá, goónpá, mátupá (pai d'água, pai do solo, pai do mato), mas são as versões femininas que costumam ser evocadas. Numa primeira visada, podem ser entendidos como “elementais” ou “princípios da natureza” pois a tais entes pode-se fazer libações, rezas e oferendas – a goónmamá quando se vai plantar, a mátumamá quando se vai caçar, a wátamamá, quando se vai pescar. Mas também são seres quase invisíveis que habitam a natureza: wátamamá são humanoides como sereias que vivem no rio; goónmamá, humanoides que moram embaixo da terra ou cobras esbranquiçadas que vivem no solo; mátumamá, a cobra gigante (gaán sëmbë u mátu) ou os apukú (eles mesmo humanoides invisíveis do mato). Aproximam-se dos gádu em dois sentidos: matumamá e apukú podem ser simplesmente sinônimos, bem como watamamá e  wénti. Por outro lado, já ouvi explicações de que os humanoides seriam os seres que dão origem a certos gádu (assim como os komatí são espíritos de certos jaguares quando entram em contato com as pessoas, os wénti seriam os espíritos de certas wátamamá quando entram em contato com as pessoas). Além disso, cada uma é elaborada diferentemente. Wátamama são descritas como equivalentes a sereias, pessoas   que  habitam   o  fundo  do  rio,  de  peles brancas, longos cabelos e pés como os de pato, moram em buracos nas pedras e são perigosas 235 Na divisão proposta por Wooding (1981: 85-112) das divindades do winti praticado em Para há panteões do céu, da terra, da água e do mato, havendo kromanti em cada um, ampuku em cada um, indji em cada um deles etc.

348 porque podem levar humanos para o fundo da água.236  Goónmamá  oscila entre ser descrita como uma única deusa para todo solo (e nesse sentido quase um “princípio de fertilidade”); como deusas do solo de cada local; como humanoides invisíveis que habitam sob o chão; e como cobras brancas acinzentadas que moram embaixo da terra e nunca vêm à superfície. Matumamá é uma expressão que ouvi menos, em geral refere­se simplesmente aos gádu do mato. Libações e rezas a goónmamá são muito mais comuns do que às outras duas “deusas” (ou classes de divindades). Mitologia, fala, possessão e reflexão nativas expressam relações variadas e complexas entre tais seres: entre panteões, elementais e divindades, entre cada tipo de gádu, e entre cada gádu individualmente. Além dos nove tipos de gádu listados, existem subcategorias (komatíjaguar, komatí-jaguatirica, komatí-urubu, komatí-d'água, p. ex.) e podem talvez existir gádu “misturados” (R. Price 2008: passim)237. Isso demonstra que uma tipologia das divindades ou divisão em “panteões” serve apenas como primeira aproximação. Numa observação caso a caso, cada gádu específico, cada espírito que se comunica ou possui uma pessoa viva tem sua história, seu parentesco, suas capacidades, seus saberes, sua personalidade, seus nomes. Não há um komatí geral, avatar de todos as divindades-jaguar, apenas espíritos particulares de komatí, cada qual com suas características. Há toques de tambor, nomes, regras, que são gerais para qualquer komatí, mas cada um deles pode ter suas regras, nomes e músicas particulares. O que parece mais essencial, na categoria de gádu é sua capacidade de possuir humanos e sua origem não humana.238

236 Watramama é um ser espiritual relevante em todo o Suriname. Um dos mais famosos poemas em sranan é em sua homenagem (Trefossa 1998 [1957]). Van Stipriaan afirma que, no processo de creolização, essas deusas d'água teriam perdido sua identidade distintiva (2002: 91) – talvez por isso sejam difíceis de classificar nos “panteões” afrosurinameses. Wooding (1981: 97-99) associa, para os creole de Para, watramama a jacarés e a figuras ameríndias. Na descrição que R. Price (2007) faz dos wénti – divindades da água com os quais os saamaka teriam entrado em contato no litoral no início do século XIX – a conexão com watamamá não é citada, mas ficam claros que o aspecto e comportamento ds seres aproxima-se sobremaneira. 237 Essa é a posição de Tooy, informante de Richard Price. Alguns de meus informantes discordam, dizem que não existem gádu misturados: “papagádu não pode procriar [palí] com komatí, um é uma coisa o outro é outra coisa”. 238 Devo ainda acrescentar que outro tipo de espírito que, por sua origem estrangeira, não parece se encaixar bem nestas classificações em tipos (komatí, apukú etc.) e panteões (mato, água, terra), perturbando ainda mais a tipologia. São os espíritos como aquele que possuía Paulus Anake (Santa Jejé Jezus Pikin ou Tata Heépima), ou os que possuíam seus netos (Jejé fu Waarheid e Mán fu Tuú). São chamados de kéíki jejé (espíritos da igreja). Há polêmica sobre se eles são manifestações do espírito de Deus em si, ou se são espíritos “da natureza” que seriam particularmente próximos a Deus, ou ainda alguma outra coisa. Aproximam-se de divindade por serem capazes de possuir as pessoas e por sua origem não humana (apesar de afirmações na literatura que os associam a kúnu), mas, pelo que entendo, os saamaka veem “espíritos da igreja” como outra classe de seres espirituais.

349 De forma geral, todas as divindades são vistas pelos pentecostais como demônios (didíbi) disfarçados. Nessa perspectiva não haveria grandes diferenças entre eles e os espíritos de mortos. Um fantasma ancestral ou uma divindade, mesmo quando surge para os vivos com boas intenções, oferecendo ajuda, estaria em realidade enganando os humanos, desviando-os do caminho correto, do caminho de Deus. Exigem demais das pessoas, prendem-nas, demandando sacrifícios, libações e preces – preces que deveriam ser dedicadas a Jesus. Em suma, devem ser abandonados e evitados ao máximo. A visão dos moravianos de Botopási é mais ambivalente. Há, por um lado, aqueles que rejeitam para si a associação direta com os gádu, não querem ser seus médiuns, pois eles impõem muitas regras, muitos tabus, exigem demasiada atenção e precaução constante. Argumentam que impedimentos como não comer certos tipos de alimentos, ou não comer comida preparada por uma mulher menstruada, digamos, não combinam com a contemporaneidade, em que é preciso com mais frequência ir à cidade, frequentar lugares variados, comer em restaurantes... Apesar dos gádu ajudarem as pessoas, mantê-los é algo que demanda esforço. Exigem tempo que pode conflitar com trabalhos assalariados; exigem preces, rum, tecidos e outras oferendas custosas. Mas mesmo os moravianos que sustentam esse tipo de posição não chamariam as divindades de didíbi. Parecem vê-las não como demônios, mas como poderes de outrora, ainda importantes e respeitáveis, mas que talvez não tanta relevância nos tempos de paz e progresso. Por outro lado, há em Botopási quem pareça sentir certa nostalgia com a crescente distância criada pela vida moderna entre as divindades e a aldeia. Dizem que havia muito mais gádu em Botopási antigamente mas, aos poucos, foi tornando-se cada vez mais raro ver ali gente possuída por jaguares, jacarés, cobras e coisas do tipo. Antes, possessões por gádu em Botopási não eram infrequentes, hoje podem passar quatro anos sem que algo do tipo aconteça. Eu mesmo jamais vi uma possessão por gádu em Botopási. A explicação para tal afastamento passa pela igreja, claro, pelo fato de que na Bíblia diz que não se pode rezar para outros Deuses. De algumas décadas para cá, as pessoas têm respeitado mais esse mandamento, dizem. Além disso, frisemos, o progresso, que chega cada vez mais forte ao Alto Suriname, entra em conflito com as demandas das divindades. Um homem disse que antigamente, quando uma pessoa era possuída por um komatí, rugia, movia-se como um felino e subia nos tetos de palhas das casas, mas hoje esses gádu não querem chegar perto das casa, pois podem se cortar com o zinco que substitui a palha. Um problema de menor importância, e uma visão que poderia ser rebatida por alguém que lembre que os komatí são

350 quase invulneráveis, sendo capazes de subir em árvores espinhosas como o tucumãzeiro. Mas uma fala que reforça a visão de que o mundo “desenvolvido” choca-se, em vários aspectos, com essas divindades associadas à natureza, à floresta, ao rio, ao solo, não apenas pelo que exigem de seus médiuns em termos de tempo e tabus, mas por sua própria índole e costume. Sempre dizem que os komatí não gostam que seus médiuns usem calças: eles devem usar vestimentas tradicionais como a kamísa. Coisas modernas, de bakáa, não são bem vistas pela maioria das divindades. Outro fator: as próprias divindades (e também os kúnu) talvez tenham cansado de não receber em Botopási a atenção devida – poucas rezas, poucos cuidados, poucas oferendas – e mudado-se para Pikísééi, isto é, passaram a escolher como médiuns pessoas não cristãs da aldeia vizinha. “Talvez por isso”, ouvi, “Pikísééi tenha mais gádu hoje do que nunca. Antes, em Botopási, era muito frequente um morto possuir alguém da família para contar quem ou o quê o matou. Hoje já não fazem tanto.” Mas os gádu, como os kúnu e os mortos, não desaparecem. Kúnu continuam atacando as pessoas de Botopási, apenas não escolhem seus médiuns ali. Da mesma forma, um gádu que se vê preterido dificilmente escolheria retornar à família próxima daquele que o detinha, não aceitaria ser herdado, após a morte de seu médium, por alguém que não cuidaria bem dele. Mais que nostalgia, muitos veem a distância com os kúnu e com outros espíritos com grave receio. Um amigo me disse: “As aldeias cristãs vão acabar mais rápido pois não estamos cuidando dos kúnu por aqui.” Ninguém quer deixar de lado a igreja, mas muitos querem retomar uma relação mais próxima com o gádu, kúnu e óbia, voltar a equilibrar de forma mais sábia essas coisas. Para que possam se defender melhor, para que óbia funcionem mais, para que espíritos não se zanguem. O progresso foi muito do que afastou as divindades, por motivos diversos: o barulho dos motores, o uso de roupas de branco, a maior confiança no poder de Jesus. O progresso sozinho não as espanta totalmente, se as pessoas cuidarem desses poderes eles podem continuar presentes. Só que cuidar (soolúgu) de divindades exige um esforço constante, o conhecimento sobre seus cultos pode se perder ao longo do tempo. Muitos idosos, que são os grandes conhecedores de magias e espíritos, temerosos de espalharem segredos para jovens irresponsáveis ou para outras linhagens e clãs, morrem antes de ensinar tudo que sabem para os mais novos. Muitos saberes se perdem. Isso não é irreparável, pois os próprios gádu e antepassados podem ensinar coisas aos vivos, por de sonhos e possessões. Mas, para que isto aconteça, é preciso estar “vivendo bem” com eles.

351 “Antigamente,” dizia, numa conversa pública, um dos mais velhos homens da aldeia, “as pessoas daqui 'preparavam a aldeia' [seeká i koondë] e todos ajudavam”. Fumigavam a aldeia com óbia especiais para expulsar perigos. Porém, não o fazem mais hoje em dia, as pessoas querem ser “mais cristãs” do que eram, têm largado os óbia. “Aqui é uma aldeia cristã,” dizia o ancião, "mas com 'coisas preparadas' [mbéimbéi sondí, i.e., óbia] preparavam a aldeia. Deus deu para nós as plantas para usarmos, não deu médicos, não deu remédios de branco, não deu a Bíblia, é por isso que chamam o nome de Mása Gádu antes de usar qualquer folha. Não devemos largar os óbia”. Um dos kabiténi complementou, dizendo que, mesmo tendo o cristianismo em sua origem, […] não foi com “coisas de igreja” [kéíki soní] que protegeram a aldeia quando ela foi fundada, não foram Bíblias que eles enterraram aqui quando “cortaram” a aldeia, foram plantas do solo [goón uwíi]. Quando o filho de Benu quase morreu afogado, outro dia, dissemos que foi Deus quem o salvou, o que é verdade, mas foram também as plantas que foram enterrados por nossos antepassados no ancoradouro. Toda aldeia tem que ser preparada quando é “cortada”. Mesmo Futunaákaba o foi, usando plantas, Paulus Anake conhecia essas coisas.

Ainda que as aldeias cristãs dispensem o azan, arco de palhas que impede a entrada de maus espíritos, não podem dispensar por completo a proteção de gádu e de óbia. Quem olhar bem percebe que o solo de Botopási, especialmente nas regiões mais antigas, próximas ao ancoradouro principal, é cheio de objetos plantados ali para o “preparo” da aldeia: garrafas, sementes e diversos outros compostos. As falas acima foram ditas num momento tenso, em meados de 2013, quando vários infortúnios aconteciam em Botopási. O jái kuútu, assembleia anual da aldeia, havia sido um desastre, interrompido no meio por uma discussão generalizada, indicando problemas sérios de liderança. Serviços básicos como água e eletricidade constantemente entravam em pane, ficando meses sem funcionar. Além de brigas variadas que demonstravam haver “falta de união” entre os aldeões. Para não falar nas tantas mortes que assolaram Botopási naquele ano e no anterior. Perceberam então que uma das fontes de tantos problemas era um poderoso gádu da aldeia, um apukú chamado Tata Ventu (“Pai Vento” ou “Pai Sobrenatural”), que estava zangado porque não estava mais sendo “lavado” (wási) em Botopási, isto é, há tempos não faziam rituais em sua homenagem. Tata Ventu é um espírito antigo que surgiu em resposta a uma transgressão que os dómineongë cometeram há mais de um século em um dos igarapés adjacentes à Botopási. Enterraram um “morto feio” (taku deodë) no local, domínio desse apukú, que logo passou a possuir uma mulher, usando-a para expressar seu desejo de reparação. Sendo bem tratado, Tata Ventu acabou virando uma das divindades mais importante do clã Dómbi e particularmente de Botopási. Auxiliava nos problemas da aldeia,

352 como um guia para seus habitantes. Seus médiuns sempre foram mulheres de uma das matrilinhagens da aldeia, e aqueles que o “preparavam” (seeká), sempre foram homens de outra. Porém, as pessoas foram parando de dar atenção aos gádu, em Botopási, “como se já não tivessem mais tempo para isso”, disseram, e Tata Ventu escolheu uma médium da mesma matrilinhagem, mas habitante de Pikísééi. Em 2013, afirmou através dela ser fonte de muitos problemas de Botopási. Estava irado novamente. Um amigo explicou que outros gádu “menores” que possuíam gente de Botopási simplesmente não apareceram mais depois que seus médiuns faleceram, “talvez estejam fazendo kuútu em suas moradas, decidindo o que fazer”, disse. Mas Tata Ventu era muito importante para simplesmente sumir. Era necessário, para que ele voltasse a auxiliar Botopási, ir até Sééi, falar com ele através de sua médium, resolver a questão. Com muito cuidado, pois não adianta pedir para um gádu para que ele possua alguém, eles só se manifestam quando querem, muitas vezes vêm não para ajudar, mas para atacar. É preciso domesticá-los para que ajudem. E foi o que fizeram com Tata Ventu, pouco tempo depois que ele virou assunto corrente em toda Botopási. Foram até uma aldeia do clã Nasí e, na madrugada, realizaram os rituais de lavagem de Tata Ventu, com discrição. Em outra aldeia, a lavagem poderia ser um grande ritual público com muitos convidados mas, numa aldeia cristã, era necessário fazê-la furtivamente. Aquilo foi visto por alguns dos participantes na cerimônia como um evento importante, que marcava a transmissão de parte dos rituais locais da mão dos anciões para as novas gerações. Depois disso, nem todos os problemas se resolveram, mas por algum tempo uma maior calma parece ter vigorado.

Deus à frente O ateísmo não faz muito sentido para os saamaka. Dois interlocutores vieram me perguntar, em momentos distintos, como pode ser que, entre os brancos, existem aqueles que dizem que Deus não existe. “Como podem pessoas não sentirem que Deus os ajuda, que o tempo passa, que o sol se levanta a cada dia, não entenderem que foi Deus que fez isto? Toda manhã quem nos acorda é Deus, pois quando dormimos não sabemos onde estamos”, disse um. Quando respondi que o ceticismo faria com que algumas pessoas só acreditassem na existência daquilo que podem ver, ou medir com equipamentos, retrucou: “Deus não é algo para ser visto, nem com os olhos, nem com máquinas, é para ser sentido, no vento, no sol, em tudo. É para ser compreendido quando vemos que coisas ruins ocorrem com quem faz coisas ruins e coisas boas ocorrem com quem faz coisas boas.” Os questionamentos do outro

353 interlocutor eram parecidos: “Se Deus não existe, quem fez o chão, quem fez as plantas, quem fez tudo que vemos? Quantas vezes você já pediu algo para Deus, e ele deu?” Para esse homem, Deus existe, e ele é um só: “deve haver alguém ou algo que olha por nós. Não sei se é uma pessoa, uma árvore, ou o quê, mas é uma força que está na natureza, no ar, na água, no sol, nas árvores.” A ideia de um Deus criador é fundamental na visão cosmológica teísta dos saamaka em geral, não apenas na dos cristãos. Ele é chamado de Mása Gádu (“Senhor Deus”) ou Gaán Gádu (“Grande Deus”). Não podemos dizer que seja plenamente intervencionista e atuante nesta teologia, mas tampouco trata-se de um Deus completamente ausente, que criou o mundo e depois se afastou dele para não mais interferir em suas criações. Um terceiro informante afirmou que “os kulí [indosurinameses] dizem que o rio corre para o mar sem que Deus faça nada. Que Deus não interfere nas coisas, fica só sentado olhando. Mas não é assim. Deus tem um papel nos acontecimentos do mundo.” Deus, além de ter criado o mundo, age sobre ele, ajuda as pessoas e tem a capacidade de julgar atos humanos. Por sua criação, Deus é associado à natureza. Mas o que chamo aqui de natureza não se opõe ao sobrenatural, pois Deus, como outros espíritos e divindades, também “trabalha com o vento” (woóko ku véntu), isto é, com as forças invisíveis, poderosas, além das capacidades humanas e da ordem normal dos acontecimentos. Deus é capaz de realizar milagres. É notável, disse-me um ancião, como Deus colocou tudo que as pessoas precisam para viver aqui na floresta, coisas para fazer casas, comida, remédios para tudo, magias. O simples fato de termos cinco dedos na mão é prova da existência de Deus, afirmou para mim uma mulher. Além da natureza em geral, Deus é associado particularmente com o céu (líba). Lembremos que na triparição das divindades saamaka em panteões da floresta, da água e do solo, o céu não ganha lugar de destaque, ainda que certas divindades (como o komatí-urubu) sejam associadas ao céu. Os céus parecem ser vistos principalmente como morada do Deus criador, o que fica claro em sua associação com o trovão e o relâmpago: o primeiro é chamado de gaángádu bái (“grito de Deus”) ou líba bái (“grito do céu”), o segundo de gaán gádu kóti fája (“fogo de Deus”) ou líba kóti fája (“fogo do céu”). Deus é benevolente, não trabalha com coisas ruins, com a morte, com feitiços, com inveja, ele nos dá o que precisamos, sejam filhos, alimentos, empregos ou iluminações em situações de dificuldade ou dúvida. Crianças, o maior de todos os bens, são presentes de Deus: quem não consegue ter filhos provavelmente não está vivendo bem, por isso Deus não dá uma criança. Características de uma pessoa como marcas de nascença, fisionomia, altura,

354 ou deficiências inatas, quando não creditadas a outra agência (como neoséki ou quebras de tabus) são explicadas como tendo sido feitas por Deus: “assim Deus o fez” (“soo gádu mbéi ën”), isto é, ele simplesmente nasceu assim. Marcas de nascença são “marcas de Deus” (gádu maáka). Similarmente, doenças que não são creditadas à feitiçaria, kúnu ou agências similares, isto é, que carecem de explicação sociocósmica, são chamadas de “doenças de Deus” (gádu síki) (cf. Vernon 1989). Deus é a agência que está por trás dos acontecimentos – sobretudo os bons – quando não há outra explicação mais imediata para eles. Deus também julga, intervém moralmente nas vidas humanas. Em várias situações, os saamaka recorrem ao argumento de que “Deus não gosta” de alguma coisa, para explicar porque tal coisa é errada em termos morais.

Deus

não aprova brigas, o abuso de álcool ou

maconha, nem certas práticas sexuais como o sexo oral, alguns afirmam. Em tais questões menores, o julgamento de Deus não é severo. Deus não gosta mesmo é de assassinos, feiticeiros e suicidas, pois só ele deveria escolher a hora tirar a vida, posto que só ele tem a capacidade de dar a vida. Deus julga e pune, em vida e no além, “Deus vai te chicotear” (“gádu o wípi i”) ou “Deus vai te punir” (“gádu o sitááfu i”), avisam para aqueles que cometem graves pecados. Só Deus, a princípio, deve julgar, pois os humanos são imperfeitos, a justiça terrena é falha. Por isso instâncias decisórias não devem recair sobre um só líder, mas sob um conselho que idealmente representa todas as linhagens de uma aldeia, ou todos os clãs de uma tribo. Por isso tantos saamaka enxergam de maneira ressabiada o aparato judiciário e policial estatal: alguns afirmam que ser juiz ou policial é não ter uma “vida boa”, pois não é correto viver de julgar ou punir outras pessoas. Só Deus pode fazer isso. “Gaántangí u Mása!” (“obrigado Senhor!”) é expressão recorrente quando as coisas vão bem. Se Deus tem agência direta na vida das pessoas, faz sentido rezar para ele para que traga benesses às nossas vidas, agradecer quando ele o faz. A palavra bégi significa tanto “rezar” quanto “pedir”, e de fato o modo como os saamaka rezam a Deus – com exceção do Pai Nosso – indica proximidade: rezas em geral são pedidos, em tom respeitoso, para que Masa Gádu os proteja de infortúnios, para que traga apenas coisas boas. Não é incomum, ao iniciar um trabalho qualquer, fazer uma reza, digamos, ao cortar lenha, pedir que o machado não escape das mãos e corte quem está trabalhando. Antes de começar o trabalho na roça, boa parte dos homens e das mulheres de Botopási faz uma pequena oração pedindo força e ajuda à Deus em seus trabalhos. Alguns até mesmo cantam um breve hino moraviano relacionado com o tema do trabalho. Orações à Deus na roça parecem, à primeira vista, substituir orações e libações a goónmamá que os saamaka não cristãos fazem antes do mesmo tipo de trabalho.

355 Antes de realizar o ritual de púu tjína (“remover tabu”), que ocorre após o aitidei e permite que a família do falecido volte a executar tarefas cotidianas sem correr grandes riscos, também rezam a Deus, dizendo que irão “remover tabu” comendo, bebendo, conversando e trabalhando, pedem para que tudo corra bem, para que possam voltar à normalidade depois da morte do parente. Tal ato, por sua vez, parece substituir orações ao próprio morto, que os saamaka não cristãos realizam nessa e em outras alturas do ciclo funerário. Mas dizer que substituem talvez não seja correto. Durante um paamúsi (curto ritual que antecede o limbá uwíi) ocorreu uma breve discussão: um homem – cristão, que toca órgão na igreja durante os cultos dominicais – reclamou que aquele ritual não havia sido realizado corretamente, pois fizeram uma pequena oração e logo passaram para um kuútu acerca de outros assuntos. Ou seja, falaram com Deus, orando, mas não com o morto. E o paamúsi (lit. “promessa”) é justamente a cerimônia que serve para avisar o morto de que no dia seguinte será realizado seu limbá uwíi, o último rito do ciclo funeral em seu nome. Rezar a Deus não substitui, para a maioria dos saamaka, mesmo em Botopási, as rezas para mortos e divindades. Ambas devem ser combinadas. Deus merece atenção, pedidos e agradecimentos, mas também mortos e outros espíritos os merecem. Assim muitos fazem: na roça, rezam para Deus e para goónmamá; nos funerais, para Deus e para o falecido e outros antepassados; quando um kúnu ataca, para que o espírito se acalme e para que Deus ajude; ao utilizarem óbia, antes pedem permissão à Deus. É padrão afirmar em Botopási que em todas as rezas, em todos os rituais, Deus deve vir à frente (Mása Gádu a fési), deve ser o primeiro citado, antes de qualquer antepassado, espírito ou divindade. Antes de qualquer lavagem com deési ou óbia, antes de qualquer rito fúnebre, antes de qualquer trabalho, mesmo que se vá citar uma grande lista de antepassados que devem ser avisados do que se está fazendo (ou agradecidos pela possibilidade o estar fazendo), o primeiro nome a ser lembrado é o de Deus (Mása Gádu ou Gaán Gádu). Em eventos laicos, como aniversários, reuniões anuais e feriados, é comum começar com uma reza, talvez um hino e as palavras do dia do almanaque da EBGS, pois numa aldeia cristã, em tudo que se vá realizar, “a palavra de Deus deve vir primeiro” (“gádu wooutu músu deo a fési”), como disse num sermão o então oficiante dos cultos em Botopási. Não apenas em Botopási. Saamaka não cristãos dizem que eles também fazem questão de colocar “Deus à frente”, de citar o nome do criador antes de qualquer outro antepassado ou divindade, ao realizar quaisquer cerimônias, libações ou oblações. Antes de adentrar altares de grandes divindades, por respeito e proteção, é preciso pedir permissão a Deus. “O Grande

356 Deus está à frente, os pequenos deuses estão atrás” (“Gaán Gádu deo a fési, pikí gádu d eo a báka”), como afirmou para mim uma senhora de Kambalúwa. As pessoas de Botopási, ao colherem folhas no mato para se lavarem, digamos para fazer taánga sínkíi uwíi (receita para força física), dizem algo como: “Mása Gádu, peço força [kaakíti] para a folha que estou aqui colhendo, não o faço para prejudicar ninguém, apenas para me proteger, para ajudar a mim mesmo, por isso peço permissão e benção”. Nas aldeias não cristãs, diz minha informante de Kambalúwa, falam praticamente a mesma coisa, apenas acrescentam, depois de Mása Gádu, os nomes de alguns de seus antepassados. No fim das contas, diz ela, a força (kaakíti) da receita será a mesma. Deus não necessita de oferendas em bebidas, comidas ou tecidos, mas necessita de palavras de respeito e agradecimento e, sendo o criador mais poderoso que qualquer criatura, deve ser sempre citado primeiro. Mas cristãos afirmam, em tom de acusação, que não é verdade: “pagãos” só pensam em óbia e kúnu, preocupam-se com isso muito mais que com Deus. E que, mesmo que digam que para eles também Mása Gádu deve vir à frente, na realidade misturam de tudo com Deus, quando estão diante de seus altares. Chamariam o nome de muitos antepassados antes de Deus, que só vem no meio, misturado. Quanto ao Deus criador dos “pagãos”, cabe se questionar se ele é exatamente o mesmo que o Deus criador dos cristãos. Escrevendo sobre os paamaka – que são praticamente todos cristãos, mas se dividem em moravianos (mais críticos de práticas como óbia) e católicos (mais permissivos com as mesmas) – Lenoir afirma que todos acreditam em um Deus criador. Porém, há uma diferença na maneira que católicos e protestantes veem este Deus: Entretanto, uma importante diferença pode ser vista em noções fundamentais relacionadas a Deus. Para os protestantes, Deus tende a ser antropomórfico (Massa Gaddu), hierárquico (Gaddu Tata, Deus o pai), e essencialmente europeu (o pai de Jesus). Entre os católicos, Deus é mais um princípio ou ideal do que um ser. Por exemplo, para o protestante, Deus é justo, enquanto para o católico, Deus é mais a natureza da justiça (1973: 78).

Para os paamaka protestantes Deus não apenas fez como destruirá a terra, ele cria as regras e julga as pessoas. A ideia é que o humano é essencialmente pecador, sua única salvação é aceitar o cristianismo e os mandamentos, evitando pecar. Já para os católicos, Deus diz mais respeito à regularidade do universo, é menos presente. Pessoas devem viver com harmonia na terra, pois a salvação ou danação é apenas confirmada na morte: se a pessoa viveu bem, tornar-se-á um ancestral, caso contrário, se for um feiticeiro por exemplo, seu corpo será jogado na floresta, e não enterrado (ibid.: 79-80). De Beet & Sterman (1981: 338-9) colocam questão similar sobre os matawai. Entre os de jusante, mais distantes do cristianismo, além de Gaan Gadu, o Deus criador tem um outro nome, Kediampo, já Masa Gadu parece ser um nome utilizado com maior frequência pelos

357 cristãos de montante. Alguns matawai afirmam que se tratam todos de nomes para o mesmo criador, outros afirmam que Masa Gadu é o Deus cristão e Kediampo é o “pagão” (veja também Green 1978: 257). Em Botopási, o mais comum é afirmar que Deus é um só, o que varia são as relações que as pessoas travam com ele. Alguns críticos das religiões institucionais afirmam que Jah, Alá, Deus, todos são nomes de Mása Gádu, as divisões e diferenças seriam impostas pelas igrejas, no fundo supérfluas. Deus, na opinião de meus informante cristãos e não cristãos, é o mesmo em qualquer lugar do mundo, é a mesma força em última instância benevolente. Não há diferença entre o Deus cristão e o Deus das aldeias ditas pagãs. A diferença é como pensar o que está em volta dele, sua ligação com os humanos. Para além do único Deus, em quem mais crer e como pedir sua ajuda. Tal diferença faz toda a diferença. Deus está acima de todos os outros entes sobrenaturais, mas visões sobre a relação entre criador e criaturas variam. O que significa que não há unanimidade acerca do Deus único: pensar diferente a relação de Deus com outras forças, pessoas e divindades significa pensar diferente sobre Deus. Reafirmam assim certa unidade ontológica de fundo, sem com isso exigir homogeneidade experiencial das relações com o mundo. É corrente que saamaka cristãos refiram a Mása Jezus (“Senhor Jesus”) como um sinônimo para Mása Gádu, subsumindo, como nas teologias unitaristas, o Pai e o Filho numa mesma pessoa. Evidente, esse tipo de referência a Deus não seria feita por um saamaka não cristão. Nesse sentido, a questão não pode se restringir a uma contraposição entre saamaka cristãos e não cristãos, posto que as posições acerca de quais poderes, quais seres e quais práticas são legitimas de serem associadas à figura do criador são múltiplas, mesmo entre os saamaka moravianos. A maneira como cada um vê a relação do Deus criador com os gádu varia: há aqueles que afirmam que os gádu benfazejos foram criados por Deus que, afinal, criou todas as coisas boas do universo. Os apukú, por exemplo, teriam sido colocados por Deus nas florestas para protegê-las, para que não se faça coisas ruins por lá. Nessa visão, quando se evoca uma divindade para que possua alguém, dizer o nome de Deus “à frente” implica pedir permissão para que o criador deixe que o gádu “suba à cabeça” de seu médium: se Deus não quiser, a possessão não acontecerá (se a divindade não quiser, também não). Algo semelhante vale para os antepassados: pedir por sua ajuda e proteção, num rito funerário ou qualquer outra situação, não teria nada de anticristão. Os mortos enxergam mais que os humanos, veem coisas invisíveis e assim ajudam os humanos. Deus também o faz, mas como é uma figura

358 mais distante, é mais difícil que ele ouça a voz das pessoas, até porque ele não tem os laços afetivos que certos antepassados têm com seus descendentes vivos. Assim, espíritos de mortos apenas nos ajudam a falar com Deus, por estarem mais próximos dele. A posição contrária, defendida sobretudo por pentecostais, é que todas as forças espirituais que não são diretamente relacionadas a Deus são demoníacas. As duas potências que movem o mundo são o bem e o mal: Deus, Jesus e profetas cristãos (como Paulus Anake) estão de um lado; qualquer tipo de espírito de morto ou divindade está do outro. Mesmo que se passem por bons, tanto kúnu quanto antepassados, tanto komatí quanto apukú, são todos demônios disfarçados, ferramentas do diabo que fazem apenas exigir oferendas dos vivos, os prejudicar, desviá-los do caminho da salvação. Anake, por exemplo, falava diretamente com Deus, “como os apóstolos que escreveram a Bíblia”, afirmou-me uma pentecostal, por isso destruiu altares de gádu e óbia em Sofibuka. Quanto a óbia, vimos, é ponto pacífico que os poderes “naturais” das plantas têm origem divina, as controvérsias estão em sobre o que colocar “em cima” delas: caulim, libações, palavras e atos rituais que invocam espíritos de antepassados e divindades para dar mais força aos compostos de ervas e outros materiais. Sendo o poder das plantas divino, a questão é saber se devem ou não serem associadas a espíritos. Isto é, o problema é o mesmo dos gádu e dos mortos.

Bíblia, palavras e experiências Em Botopási, pentecostais acusam moravianos de desconhecerem a Bíblia, de não a lerem com frequência, nem conhecerem passagens de cor. Ainda que os pentecostais, em geral, sejam mais dedicados à leitura cotidiana do livro cristão, ainda que nem todos os saamaka moravianos leiam a Bíblia com frequência, não se pode dizer que eles desconheçam a Bíblia.239 Os que não a leem com frequência, a conhecem pelas passagens e parábolas contadas durante cultos dominicais e outras situações oficiais (como funerais e kuútu públicos). Ademais, quem foi escolarizado antes da guerra civil afirma que havia muita exigência com relação aos estudos bíblicos na escola de Botopási, então. As pessoas, portanto, conhecem seu livro sagrado. Duas publicações da EBGS são também importantes para o moravianismo saamaka: o almanaque da Unitas Fratum e o hinário. O almanaque (EBGS 2012), tradição morávia que se 239 A maioria dos adultos de Botopási hoje em dia é alfabetizada. Moravianos costumam usar edições da Bíblia em sranan ou holandês (ver nota 208, capítulo 6).

359 inicia em 1731 na Saxônia, desde 1800 é publicado anualmente no Suriname. Contém para cada dia do ano um curto trecho do Novo Testamento e um do Antigo Testamento e a indicação de dois trechos mais longos. A ideia é que as passagens sirvam como reflexão cristã diária, daí o nome mais comum pelo qual é referido: deibuku (diário). Mesmo aqueles que não o abrem diariamente acabam entrando em contato com seu conteúdo, pois as passagens do dia são lidas em todos os cultos da igreja de Botopási e em eventuais cultos fora da igreja. O hinário ou singi-boekoe (EBGS 2009) contém 655 hinos, divididos por temas (“Como Jesus Cristo veio em corpo de pessoa”, “Para paciência e consolo durante o sofrimento”, “Para as crianças” etc.), e 19 litanias, feitas para serem lidas e cantadas em ocasiões especiais (natal, casamento, batismo, etc.). As letras são creditados a autores alemães e estão traduzidos em sranan, há indicações da melodia a ser cantada em cada um. Como vimos, hinos preenchem boa parte dos cultos moravianos e das vigílias para mortos em Botopási, as pessoas sabem muitos de cor. Conhecê-los parece ser tão importante (ou quase tão importante) quanto conhecer o conteúdo da Bíblia: que as crianças não aprendam hinos na escola é um dos principais problemas pedagógicos atuais, na visão de adultos de Botopási. Poucas pessoas levam Bíblias para a igreja aos domingos, mas muitas levam seus hinários, e a igreja ainda oferece cópias para quem esquecer o seu em casa. Hinos são uma tradição moraviana importante em todos os lugares do mundo onde a denominação é presente. No caso saamaka, é possível que a prominência dos hinários aponte para a diferença entre a palavra escrita e a palavra falada (ou cantada). Ouvi de um informante pentecostal que uma das principais diferenças entre os brancos e os saamaka é que a sabedoria dos primeiros está escrita, enquanto a dos últimos está na cabeça; seria importante, para ele, ler livros, principalmente a Bíblia, para apropriar-se da sabedoria de outros povos. Os gádu saamaka, lembremos, têm cada um suas línguas, suas canções, seus toques de tambor, que são parte do extenso repertório de conhecimento transmitido oralmente pelos saamaka e ocupam um local importante na relação desse povo com o sobrenatural. Com o desuso das práticas de possessão em Botopási, faz sentido pensar que os hinos tenham ocupado este local, afinal, são músicas cantadas para um deus. Não cabe aqui se deter sobre a diferença entre a palavra falada, cantada e escrita. O essencial é marcar a importância da palavra (sob qualquer forma) para os saamaka. Deus fez o mundo com palavras, dizem os cristãos, o que significa que elas têm efeitos. Maldições (como sibá e fuúku) são como feitiços que “pegam” apenas com palavras. Palavras convencem nos kuútu, ensinam nas narrativas, são provas das índoles das pessoas nas conversas. As palavras dos hinos e da Bíblia em conjunto expressam muito do

360 cristianismo tal qual é praticado em Botopási. Algo bastante próximo do que de Beet & Sterman afirmam para os matawai: A dimensão em que o cristianismo é significativo para os matawai pode ser vista no sentimento de frêmito religioso expresso ao cantarem comunalmente hinos cristãos, nas referências frequentes a histórias bíblicas para explicar a vida, na dedicação individual mostrada pela maneira como as pessoas leem de suas Bíblias murmurando palavras à luz de um lampião, e muitas outras circunstâncias da vida cotidiana (1981: 358).

O efeito dos hinos foi explorado nos capítulos 3 e 6 desta tese, quando falei sobre seu papel nas vigílias e na igreja. A leitura da Bíblia parece ter como efeito principalmente o uso de suas histórias para explicar a vida. Neste ponto é preciso deter-se. Nos anexos de sua tese sobre os paamaka, Lenoir (1973: 201-8) apresenta dois mitos ou fábulas, que chama de “histórias de experiência”: um sobre a tartaruga, o macaco, o jaguar e o coelho, que ensina que “a mentira dói mais que uma ferida”; outro sobre como Anansi escapa de Morte e o trás para o mundo dos vivos 240. Logo depois, o autor transcreve um sermão da igreja moraviana paamaka sobre a morte de Cristo, afirmando que “os ensinamentos da vida e os sentidos de Cristo são transmitidos primeiramente por meio de histórias bíblicas. Tais histórias, proferidas na igreja e ensinadas na escola e nas aulas de confirmação, são muitas vezes colocadas no mesmo gênero dos contos tradicionais de Anansi e de animais” (ibid.: 207). O uso de parábolas bíblicas aproxima-se do uso de mitos também entre os saamaka. Na realocação das práticas efetuadas pela chegada do cristianismo, é plausível dizer que as narrativas bíblicas ocupem em parte o local das míticas, cada vez menos contadas em Botopási. Chamadas de kóntu, essas histórias se passam em kóntukoondë (terra dos mitos), local e tempo separados dos mundos dos vivos, dos mortos e dos sonhos 241. Espaço-tempo similar ao tempo mítico das narrativas ameríndias, onde animais falam, a ordem social é invertida e as tradições saamaka existem de maneira incompleta (Price & Price 1991: 1-3). Os acontecimentos em kóntukoondë nunca “realmente ocorreram”, dizem meus informantes, o que os separa dos acontecimentos bíblicos, em geral tidos como mais factuais, bem como da história, também factual. 240 Price & Price (1991: 307-14) oferecem uma versão saamaka da mesma narrativa. Nela, Morte é um homem velho que mora na floresta antes de ser trazido para o meio humano por Anansi. A associação entre a morte e a floresta (báka së), que vimos no capítulo 3, é reforçada pela narrativa. Anasi é um personagem trickster que tem origem na África Ocidental, muito presente no folclore afrocaribenho. Simultaneamente humano e aranha, de extrema esperteza e engenhosidade, frequentemente seus atos trazem inadvertidamente ao mundo bens culturais e fatos da vida (ibid.: 19-20). Anansi é um personagem tão central nos kóntu saamaka e afrosurinameses em geral que por vezes tipo de narrativa é simplesmente referido como Anansi tori (histórias de Anansi). 241 Respectivamente múndu (universo) ou goónlíba (lit. “terra-céu”, i.e., o mundo todo); deodëkoondë (terra dos mortos) e sunjánkoondë (terra dos sonhos) ou dúngukoondë (terra do escuro).

361 Para os saamaka, saberes dos kóntu e de First-Time (históricos) são ambos recursos culturais centrais, componentes importantes de sua identidade coletiva, mas ocupam esferas separadas. Apesar de morais e dispositivos retóricos de contos coincidirem com histórias particulares de First-Time, os saamakas mantém uma distinção clara entre as duas – tanto nos contextos em que são comunicadas, quanto nos tipos de personagens e incidentes que descrevem (ibid.: 388n6).

Contar e ouvir kóntu é um grande prazer para os saamaka. Além disso, são importantes por trazerem “morais da história”, ensinamentos. Apesar de nunca terem “realmente acontecido”, os feitos de Anansi, de animais e outros personagens dos kóntu são relevantes para o presente, dizem meus informantes, porque trazem experiência (ervaring): não é preciso ter vivido um evento para aprender com ele, a experiência é transmissível por palavras. Outra forma de transmissão oral de experiência estimada pelos saamaka são os provérbios (woodu) e com estes a proximidade com a Bíblia é ainda maior: uma das oficiantes dos cultos dominicais em saamaka afirmou que Jesus dizia muitos provérbios, boa parte de seus ensinamentos vem deles. E provérbios, disse, são essenciais na fala, especialmente nos kuútu: ser “bom de kuútu”, entre outras coisas, envolve saber muitos provérbios e dominar metáforas, mecanismos retóricos importantes. Apesar de serem registros bastante diferentes, abordados em tons distintos, meus informantes são capazes de passar por fábulas, parábolas bíblicas, histórias de antepassados e até mesmo por filmes de Hollywood ou Nollywood com extrema facilidade, retendo de cada gênero narrativo os ensinamentos que julgam relevantes. Cada pessoa, porém, aproxima-se mais de uma ou outra modalidade narrativa a partir de suas preferências. Para aqueles que tem gosto pela coisa, não são incomuns comparações entre histórias de personagens do cinema e de figuras bíblicas como Herodes ou Davi. Como quaisquer outros cristãos, ao recontar uns aos outros parábolas bíblicas, os saamaka inevitavelmente têm de usar o vocabulário que têm a mão, traduzir certos pontos a partir de suas próprias experiências. Dessa maneira, as pragas do Egito podem ser descritas como óbia de Deus; os faraós podem ser lidos como detentores de poderes como os komatí; o pecado original pode ser traduzido como “maldição divina” (gádu fuúku); e – em leituras mais ousadas – milagres de Jesus e Moisés podem ter sido realizados com óbia que carregavam em algibeiras. Ouvi de um pentecostal que a prática do boóko didía não fere princípios bíblicos pois quando Jesus ressuscitou Lázaro, o fez após um dia e uma noite. Austin-Broos (1997), falando sobre a relação entre fábulas de Anansi e parábolas bíblicas no uso dos pentecostais jamaicanos, afirma que mecanismos narrativos dos mitos penetram nos mecanismos de salvação cristã, especialmente o “truque” de Anansi, que ensina a evadir e lograr hierarquias. Diferente do caso jamaicano, para muitos saamaka cristãos é a

362 forma de leitura das narrativas que é replicada de seus kóntu para a Bíblia. Da mesma forma que kóntu ensinam, apesar de não terem acontecido neste mundo, o que está na Bíblia não necessita ser uma verdade absoluta para que se possa derivar ensinamentos das parábolas. É possível, e mesmo necessário, aprender com Jesus, com Moisés, Davi, com as histórias de Adão e Eva, de Sodoma e Gomorra, entre tantas outras. Pois a Bíblia ensina o bem viver. “Estar na Bíblia” é um argumento utilizado tanto por pentecostais quanto por moravianos para convencer interlocutores em um debate. Desde algo mundano, como dizer que a Bíblia permite o consumo de álcool, mas não a embriaguez, até sobre pontos teológicos, como a questão da idolatria, se deve-se ou não recorrer a divindades. O Decálogo (sobre o qual me detive no capítulo 5) indica as principais regras (weoti) da igreja. Por apresentar leis explícitas, os trechos sobre os mandamentos estão entre os ensinamentos bíblicos mais lembrados. Mas também acerca de outras questões caras aos habitantes de Botopási fazem uso desse tipo de retórica. Um crítico da igreja de Futunaákaba afirmou numa discussão que o grande problema dos pentecostais de lá é que “louvam a Anake como louvam a Deus, mas Anake não está na Bíblia! Procure no Novo Testamento pra você ver.” Num tom similar, outro crítico asseverou que “se Anake fosse de fato um profeta, se fosse de fato o Espírito Santo quem o possuía, teriam feito um livro, como uma Bíblia, com as coisas que ele disse, mas nunca fizeram.” A forma mais apropriada de inumar um cadáver também é tema polêmico, e para defender seus pontos de vista, as pessoas recorrem a argumentos bíblicos, dizendo que Jesus foi enterrado (e não cremado) e portanto assim devemos tratar nossos mortos. Lembram o trecho do Gênesis: “[...] porque você é pó e ao pó voltará”. Austin-Broos afirma que, para os pentecostais jamaicanos, a Bíblia é veículo de concepção da história, da pratica ritual, é meio de fundamentar o mundo e evidenciar uma política da ordem moral (1997: 163-4). A mesma afirmação pode ser feita para os saamaka cristãos, mas não da mesma maneira para todos. Os saamaka pentecostais tendem a afirmar que tudo que é importante está na Bíblia, e tudo que está fora dela – ao menos em termos de práticas e saberes sobrenaturais – é demoníaco. Moravianos próximos da igreja concordam que Jesus foi um profeta e que a Bíblia é o livro sagrado, cujo texto traz uma verdade sobre o mundo, mas não apoiam leituras fundamentalistas. Já aqueles saamaka moravianos que defendem práticas como óbia e possuem relações de mais respeito e proximidade com divindades aceitam os ensinamentos bíblicos, os mandamentos, têm fé em Jesus, mas não resumem sua compreensão moral, histórica e cosmológica ao livro sagrado. Levantam a questão que existem outros livros sagrados pelo mundo, como o Torá e o Corão, outras figuras

363 que foram consideradas profetas, como Maomé ou Selassie. Pode-se duvidar da Bíblia, afinal de contas, quem a escreveu eram homens, imperfeitos como todos os humanos, tinham seus vieses, seus projetos políticos, suas ignorâncias. Quando esse tipo de questão é levantada, Evangelhos Apócrifos frequentemente são citados como prova das distorções da própria história de Jesus feitas pelas religiões institucionalizadas. E, mesmo que se queria ficar só com os textos canônicos, as múltiplas interpretações e traduções possíveis da Bíblia são lembradas, por exemplo as enormes diferenças entre as leituras católicas e protestantes. Tal visão crítica aparece muito nas falas de homens mais jovens e contestadores, e é refutada por pentecostais ou mesmo moravianos mais velhos, mais assíduos à igreja: a Bíblia tem inspiração divina, os evangelistas não podem ser comparados a homens comuns, a palavra de Deus não está em par com livros de outras religiões. Nessa perspectiva, ideias que tentam derrubar argumentos bíblicos viriam de Satã. Entre os saamaka não cristãos, há visões ainda mais críticas da Bíblia, que não apenas atacam o caráter humano do texto, mas também o uso político que foi feito do cristianismo. “Jesus não existe, é coisa que a igreja conta para nos enganar, melhor saber sobre coisas saamaka como óbia do que ficar ouvindo histórias e regras da igreja”, afirmou, numa conversa um homem irado com o moralismo dos cristãos. Ainda completou: “não devo matar, não devo roubar, não devo mentir, isso eu já sei”, não precisaria, disse, ir à igreja ouvir o reverendo repetir coisas que já sabe, “acredito em Deus sem precisar ouvir essas coisas”. Em sua visão, as questões morais mais essenciais do cristianismo já são seguidas por saamaka “pagãos”: a ideia de bem viver dos dogmas bíblicos e das regras (weoti) saamaka não seriam tão distintas. Um saamaka do clã Dómbi que mora na Holanda, em visita a Botopási, afirmou que a Bíblia foi usada pelos brancos para enganar os negros, fazendo-os vir da África para trabalharem nas Américas como escravos. Ele jamais usaria essa mesma Bíblia nos dias de hoje. Para ele, a igreja é “coisa de bakáa”, melhor se fiar na kultutu saamaka. A tal comentário, um ancião frequentador da igreja em Botopási replicou que não, não foi a Bíblia que usaram para enganar os negros, foi música e comida 242, mas quando os antepassados dos saamaka fugiram das plantations para o mato, pediram auxílio a Deus para viverem naquele ambiente hostil e resistirem às lutas contra os brancos. E a indicação de Deus teria sido as

242 Referia-se a uma versão narrada frequentemente em saamaka sobre a captura dos escravos na África: brancos fizeram uma grande festa num navio ancorado na costa, com comida, bebida e dança, e chamaram muitos negros para participar. No meio da festa, o barco desatracou e, quando os negros perceberam, já estavam longe da costa, à caminho da América.

364 “folhas”, Ele ensinou fórmulas mágicas que os ajudaram, não indicou a Bíblia. Por isso até hoje os maroons devem usar óbia para se protegerem de infortúnios. No que tange os cristãos, independente da posição crítica ou não à Bíblia, a figura de Jesus evidentemente ganha destaque em meio aos vários ensinamentos do livro sagrado. Foi o maior exemplo de bondade, de sabedoria, de poder, de proximidade com o criador. Os mais críticos dizem que ele teria sido apenas um homem bom, dentre tantos homens bons que existiram, mas não deixam de reconhecê-lo como um grande exemplo de bem viver. Os mais religiosos marcam sua proximidade com o Deus criador ao frequentemente usar Mása Gádu (“Senhor Deus”, o criador) e Mása Jezus (“Senhor Jesus”) como sinônimos: Cristo não foi apenas um bom homem, mas o filho de Deus, que veio à terra para nos livrar de nossos pecados e permitir a nossa entrada no Paraíso. As datas cristãs mais importantes no calendário de Botopási são o nascimento, morte, ressurreição e anunciação das boas novas de Jesus (natal, páscoa e pentecostes). A páscoa envolve um par de rituais solenes: a morte simbólica de Cristo, na Sexta-Feira Santa (Goede Vrijdag), na igreja, enquanto sinos tocam e todos os fiéis se ajoelham em respeito; e a sua ressurreição, na madrugada do Domingo de Páscoa (Eerste Passen), quando, numa clareira no cemitério, erguem o Senhor simbolicamente de sua tumba enquanto entoam uma litania. São tradições moravianas levadas muito a sério em Botopási: entre a sexta-feira e o domingo de páscoa não se pode usar vermelho, não se pode fazer muito barulho ou tocar músicas laicas (daí o Sábado de Aleluia ser chamado de Stille Zaterdag, “sábado silencioso”). Tampouco se pode trabalhar nestes dias, ouvi pessoas em Botopási afirmarem: acidentes de caça e pesca são especialmente comuns, é melhor nem pregar com martelo no “sábado silencioso”, a pessoa pode se machucar. Já domingo é um dia de celebração (piizíi) na igreja, com muitos hinos e uma litania – Jesus ergueu-se de sua tumba, sua ressurreição é um verdadeiro milagre, muda nossas vidas e nossas crenças, é dia de alegria. A ressurreição de Cristo é importante em Botopási, mas seu retorno nem tanto. Já vimos no capítulo 2 a influência limitada que a escatologia bíblica tem sobre noções saamaka acerca da morte. O paraíso e o inferno são discutidos, mas as ideias que circulam sobre isso passam longe de qualquer consenso. O que impera nas opiniões sobre a terra dos mortos é a dúvida. O comentário mais contundente que ouvi sobre o assunto foi: “quem escreveu a Bíblia achava que sabia o que se passa quando morremos, mas não há como ter certeza.” Da mesma forma, o apocalipse não é um tema recorrente. Diferente de outros contextos de “cristianismo

365 não ocidental”, nos quais o temor do fim do mundo foi motor para a conversão243, em Botopási nunca vi o apocalipse aparecer em conversas cotidianas, e mesmo na igreja é raro. Segundo a literatura, o movimento de Anake teve tendências escatológicas e milenaristas ausentes na maioria dos movimentos messiânicos maroons (de Beet & Thoden van Velzen 1977: 130), mas estas parecem ter ficado restritas a um curto período de seu culto e produzem poucos reflexos em Botopási atualmente, afinal o grupo que fundou a aldeia moraviana afastou-se de Anake. Apenas ouvi o apocalipse ser evocado por pentecostais (religião oficial em Futunaákaba, justamente a aldeia daqueles que seguiram Anake). Os saamaka possuem uma visão algo decadentista do destino do mundo. Especialmente por causa dos kúnu: espíritos vingativos não deixam de ser criados pelos humanos e sua ira é eterna, pode ser amansada mas não aplacada. Os kúnu, dizem em tom grave, vão “quebrar o mundo” (“boóko goónlíba”). Porém, tal temor não parece ser associado com o apocalipse bíblico, nem mesmo pelos pentecostais, que enxergam um fim do mundo provocado pelo acumulo de pecados no mundo, trazendo a volta de Jesus, que levará os fieis (exclusivamente os pentecostais) consigo para o Paraíso. Essa visão destoa do perigo dos kúnu “quebrarem o mundo”, pois a lógica que guia a vingança desses espíritos é oposta à lógica da salvação pela fé em Cristo.

Pecados, maniqueísmos e demônios Um amigo, certa vez, ofereceu-me uma interpretação interessante do culto a Jesus Cristo:disse que não faz sentido rezar (bégi) para Jesus, pois dizem que Cristo morreu pelos nossos pecados, mas “em saamaka não é assim que funciona”. Foram os romanos ou os judeus que o mataram, portanto um negro não tem nada que se preocupar com ele. Ele é kúnu de outra raça, de outras pessoas, de outra família. Só é preciso se preocupar com a vingança de um morto quando alguém de sua matrilinhagem foi responsável pela morte. Tal visão não é comum em Botopási, posto que Jesus não é lido como um morto “comum”, mas ela demonstra o paradoxo moral com o qual os saamaka cristão têm de lidar. Jesus é uma bússola moral, mas os kúnu também são. Um ensina, por meio de exemplos, como viver bem e alcançar a salvação. Os outros forçam, por meio da ação vingativa, as pessoas a viverem bem entre si. Um perdoa, os outros não. Serão os pecadores perdoados depois da morte? Especialmente o perdão divino a assassinos gera polêmica. Matar – direta ou indiretamente – é o pior pecado que se pode cometer. Até mesmo matar animais, se não for 243 Por exemplo o cristianismo dos Urapmin (melanésios) descritos por Robbins (2004).

366 para se proteger ou para comer, ou derrubar uma árvore frutífera carregada pode ser chamado de pecado (zoondu)244. Matar um ser humano é um mal inigualável e, na visão de grande parte dos saamaka, imperdoável. O próprio Jesus, defendem alguns, não perdoa aqueles que o mataram, mesmo que tenha dito ao ser crucificado: “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem”. Isso não quer dizer que seja difundida a ideia de que, sendo Jesus kúnu dos judeus e/ou dos romanos, não seria necessário rezar para ele. Jesus poderia continuar sendo o salvador, filho de Deus, grande exemplo, digno de rezas, mas agir também no modus operandi dos kúnu e não perdoar a família de seus assassinos. A visão do assassinato como grau zero da imoralidade e da ira eterna daqueles mortos injustamente quando agem como kúnu entram em franca contradição com a ideia de que todo e qualquer pecado pode ser perdoado desde que o arrependimento seja sincero e baseie-se na fé em Cristo como salvador. Uma divergência entre a salvação individual promovida pela fé em Cristo e a maldição coletiva de cada kúnu. Na lógica dos espíritos vingativos, vimos, não é necessário ter provocado a morte de alguém para ser afetado: a vulnerabilidade é compartilhada, pois a culpabilidade também o é. Pessoas não são independentes de suas relações (em particular das relações de parentesco matrilinear), e portanto sofrem juntas, protegem-se juntas. Já na lógica cristã, o pecado está plantado em cada pessoa desde a queda, independente de suas relações (o parentesco bíblico inclui todos os seres humanos como irmãos e irmãs). O pecado original seria replicado quando uma pessoa comete novas violações dos dogmas, novos pecados, para se livrar dele o indivíduo, sozinho, deve aceitar Jesus em seu coração. A proteção mútua da comunidade mais ampla não deixa de existir, mas apenas sob a forma do proselitismo (que leva a salvação para as ovelhas perdidas) ou sob a forma de vigilância dos irmãos de uma mesma congregação (que ajuda a impedir que o próximo peque novamente). Na prática, um parente pode fazer as oferendas necessárias para um kúnu e aplacar sua fúria para toda a família, enquanto ninguém pode ter certeza que a fé de seus irmãos cristãos é verdadeira, ninguém pode salvar um próximo de seus próprios pecados. Num caso, temos um pecado único, distribuído em cada indivíduo, que exige uma relação íntima com o salvador para ser 244 Traduzo pecado como zoondu seguindo a tradução das ideias bíblicas que os próprios saamaka costumam fazer. Mas zoondu não é uma palavra usada apenas por saamaka cristãos, pode significar de maneira mais ampla qualquer crime sério passível de punição sobrenatural. Outro termo, por sua etimologia, poderia enganar os falantes de português: pikádu. Um pikádu é uma espécie de maldição não personalizada, uma retribuição cósmica a um ato imoral ou antissocial que “pega” (kísi) sem necessitar de uma ação, ou mesmo desejo, direcionada de qualquer pessoa ou espírito. Se alguém machuca outra pessoa sem motivos suficientes e depois o agressor acaba sofrendo um acidente, mesmo sem o agredido ter feito qualquer feitiço ou proferido qualquer maldição, diz-se que “pikádu pegou” (pikádu kísi). Um filho de um incesto é chamado de pikádu míi, e terá muitos problemas durante a sua vida. Pikádu aproxima-se, em algum sentido, de “pecado”, pois envolve atos que quebram as regras da convivência, mas o termo não é usado para traduzir a ideia bíblica de pecado, de modo que se trata antes de um falso cognato.

367 sanado; no outro, temos vários pecados graves, distribuídos em cada matrilinhagem, que exigem relações próximas, mas tensas, com os vingadores, para serem aplacados.245 Cada saamaka cristão equilibra à sua maneira suas crenças e atitudes diante do conflito moral. Pentecostais livram-se do problema afirmando que kúnu são nada mais que entidades demoníacas. A maioria dos moravianos pede ajuda a Jesus e faz oferendas eventuais a kúnu simultaneamente. Em outro ponto, porém, parecem aproximar-se: na ideia de que os grandes males da terra provém dos humanos. Existem seres perigosos no mundo, como cobras e jaguares, mas Deus ama os humanos, os fez à sua imagem e semelhança e portanto mais poderosos que todos os outros animais. Apukú, wátamamá e outros espíritos de origem não humana também são perigosos, mas raramente fazem mal aos vivos quando não provocados. Os maiores males do mundo derivam de ações humanas mal intencionadas ou descuidadas: kúnu, feitiços, maldições, assassinatos, mentiras, fofocas, traições, roubo... Como afirmou um amigo, “humanos são demônios” (“libisëmbë da didíbi”). Quando um velho morre, alguém com mais de 60 anos, pode ser que tenha sido apenas uma “doença de Deus” (gádu síki), simplesmente chegou a sua hora, mas “coisas novas não morrem”, isto é, não sem motivos: se um jovem falece é porque alguém fez algo de ruim com ele. A visão pessimista acerca da índole humana acopla-se bem às ideias cristãs de que “somos todos pecadores”, de que o plano em que vivemos é um “mundo de pecados”. No caso dos saamaka do Volle Evangelie, isso parece apontar para o que Austin-Broos chama de perfeccionismo, uma característica das teologias pentecostais de origem norte-americana que propõem a possibilidade da divindade individual através de um Deus internalizado, cujos principais índices seriam a capacidade de ser possuído pelo Espirito Santo e a glossolalia (1997: 265n8). Sob tal perspectiva, os pentecostais podem almejar a perfeição individual ao serem tocados por Jesus e se livrarem de todo o pecado, de todo mal que há dentro deles. A possibilidade de perfeição só aparece pela ideia do pecado como estando internalizado na pessoa, o que leva o pentecostalismo a focar na disciplina moral e na transcendência após a morte (ibid.: 6-7).246 245 Richard Price (1990: 158-9) afirma que, para os primeiros saamaka que ouviam os missionários alemães, a insistência na confissão não fazia sentido. Para eles, as pessoas não carregam pecados: se o fizessem, Deus não as deixaria viver. Rezar regularmente era algo visto como colocar muita pressão sobre os espíritos. 246 Tais ideias não são completamente alienígenas para os maroons. Para começar porque o perfeccionismo pentecostal teria origem na doutrina protestante que prega que a salvação só ocorre com a busca individual pela graça divina. Tal ideia é marca importante do metodismo, que foi forte influência do moravianismo (Austin-Broos 1997: 257n5). Depois porque o culto ndyuka de Gaan Tata, que como vimos teve importância no movimento de Anake, também pregava uma interiorização do mal, apenas não exatamente o pecado, mas a feitiçaria: a maior inovação do culto foi apresentar uma leitura da feitiçaria como sendo fruto de um estado mental que progressivamente toma conta da pessoa, como um câncer (Thoden van Velzen & van Wetering 2004: 132-9).

368 Seguindo com Austin-Broos, podemos dizer que ocorre em saamaka um “confronto entre ontologias morais” (ibid.: 248n10) no qual a posição pentecostal aparece como oposta à dos não cristãos, e a dos moravianos no meio do caminho. A autora resume a visão do mal presente no polo não cristão: Em uma variedade de religiões da África Ocidental, o papel dos ancestrais, fantasmas e espíritos da natureza era mapear interdições no mundo, a violação de uma interdição era amiúde demonstrada por mal-estar. Comportamento ofensivo a espíritos ancestrais, descuido de ocasiões rituais importantes e vingança trazida por um fantasma ou por um espírito da natureza ofendido eram as formas de violação em que um erro moral poderia encontrar um mal físico. Reparar a violação e a aflição frequentemente era levado a cabo por meio de divinação, sacrifícios apropriados e por vezes da transferência de empoderamento espiritual oportuno do vaticinador para o paciente. Estas possessões podiam envolver corpos tremendo, vozes transformadas e visões. Atos nocivos levando à aflição podiam ser voluntários e efetuados deliberadamente. Poderiam também ocorrer por mero descuido. Porém fosse a violação intencional ou produto de acidente, sua reparação era sempre uma preocupação geral (ibid.: 44).

A relação dos saamaka com as divindades e espíritos de mortos capazes de causar sofrimento passa por uma visão similar, de forças espirituais difusas no ambiente e no mundo. A principal diferença está na origem última humana por trás de todos os tormentos. Para sanar seus ataques e demandas, é preciso curar ritualmente a si e ao ambiente, o que inclui o eudemonismo (a celebração ritual alegre) e a negociação direta com esses poderes por meio de oferendas, libações, oblações e rezas. O pentecostalismo, em saamaka como alhures, não rejeita os últimos dois pontos: segue praticando rituais eudemônicos (com música e glossolalia) e trocas com o divino (por meio do dízimo e das rezas), mas tira o foco da cura ritual (especialmente da cura do ambiente), trazendo-o para a disciplina moral (ibid.: 7). Afinal de contas, uma quebra de interdição ou tabu, mesmo que seja um erro moral, não é exatamente o mesmo que um pecado. Isso leva a uma sistematização da religião como ética, onde ser moral equivale a ser salvo (ver também Foucault 1984, do qual Austin-Broos deriva a ideia de “política de ordem moral”). Observo no pentecostalismo saamaka a concentração do mal difuso em uma única fonte: o diabo. Estando o diabo por trás dos pecados (desde o Gênesis), em última instância transferem a origem do mal das ações humanas para um mal anterior, não isentando as pessoas de culpa, mas as tornando mais passíveis de serem limpas, perfectíveis. Em mais uma tradução interessante das parábolas bíblicas em termos saamaka, ouvi um pentecostal asseverar que Deus e Lúcifer brigam “como coesposas [kambósa]”, certamente a relação de afinidade mais tensa concebida por um saamaka, mais passível de gerar brigas e feitiçaria, mas também uma relação duradoura, diferente de outras tensões mais eventuais. Ele seguiu afirmando que há uma briga eterna entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo, dentro da qual as pessoas estão implicadas e necessitam escolher um dos dois caminhos. “Quem tenta viver

369 bem é como Deus, quem tenta viver mal é como o diabo”, arrematou. Tal visão só é comum entre os pentecostais, em Botopási. A posição moraviana é mais matizada: ao argumento, um homem membro da EBGS contestou: “as pessoas não conseguem viver 'retas como uma flecha' ('tólólóó kuma piiwá').” Todas as pessoas são pói (“podres”, “ruins”, “perversas”), dizem, implicando que, apesar de agirem de forma ruim, os humanos são criações divinas, e portanto sua origem última é boa. Não que os saamaka moravianos jamais oponham o bem e o mal, Deus e o diabo. Dualismos como esses também fazem parte da maneira como organizam o mundo. A grande diferença está em concebê-los de uma maneira gradativa, e não dicotômica (cf. Reinhardt 2007: 214). Deus pode ser plenamente bom e o diabo plenamente mal, ocupando portanto os polos da oposição, mas entre eles há seres e poderes ambivalentes. Ademais, compondo os extremos, outros conceitos, que não Deus e diabo, podem expressar o bem e o mal, como óbia e wísi. Um ancião, contando um caso em que um afim seu havia enterrado um pote com wísi no chão, para frisar que aquele pote continha feitiço, afirmou: “não era pote de óbia, era pote do diabo”. Óbia e diabo, portanto, podem ser opostos, pois óbia é sempre bom e o diabo é sempre ruim. Algumas palavras sobre didíbi (diabo, demônios). Price & Price (1991: 20-21) afirmam que nos kóntu demônios aparecem sozinhos ou em grupos de 12; são ferreiros contratados por Deus que vivem nos limites do mundo humano; e são em certo sentido inversões dos saamaka, pois comem pelo anus, queimam quando morrem, viram pedra se tocarem em água e falam sranan; gostam de mulheres jovens, de música e de comida; são territoriais, poderosos magicamente, e cruéis. Tal imagem não reflete as concepções que circulam em Botopási sobre o diabo. Pentecostais com frequência o descrevem como Lúcifer, o anjos caídos, poderoso, esperto e enganador; não deve ser subestimado. Para além desta grande figura cosmogônica, fundamento do mal, parece ser consenso em Botopási que existem muitos demônios no mundo, encarnações menores do mal, que agem de diferentes formas. Que sejam ou não partições (paatí) de um só diabo, esse já é um tema mais aberto à discussão. Já ouvi, em um boóko didía, uma longa discussão sobre “quantos didíbi existem no mundo”, que passava pelas inúmeras classes de demônios do exército de Lúcifer. Em tal demonologia especulativa, a ideia de um diabo e vários demônios que trabalham para ele parece refletir outra ideia, a de um Deus criador e várias dividades menores que agem mais próximas dos humanos.

370 Há um tipo demônio que os saamaka conhecem e com o qual lidam com frequência, o bakúlu. Como tantos seres (quase) invisíveis, os bakúlu aparecem em sonhos ou podem ser vistos apenas de relance. São humanoides de baixa estatura, como uma criança pequena, de cabeça desproporcionalmente grande, pelos pelo corpo, sua pele com textura parecida com madeira. Bakúlu montam em gatos como se fossem cavalos para se locomover, em parte por isso os felinos domésticos são vistos como criaturas perigosas. Bakúlu são comprados na costa, em geral de comerciantes de origem indiana, com o fim de adquirir fortuna. Muitas pessoas bem sucedidas financeiramente no Suriname são acusadas, pelas costas, de possuírem bakúlu. Mas, além de dinheiro, estes demônios trazem desgraça para a matrilinhagem do possuidor, se não forem bem tratados e alimentados os bakúlu causam infortúnios, mortes e doenças. Como estes seres são mal-intencionados e exigentes – dizem que podem até mesmo demandar o sacrifício de um recém-nascido – é seguro que mais cedo ou mais tarde sua fúria será sentida. Bakúlu também possuem as pessoas, em particular mulheres, que passam a agir de forma descontrolada, destruindo objetos em suas casas, proferindo maldições pela aldeia e até mesmo tentando arrancar os olhos de pessoas que buscam acalmá-las. É possível, usando óbia ou outros meios, “baixar” (sáka) o espírito, tirando-o da cabeça da médium e aplacando temporariamente seus ataques, mas, uma vez adquiridos, seguem atormentando a linhagem, possuindo e causando danos a diferentes parentes. Seu modus operandi, portanto, aproxima-se muito do dos kúnu – uma das principais figuras do mal entre os saamaka –, daí que há quem especule que os bakúlu sejam um tipo de kúnu. As diferenças principais são que os bakúlu não são criados com a morte de humanos, animais ou divindades, são sempre comprados e são de má índole desde sempre. E que é possível livrar-se deles passando-os para frente, por exemplo colocando um dentro de uma caixa e entregando para alguém que, inadvertidamente, passaria a ser seu dono (um kúnu nunca é transmitido, fica sempre na mesma matrilinhagem). Os bakúlu podem eventualmente ser domesticados por óbiama, tornando-se espíritos auxiliares, ainda que seja muito raro. Mesmo certos tipos de demônios, portanto, não são simplesmente maus. Para além da divisão ideal inicial, maniqueísta, entre “coisas de Deus” e “coisas do diabo” ou coisas que “trabalham com Deus” e coisas que “trabalham com o diabo”, na esfera do vivido as coisas do mundo confundem-se, multiplicam-se, diferenciam-se. “Bem” e “bom” são termos facilmente tradutíveis em saamaka por “búnu”, mas não há palavra neutra para “mal” ou “mau” que não tenha outra conotação a ela vinculada: o que não é búnu pode ser taku (“feio”), pói (“podre”, “estragado”, “perverso”, “infame”, “calunioso”,

371 “demasiado”) ou hógi (“perigoso”, “infortunoso”, “malvado”, “mal”, “ruim”).247 A ideia de hógi, “perigo”, é particularmente relevante no compasso moral saamaka. O que é ruim para os humanos, o que pode causar infortúnios e aflições, não necessariamente é ruim por natureza. É antes de tudo perigoso, como o jaguar, cujo nome mais comum é hógi mbéti (lit. “bicho perigoso”). Os apukú, espíritos do mato, apesar de muito perigosos, tampouco são maus por definição, mesmo que alguns sejam especialmente hógi. O mesmo vale para os mortos: a morte é sempre ruim, por isso os saamaka cristãos pregam que se deve enterrar os mortos o mais rápido possível, para que o diabo não faça uso deles para prejudicar os vivos. Isso porém não significa que os vivos não possam aproximar-se dos mortos, sob a forma de ancestrais por exemplo, para pedir ajuda: nesse modus operandi os mortos podem ser bons. Até mesmo feitiços podem ser ambivalentes: uma mesma fórmula pode ser óbia ou wísi, boa ou ruim, dependendo apenas de seu uso. Apenas os pentecostais afirmam com veemência que todos os gádu, todos os kúnu, todos os mortos, todos os óbia são demônios ou “ferramentas do diabo”.

Conversão e alianças Na visão dos moravianos de Botopási, muito do que define o pertencimento a uma igreja é nascer numa aldeia vinculada a uma denominação, ser batizado e criado nela, estar acostumado com suas regras. Mas, para ser um bom cristão, é preciso mais: seguir os mandamentos bíblicos, os ensinamentos de Jesus, colocar Deus antes de outras divindades, focando suas rezas e pedidos no criador. Nesse movimento, Deus torna-se um agente mais intervencionista do que é para os saamaka não cristãos, enquanto a relação com as divindades e mortos torna-se mais distante. Os pentecostais têm uma visão mais exigente do que significa ser um bom cristão, demandam uma disciplina moral maior e um rompimento o mais absoluto possível com quaisquer forças espirituais que não emanem diretamente de Deus. Mas em nenhum dos casos as divindades e mortos são negados enquanto forças atuantes no mundo. O que está em jogo nas polêmicas sobre óbia não é exatamente sua eficácia ou ineficácia, mas que tipo de forças podem ser somadas às das plantas por um cristão que deseja seguir os ensinamentos bíblicos: chamar ou não antepassados e divindades ao usar as receitas. O que significa distinguir a origem última desses entes: se são ou não ferramentas do diabo. A retórica maniqueísta pentecostal não nega a existência de divindades e espíritos que habitam o mundo dos saamaka “pagãos” (ou dos que adotam um cristianismo 247 Exemplos: taku deodë (“morto feio” ou “morte ruim”), póípói míi (lit. “criança estragada”, i.e., mimada), hógi wójo (lit. “olho perigoso”, i.e., olho gordo). Uma pessoa de má índole pode ser hógiwógi sëmbë (lit. “pessoa muito perigosa”), póípói sëmbë (lit. “pessoa podre”) ou takuháti sëmbë (lit. “pessoa de coração feio”).

372 menos ortodoxo), ela define, em sua deontologia particular, tais seres como demoníacos. “[Retira] a alteridade religiosa do registro metafórico hegemônico da 'fraude', do 'falso', do 'inautêntico', enquanto a sobre-codifica a partir do registro metonímico, mas maniqueísta, do 'bem' e do 'mal'” – como coloca Reinhardt acercado embate entre pentecostalismo e candomblé na Bahia (2007: 31-2). O mundo enxergado pelos pentecostais, longe de ser desencantado, é repleto de forças mágicas anti-sociais e riscos ontológicos (ibid.: 59). Nada deixa de existir. A disputa é mais pela definição moral dos seres do que pela sua realidade. Antes de ser uma disputa ontológica (sobre a questão da existência, do ser), é uma disputa deontológica (sobre como se relacionar ética e moralmente com os seres do mundo). Divindades podem ter realidade sem serem verdadeiras, serem “falsos deuses” apenas no sentido de deuses enganadores. Ou, ao menos, menos poderosos. A falha dos óbia em salvar a vida de seu pai, Abini, pode ter sido o motivo principal da conversão de Alabi. Enquanto se aproximava do cristianismo, testava poderes saamaka, a ver se resistiam frente ao poder do Deus cristão: destruiu óbia e matou animais que são tabus para os saamaka, como jacarés (R. Price 1990: 119-21, 220n5). Anake fez o mesmo com Gaan Tata, destruindo e maculando seus objetos de culto, poluindo o rio com os dejetos. A atitude do missionário ndyuka Albitrouw de não deixar de se banhar no rio poluído e, principalmente, o fato de que nada de grave aconteceu nem com ele nem com Anake ajudaram muitos habitantes de Sofibuka a começarem a se aproximar do cristianismo. A eficácia do poder dos óbia e divindades não é confrontada de maneira absoluta, e sim relativamente à eficácia do poder do Deus cristão. A conversão para os saamaka é um balanço de forças. Não um frio cálculo utilitário, mas ainda assim uma ação plenamente consciente. Neste sentido, um ato dentro do que Robbins define como o domínio da moral: “Definindo o domínio moral como um no qual atores são construídos culturalmente como cientes tanto da força diretiva dos valores e das escolhas abertas a eles para responderem a essa força, temos que reconhecer que se trata fundamentalmente de um domínio que consiste em ações tomadas de modo consciente.” (2004: 315). Para o autor, “o domínio moral – domínio de escolha consciente – é um lugar onde a mudança vêm à consciência” (ibid.: 14). À força diretiva dos valores, devemos acrescentar a força das entidades em si. Para os saamaka, isso significa escolher como compor seu mundo, diante de forças e seres que por vezes se colocam como concorrentes, por vezes como associáveis. Do que ou de quem se cercar, quais alianças estabelecer. As conversões saamaka em sua maioria seguiram linhas de parentesco e clânicas, indicando que as alianças são transmissíveis, não se baseiam apenas em

373 escolha individual, mas na multiplicidade de relações possíveis e existentes – políticas, de parentesco, com vivos, com mortos, com divindades, com grupos. Relações diversas que apontam para valores e potências diversas. Adotar o cristianismo passou por deliberações coletivas em kuútu, significou para Botopási aproximar-se do mundo dos brancos, dos creole, da costa, e também de um Deus, de um livro sagrado, de um messias, de novos ritos. Em uma conversa com um homem de Botopási que frequenta o Volle Evangelie na cidade, este considerou que, no passado, na guerra contra os brancos, foi necessário para seus antepassados usar óbia, mas, com a chegada da paz e do desenvolvimento, tais poderes tornaram-se mais que desnecessários, também perigosos, pois prejudicam muitos daqueles que tentam usá-los. Por isso, quando divindades tentam possuir evangélicos, eles as expulsam com rezas. Seu argumento é bem próximo ao que R. Price (1975, 1990, 2007) utilizou para explicar a mudança de foco na religião saamaka (não cristã): com o fim da constante ameaça de violência física dos tempos de fugitivos e de guerras, o poder e os tabus dos gaán óbia tornaram-se menos relevantes do que a exigência moral, a ênfase no bem viver representadas por divindades oraculares (sói gádu). Valores distintos para épocas diferentes. Gaan Tata era uma dessas divindades, na década de 1890, mais de cem anos depois da paz com os brancos. Naquela época, a história de Alabi e a existência de saamaka cristãos em Ganzé eram provas de que a conversão poderia ser uma trilha segura. A associação com o Deus cristão mostrou-se uma possibilidade a mais dentre as que focavam na moral, no bem viver. O espírito em Anake e seu culto fez abrir ainda mais esta trilha para o clã Dómbi, que se bifurcou, há 120 anos, entre modos distintos de adotar o cristianismo (com Anake ou sem, as escolhas de Futunáakaba e de Botopási respectivamente). Hoje em dia, para a maioria dos habitantes destas aldeias, para ser cristão não é preciso converter-se. O cristianismo já está sedimentado em Botopási e Futunaákaba como religião pública, praticamente todos os nascidos ali são batizados ainda nenéns. Mas há escolha em aproximar-se ou não do pentecostalismo, de outras religiões (como a rastáfari ou Testemunha de Jeová), e como agir em sua vida privada com relação a óbia, divindades e mortos. Os caminhos são vários e cada pessoa, baseada em sua fé e em suas alianças com pessoas, grupos e espíritos, compõe sua combinação ao seu modo. Usar óbia (e não meramente “folhas”) é uma escolha acerca de associar-se a divindades perigosas, como os apukú. Mas é uma escolha que pode trazer mais poder, ninguém nega que os óbia têm força. Chamar nomes de antepassados é uma escolha similar, pois mortos sempre apresentam perigo mas, se não forem vistos como necessariamente demoníacos, podem ajudar os vivos. Mortos e

374 divindades, por serem invisíveis, por “trabalharem com véntu”, possuem capacidades extrahumanas de agência, veem o que vivos não veem, estão mais próximos de Deus e podem inclusive ajudar com que o criador ouça os chamados humanos.

Crenças Para os saamaka, ao aproximar-se de entes invisíveis, ao trabalhar em conjunto com eles, é necessário acreditar neles. Para que sua potência se realize plenamente é preciso fé. Vejamos o que os saamaka querem dizer por “acreditar” (biíbi). A noção de crença foi longamente discutida pela antropologia. Latour (2002 [1996]) assevera que “crença não é um estado mental, mas um efeito das relações entre os povos”, a ideia de crença seria um mecanismo moderno para separar seus próprios saberes (factuais) das crenças dos outros (fictícias). Por isso o autor prega uma posição agnóstica que abandone a noção de crença. Para Asad (2002 [1982]), a noção antropológica de crença como um estado mental oposto ao do conhecimento, que fundamentaria a religião enquanto sistema simbólico, é em realidade uma visão presa a uma teologia cristã pós-reforma, incapaz de dar conta de fenômenos ditos religiosos diversos a essa tradição. Giumbelli (2011) frisa que ambas posições apontam para uma “fragilidade ontológica” atribuída a “qualquer entidade que reivindique viver de crença”, isto é qualquer agenciamento chamado de religioso, e portanto cercado pela modernidade em uma esfera oposta à do saber científico e da ação autônoma. A separação entre crer e saber é uma separação etnocêntrica entre aquilo que “realmente existe” e aquilo que existe apenas como “estado mental” dos crentes, dos apegados à religião. Criticá-la é fundamental para a antropologia. Porém, “crer”, como usado em saamaka, não aponta para tal separação, e sim para outro uso do verbo: não “acreditar que”, e sim “acreditar em”; não colocar em dúvida a existência de algo, mas ter fé em seus poderes. Não se opõe a conhecimento.248 A crença como confiança é a convicção que aquele ao qual a doamos nos retornará como forma de apoio ou proteção; ela clama por uma relação de troca na qual a ligação entre o crente e seu deus não é mais que um caso particular, ainda que seja frequentemente privilegiado. Dá-se confiança, com o mesmo fim, também a um indivíduo, a um partido, a uma instituição. (Pouillon 1979: 45) 248 Como Asad afirma para o cristianismo medieval: “a inversão entre crença e saber […] não era um axioma básico para, digamos, os pios cristãos instruídos do século XII, para quem o conhecimento e a crença não estavam tão claramente em desacordo. Pelo contrário, a crença cristã era então construída sobre o conhecimento – da doutrina teológica, da lei canônica e de tribunais da igreja, de detalhes sobre as liberdades clericais, dos poderes do ministério eclesiástico [...], das condições e efeitos da confissão, das regras das ordens religiosas, de localizações e virtudes de santuários, das vidas dos santos, e assim por diante” (2002 [1982] 125). Também para os saamaka, além de crer é preciso conhecer os poderes com os quais se está lidando, saber a genealogia dos antepassados e sua história; os cantos e toques de tambor das divindades; as receitas dos óbia etc.

375 Pouillon e Robbins indicam que noções de crença nativas (isto é, dos crentes) podem fugir completamente do ceticismo do “crer que”, esquivando-se do uso do verbo enquanto operação de desfetichização, o uso atacado por Latour. Isso certamente é verdade em Urapmin, onde o termo Tok Pisin bilip (do inglês “believe”) é largamente usado. Sempre que eu perguntava às pessoas o que elas queriam dizer com esse termo, falavam em confiar que Deus faria o que prometeu. Como uma pessoa disse para mim, “É como eu acredito em você. Se você me diz que vai me dar uma camisa, eu acredito que você vai fazer isso”. Reveladoramente, quando falam em serem convencidos, durante o período de conversão, de que Deus existia, falavam não em vir a “acreditar” que Deus existia, mas de “saber” ou “ver” que ele existe. Para eles, a fé cristã é acreditar em Deus e agir de acordo; não assentir mentalmente a um conjunto de proposições sobre ele (Robbins 2007: 15).

Em saamaka, “crer” (biíbi) jamais é usado como sinônimo de “pensar que” (dénki), “considerar que” (pakiséi), “achar que” (féni) ou “supor” (meoni). Crer é dar crédito, é “trabalhar com” (woóko ku). Ter fé é engajar-se. Essa é a conjugação saamaka do verbo biíbi, uma operação necessária para que o objeto da crença atualize-se de forma plena. Muitos tabus não são levados à risca por muitas pessoas em Botopási. Um é a evitação completa do sangue menstrual, que nas aldeias pagãs exige que mulheres em seu período recolham-se da convivência social. Outro é o impedimento de matar certos animais, como jacarés e cobras constritoras, que possuem almas e portanto podem aparecer como gádu ou kúnu. Outro ainda é de não queimar ou golpear pedras no mato ou os cupinzeiros chamados de akatási, lares de espíritos da floresta. Os que escolhem deliberadamente quebrar tais tabus afirmam que não sofrem consequências porque não têm fé – ao menos não plena – nos poderes de tais seres, nem na capacidade poluidora do sangue menstrual. Uma vez que sua crença não é forte, tornam-se menos vulneráveis. Observar que nada de ruim ocorre com aqueles que quebram os tabus cria um ciclo crescente de descrença em determinados poderes. Para algo “pegar” (kísi), isto é, funcionar, é importante compreendê-lo e acreditar em sua eficácia. Quando eu golpeei com um terçado um akatási e nada aconteceu comigo, aqueles que me acompanhavam disseram que me livrei porque não sabia o que estava fazendo, mas seria prudente que dali em diante eu evitasse fazê-lo novamente. O mesmo vale, em menor grau, para a feitiçaria. Um amigo disse-me que não há como não acreditar em wísi, pois há coisas que a mera coincidência não explica: por exemplo um homem que tem o dedo furado por um prego e pouco depois morre em decorrência disso – não se morre tão rápido de algo tão banal, alguém deve ter colocado feitiço naquele prego para prejudicá-lo. Ainda assim, dizia ele, eu mesmo não teria tanto a temer com feitiços, pois minha crença, meu medo, não era forte o suficiente.

376 Em 2013, o time de futebol de Botopási chegou à segunda divisão do campeonato surinamês (eersteklasse), um grande feito, e tinha dificuldades nos jogos de alto nível que agora enfrentava. Nessa época, os homens da aldeia discutiram imensamente se os jogadores deveriam ou não se lavarem com óbia antes das partidas, para que tivessem mais chances de vitória. Alguns diziam que bastava treinar mais; outros que, além de treino, os óbia ajudariam os gols a acontecerem. Em meio à discussão, fiz um paralelo: eu, que não sabia manejar armas de fogo, mesmo que usasse um óbia para caçar (hoondi óbia), não conseguiria matar bicho nenhum. Na minha lógica, mesmo que o time usasse óbia, não deveriam deixar de treinar. A isso um ancião respondeu que talvez eu não matasse nenhum bicho, depois de me lavar com um óbia para caça, mas o óbia traria para mim um jabuti (que pode ser capturado sem usar arma de fogo). Ele disse: “tudo pode ser feito sem óbia, mas com óbia fica mais fácil”. Outro homem complementou afirmando que as diferentes fés [geloof], como as várias igrejas (católica, pentecostal, moraviana, Testemunha de Jeová) têm diferentes crenças [biíbi] que ajudam em várias situações, inclusive no futebol. Assim como os jogadores da seleção brasileira rezam para Deus antes das partidas, seria legítimo um time saamaka lavar-se com óbia. A reza, lembremos, não tem efeito meramente “simbólico” para os saamaka, pode ser muito efetiva. O importante, dizia esse último homem, é que “naquilo que você acredita, você tem que estar forte [taánga], senão de nada adianta.”249 A fé, a crença séria, engajada, que segue as regras do poder com que está lidando, é muito do que possibilita um contato bem sucedido dos humanos com as forças invisíveis do mundo. A fé em Deus, em Jesus, na Bíblia, opera de uma maneira parecida com a fé em espíritos e óbia. Pois é preciso dar crédito ao messias, e “trabalhar com ele”, rezando, seguindo suas regras, para que sua agência seja sentida: para ser salvo, para ter uma vida boa, para ser protegido, para se salvar de aflições, ou para receber o Espírito Santo no corpo. O que difere é a possibilidade desta fé exigir um exclusivismo – monoteísmo pleno, ou mesmo fundamentalismo. Como combinar engajamentos distintos sem que se choquem demasiado, é um ponto polêmico e que acaba sendo definido por cada pessoa a seu modo, em Botopási. Afinal, se as alianças são várias, as posições diante das igrejas e seres espirituais também serão. Muitas das críticas às pessoas de Botopási que não frequentam a igreja valem-se do argumento de que é preciso estar forte em sua fé para que ela renda frutos. Dizem que na aldeia são poucos os que realmente conhecem os poderes dos óbia e das divindades, já que estas práticas ficam 249 Não tenho certeza se os jogadores usaram óbia ou não, no fim das contas, mas lograram em 2014 a progressão para a primeira divisão (hoofdklasse).

377 escondidas. Se não forem à igreja, nem aprenderem a usar as “folhas do solo” (i.e., óbia), então perderão pelos dois lados. A maioria das pessoas, porém, escolhe “trabalhar com os dois lados”, porque “ambos ajudam” (“híi déé tú tá heépi”). Dividem sua fé e atenção. Aqui, a crença aponta para “crer em”, e não para “crer que”. As polêmicas são mais sobre a índole do que sobre a realidade dos entes invisíveis. Isso não quer dizer que o ceticismo inexista por completo em saamaka. Moravianos duvidam da glossolalia de pentecostais, dizem que talvez seja tudo teatro. “Pagãos” duvidam que Jesus tenha de fato existido, afirmam que seria um ardil dos brancos para dominar os negros. Há poderes, espíritos e crenças cuja validade está em discussão. Um dos pontos mais sensíveis são os oráculos (fíi). A divinação do cadáver realizada em aldeias não cristãs ao longo do ciclo funerário pode muito bem, argumentam alguns céticos, ser influenciada pelas escolhas dos carregadores que levam o caixão ou bungulá sobre suas cabeças. Isso seria particularmente relevante em consultas a mortos que detêm cargos políticos e que serão consultados para a escolha do próximo ocupante do cargo.250 O mesmo vale para outros oráculos. Um informante argumentou: “as pessoas que operam os oráculos sabem informações adiantadas sobre seus clientes, e acabam influenciando o resultado.” Para ele, não necessariamente todo oráculo é engôdo, mas engôdos ocorrem com frequência, muitas vezes é difícil saber em quem confiar, portanto prefere não consultar oráculo nenhum. Em seu caso, o relativo ceticismo tem a ver com sua criação: ele tem família em Futuná e viveu por muitos anos naquela aldeia, apesar de ser moraviano batizado e praticante. Diz: “sou gente de Futuná, por isso estas coisas [o ceticismo] têm efeito em mim”. Quando o ceticismo aparece entre os saamaka, toma a forma de uma acusação de charlatanismo, e não de uma crítica antifetichista da auto-ilusão provocada pela crença como um estado mental. Pessoas mal intencionadas, falsos óbiama, podem enganar as pessoas, e nesses casos nem mesmo a mais forte das fés faria poderes (inexistentes) atualizarem-se. Mas, excetuando a desonestidade e o enviesamento, que outros possam duvidar da existência (ou da eficácia) de um poder não significa que ele se torne menos real para os que nele acreditam.

250 R. Price (1990: 312-3n13) afirma que os missionários morávios no séc. XVIII e XIX taxavam de charlatões não os carregadores de caixão, mas os anciões ocupados de fazer as perguntas ao cadáver, pois fariam perguntas enviesadas. Donicie, um católico que escreveu sobre funerais saamaka da primeira metade do século XX, pergunta-se sobre a consulta ao morto. “Para cristãos [isto é, para o autor] é seguro que o espírito do falecido não pode responder, uma vez que contatos pessoais com a alma de um falecido não são possíveis. Portanto se o caixão se mexer para frente, então isso ocorre ou por meio dos carregadores, o que frequentemente deverá ocorrer, ou por uma outra força” (1948: 180-1). A “outra força”, especula Donicie, poderia ser o diabo. Tais visões indicam que, também para europeus cristãos, pode ser a definição moral dos entes, mais que sua realidade, que está em jogo.

378 Sem necessariamente negar a existência de nada, é possível perceber, no discurso saamaka, uma abordagem diferencial com relação a distintos objetos de crença. Alguns são mais respeitados e temidos que outros. Pode-se ignorar conselhos para não queimar akatásí e não sofrer nenhuma consequência. Cristãos podem banhar-se no rio quando alguém morreu afogado, antes da limpeza com óbia da água e não serem afetados pela morte. Alguém que não acredita em feitiço talvez seja menos vulnerável a seus ataques. Porém, a proteção da descrença não é absoluta. De nada adianta os brancos ignorarem a existência dos kúnu, estes continuam fazendo-lhes mal sem eles saberem. Prova disso são as grandes catástrofes que volta e meia acontecem pelo mundo. De nada adianta ser ateu: Deus é quem em última instância dá vida e escolhe a hora de nossa morte. Certas forças, por sua inexorabilidade, por não necessitarem de crença para agir, parecem ser as mais fundamentais para entender a cosmologia saamaka e as causalidades que a organizam. Um homem que havia há pouco abandonado a igreja de Futunaákaba (mas que ainda dava muito valor à fé dos pentecostais) era contra o que via como desrespeito e ignorância de certos membros do VE em relação à história e aos poderes dos antepassados saamaka. Haviam ido ao local dos vestígios da antiga aldeia de Sofibuka e fizeram um culto cristão em meio a objetos perigosos como o tronco do taperebazeiro sagrado que Anake cortou ao atacar Gaan Tata. Uma pessoa morreu pouco depois do culto, o que seria uma prova de que, para certas coisas, não adianta fazer parte da igreja, nenhuma fé é tão forte ao ponto de proteger de certos espíritos. O caso de Tata Ventu, visto acima, aponta para uma interpretação similar: mesmo numa aldeia cristã, o compromisso com outras divindades está selado, não pode ser ignorado. Mesmo que as pessoas de Botopási decidissem construir uma nova aldeia num local distante da área que pertence a Tata Ventu, divindades e espíritos habitam todo o território saamaka, todo local de mata é domínio de algum apukú, todo trecho de rio tem wátamamá e outros seres, será sempre preciso lidar com eles. Esses pontos são polêmicos. Pentecostais defendem o poder de Deus e Jesus em protegê-los de divindades que veem como demoníacas, e podem portanto deixar de selar compromissos com elas. Um pentecostal afirmou que sua família tem um gaán kúnu muito poderoso, que ataca todos os homens que vivem no território de sua matrilinhagem, por isto os homens de seu beoë têm de escolher: ou moram no território da linhagem de seu pai (tatá písi), ou entram na igreja, senão morrem cedo. Ele mesmo escolheu entrar na igreja. Aproximou-se de uma religião em parte pela fé de que aquela nova crença o ajudaria a protegê-lo dos kúnu, nos quais também acredita, mas com os quais não se associa. Na visão de

379 outros, o “compromisso” com os kúnu é mais unilateral: um espírito vingativo ataca sempre a matrilinhagem do culpado por sua morte, onde quer que esteja, quaisquer que sejam suas fés. Não há para onde fugir. O desconhecimento dos brancos não os protege dos kúnu. A fé cristã, para muitos, não consegue impedir totalmente os espíritos vingativos de atacarem aqueles que não “vivem bem” com eles, que não atendem seus pedidos. De nada adianta “viver como os creole, viver como os brancos [libi kuma neongë, líbi kuma bakáa], os kúnu nunca vão deixar os saamaka”, disse-me um informante. Existem maneiras diferentes de lidar com eles, mas os kúnu são reais para todos os saamaka. Isso é consenso em toda a literatura sobre maroons das Guianas. Köbben, sobre o Cottica: “um informante disse-me: 'Tornei-me um cristão, então não preciso ter medo de mais nada. Exceto, é claro, kunu'. Na verdade a pessoa em questão tinha medo também de feitiçaria e de Gaan Tata, mas sua observação ilustra a centralidade da crença no kunu” (1967: 19). Percebemos que nem mesmo a descrença é capaz de tornar as pessoas imunes, na visão dos saamaka, a certos poderes do universo. Sobretudo os kúnu e o Deus criador. Parecem ser os conceitos centrais para entender a cosmologia saamaka, as ideias que, para eles, ultrapassam quaisquer fronteiras. São os poderes que governam o mundo, os entes com maior grau de estabilidade ontológica, as verdades mais indiscutíveis.

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Conclusão: Tempo, espaço e fuga O longa etnográfico Let Each One Go Where He May (2009), de Ben Russel, acompanha dois jovens saamaka em uma dúzia de planos longos, sem diálogo, a câmera quase sempre em movimento. Banham-se num igarapé, vão até uma casa, vestem-se com roupas modernas, caminham pelas ruas de terra do que parece ser um bairro periférico de Paramaribo até uma estrada onde pegam um ônibus. A câmera fixa acompanha o trajeto ao som de kaseko no rádio. Depois segue os jovens por Saramaccastraat, principal ponto de encontro dos saamaka na cidade. As próximas cenas são num garimpo, passam por máquinas, montes de terra, trabalham ouro. Em sequência estão em Atjooni, levando em um carrinho de mão um saco de arroz e outras bagagens até um barco com motor de popa. Com o barco carregado, partem, subindo o Alto Suriname, a câmera nas costas de um homem sentado na proa. Corta para um deles desligando uma televisão dentro de uma casa de concreto, e saindo por uma aldeia. O rapaz encontra um grupo que constrói uma casa e seu companheiro de viagem, continuam andando até a beira do rio. Depois estão no mato, um veste tapákootö e bermuda, caça com uma espingarda. O outro, de macacão de trabalho, carrega uma serra elétrica, derruba árvores, aparentemente para cortar uma roça. Na próxima cena estão de volta à aldeia, vestindo máscaras de borracha. Juntam-se a um grupo de mascarados que caminha até um espaço aberto, onde homens tocam tambores, ali dançam aos sons dos rumores de conversas e gritos de incentivo dos que estão à volta. Mulheres servem comidas, brincadeiras sexuais provocam risos. Na última cena, os jovens, de peito nu, guiam uma canoa a remo. O filme pode parecer uma ilustração da vida saamaka no início deste século, exemplifica atividades comuns às quais se dedicam os jovens, seus espaços e ritmos. Mas há mais. Antes das cenas, sobre preta é projetada uma epígrafe enquanto ouvimos uma gravação das mesmas palavras, em voz rouca, tom pausado, acompanhada do som de insetos ao fundo: Assim ouvimos: durante a escravidão, quase não havia nada para comer. Eles te chicoteavam até sua bunda queimar, depois te davam um pouquinho de arroz numa cuia. E os deuses disseram que essa não era uma forma para humanos viverem. Os deuses os ajudariam. “Que cada um vá onde puder”. Então eles fugiram.

A citação é quase idêntica à recolhida em 1978 por Richard Price de Lantifáya, homem da aldeia Masíákííki, clã Abáisa (Price 2002 [1983]: 71). 251 Uma impactante síntese dos eventos que colocaram em movimento os ancestrais saamaka. Os sofrimentos impostos aos escravos, uma maneira desumana de viver; a autorização e condução providas pelos 251 Na versão do livro, Lantifáya refere-se ao nome da plantation. Ironicamente, chamava-se Providência.

382 deuses de que a fuga era o que deveria ser feito; o desejo de que cada pessoa pudesse trilhar seu próprio caminho. O trecho de narrativa histórica garante uma camada extra de sentido ao filme: o que os dois protagonistas fazem é retraçar os passos de seus ancestrais, sempre em movimento, da cidade, do trabalho duro, ao rio, às aldeias, às roças. Porém, o ritmo do deslocamento agora é outro, o trajeto agora é livre. Os meios de transporte, roupas, trabalhos, casas, aldeias são atuais. Unindo a estética experimental à narrativa política e etnográfica, a obra de Russel afirma que, no mundo moderno, de máquinas, TVs, motores, em que cada um vai aonde pode, ainda faz sentido para os jovens seguir caminhos daqueles que há 300 anos ouviram os conselhos dos deuses e fugiram.

Antropologia e Tanatologia Na teoria antropológica, morte, tempo e ritual sempre estiveram imbricados, ao menos desde que Frazer declarou que “o medo do morto humano” seria “provavelmente a mais poderosa força na fabricação da religião primitiva” (Frazer 2003 [1890]). Para o autor, primitivos acreditariam que mortos podem voltar, irados, para perturbar o mundo dos vivos, e daí surgiriam os costumes funerários elaborados de tantos povos ao redor do mundo (idem 1885). Por medo dos mortos ou por medo da morte, os seres humanos – em particular nos estágios iniciais da evolução psicossocial – construiriam crenças e práticas que os possibilitassem simultaneamente afastar os fantasmas daqueles que não fazem mais parte da comunidade dos vivos e encarar a inexorável passagem do tempo, sua própria finitude.252 Sob tal ponto de vista, crenças e práticas religiosas, em particular práticas funerárias, seriam frutos de memento mori: todos humanos morrem, todos temos de lidar com a morte, e portanto com o tempo; o ritual é a via escolhida para fazê-lo. Autores como Hertz (2003 [1907]) e van Gennep (2011 [1909]) ajudaram a formar o que pode-se chamar de “antropologia da morte”: através de miríades de exemplos etnográficos e históricos, encontram uma enorme variação em ritos funerários através do mundo, e simultaneamente um formato comum em todos (em van Gennep, morte – marginalidade – renascimento). Os padrões encontrados em meio à variação seriam derivados de preocupações comuns: luto, herança, destino do cadáver, destino da alma, separação entre mortos e vivos e, seguindo uma argumentação durkheimiana, reintegração da estrutural social, igualando medo da morte e medo da desintegração social, i.e., medo do futuro. Mauss, focando em subtemas mais restritos, segue a mesma trilha (1999 [1921], 2003 [1926]). Tais estudos sobre as ideias de 252 Para uma crítica do medo como motor de crenças e práticas mágico-religiosas, cf. Pires 2009.

383 morte em contextos “primitivos” inseriram-se num diálogo com a história e a arqueologia, formando um subcampo transdisciplinar frequentemente chamado de tanatologia, preocupado centralmente com temas considerados universais, transcendentes.253 Ao longo do século XX, as elaborações culturais acerca da morte perderam muito de suas pretensões universalistas, como notou Fabian: Antropólogos deixaram de responder pela humanidade, suas investigações deixaram o campo de tensão que é criado quando fenômenos particulares são relacionados a conceitos ou processos universais (seja a Lei Natural do século XVIII, a Geist dos românticos, as leis naturais da evolução, ou mesmo a História Universal dos difusionistas) (2004 [1973]: 51).

A antropologia da morte entra então num processo que Fabian chama de “paroquialização”, e que poderíamos também chamar de nominalismo: “'Morte' (no singular) deixa de ser um problema de investigação antropológica; há apenas mortes e comportamentos relacionados com a morte” (ibid.: 50). Proliferam as descrições etnográficas acerca de práticas funerárias, de luto e de relações com os mortos, mas as metanarrativas que buscavam costurar as variações em preocupações teológicas ou filosóficas comuns perdem força. A questão passa a ser a morte “dos outros”, as reações “primitivas”, “arcaicas” ou “tradicionais” à morte, e não a morte como tema humano. Cria-se um grande divisor. As questões universais, porém, permanecem de fundo, saltando aos olhos quando estudiosos comparam as formas que estudam de relação perante a morte com as de sua própria sociedade. Enxerga-se, alternadamente ou de uma vez, problemas existenciais nos dois tipos de visão acerca da morte: a “dos outros”, que se auto-engana imaginando continuidade após a morte; ou a “nossa”, que suprime os pensamentos acerca da morte e não consegue lidar com naturalidade com o fim da vida. Amiúde avaliadas valorativamente, a segunda tende a ser vista evolução ou involução da primeira, dependendo da percepção que o autor tenha do desencantamento do mundo (ou coisa similar): ganhamos, ao deixar de lado a ilusão religiosa; ou perdemos, ao tornar a morte um tabu. Edmund Leach, por exemplo, assevera que a visão do tempo como marcado pela repetição e, consequentemente, da morte como renascimento (o ciclo do eterno retorno) é necessária, pois “temos uma repugnância psicológica (e portanto religiosa) em contemplar a ideia da morte e a ideia do fim do universo” (1971 [1961]: 126). Lévi-Strauss – que ao tratar do “pensamento selvagem” versa sobre a humanidade como um todo – afirma que o sistema ritual (no qual inclui ritos de luto) tem por função superar três oposições: diacronia e 253 Não tenho a competência para apontar as principais abordagens da morte na literatura historiográfica e arqueológica mas, no que tange ao diálogo com a antropologia, a abordagem da chamada história das mentalidades, cujo principal exemplo aqui é Ariès (2012 [1977]), merece destaque, bem como precursores desta vertente, como Huizinga (2010 [1919]).

384 sincronia; periodicidade e aperiodicidade; reversibilidade e não-reversibilidade. Para fazê-lo, coloca em triangulação vida, sonho e morte (1962: 314). Em meados do século XX, a abordagem do tema da morte diferia daquela instituída por Hertz, van Gennep e outros, mas as preocupações últimas seguiam fundamentalmente as mesmas, sobretudo no que tange aos aspectos que mais nos interessam nesta altura: tempo e ritual. Trabalhos como os de Huntington & Metcalf (1979 [1981]) e Bloch & Parry (1982), de clara inspiração hertziana, tampouco desprendem-se do mesmo paradigma. Nas últimas décadas, é possível notar novas tendências nos estudos acerca da morte. A primeira delas é o tratamento da morte nos estudo das experiências coloniais e pós-coloniais. A morte lida na chave do terror e do sofrimento, como uma das consequências da violência imposta aos povos colonizados e explorados. Melhor seria dizer, também neste caso, não a morte, mas certos tipos de mortes, aquelas violentas e antinaturais, ou mesmo aquelas “naturais”, mas precedidas pelo que Patterson (1982) chamou de “morte social”, negação do status pleno de pessoa durante a vida. Assim, autores como Taussig (1993 [1987]), ScheperHughes (1992) e Shaw (2002) estudaram etnograficamente reações à morte conectando-as não mais a uma metanarrativa acerca do “homem” perante o fim da vida, mas a uma narrativa historicizada acerca de uma parcela da humanidade que teve as vidas afetadas pelas violência política e econômica, simbólica e física, causada pela dominação. Quando voltam ao tema dos rituais funerários, a preocupação de autores nas quais pode-se perceber tal tendência – como Brown (2003) e Reis (1991) – é pensar como a morte é negociada por diferentes atores, frequentemente por meio de disputas acerca de formas de apropriação dos mortos, dentro de sociedades violentas, classistas, racistas, escravocratas. Uma segunda tendência, paralela, e que pode se combinar com a anterior, vai contra o que Fabian afirmou ser um dos aspectos da abordagem “paroquial” da morte na antropologia: a ideia de que a antropologia não pode estudar a morte, apenas o comportamento perante a morte daqueles que sobrevivem (isto é, as reações à morte). Em verdade, a atenção etnográfica à presença dos mortos no mundo dos vivos pode ser retraçada a estudos clássicos, ao menos desde Malinowski (1916). Tais estudos podem ser divididos entre aqueles que buscam nas elaborações acerca dos mortos um reflexo da sociedade (ou da estrutura social) e aqueles que encaram-nas como fruto de uma reflexão sobre a morte – seguindo uma proposição de Carneiro da Cunha (1978: 113). Podemos encontrar exemplos do primeiro caso em Goody (1962) e Bloch 1971; e do segundo em Santos (2012 [1975]) e no próprio trabalho de Carneiro da Cunha. Porém, mais recentemente, é possível observar uma mudança de

385 direção. Seguindo explícita ou implicitamente a ideia que não-humanos também agem como atores (ou actantes), diversos estudos etnográficos têm buscando descrever as ações dos mortos no mundo dos vivos (e no além) em cosmologias ou ontologias não-modernas, nas quais a divisão entre espírito e matéria não é tão rígida. Alguns exemplos são os trabalhos de Battaglia (1992), Palmié (2006), Ochoa (2007), Barbosa Neto (2012), Dias da Cruz (2014) e a coletânea editada por Blanes & Espírito Santo (2014). Corporificados em objetos, inscritos nas memórias, presentificados através de possessões, os mortos deixam de ser símbolos que afetam apenas a vida ritual e as especulações escatológicas dos vivos. Tornam-se personagens etnográficos capazes de afetar agenciamentos econômicos, políticos, mnemotécnicos, artísticos etc. De fato, mortos podem inclusive tornar-se informantes dos etnógrafos – quando se comunicam através de possessão, por exemplo (cf. Lambek 1996). Notas ao longo desta tese demonstram que meus dados não teriam muita dificuldade de serem encaixados no paradigma antropológico clássico acerca da morte. Porém, inspiro-me nas tendências contemporâneas, procurando entender como os mortos agem no mundo dos vivos, quais engajamentos possibilitam ou exigem, incluindo aí sua interação com a história colonial e pós-colonial qual vivida e lembrada pelos saamaka. Por isto não me limitei a uma análise dos rituais. Tomando como eixo ideias e práticas acerca da morte em Botopási, esta tese explorou política, espíritos, cuidados, trocas, parentes, cristianismo... A ideia era demonstrar possíveis conexões e vias de interpretação, sem extinguir qualquer uma delas. Outros pontos, porém, atravessaram a tese de forma implícita. Voltarei a eles, permitindo-me agora um tom um tanto mais generalizante. Tempo, espaço, movimento, transformações, ancestrais, fuga e liberdade são os temas que desejo perseguir nestas últimas páginas. Parto de um tema clássico na “tanatologia”: a relação da morte com as preocupações acerca do tempo, porém buscando uma abordagem que tente entender como os mortos, tomados como agentes, afetam tais questões.

Efeitos temporais do controle ritual Voltemos, então, às imbricações entre morte, tempo e ritual, à ideia de que o medo da morte leva à elaboração de rituais que rompem com a linearidade do tempo. Partindo da leitura feita por Gell (2013 [1992]) daquilo que ele entende como uma tradição durkheimiana de pensar o tempo baseado em uma pseudo-metafísica sociologizante, cabe perguntar se procederia, para meu material, a ideia de que os rituais (em particular funerários) destroem, invertem ou suspendem os efeitos do tempo. Haveria, em saamaka, divisão entre um tempo

386 prático-linear e outro ritual-cíclico? Para os fins de meu trabalho, não interessa saber se o primeiro é universal e o segundo ideológico (ibid.: 80-93). Quero saber se os rituais que explorei ao longo da tese teriam como fim reforçar a permanência das estruturas (classificatórias ou sociais) sincrônicas a partir da instauração de um tempo sagrado ou simbólico que interrompe a entrada da diacronia no sistema. O que pode aproximar-se de perguntar, em termos lévistraussianos, se a sociedade saamaka é “quente” ou “fria” (LéviStrauss 1962; Carneira da Cunha & Viveiros de Castro 1985; Goldman 1999), ela internaliza a própria temporalidade como mudanças legítimas ou recusa o devir histórico, tratando-o como estranho a seu funcionamento? A partir daí, poderei abordar também o tema da conversão e, em termos mais gerais, da incorporação de elementos externos ao modo de vida saamaka. Saamaka é uma sociedade quase sempre descrita como “tribal”, de organização clânica segmentar, que pratica culto aos ancestrais. Alterações na estrutura, sobretudo fissões de linhagens são com frequência negadas pelos nativos. Ancestrais são presentificados em objetos como altares (faáka tíki) e cetros de líderes (kabiténi páu e basiá páu). Seriam indicativos de que a estrutura encontra meios ideológicos para manter-se estável? Os rituais querem regular a dicotomia entre um tempo ecológico, cíclico e sazonal, e um tempo estrutural, da permanência das hierarquias (Evans-Pritchard 2002 [1940]: 107-150; Gell 2003 [1992]: 30)? Falei rapidamente no capítulo 4 da sazonalidade da agricultura, que promove um movimento pendular entre gandá (aldeia) e bákasë (floresta, roça), dois eixos espaciais que implicam duas socialidades distintas, uma mais pública, outra mais íntima. Um ciclo modelado pelas vicissitudes do plantio de arroz254: os grupos domésticos devem queimar a mata de suas roças principais (jai goón) em agosto, trabalhá-las entre setembro e outubro e plantar em dezembro para fazer a colheita entre março e maio. Como o arroz precisa de muita irrigação, as datas são estimadas a partir das estações do ano: “grande chuva” (gaán tjúbatén, abril a julho), “grande seca” (gaán dëeowéi, julho a novembro), “pequena chuva” (píki 254 Os saamaka também plantam milho, abóboras, batata-doce, mandioca, mandioca-brava e outros tubérculos, mas tais produtos, como a caça e pesca, apesar de regulados pela sazonalidade, são menos imediatamente dependentes do regime de chuvas. A escolha pelo arroz como carboidrato básico da dieta saamaka é relevante. Pode parecer estranho que um povo fundado por fugitivos que precisavam frequentemente abandonar suas aldeias e roças tenha optado pelo arroz, que demora a crescer e necessita de muito mais trabalho e irrigação em seu cultivo do que a mandioca, base da dieta de tribos ameríndias por toda Amazônia. Os saamaka contam com orgulho a história de Paánza, a ancestral que fugiu da plantation com arroz em seus cabelos (R. Price 2001 [1983]: 129-131). O que parece estar sendo enfatizado nesta narrativa é a dupla continuidade do arroz numa dieta que remete tanto à economia de plantation do Suriname quanto à África (muitas variedades de arroz usadas pelos saamaka até hoje tem origem africana, pace Carney 2005). A mandioca tem também a sua importância, mas secundária, como são secundários na visão maroon os insumos ameríndios a seus costumes.

387 tjúbatén, novembro a fevereiro), e “pequena seca” (píki dëeowéi, fevereiro a abril).255 A existência de dois períodos chuvosos e dois de seca permite que muitas famílias mantenham duas roças, trabalhadas e colhidas em períodos alternados (jai goón, a principal e gaán jaa goón, secundária). Tal movimento cessa quando uma morte exige que as pessoas voltem de suas roças ou de onde quer que estejam, para participar das exéquias, fazendo com que, por uma semana, a casa do morto torne-se o centro humano (gandá) da aldeia. Como afirma Bilby (1994: 152), ciclo natural e ciclo funerário são plenamente divorciados. O ritual interrompe o ciclo laboral: não importa se chove ou faz sol, todos devem estar sob a tenda, trocando, divertindo-se, trabalhando, cantando e rezando para o morto. Interrupção temporária que, porém, não aponta para suspensão temporal. Não encontramos no ciclo funerário qualquer indício de que o tempo seria simbólica ou efetivamente invertido, suprimido ou suspenso. Tampouco a ordem social. A jocosidade e a lubricidade durante a semana não indicam carnavalização. No máximo, no enterro de um gaamá, dizem que “ninguém tem marido ou mulher”, o que parece ser pouco mais que uma piada sem carga de fato subversiva. O sexo continua seguindo as mesmas “regras” que seguia na vida cotidiana: é tema frequente de conversas, a corte é discreta, o adultério é condenado, etc. Apenas torna-se mais presente, naqueles dias de festa. Similarmente, uma das principais brincadeiras sobre a tenda é o politíki, em que as pessoas buscam regras – a maioria marginal, pouco importante – que teriam sido quebradas por outros a fim de cobrar-lhes uma multa em bebidas a serem partilhadas pelos presentes. Regras, inclusive as pouco relevantes, estão sendo reafirmadas durante o ciclo funerário. Mesmo a licenciosidade com que agem os coveiros não é mais que uma regra: a aldeia está em dívida com eles, e dívidas devem ser pagas. Os assentos reservados aos kabiténi e anciões durante todos as reuniões em funerais, bem como o fato desses terem prioridade em serem servidos, igualmente reforçam que a autoridade formal não se altera quando de uma morte. Pelo contrário, deve ser reforçada, daí que anciões, basiá e kabiténi, ganhem homenagens distintas quando morrem, um funeral mais 255 R. Price (1984) compara calendários saamaka do século XVIII e XX, notando apenas diferenças “cosméticas” entre eles. Em ambos os casos, os meses são regulados pela lua e por chuvas, ajustados com o calendário ocidental, especialmente para a celebração do ano novo. Bilby (1994) encontrou um padrão similar entre os aluku. No séc. XXI em Botopási, o calendário gregoriano claramente ganhou espaço, quase não usam os nomes dos meses antigos e marcam os meses seguindo o padrão da cidade. O plantio, porém, segue guiado pelas chuvas. Alguns de meus interlocutores afirmam que recentemente as estações têm parecido-lhes cada vez mais instáveis, mais longas ou mais curtas do que o esperado, não coincidindo com os meses em que deveriam começar ou terminar. Tais afirmações podem ser indícios de mudanças climáticas globais e/ou da percepção do desalinhamento entre a prática antiga (lunar) e a atual (abstrata).

388 rico, bandeiras que simbolizam sua importância e uniformes dispostos ao lado dos caixões. Isso tem um sentido prático: os líderes são ainda mais importantes em momentos de crise, neles seus papéis de guias (tiíma) devem ser enfatizados. As relações – de autoridade, parentesco, amizade, vizinhança – não são suspensas no ciclo funerário saamaka. Nas trocas cerimoniais elas são performadas, dispostas, materializadas, e com isso reforçadas, refeitas. Em meio ao perigo apresentado pelos mortos, os ventres devem ser amarrados, a alegria e a união devem tomar a aldeia, é por isso que, dizem os saamaka, se preocupam tanto com funerais, com detalhes ínfimos de cada trabalho a ser realizado, com a ordem de cada coisa. Sobre rituais, para meus objetivos, a proposta de Houseman (2003) de uma abordagem relacional da performance ritual parece satisfatória. O ritual pode ser visto como uma atuação das relações (humanas e não humanas), que não são apenas referidas, mas experienciadas por meio de atos sequenciais, intencionais e emocionais que remetem a diversos domínios da vida, condensando parentesco, economia, política, cosmologia, etc. Concentrando atos em uma particular estética de apresentação e ocultação, rituais destacam-se da vida cotidiana, não a negando, mas a afirmando, simultaneamente tendo um efeito pragmático necessário e idealmente irreversível sobre o tema da performance – no caso, vida e morte. A ritualização pode assim ser pensada como um processo de recontextualização, cujo caráter "privilegiado" deriva da combinação dessas três propriedades: é um processo experiencialmente fundado, altamente integrativo e, devido à associação sistemática de modos de relação normalmente antitéticos, difícil de definir em termos outros que sua própria atuação (ibid.: 80).

Leach (1971 [1961]: 133) afirma que o “faz de conta que a morte segue a vida” aparece no padrão simbólico dos ritos. Porém, o mesmo autor, alhures, sugere não separar ações rituais (sagradas) e ações técnicas (profanas), já que ambas são aspectos virtualmente de qualquer ação (1996 [1954]: 74ss). Tal ideia é relevante aqui. Não pertencendo os rituais a uma classe “ilusória”, “ideológica” ou “sagrada” de práticas, podemos deixar de pensar numa esfera simbólica (estética, supérflua) como oposta a uma esfera utilitária (ética, essencial). Passa a ser importante entender o que é que os rituais efetuam – simbólica, prática, ética e esteticamente. A partir dos rituais, como afirma Houseman, o antes e o depois não são o mesmo. Afirmações neles feitas valem para além de seu quadro condensado e destacado do cotidiano, tornam-se ações e proposições sobre o mundo. Neste sentido, Lévi-Strauss (1986 [1985]) fornece uma pista acerca da abundância de regras e discussões que encontramos no ciclo funerário saamaka. Pela via dos mitos, demonstra haver relações estreitas entre as artes da civilização e os sentimentos morais, que passam pelas prescrições e cuidados múltiplos e obstinados envolvendo certas técnicas. Os enterros saamaka envolvem artes como o amortalhamento, a construção do caixão e a

389 escavação da cova, todas resultando numa complexa técnica de controle do apodrecimento e do contágio dos mortos. Como toda técnica importante entre os saamaka – construir uma casa, aplicar um remédio, liderar um grupo –, ela tem de ser profundamente discutida, pois ninguém a domina completamente, ninguém detêm o monopólio dos conhecimentos. Nos funerais, a preocupação técnica-estética é particularmente grave, pois o objetivo é livrar os vivos do perigo dos mortos, permitindo uma vida unida e pacífica, sem porém desonrar os últimos nem expulsá-los do convívio com os primeiros. Controlar distâncias, tempos e espaços entre vivos e mortos. Por isso existem ordens e ritmos prescritos para cada atividade funerária. Controlar o tempo é fundamental. Como em qualquer outra atividade prática – colher bacaba, confeccionar uma obra de arte, preparar um óbia, falar num kuútu, plantar arroz – se os atos forem feitos na ordem ou ritmo errados, o resultado será insatisfatório. Normas (weoti) são necessárias para regrar o tempo. Hinos devem ser entoados à noite ou no cemitério, numa cadência e específica; a cova deve ser escavada em tantas horas e em horários apropriados; apenas depois de colocar o cadáver no chão podem começar a cavar ou a fazer o caixão; o aitidei deve ser realizado após ter se soltado o pano que unia os dedões do cadáver, o limbá uwíi quando o maxilar separa-se da mandíbula. O ritmo da vida de um enlutado também é controlado, bem como o movimento dos bens de herança do falecido. A fim de controlar o tempo e os movimentos de vivos e mortos, é preciso marcadores. Os mais óbvios são o corte do sangaafú, que separa vivos e mortos, e as salvas de tiro para o oeste. São movimentos rituais praticamente sem duração, instantâneos, que excisam o antes e o depois sem hesitação. O movimento completo do conjunto dos rituais pode ser paulatino – o morto primeiro deixa seu corpo, depois sua casa, depois aldeia, depois o corpo de seu cônjuge – e nem mesmo é definitivo – o morto nunca deixa de estar de alguma forma presente – mas gestos abruptos de corte são necessários para efetuar a separação. Até porque a agência dos mortos é também imediata: podem começar a agir como kúnu e como fantasmas no exato instante em que a respiração cessa e a alma deixa o corpo. Em Botopási, nem o sangaafú é cortado, nem tiros são dados em funerais, mas substituem adequadamente os gestos por palavras (também curtas). Enunciados ilocutórios, palavras de ordem marcam um veredito, um antes e um depois do ato de fala: agora a pessoa que homenageamos vai para a terra dos mortos, os vivos que deixou para trás permanecem aqui, é triste mas cada um segue seu caminho, não deve haver rancor ou confusões entre quem vai e quem fica. Igualmente, são necessários atos rituais que marcam as primeiras vezes que uma atividade pode ser levada a

390 cabo sem perigo desde a morte – a cerimônia de “remover tabu” (púu tjína) e o ato sexual inaugural de um viúvo são os exemplos mais evidentes.256 Outro aspecto do ciclo funerário que tange o tempo são as trocas. Como qualquer tipo de dádiva, trazem uma espessura temporal, significam um intercâmbio adiado, implicam uma regulação do tempo (cf. Gell 2013 [1992]: 255ss). O que circula de alimentos e tecidos sob a tenda é de uma vez prestação a ser cobrada futuramente e contraprestação de trocas passadas. Para as pessoas e grupos que permanecem em vida, cada troca funerária é regulada pelo que receberam no passado e cria expectativas sobre o que receberão no futuro – se um matrissegmento doou muito num funeral de alguém com quem tem relações de afinidade, espera receber generosamente de seus afins quando um de seus membros falecer. Considerando intercâmbios em um funeral de uma maneira mais ampla, ou seja, contando, além dos tecidos e alimentos, todos os agrados ao morto e seus parentes (cantar, trabalhar, cuidar, oferendar, agradecer...) e tudo que o morto pode fazer para os vivos (proteger, ensinar, guiar...), percebemos que para ambos os lados há protenções e retenções. Trocas regulam o tempo conectando passado, presente e futuro numa perspectiva egocentrada, ou melhor, egoconcentrada, bens circularão mais densamente entre aqueles que possuíam relações mais fortes com o falecido. Não sem motivo, as cerimônias se dão na casa do morto. Neste sentido, um aspecto do tempo parece concentrar-se em um funeral saamaka. As trocas sob a tenda apresentam, quase na simultaneidade (durante uma semana) os laços estabelecidos entre as pessoas, partindo do morto como ego. Como regra, todos que têm relações relevantes com ele devem ter seus ventres amarrados, doar e receber presentes. Vínculos de amizade, consanguinidade, afinidade e autoridade que o morto tinha com pessoas e grupos serão reforçados ali, bem como os que as pessoas mais diretamente ligadas ao morto mantêm entre si. E, como vimos, tecidos e alimentos ainda trazem consigo, de forma eclipsada, elementos estrangeiros e locais que possibilitaram sua produção e distribuição até a chegada na tenda, relações menos imediatas, mas ainda relevantes para o morto e outros presentes. Por meio das trocas, a biografia relacional 257 do falecido é performada durante seu 256 Há um paralelismo entre ritos funerários e ano novo (outro momento de renovação e celebração da vida). É preciso também, no dia 1o de janeiro, “remover tabu” bebendo alguma coisa na casa de um amigo. À meia noite do 31 de janeiro, além dos fogos de artifício abundantes, em Botopási é necessário lái kanú (lit. “encher o canhão”): fazem uma espécie de morteiro com um cano grosso, cheio de pólvora e panos velhos, que será acesso com um longo pavio de pano mergulhado em querosene. O resultado é um super rojão que se ouve de longe. A operação é repetida à meia-noite da data na qual encerram as festividades de ano novo (tapá jái). 257 Uso o termo “biografia” nesta conclusão um pouco descuidadamente para falar das existências de pessoas (desenroladas num tempo no qual a morte é um marcador, mas não o único) e as maneiras com que podem ser contadas, reproduzidas, manipuladas. Nada que se aproxime da acepção moderna, que pressupõe um sujeito limitado por uma existência temporal entre nascimento e morte.

391 ciclo funerário. Daí a diferença entre os discretos funerais para infantes, sem qualquer troca ou festa, e os portentosos funerais de líderes e anciões, que tiveram mais oportunidades de estabelecer relações durante a vida. Quando a pessoa é idosa, especialmente quando teve muitos filhos e foi muito benquista, a totalidade de suas relações diretas e indiretas pode abarcar a totalidade da aldeia, seus atos e influência espalharam-se ao longo de sua história de vida. E fora dela também, portanto visitantes de outras aldeias, da cidade e do estrangeiro devem estar presentes (e receber presentes pelo esforço extra da viagem). A insistência para que os enterros de gente de Botopási ocorram no cemitério da aldeia passa justamente pelo fato de que aquela é a principal oportunidade para que os vínculos abalados pela distância possam ser reatados. Com a suspensão do ritmo cotidiano exigido pelos rituais em Botopási, o tempo ou, ao menos, a temporalidade das relações entre vivos e mortos, condensa-se. Mas não se pode dizer que o tempo seja invertido ou suprimido, não parece haver nada, nesses funerais, que reproduza um tempo mítico. Como vimos, existe uma terra distante, kóntukoondë, que os saamaka conhecem por narrativas míticas (que tem lugar especial em vigílias). Um local onde animais falam, não se distinguem plenamente de humanos, as artes da civilização ainda não foram todas implementadas, enfim, um espaço-tempo muito similar ao chamado tempo mítico. Mas a terra dos contos não é localizada no passado, é numa realidade paralela, ficcional, que não exige supressão do tempo para ser frequentada, no máximo, transporte e suspensão de descrença. O controle das distâncias temporais e espaciais que ocorrem no ritual funerário saamaka apontam antes para a história, para as biografias que se estendem pelas relações genealógicas (e outras) desde o passado longínquo até o futuro. Precisamos compreender, então, como os saamaka pensam sua história.

Vida e ancestralidade Comecemos pelas “histórias das pessoas”. Grosseiramente, podemos dizer que a vida de um homem saamaka divide-se em três grandes períodos: infância (quando é criança, míi), maturidade (quando é jovem, kijóo) e velhice (quando se torna ancião, “gente grande”, gaánsëmbë). A evidência da divisão dá-se nos kuútu, reuniões formais nas quais as clivagens da aldeia são performadas: crianças não participam, jovens sentam-se juntos e anciões aparte com os líderes da aldeia. Transições de fase são marcadas por trocas: no início da infância com o rito de “tirar a criança de casa” (púu míi a dooö); na passagem para a fase adulta por uma espingarda e uma kamísa presenteadas pelo pai; na morte pelos ritos funerários. A

392 transição de jovem para ancião é menos marcada, não envolve uma mudança de status datada, antes um acumulo de experiência e prestígio que faz com que, paulatinamente, um homem passe a ser mais consultado nas decisões de seu matrissegmento e matrilinhagem, a sentar-se junto com os líderes da aldeia. Quando a pessoa ganha assento no conselho da aldeia (lánti) como ancião de sua linhagem há um momento em que isso é oficializado, em um kuútu, por meio das palavras de um kabiténi, mas isso é privilégio de poucos e não é necessário para que um velho seja considerado ancião, carregando prerrogativas que a condição traz. Nascer, tornar-se adulto e morrer é algo que acontece com (quase) todos, tais passagens precisam ser pontuadas com trocas, que atualizam novas e velhas relações que envolvem a pessoa nesses momentos: as pessoas estão sempre marcando relações de dívida umas com as outras, pois dependem umas das outras. O mesmo acontece num casamento, que implica uma nova configuração de relações, e que por isso também exige pagamentos em tecido, víveres e outros objetos (lái valisi, túwë daán).258 O próximo passo, depois de ter sido criança, adulto e ancião, é tornar-se ancestral. Ao partir para a terra dos mortos (deodëkoondë), a pessoa passa a habitar um espaço-tempo paralelo, seus vínculos com os vivos transfiguram-se, sem deixar de serem atuais. Ela passa a ocupar novas posições, será agora um fantasma, um kúnu, um neoséki, um ancestral, algo facilitado pela ausência de um corpo físico (podem agir em vários lugares ao mesmo tempo), mas que não se diferencia tanto assim da multiplicidade de posições que uma pessoa preenche ao longo da vida (de filho, marido, pai, líder, amigo, membro de diferentes grupos, etc.). Para preencher cada um desses papéis é necessário que certas condições sejam atendidas: para ser fantasma basta estar morto, mas para ser kúnu é preciso morrer com uma dívida a cobrar, para ser neoséki é preciso “brotar” uma criança, para ser ancestral é preciso ser lembrado. A ancestralidade requer uma boa vida, com muitos filhos, amizades, relações, feitos marcantes, muita experiência, muita influência. E ter tido uma boa morte, pois, como vimos, uma “morte feia” implica uma interrupção do ciclo de vida natural e desejado, e, com isso, uma condição particularmente horrível post mortem, a de taku deodë. O próprio fato de gaánsëmbë significar tanto ancião quanto ancestral demonstra a dependência, nesse universo gerontocrático, da senioridade para que se alcance um status relevante após a morte. Por terem “visto mais sóis” 258 Meu modelo aqui é androcêntrico. Mulheres também marcam nascimento, chegada à idade adulta, casamento e morte com trocas, e podem atingir uma influencia pragmaticamente muito próxima à de um ancião homem, mas nem assim sentam-se junto ao conselho da aldeia, se não tiverem cargo de basiá. Nunca podem assumir uma posição “oficial” de anciãs, portanto. Lembremos que mulheres adultas costumam sentar-se separadas de homens em kuútu e na igreja. Elas não têm uma categoria especial que nomeia sua idade adulta, como kijóo, mas ao receberem o kojó e o koósu, de meninas (mujeoëmíi) tornam-se mulheres (mujeoë), núbeis e aptas a terem filhos.

393 (“sí mooön sónu”) e “respirado primeiro” (“hái böoo fósu ”) os mais velhos merecem respeito dos mais novos, antes e depois da morte. Quem era pouco importante pode continuar sendo um morto auxiliar, um fantasma bondoso, tratado de gaánsëmbë (ancião, ancestral) por aqueles vivos com que mantêm vínculos, mas logo será esquecido, à medida que suas relações forem também falecendo. Não será gaánsëmbë no sentido pleno da palavra, de ancestral. Qualquer morto age do alémtúmulo, mas para que suas relações e, logo, suas ações, sejam relevantes, é preciso estar na memória dos vivos. É preciso viver muito bem para ser lembrado séculos depois da morte. Ter tido muitos filhos, ter sido um líder importante (especialmente com cargo oficial, mas não necessariamente), ter sido médium de espíritos poderosos, ter sido conhecedor de grandes óbia. No caso de Botopási, ter tido destaque no desenvolvimento do cristianismo saamaka (como tiveram Alabi e Anake) também garante relevo. Tais mortos serão mais facilmente contados nas genealogias, terão seus nomes citados em kuútu, em trabalhos com óbia, suas histórias serão narradas, receberão libações e oblações. Serão mais presentes, enfim. O passado, na língua saamaka, tem dois nomes: fésiten (“tempo da frente”) e fósuten (“primeiros tempos”). Foquemos por ora na segunda expressão. Primeiras vezes, inícios ou recomeços, são sempre importantes para os saamaka. Como já vimos nos rituais funerários, o antes e o depois de uma atividade devem ser marcados com precisão. Quanto aos ancestrais, ganham muita importância aqueles que fizeram algo pela primeira vez: que primeiro desbravaram uma área do mato e do rio, que primeiro cortaram uma roça num determinado lugar, que primeiro foram batizados cristãos, que primeiro entraram em contato com um determinado espírito, que primeiro aplicaram uma receita particular de óbia, que primeiro trouxeram certo alimento para as aldeias, que participaram da fundação de aldeias, que fundaram matrilinhagens. Terão destaque nas lembranças, nas rezas, nas libações, nas histórias relacionadas a um determinado local, grupo ou atividade. Não serão os únicos, de fato grandes líderes, entre outros, não precisam ter sido totalmente originais em algum aspecto para ocuparem um papel relevante na história saamaka, mas certamente em suas vidas e após a sua morte muitos tentam sê-lo, e seus descendentes tratam de pintá-los como tal. Apenas um exemplo: o caixão do gaamá Belfon Aboikoni foi decorado com um avião entalhado em madeira, para marcar que ele foi quem trouxe a primeira pista de pouso ao Alto Suriname – grande marcador do avanço do desenvolvimento no rio. Grandes guerreiros também ganham destaque nas narrativas dos primeiros tempos saamaka, mas, se analisarmos as histórias da maioria deles, não foram os que morreram em batalhas contra o poder colonial que

394 permaneceram com mais força, mas os que sobreviveram, tiveram proles numerosas e fizeram ainda outros feitos, inaugurais ou não, que marcaram o tempo (cf. Price 2002 [1983], 1990). Não é por morrer violentamente, mesmo pelas mãos do inimigo, mesmo por uma causa nobre, que um saamaka quer ser lembrado.259 A permanência dos mortos na memória e nas narrativas é reforçada por sua presença física. Entre os lares dos mortos estão os altares (faáka tíki) presentes em todas as aldeias não cristãs, que garantem aos fantasmas sem corpo uma materialidade que facilita a comunicação com eles. Também o cemitério e os locais que assombram, mas esses são perigosos, materializam principalmente aspectos dos mortos dos quais os vivos desejam afastar-se. Os líderes estão incorporados também nos cetros (basiá páu e kabiténi páu), nos quais estão contidas suas almas. Façamos um paralelo com as relíquias totêmicas, como os churinga dos Aranda australianos: esses objetos, analisa Lévi-Strauss (1962: 315ss), são considerados contemporâneos dos ancestrais, tornam-se seus corpos, vestígios de sua presença na terra e portanto testemunhos palpáveis do tempo mítico. Como os churinga, os cetros saamaka ficam escondidos na maior parte do tempo, sendo levados a público periodicamente, em situações ritualizadas (em Botopási, o jái kuútu). A diferença aqui é que o tempo que testemunham (e portanto aproximam) não é um tempo mítico para além da contagem dos anos, cuja desproporção com o tempo vivido necessitaria ser ritualmente suprimida. É um tempo histórico com pouco mais de três séculos de profundidade, em plena continuidade com o presente. Aqui voltamos para a questão sobre como os saamaka encaram o devir histórico, para além dos ciclos curtos (ecológicos, laborais ou biográficos). Ao pensarem o passado de sua sociedade, tendem a elaborá-lo em largos períodos. Podemos esboçar uma linha do tempo saamaka, conforme contam a história de seu povo. Começam na África, num tempo e local 259 Notamos a diferença gritante com as ideias sobre a morte dos antigos gregos, quais descritas por Vernant (1978). Na Grécia, para que uma pessoa fosse inscrita na memória cívica, era preciso morrer uma bela morte, posto que não havia distinção entre corpo e alma e o mundo dos mortos era um caos indistinto. A bela morte era a do guerreiro, uma morte por uma causa, um ideal, posto que o envelhecimento era visto como um declínio inexorável das forças e apenas indivíduos modelares, com rigor em suas biografias, seriam lembrados nas epopeias. Os valores eram apenas os da vida, não havia possibilidade de se cogitar a perspectiva dos mortos, do Hades. Observamos reflexos do ideal grego na forma de encarar a morte na tradição euroamericana, que persegue o ideal de bela morte, por exemplo, nas figuras dos mártires religiosos (sendo Jesus o maior deles), e que tampouco permite uma perspectiva aos mortos: lembramos dos indivíduos em vida. O radicalismo dessa negação da morte aparece de forma clara na modernidade, quando o ocultamento da morte se torna cada vez mais comum, os ritos são encurtados, a velhice é temida (cf. Ariès 2012 [1977]). Na tradição grega, como no ocidente moderno, a impossibilidade da agência dos mortos permite que eles apenas sejam inscritos na memória. Memória social, quando se tratam de grandes figuras, dignas de homenagens e cenotáfios, mas ainda assim algo muito distinto do que os grandes ancestrais saamaka são capazes de efetuar.

395 distantes, sobre o qual muito pouco é narrado. Um evento, a captura por um ardil dos brancos, põe o tempo e as pessoas em movimento, atravessando o Atlântico e levando-as às plantations dos brancos, onde o trabalho escravo e a violência insuportável são atos imorais que engatilham um novo movimento, a fuga em direção ao mato, em direção à montante. Acerca deste momento inaugural, os “primeiros tempos” dos ancestrais, a narrativa é muito detalhada: é quando a mata é cortada, os territórios são humanizados, os clãs e linhagens são fundados. O tempo de fuga e guerra culmina no tratado de paz, que estabiliza o movimento até então frenético de fuga, invertendo-o: paulatinamente os clãs e aldeias saamaka podem descer à jusante, aproximando-se do mundo branco, estrangeiro, da costa. O tempo de paz marca uma nova existência, na qual o território já está demarcado, chegaram tão fundo no mato quanto precisaram. Ele poderia ainda ser subdividido por eventos como a construção do lago da hidrelétrica ou a guerra civil, que possivelmente acentuam, forçosamente, a aproximação tensa com a costa. Para os saamaka cristãos, eventos como o batismo de Alabi e as visões de Anake ainda acrescentam outra dimensão, um tempo cristão, que também significa uma aproximação com os brancos. Os feitos (principalmente inaugurais, mas não apenas) dos ancestrais aparecem como eventos que pontuam os movimentos históricos saamaka. O período pré-escravidão é importante – os ascendentes africanos eram pessoas livres e poderosas vivendo em sua terra nativa –, mas é tão distante e relativamente pouco elaborado que acaba ganhando feições do que chamamos de tempo mítico: o passar dos anos já não altera a relação dos atuais saamaka com a África.260 Já o tempo dos ancestrais que contam nas genealogias (os que fugiram da escravidão e seus descendentes) está inserido num devir histórico plenamente internalizado pelos maroons contemporâneos. O crescente distanciamento com relação a tal passado ancestral é relevante, os “primeiros tempos” formam um espaço-tempo de pessoas miraculosamente fortes e sábias, que aos poucos vai sendo perdido. Nenhum vivo será tão poderoso quanto foram os homens que lutaram contra os brancos e as mulheres que fundaram as linhagens, cujo poder era derivado de saberes africanos e da situação de violência que enfrentaram. Os saamaka, ao se aproximarem dos brancos, estão perdendo parte desta força, ao mesmo tempo em que ganham outras, talvez mais adaptadas ao mundo moderno. Operações rituais aproximam os ancestrais, mantém vivas as trocas com esses mortos. Mas 260 O relato de Silvia de Groot (1996 [1973], 1974) da viagem dos gaamá a Gana, Togo Benin e Nigéria em 1970 poderia fornecer-nos elementos para pensarmos mais detalhadamente na visão que os maroons das Guianas têm do continente africano. O espaço nos impede de desenvolver o tema. Ver também a discussão em R. Price 2008.

396 eles nunca estão tão apartados. Estão substancialmente presentes nos altares, nos cetros, no território, nas narrativas, nas memórias, nas matrilinhagens. Relacionar-se com eles não é bem uma escolha para seus descendentes, é uma necessidade, posto que eles ainda regulam, desde a terra dos mortos, o ambiente onde os humanos vivem.

Fissões e durações de linhagens Certas agências dos mortos fazem deles consubstanciais aos vivos. Enquanto ancestrais, os antepassados participam de uma mesma linhagem, de um mesmo ventre, junto com seus descendentes matrilaterais. Enquanto neoséki, mortos habitam corpos dos vivos, garantindo-lhes uma espécie de linha de descendência complementar que compartilha vulnerabilidades e cuidados. A permanência temporal dos atos dos mortos é reforçada por sua presença nos corpos coletivos e individuais. Os kúnu apresentam uma relação mais indireta, mas não menos essencial. As linhagens saamaka agregam-se em grande parte por compartilharem vulnerabilidades diante de espíritos vingativos, o que é dizer que a partir da resistência contra um agente externo, não consubstancial, as unidades do sistema saamaka estabilizam-se. O kúnu é um dos mais recorrentes temas abordados pela antropologia que tratou dos povos maroons das Guianas, sobretudo durante o boom de estudos ocorrido nos anos 1960-70. O papel estrutural dos kúnu na vida destes povos parece ser um ponto pacífico para os etnógrafos desta geração. Tal consenso não parece resultado de uma inércia teórica, é antes fruto da insistência dos próprios maroons neste tipo de afirmação. Quando os maroons explicam que os kúnu, apesar de terríveis, acabam trazendo a união para as linhagens, é difícil para um antropólogo não lembrar das teorias de Durkheim, Radcliffe-Brown, Fortes e outros que ligam “religião” à estrutura social, postulando a crença nos espíritos como um fator ideológico que reforça as estruturas normativas dos grupos. Nos anos 1970, as principais explicações acerca do kúnu seguiram esta linha. O problema de interpretar a ação dos espíritos vingativos numa chave funcionalista é compreender a relação entre um “sistema religioso” e outros códigos (de linhagens, por exemplo) como se o primeiro fosse epifenômeno ou mascaramento ideológico de algo “mais real”, uma estrutura reificada. Nem é preciso ir muito longe a fim de refutar tal visão: Evans-Pritchard, ele mesmo lido como estruturalfuncionalista, já propunha que “a concepção nuer de Deus não pode ser reduzida a, ou explicada pela, ordem social [… ainda que] algumas características de sua religião possam ser apresentadas mais inteligivelmente em relação à ordem social” (1956: 320). O mesmo vale

397 para os kúnu maroons, e tantos outros fenômenos. Religiões e crenças só podem ser lidos como funções das relações de parentesco no sentido matemático do termo: uma relação entre dois conjuntos onde há relação entre cada um de seus elementos. E mesmo assim, apenas se deixarmos claro que os conjuntos ou códigos são criados artificialmente pelo antropólogo. Só há um domínio religioso e um domínio do parentesco na ficção etnográfica. Os kúnu não são como os totens radcliffe-brownianos ou durkheimianos, ainda que haja certa convergência por essas forças postularem o universo como ordem moral e social (cf. Radcliffe-Brown 1952 [1929]; Durkheim 2002 [1912]). Se tentarmos reificar – tratar como concreto – tão somente aquilo que os nativos reificam, as afirmações saamaka sobre a “função agregativa” dos kúnu apontam para algo que poderíamos chamar de “espiritualfuncionalismo”: não havendo ideia de estrutura, os espíritos (vingativos e outros) não são ideologia nem mistificação. As unidades sociais são agregadas (em vários níveis) em função de ameaças sobrenaturais realmente existentes. Em outros termos, não se trata de dizer que kúnu (ou fíófio, neoséki, tjína) sejam instituições sociais que possuiriam a função de representar a coesão de unidades sociológicas, reforçando sua solidariedade interna e seus laços externos, assim possibilitando que sejam preenchidas as condições necessárias para a continuidade da sociedade. Buscando ser fiel às formulações nativas, eu diria que agências sobrenaturais forçam a união dos beoë ao conectar atos passados de consequência extensa e codependência familiar. Na visão fatalista dos saramaka, a solidariedade – e quiçá em ultima instância a sociedade – é uma necessidade provocada em grande parte por forças externas que punem a ação humana antissocial. Mas a necessidade de união é anterior às forças destrutivas que a ameaçam. A resistência é primeira. Os espíritos vingativos não operam nem como supraestrutura ideológica nem como infraestrutura sociológica. Os kúnu não definem uma linhagem sozinhos. História, genealogia, cargos políticos e território também são elementos que fazem do beoë um beoë. Strathern faz uma crítica à ideia de “instituição central”, que redunda em crítica do funcionalismo: para ela, “identificar uma espinha dorsal institucional fundamental é em si mesmo um resíduo de análises antropológicas mais antigas sobre a 'estrutura social' como a articulação ossificada da 'vida' e de outros processos” (2006 [1989]: 117). Ao apresentar lado a lado, nos capítulos 4 e 5, modos diferentes nos quais a morte e os mortos impactam unidades pessoais e coletivas saamaka, eu quis sublinhar o fato de que nenhum deles pode ser considerado mais fundamental que os outros. Há, em certas modalidades de agência dos mortos (ou da resistência à sua agência), uma ênfase na união, na coletivização – união intralinhagem para

398 os kúnu, união da aldeia para os “ventres amarrados”. Até aí, justapomos um sociologismo durkheimiano ou radcliffebrowniano a um “troquismo” maussiano ou levistraussiano. Acompanhando Strathern, podemos dar um passo a mais, afirmar que não há domínios “mais sociais” ou “menos sociais” (ibid.: 126). Os neoséki, forças tão íntimas e pessoais, são tão relevantes quanto trocas e espíritos vingativos, quando observamos o nível infrapessoal. Não há um todo social que deva funcionar como unidade autônoma e dependa de certas instituições para tal. Há modalidades de agência dos mortos e dos vivos que aproximam e compõem as pessoas e os grupos fazendo-os funcionarem como unidades abertas. Voltemos ao tempo, pois trocas, vinganças e apadrinhamentos possuem também sua dimensão diacrônica. R. Price (2002 [1983]: 5-6) afirma que, em saamaka, a intrusão do passado no presente em tese não teria restrição temporal, mas na prática sim: os espíritos vingativos que agem com mais frequências são aqueles cuja origem ainda está na memória dos vivos, aquilo que ocorreu nos últimos cem anos. Enquanto símbolos de identidade grupal, antigas figuras vão dando caminho a novas, junto com o processo de segmentação social. A duração e o escopo da ação dos kúnu foi uma questão debatida por etnógrafos nos anos 1970. Tanto Green (1977b) quanto R. Price (1973, 1975) afirmam haver descompassos entre o modelo estatístico-comportamental e o modelo ideal-normativo no que tange os espíritos vingativos. O ideal do kúnu eterno e implacável, nunca esquecido, seria na realidade impraticável, pois a criação constante de espíritos vingativos e o crescimento demográfico das linhagens impedem que se cuide de todos da maneira apropriada. Sendo os beoë definidos em grande parte por sua vulnerabilidade compartilhada diante dos mesmos espíritos, haveria tendência à fissão das linhagens, separando quem cuida de alguns espíritos e quem cuida de outros. Novos kúnu definiriam novos beoë à medida que os espíritos mais antigos deixam de ser efetivamente compartilhados. Quando tais fissões ocorrem, seriam completamente negadas (pelos saamaka) ou admitidas apenas em contextos extraoficiais (pelos matawai). Green já notava o problema de criar um contraste entre o real e o ideal nos dados de campo: “[…] quaisquer discrepâncias entre formulações normativas/ideais desse processo (partam do etnógrafo ou do informante) e formulações estatísticas/comportamentais do mesmo processo devem ser vistas como um problema metodológico” (1977b: 153). Percebia que não podemos nem criar uma visão monolítica dos “ideais” dos nativos, nem acreditar que somos capazes de ver a “realidade” melhor que eles. O problema – metodológico ou teórico, como queira – reside justamente aí. Tudo se passa, para Green e R. Price, como se os maroons “fizessem de conta” que o tempo não passa do ponto de vista das linhagens, para manter a

399 ilusão de rigidez e continuidade estrutural. O culto aos kúnu poderia ser mais um exemplo de atividade ritual que nega a “realidade” das mudanças diacrônicas (mesmo que em outros aspectos os maroons não tenham problema em afirmar que o tempo passa). Porém, nesse caso, o “fato” observado pelo antropólogo, a fissão das linhagens, não testemunha mistificação ideológica ou dogmática, e sim a complexidade da lógica segmentar do parentesco. Os beoë podem ser vistos como retenções no presente de eventos passados que marcam a continuidade a partir de um antes e um depois do início de uma linhagem. Neste sentido, o ponto é entender como se faz o corte, o evento inaugural que funda a linhagem. Thoden van Velzen (1995: 731n9) frisa que, entre os ndyuka do Tapanahoni, nem todo kúnu consegue atingir toda a matrilinhagem, muitos atacam apenas um matrissegmento. Algo semelhante ocorre em Botopási atualmente: certos kúnu possuem tendência a atacar apenas parte de um beoë, ainda que tenham virtualmente a capacidade de ampliar sua “área de atuação”. A segmentação no efeito dos espíritos vingativos não necessariamente leva à fissão e não contradiz o mecanismo de funcionamento próprio dos kúnu, de maneira que não demanda denegação ou duplipensar da parte dos nativos. O que ocorre é que os kúnu, como a organização social saamaka, operam segmentarmente. Isso significa uma pertença simultânea a grupos englobantes, crescentemente grandes e mais profundos genealogicamente, que se faz mais íntima, mais solidária, mais próxima corporalmente, aos grupos menores. Vulnerabilidades mais compartilhadas entre grupos menores e portanto solidariedade maior nas unidades mais restritas. Já ouvi um homem argumentar que os saamaka devem olhar o mamá beoë como um todo, ao pensar em questões de transmissão de terras e cargos políticos, e não pensar em matrissegmento (wósu déndu), afinal de contas, todos os membros de uma linhagem, próximos ou distantes, possuem os mesmos kúnu. O mesmo homem inúmeras vezes agia de maneira contrária a tal discurso: tendia, como a enorme maioria dos homens saamaka, a privilegiar seus sísa míi (ZD/ZS) em suas decisões. Durante as trocas cerimoniais, a princípio, todas as pessoas do mamá beoë do falecido deveriam doar e receber tecidos e víveres, mas aqueles mais próximos do morto, aqueles de seu matrissegmento, serão doadores e recebedores privilegiados. Para os vivos, as duas unidades, beoë e wósu déndu, fazem sentido dependendo do contexto e da perspectiva. Os saamaka compreendem que, apesar da posição fundamental das ancestrais apicais, garantida pelos seus atos inaugurais, os limites do beoë não são tão definitivos quanto parecem à primeira vista. Discussões profundas, ancoradas na história, surgem a respeito da pertença a um “ventre”: por exemplo, as pessoas da linhagem de

400 Adjumba, em Botopási, costumam contar sua descendência a partir dessa ancestral, mas há quem afirme que deveriam contar a partir da mãe dela, Duku, o que teria consequências que não posso explorar aqui. Relações de parentesco são sempre deíticas, logo, o distanciamento genealógico e segmentar permite que sejam encaradas de diferentes perspectivas. O crescente afastamento com relação ao tempo dos ancestrais tem efeitos bastante concretos no presente, entre os quais o escopo da atuação dos kúnu. Mortos também compreendem a abrangência genealógica de sua vingança em dêixis temporal e relacional e nesse aspecto seguem a mesma lógica dos vivos: podem dar preferência a atacar pessoas do matrissegmento de quem lhe fez mal, ainda que tenham a capacidade de causar infortúnios em toda a matrilinhagem. O que faz temas como o início de uma linhagem serem tratados como saberes esotéricos, é o mesmo que faz negar a possibilidade de fissão delas: são temas políticos portanto perigosos, que devem ser tratados com segredo. Admitir que parte de um grupo deixou de cuidar de um determinado espírito vingativo poderia ativar ainda mais sua fúria. As palavras, lembremos, têm poder. Falar algo em voz alta pode ser muito perigoso. A relativa ambivalência em relação ao escopo genealógico da ação dos espíritos vingativos segue, sim, uma lógica coerente. O que acontece é que as fronteiras histórico-genealógicas das unidades não são sempre inequívocas.

Tempo de vingança Como os kúnu, ancestrais importantes não devem ser esquecidos. Ignorar seus mortos poderosos, deixar de rezar e fazer oferendas para eles pode trazer consequências desastrosas para uma aldeia. Ainda assim, as trocas com mortos “bons” são acima de tudo positivas, trazem benefícios para os vivos. As trocas com os espíritos vingativos, inversamente, consistem no esforço contínuo para mitigar um ódio implacável. Dependem menos de memória para operar: os vivos podem se esquecer dos kúnu, mas os kúnu não se esquecem deles. Em Botopási, onde o cristianismo torna mais óbvio certo “abandono” dos mortos, meus informantes são bastante explícitos em dizer que os kúnu são de fato muitas vezes esquecidos, mas continuam a agir, a reunir-se com outros mortos, para provocar desgraças na linhagem que, além de provocar sua morte, ainda teve a ousadia de ignorar suas demandas. A ira dos kúnu é eterna e inexorável, pode ser acalmada, mas nunca extinta. Logo, uma ação humana imoral ou descuidada tem consequências que perduram indefinidamente no tempo. A duração de um evento estende-se sob a forma de seus desdobramentos: um roubo, uma traição podem ser considerados um assassinato indireto, pois levam ao enfraquecimento

401 da vítima que pode significar sua morte, ainda que anos depois. E um assassinato, mesmo indireto, gera um kúnu que pode seguir afetando uma matrilinhagem centenas de anos depois de sua criação. “Não é no dia que uma folha cai na água que ela apodrece”, diz o ditado. 261 Se os kúnu são implacáveis, se nunca perdoam, o tempo não é reversível. Mais que isso, o tempo é colocado em movimento pelas ações humanas sobre mundo. Os saamaka encaram a causalidade e, logo, a temporalidade, como derivada de eventos, quase sempre ações intencionais. E, na visão pessimista que os saamaka têm da humanidade, especialmente ações violentas: todos os males são derivados de uma ação humana, de um delito no passado, toda ofensa terá consequências no futuro (R. Price 2002 [1983]: 5). Não pertencendo a um passado mítico, mas plenamente histórico, a vingança dos kúnu não é como aquela que aparece no exemplo clássico tupinambá. Afirmam Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro (1985: 198) que, na relação de guerra entre esses grupos ameríndios, “se a vingança não tem fim, ela é também sem começo: ou melhor, seu ponto de partida é puramente virtual. Sucessão de respostas, desenroladas a partir de um início imaginário, é o que insinua o mito de origem do canibalismo.” Continuam: “há aqui uma circulação perpétua da memória entre grupos que se entre-vingam, circulação garantida pelo fato de que uma morte jamais quita morte anterior. Não há círculo da vendeta, mas espiral ou pêndulo” (ibid.: 200). De forma similar, a vingança do kúnu pode ser encarada como troca de mortes, ou troca negativa com os mortos, pois enredam linhagens em dívidas umas com as outras, geram dependência, estendendo-se amiúde desde o passado longínquo e assim acrescendo de sentido histórico as relações atuais entre grupos. Para os tupinambá, trocas de mortes são “forma de pôr a morte a serviço da vida, não combate contra a morte. A vingança é uma mnemotécnica, mas é mobilizada para a produção de um futuro.” (ibid.: 202). Em saamaka, a reação à vingança de espíritos implica, sim, um combate contra a morte e a destruição. “Quebrar a aldeia”, “quebrar a família”, “quebrar o mundo” são preocupações muito expressas em saamaka. Atitudes de qualquer natureza que coloquem em risco a coesão dos conjuntos são condenadas e denunciadas a todo tempo. “O dinheiro está quebrando a aldeia”, “esse tipo de teimosia faz quebrar a família”. Egoísmo, ganância, arrogância e negligência são 261 Outro exemplo interessante dessa lógica de retribuição estendida é dado por Köbben (1969b: 134-8). Os ndyuka do Cottica frequentemente não reclamam de um erro alheio cometido contra si imediatamente, esperam uma situação futura em que estejam em posição superior para cobrar a dívida moral. Um homem cai numa brincadeira humilhante preparada por um outro; anos depois, está na posição de opinar acerca do casamento do fanfarrão, que pediu a mão de sua neta classificatória matrilateral; nesse momento, impõe o desrespeito no passado como um empecilho à união, que pode implicar um pagamento de uma multa. Neste tipo de situação, utilizam a expressão “te peguei, você plantou bananas”, uma alegoria com o fato de bananeiras darem rebentos tempos depois de plantadas em lugares não esperados.

402 os germes mais comuns de conflitos potencialmente catastróficos. Junto com feitiços, espíritos vingativos são os resultados mais destrutivos da vida vivida de uma maneira “ruim”, com “coração feio” (táku háti). A irrefreável acumulação dos espíritos vingativos e a ignorância dos não maroons a respeito deles faz com que a frase “os kúnu vão quebrar o mundo” (“kúnu o boóko goónlíba”) seja dita em tom algo cataclísmico. Mais grave se lembrarmos que, para os saamaka, os antepassados eram mais poderosos que seus descendentes, sobretudo os que viveram a guerra contra o poder colonial nos sécs. XVII e XVIII, que se valiam de poderosíssimos óbia, muitos dos quais estão adormecidos, ou pior, cujo método de ativação foi esquecido ao longo das gerações.262 Durante os dois anos em que estive indo e vindo a Botopási, ocorreram mais de duas dúzias de mortes de pessoas da aldeia. Por esse motivo, diversas vezes ouvi frases do tipo: “muito mais gente morre hoje em dia”. Adultos diziam que, quando eram mais novos, pessoas jovens não morriam, apenas velhos, quase sempre de causas naturais. Sinal de que menos coisas perigosas ou ruins (hógi) se passavam na aldeia, e que ela já foi melhor protegidas espiritualmente (tapá). “Hoje em dia”, prosseguiu um dos que afirmou isso, “óbia não 'pegam' mais, espíritos não possuem mais as pessoas, não se cuida de divindades importantes.” Culpa em grande parte do desenvolvimento, mas também fruto de uma visão da passagem do tempo como acumulo de perigos, consequências nefastas de ações humanas. Não há espaço para o acaso. Pessoas são as principais fontes do mal; todo erro causa maus frutos, como todo infortúnio é fruto de erros. R. Price chega a afirmar que há obsessão com a causalidade (1975: 36). Tudo ocorre por um motivo e há uma teleologia virtual, um fim terrível para a humanidade, destruída pelo acúmulo de seus erros. Explorei o tema no capítulo 7 como fonte de um problema teológico do cristianismo saamaka: a destruição do mundo pelos kúnu não é muito compatível com o apocalipse bíblico, pois, para os espíritos vingativos, não há perdão. Mesmo os que não pecaram, se é que existem, sofrerão com a vingança dos kúnu que espalha a culpabilidade pelo parentesco. Da mesma forma, a passagem do tempo para os saamaka distingue-se muito da ideia cristã de providência divina. Os desígnios de Deus criador governam o mundo, em última instância é o criador que coloca o mundo em movimento, mas sua intervenção tem algo de imprevisível. “Doenças de Deus” (gádu síki) são aquelas que não têm outro tipo de explicação sociocósmica, “marcas de Deus” (gádu maáka) são sinais de pele não relacionados a nenhum tabu quebrado pelos genitores 262 A perda do conhecimento dos óbia é frequentemente lamentada em Botopási, porém há possibilidade de revelação de novos e velhos compostos por meio de dividades e antepassados, via sonhos, revelações ou oráculos.

403 durante a gravidez ou acontecimentos durante a vida (diferente de cicatrizes ou marcas provocadas por quebras de intervenções). A interveniência de Deus parece estar mais no que é marginal a outras explicações, ele mais permite que outras pessoas ajam do que interfere no mundo. Isso é menos verdade para os saamaka cristãos, especialmente pentecostais, mas mesmo estes têm de encarar o fato de que os kúnu, por outro lado, são completamente ativos, como são os ancestrais e as divindades (mesmo que sejam guiados pelo diabo, na visão pentecostal). Não se trata de providência divina, enfim, porque entre os homens e Deus há espíritos agindo, não como meros intermediários, mas como mediadores que, a partir de vontades, afetam o real. A dimensão volitiva – de vivos e mortos, humanos e não humanos – é peça chave para entender as engrenagens do universo. Desejos e demandas de seres espirituais são comunicados, explicitados, por oráculos, sonhos, possessões e outros meios, ganhando sentido para os vivos. Como afirma Gell (1998: 101), “a magia é possível porque intenções causam o acontecimento de eventos na vizinhança de agentes”. O pensamento mágico “baseia-se na ideia perfeitamente razoável de que a explicação de um dado evento (especialmente se for socialmente saliente) é que ele é causado intencionalmente”. Goldman prolonga a afirmação de Gell, afirmando que, no que tange aos objetos que foram chamados de fetiches, Do mesmo modo que esta não é uma teoria física alternativa ou falsa, mas uma teoria que funciona na ausência de uma teoria física e que tem bases num certo tipo de experiência, o mais interessante do chamado fetichismo não é que seja uma teoria sociológica falsa, mas um saber que funciona na ausência (e não na falta) de uma sociologia — quer dizer, da própria ideia de sociedade. Assim como a noção de causalidade não é propriedade particular da física, a de socialidade certamente não o é da sociologia (2009: 112).

Ou seja: a magia, o fetichismo ou a agência dos kúnu e outros espíritos, como forma de pensar causas e consequências, não remete nem a uma incompreensão da mecânica dos eventos do mundo, nem numa mascaração de motivações sociológicas subjacentes. A afirmação de Gell só faz sentido para o caso saamaka se a vizinhança dos agentes incluir a vizinhança de não humanos. Se assim for, efetivamente a intenção, a vontade de agir sobre o mundo, têm lugar central na maneira como pensam os acontecimentos. E ainda assim, “intenção” deve contemplar também consequências não planejadas dos atos, posto que descuidos e erros de cálculo também podem ser causas de eventos. Consequências são causadas por agências, não são reversíveis e encadeiam-se numa sequência de ações e reações de longo prazo, implicando em relações que dão sentido às perspectivas sobre o passado, presente e futuro.

404 Espaço-tempo da fuga Como demonstra Bilby (1994), a concepção do tempo entre os maroons das Guianas desafia clichês antropológicos acerca de sociedades “tribais” como paradas no tempo, “sem história”. Leituras apressadas da divisão levistraussiana entre “sociedades de tempo quente” e “sociedades de tempo frio” tampouco se encaixariam aqui. A história saamaka nada tem de mítica no sentido de imutável, nem de cíclica, apesar de acomodar ciclos curtos, ecológicos e biográficos. É uma história linear, de antes e depois, na qual eventos carregados de sentido funcionam como motor de mudanças, continuidades e movimentos. A partir dos atos de humanos e não humanos, de vivos e de mortos, linhagens, grupos e pessoas constituem-se no tempo e criam continuidades entre passado, presente e futuro. Mas dizer que o tempo saamaka é linear ainda é pouco. Atos

e

eventos

não

deixam

marcas

corporais

de

consubstancialidade

e

covulnerabilidade. Além disso, povoam o território. Não existe em saamaka tempo que abstraia as relações com o espaço, que não seja ancorado num solo. Os trabalhos cotidianos são marcados por movimentos entre aldeia (centro, gandá) e floresta/roça (lado de trás, bákasë), com as implicações emocionais e sociais que carregam. O tempo dos mortos exige uma união em gandá, mais precisamente num espaço da aldeia tornado central, a casa do morto, e ao mesmo tempo uma locomoção do falecido em direção à terra dos mortos (deodëkoondë), do nascente (sónugo) ao poente (sónúkúmútu). Os movimentos históricos dentro do território saamaka são extremamente complexos, mas grosso modo significam uma primeira fuga em direção a montante (líbasë, sul, o lado de cima) e depois uma possibilidade de reaproximação em direção à jusante (báusë, norte, o lado de baixo). Migrações e visitas temporárias à cidade e a outros países inserem ciclos curtos dentro do eixo norte-sul, se compreendermos que a cidade (fóto) – e além dela os países estrangeiros, em especial a Holanda (bakáakoondë, lit. “terra dos brancos”) – funcionam como um extremo externo de jusante, do mundo “desenvolvido”, fontes do progresso e de muito do que é estrangeiro ao universo maroon. Toda história saamaka é narrada com relação a genealogias e territórios. Os ancestrais são marcados por sua relação com sua prole (e portanto com clãs e matrilinhagens) e ao mesmo tempo pelos locais onde viveram, tiveram roças, encontros com espíritos, conflitos, onde morreram. Junto com fragmentos genealógicos, a toponímia é uma das principais fontes de conhecimento histórico: o ancoradouro de Botopási chamado kabiténi pási (caminho do capitão) tem esse nome porque kabiténi Janie, pai de Siemetie, aportava ali sua canoa, no

405 passado; a antiga aldeia Sofibuka (lit. “boca de Sofi”) tem esse nome porque foi construída na boca do igarapé onde uma mulher chamada Sofi, mãe de Sialoto e sogra de Alabi, morreu leprosa e foi enterrada. Inversamente, os mapas mentais do território saamaka, sua forma de navegação espacial, são todos marcados por eventos, antigos e recentes: para chegar a determinado local onde é bom caçar bugio, é preciso seguir uma trilha até onde tal pessoa tinha uma roça, entrar na mata de helicônias até o pé de inajá que outro homem gostava de colher, atravessar um igarapé que carrega o nome de um ancestral. O espaço é tempo, em saamaka, sua história é movimento. Assim podemos entender porque, além de fósuten (“primeiros tempos”), o passado é chamado em saamaka de fésiten (“tempo da frente”), em oposição a bákaten (“tempo de trás”), o futuro. O saamaka inverte as metáforas especiais mais comuns que descrevem o tempo na maioria das línguas, aquelas que pareiam futuro com “frente” e passado com “trás” – em português falamos do “passado” como “aquilo que já passou”, “o que ficou pra trás” e do futuro como “o porvir”, “o que chegará”. Na imagem espaço-temporal padrão indoeuropeia, o tempo movimenta-se e nossa perspectiva necessariamente presentista acompanha seu deslocamento. A metáfora saamaka parece ser outra: o tempo aqui pode ser pensado como um deslocamento por uma trilha aberta no mato – quem anda na frente primeiro abre caminho para que os de trás possam passar depois. O que reflete a situação da fuga das plantations pelo mato: os grandes ancestrais, que desbravaram a região para fugir da escravidão, vieram na frente, seus descendentes (bákamíi, lit. “crianças de trás”) os seguiram. Reforçando a metáfora, é comum referir-se aos ancestrais como “as pessoas que andaram na frente” (“de sëmbë dí wáka a fési”). Num kuútu funerário que participei, ouvi como argumento contra a implementação de uma novidade a frase “aqui andamos atrás dos velhos” (“a gaánsëmbë báka ú tá wáka akí”), ou seja, fazemos as coisas à maneira dos anciões, dos antigos, dos antepassados. Atos inaugurais, como o de “remover tabus” (púu tjína), são tidos como necessários porque “abrem caminhos” para as pessoas (“jabí pási”). Não pretendo fazer uma afirmação forte sobre a ligação entre linguagem, categorias cognitivas temporais e historia cultural de uma comunidade linguística. Não estou falando da estrutura gramatical, de categorias temporais mais abstratas como tempo verbal, mas de catacreses, metáforas padronizadas, tão absorvidas pela língua que, em geral, nem mais são pensadas como figuras de linguagem, clichês discursivos de uma retórica sedimentada pela história. Para meu argumento fazer sentido enquanto verificação complementar de minha exposição do pensamento saamaka acerca do tempo, basta aceitar a versão fraca da hipótese

406 Sapir-Whorf, isto é, que “línguas diferentes, em virtudes de suas convenções, facilitam padrões de pensamento diferentes, estratégias retóricas diferentes, argumentos e imagens padronizadas diferentes” (Gell 2013 [1992]: 126-7). Os eventos fundantes da história saamaka foram trilhados como uma vereda, o passado dos ancestrais está na frente. A metáfora exige de um observador externo alguma ginástica mental, mas funciona em vários níveis. O futuro, como o que está às nossas costas, não é imediatamente visível, e o passado, como o que está diante de nossos olhos, pode ser visto, i.e., lembrado, contado. Quanto mais à montante um saamaka vai, quanto mais segue o caminho dos antigos, mais distante encontra-se dos brancos, do progresso, do desenvolvimento. Outro par com que os saamaka pensam seu tempo e seu espaço ganha mais sentido quando pensamos que o futuro está atrás (báka): a divisão entre um centro humano (gandá), a aldeia, e um “lado de trás” (bákasë), a selva. A expansão territorial de uma aldeia saamaka ao long o do tempo dá-se em direção à parte de trás: devido ao aumento populacional, a aldeia vai ganhando o espaço da floresta à medida que novas casas vão sendo construídas e uma maior quantidade de roças vai sendo cortada. Bákasë vai virando gandá, a floresta vai sendo domesticada, humanizada, tornada morada de seres humanos. Estabelecer uma aldeia, construí-la, é “cortar uma aldeia” (kóti wán koondë), em referência à derrubada do mato necessária para fazer de uma área que era bákasë em gandá. O futuro comporta um movimento de expensão em direção à “parte de trás”. Da mesma forma, faz sentido que o cemitério seja parte de bákasë, do mundo selvagem: o futuro de todos é a morte e portanto a “parte de trás”, fora da aldeia e do domínio humano. As línguas humanas utilizam metáforas espaciais variadas para referir-se ao tempo, dependendo, por exemplo, se a referência é um tempo que se move ou ego que se move. O que é interessante do saamaka, nas demais línguas crioulas do Suriname e em outros casos raros como Quechua e Aymara é que a referência espacial do tempo “invertida” seja tão comum, seja um padrão para pensar passado e futuro. De toda forma, nenhuma língua possui um único e coerente modelo metafórico do tempo (Nuñez & Sweetser 2006). O mesmo vale para o saamaka, que dispõe de diversas maneiras de encarar o tempo, dependendo da pessoa que fala, do evento a que se refere ou do que a situação propor.263 Num outro sentido, os saamaka encaram o movimento do mundo como indo em direção ao progresso, portanto à frente. A metáfora futuro-anterior/passado-posterior não aparece quando falam de desenvolvimento: aí 263 Bilby (1994: 144-5) oferece várias expressões acerca do tempo em aluku, que permitem entendermos como o tempo pode movimentar-se, ser medido e gasto, dentre outras metáforas.

407 fazem afirmações como “temos que olhar para frente” (“ú lúku gó a fési”); “não podemos ficar para trás” (“wá músu fiká a báka”). Quem está em movimento aqui não são os falantes, os saamaka, mas os tempos (modernos), na sua própria lógica e direção, quase inexorável, que pode ou não ser acompanhada por quem observa. Tempo e história não são simples. Podemos dizer que a fuga dos ancestrais instaura o grande eixo temporal histórico “de trás para frente” que os saamaka seguem para construir sua sociedade, um eixo marcado no espaço, um caminho na mata. Por outro lado, contrapostos a uma sociedade colonial (hoje um Estado nacional), foram obrigados a lidar sempre com um tempo externo e oposto ao seu, “de trás pra frente”, que tenta capturá-los. A relação com os brancos, sobretudo, é o que insere continuamente elementos estrangeiros historicamente salientes, compreendidos como fatores de desenvolvimento (ontwikkeling), isto é, modernização, progresso, sejam escolas, igrejas, tecnologias... Vimos que o desenvolvimento é oposto frequentemente pelos nativos à tradição (traditie), ao “modo como estão acostumados a fazer as coisas” (guwénti fási) ou à cultura enquanto política das diferenças (kulturu). Os líderes e anciões, em posição de ligação direta com os ancestrais, e candidatos eles mesmo a futuros ancestrais, devem colocar-se como defensores dos antigos costumes, ainda que devam estar abertos às mudanças inseridas pelo contato estrangeiro, frequentemente apoiadas pelos “jovens” (kijóo). Uma dicotomia incontornável, tensa, perigosa, pois mudanças envolvem um cálculo de risco, seja a ira dos ancestrais e divindades ou a violência dos choques com o Estado e com o mercado. A história saamaka sempre foi, em seus aspectos políticos e econômicos, construída em contraponto à história do mundo branco, da costa. A escravização os colocou num movimento involuntário e implementou o trabalho forçado; a guerra os pôs em deslocamento pela selva; a paz trouxe uma nova estabilidade e o início de uma reaproximação; o avanço da economia de mercado sobre seus territórios exigiu novas formas de negociação e migração. Economicamente, para os saamaka houve sempre certa dependência do mundo da costa, seja na forma de saques a plantations, de tributos pagos pelo governo colonial ou de trabalhos na indústria da borracha, do ouro, e diversas outras atividades. “A dependência é mesmo péssima, mas nem sempre é o fim da história”, disse Sahlins (1997: 55). Para os saamaka, fugir da sujeição completa foi justamente o que iniciou seu tempo mais propriamente histórico – o que jamais significou independência total, antes instaurou um jogo de autonomia e dependência que inclui a constante apropriação do exterior. Os saamaka sempre estiveram de

408 certa forma acompanhando as mudanças na economia global.264 Se a história saamaka é também uma história da convivência com o mundo externo, a lógica da fuga convive com a lógica da adaptação constante, e hoje do progresso. Convivem em mutualismo obrigatório duas histórias, uma interna aos clãs, outra externa, de certa maneira imposta, como convivem dependência e autonomia econômico-social. São inseparáveis.

Estética e ética da fuga Diferentes movimentos, diferentes espaços e tempos, implicam em maneiras de se relacionar com o ambiente e com pessoas, em tipos de socialidade. Gandá e bákasë, aldeia e floresta apontam para formas díspares de conviver com divindades, mortos, parentes e afins. Líbasë e báusë, montante e jusante, para duas maneiras de encarar a tensão entre a tradição do passado ancestral e o desenvolvimento da sociedade costeira. A cidade (fóto), oposta de uma vez à floresta (mátu) e às aldeias (koondë) indica também maneiras opostas de pensar as relações entre as pessoas, uma caracteristicamente estrangeira (bakáa), outra maroon (busineongë). Porém, as fronteiras entre tais pares não podem ser reificadas: penso-as antes como eixos do que como oposições dicotômicas (cf. Cunha [no prelo]). As populações afro-americanas, ao encarar seus passados, tem de lidam com um corte temporal, começo ou recomeço. Através do Novo Mundo, quando pessoas de ascendência africana olham para trás, confrontam-se com um particular divisor de águas, um “teto” temporal, um claro e abrupto “início” de um tipo que outros americanos não compartilham. Deslocação cataclísmica, transporte forçado para um novo continente e escravização combinam-se para formar um ponto de referência inicial bem definido, contra o qual eventos subsequentes e o presente podem ser vistos e interpretados. (Bilby 1994: 158)

Isso não quer dizer que suas histórias, tempos e socialidades existam única e exclusivamente em função de imposições externas. Nem mesmo em seus princípios. A etnogênese, argumentam autores como Graeber (2004: 55), pode ser entendida como projeto político: um grupo constitui-se como unidade a partir de ideias e desejos compartilhados – de escapar de um certo tipo de dominação, por exemplo. Clastres (2003 [1973]) foi o antropólogo que mais claramente propôs princípios políticos como base da existência de uma sociedade, colocando-as à frente de fatores econômicos de produção ou circulação para a composição das formas sociais. No caso dos maroons a afirmação torna-se um truísmo. Dizer que o modo de vida saamaka formou-se a partir da resistência à dominação exercida pelo

264 Acerca do desenvolvimento econômico e da relação da dialética entre dependência econômica e autonomia política com a costa, ver R. Price 1996 [1973]: 293-7, 1990: passim; van der Elst 1975: 200-211; de Groot 1969, 2009 [1975]: 163-173; Thoden van Velzen & van Wetering 1982, 1983; Bilby 1990.

409 Estado colonial é apenas óbvio. Porém, faz sentido investigar de que forma exatamente essa resistência expressa-se na maneira como vivem atualmente. Sobre o teombë (arte em madeira dos maroons), Bona (2009) fala em uma “estética da fuga”, que não poder ser considerada “primitiva” ou “primeira” por inscrever-se numa relação com a modernidade: desde sua emergência no séc. XIX, essa arte usa ferramentas ocidentais, dialoga com o mundo moderno. S. Price (1993 [1984], 2000 [1991]) e Price & Price (1992, 2005 [1999]) insistem no dinamismo da arte saamaka, suas preocupações com novidades e autoria, para rejeitar divisões simplistas entre arte “primitiva” e “civilizada”, a primeira supostamente marcada pela repetição coletiva de formas tradicionais e a segunda pelas inovações particulares trazidas por artistas individuais. O termo que usam para tal dinâmica é the changing same (“o mesmo mutante”), que implica uma permanência não de formas, mas da lógica e da estética (africanas) que guiam as mudanças. Há paralelismo entre a arte sempre em mutação dos maroons e sua história, que busca autonomia ao mesmo tempo em que muda contra o pano de fundo do mundo dos brancos. Nada surpreendente quando entendemos que ética e estética vão sempre juntas: Sim, a constituição dos modos de existência ou dos estilos de vida não é somente estética, é o que Foucault chama de ética, por oposição à moral. A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo- as a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função dos modos de existência que isso implica. Dizemos isto, fazemos aquilo: que modos de existência isto implica? Há coisas que só se pode fazer ou dizer levado por uma baixeza de alma, uma vida rancorosa ou por vingança contra a vida. Às vezes basta um gesto ou uma palavra. São os estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro (Deleuze 1992 [1986]: 125-6).

Nesse sentido, a proposta stratherniana da estética enquanto apreciação de formas apropriadas de apresentação e ocultação de pessoas e coisas ganha ainda mais força: as performances saamaka de criação artística, de troca, de exercício da autoridade, de relacionamentos, expressam ou eliciam uma forma de viver que lhes são próprias. No tema em questão, apresentam e ocultam a seu modo suas continuidades e descontinuidades com o mundo estrangeiro. Isso é verdade em sua arte, profundamente afetada por formas e técnicas estrangeiras, mas ao mesmo tempo dotada de uma criatividade e uma lógica de mudança próprias, que a faz única (se a lógica subjacente é ou não africana, isso é outro problema). Também é verdade em suas formas de encarar o tempo, a morte, as mudanças e, assim, a política, interna e externa às aldeias. A fuga, evento fundador dessa sociedade, parece ser um tema central, uma das lógicas éticas e estéticas que guiam os saamaka. Se as linhas curvas e convolutas dos entalhes em madeira maroon remetem ao ritmo da fuga, como quer Bona, esse não é o ponto aqui. Quero pensar na fuga como variações de um tema. Lembremos que

410 os clãs, mais altas divisões de sua morfologia social, são baseados em grupos de fugitivos de plantations específicas. Que os deslocamentos forçados pela situação de guerra levaram à atual repartição do território entre clãs. E principalmente que a recusa ideológica da dominação está na base de seu pensamento político. É preciso deixar claro que não enxergo o tema da fuga como o único relevante para pensar os maroons. Todos eles sabem que hoje não estão mais em guerra, que existem outras formas de relacionar-se com o mundo estrangeiro. Porém, quando veem seu território ameaçado, não hesitam em dizer que, se necessário, entrarão em guerra de novo, como ocorreu nos anos 1980. Um dos principais ensinamentos das histórias dos primeiros tempos é que “aqueles tempos voltarão”, afirma R. Price (2002 [1983]). A liberdade, sabem os saamaka, é sempre provisória, necessita de resistência constante.

Um Estado dentro de um Estado? Volto a temas para os quais acenei no capítulo 1 sobre a organização política saamaka. Diferente da imagem pintada pelos Europeus desde o séc. XVI acerca das sociedades ameríndias – que os “chefes” não possuem poder sobre as tribos, que ali ninguém mandava e ninguém obedecia – as sociedades maroons das Guianas foram insistentemente descritas como “Estados dentro de um Estado” (“a state within a state”). A afirmação é dupla: fala sobre a posição que os grupos maroons ocupam em relação ao Estado que os cerca e sobre uma possível replicação de formas de poder estatais dentro de seus limites. É preciso entender o que pode significar esse “dentro” e esse “Estado”. Quando antropólogos e historiadores valeram-se da expressão, pareciam estar mais preocupados com o primeiro ponto, acerca do qual as posições variam: maroons seriam semi-isolados, periféricos, dependentes, minorias étnicas... (Köbben 1968: 57, 1969b: 127; Green 1977b: 107; de Groot 2009 [1985]: 182; Scholtens 1994; Parris 2004; Hoogbergen & Thoden van Velzen 2011; Thoden van Velzen & van Wetering 2013). Resta um vácuo para compreender porque exatamente as organizações políticas e sociais maroons poderiam ser descritas como “Estados”. Green, na mesma página em que afirma que os matawai formam um “Estado dentro de um Estado”, descreve-os também como “uma sociedade simples, sem Estado [stateless]”. Os autores tomam a expressão sem problematizá-la, a fim de apontar para o relativo isolamento dos grupos maroons do Suriname, um dos temas recorrentes na literatura sobre estes povos.265 265 A expressão é usada para descrever os maroons ao menos desde 1918 (cf. Kambel & McKay 1999: 68) e já foi aplicada também a grupos ameríndios no Suriname, como os Trio (Carlin 1998: 6). Em outro espaço, seria interessante empreender uma arqueologia dos usos dessa expressão, bem como das posições teóricas

411 Se os grupos maroons foram descritos, mesmo que irrefletidamente, como Estados, fica implícito na afirmação que se aproximariam, de alguma forma, de uma ou mais das seguintes formas de organização política: monarquias africanas das quais seus antepassados teriam feito parte; o Estado colonial contra o qual lutaram; e os Estados nacionais (francês e surinamês) para os quais seus descendentes são hoje considerados cidadãos. R. Price oscila, ora afirmando, como vimos, que as autoridades coloniais foram inspirações relevantes para a caracterização das figuras de liderança maroon (R. Price 1996 [1973]: 20); ora que “seria um erro assumir que esses cargos políticos foram largamente impostos de fora”, pois a política formal saamaka “existe desde os tempos das fugas, baseada firmemente em modelos africanos de liderança, [aos quais] o tratado apenas acresceu uma medida extra de autoridade”, o que seria demonstrado pelas características sagradas da autoridade dos gaamá e kabiténi (idem 1990: 314-5). A oscilação é coerente com a teoria da crioulização (Mintz & Price 2003 [1992]), e com a visão de Price & Price (2005 [1999]) acerca da arte maroon: as formas atuais seriam resultado da história no novo mundo, mas sua lógica de transformação seria regida por uma gramática africana. Pakosie (1996), antropólogo ndyuka, posiciona-se de maneira similar, afirma que o poder de seu líder supremo tem origem em última instância divina, sua autoridade teria sido apenas corroborada pelo Estado colonial e hoje seria ameaçada pelo Estado pós-colonial.266 Eu acrescentaria que atualmente os Estados nacionais tornam-se parâmetros aos quais a ideia maroon de poder é comparada, o que aparece em Botopási pela presença de figuras como secretários e tesoureiros no conselho da aldeia, e pelo fato do mesmo reunir-se num “Centro Político-Administrativo” (Beleids- en Bestuurcentrum). Eventualmente, meus interlocutores, descontentes com os caminhos tomados por alguns kabiténi ou pelo gaamá, afirmam que deveriam adotar um sistema de votos para a escolha de seus líderes. A bandeira surinamesa é hasteada e o hino nacional, Opo Kondreman, é cantado em situações oficiais na aldeia, como reuniões anuais e feriados. Certamente, aquilo que Trouillot (2001) chama de “efeitos de Estado” aparecem na ética e na estética de apresentação da autoridade em saamaka. Não há porque duvidar que todas as três fontes (e suas variações) tenham contribuído para a filosofia política saamaka. Com relação aos modelos africanos de liderança, minha falta de conhecimento da literatura histórica impede que eu me posicione sobre seu peso. Minha desenvolvidas em torno dela. 266 Especialmente depois da guerra civil (1986-1992) que largamente rearranja as relações dos maroons com Paramaribo e com a Guiana Francesa (cf. Cunha [no prelo]). Para os saamaka, outro marcador importante foi a inundação de parte de seu território pelo lago de uma hidrelétrica em 1964.

412 intenção é falar sobre os dois outros modelos de Estado: entendo que são mais um fundo contra o qual os saamaka pensam-se do que de fato inspirações diretas ou mesmo imposições externas à sua organização política. Sigo a definição de Deleuze & Guattari (1996 [1980]; 1997 [1980]), que falam sobre o Estado como uma forma abstrata de organizar o poder não plenamente identificada com suas realizações concretas particulares. O Estado é uma máquina que cria ressonância entre os centros de poder, codificando, através de múltiplas instituições, as formas de dominação territorializadas, tornando-as referentes a um ponto único e último. O Estado torna duras as regras e segmentaridades e flexíveis, é um aparelho de captura. Nesse sentido, a estrutura da autoridade em saamaka expressa tudo menos um “Estado dentro de um Estado”. Pelo contrário, constitui-se de modo a esconjurar a forma Estado, apesar de em momentos flertar com ela. Nada mais oposto a um aparelho de captura, no fim das contas, do que uma congregação de descendentes de fugitivos. Herskovits & Herskovits expõem uma visão interessante sobre os princípios que guiam as instâncias políticas saamaka: No núcleo desta palavra [kuútu] encontramos duas ideias. Uma era a necessidade de direção. “Quando o barco não tem timoneiro, dorme quietamente,” estas pessoas dizem de uma aldeia cujo chefe está morto. Direção, autoridade, foram seus legados da África. Seus ancestrais conheceram o governo de dinastias, e o poder dos homens que reinaram. Mas havia também a importância da discussão livre, a necessidade de fundir a autoridade com a vontade daqueles sobre as quais ela é exercida. […] a experiência da escravidão sob o homem branco foi o calvário no qual o domínio do homem pelo homem e a obediência incondicional que homens deviam àqueles de posição mais alta foram destruídas, restando apenas a ideia de homens livres. Um “man nengere,” um negro adulto, era acima de tudo um homem livre, e era como um homem livre que ele era governado, pois apesar de subordinado a chefes, e apesar de acima dos líderes de aldeias haver líderes de clãs, e sobre eles todos o Granman, contudo a última palavra repousava nos membros de cada corpo subsidiário, e não em seu líder (1971 [1934]: 189-90).267

Apesar da caracterização apontar para uma visão talvez liberal demais desses “homens livres”, podemos seguir a ideia de que o ideal de liderança em saamaka conjuga o respeito pela autoridade com a rejeição à dominação. Neste sentido, a liderança em saamaka parece aproximar-se mais da “questão da chefia nas sociedades primitivas” descrita por Clastres. O atributo essencial dos chefes, nestas sociedades contra o Estado, não é o de exercer poder sobre a comunidade. Que faz um chefe sem poder? Essencialmente, compete-lhe assumir a vontade da sociedade de mostrar-se como uma totalidade una, isto é, assumir o esforço concentrado, deliberado, da comunidade, com vistas a 267 Man nengre (lit. “homem negro”) significa “homem de verdade”, mas a expressão é sranan, sua versão em saamaka seria wómi neongë. Frances e Melville Herskovits ficaram menos de dois meses em território saamaka e certamente não aprenderam a língua. Seus contatos e intérpretes ensinaram-lhes muito em sranan, daí muitas expressões “nativas” em Rebel Destiny estarem no crioulo da capital. Price & Price (2003), baseados nos diários de Melville, exploram questões relativas à curta experiência dos Herskovits no Suriname e à sua aparentemente paradoxal influência vasta no campo dos estudos afro-americanos. Acredito que, apesar de seus problemas, o trabalho pioneiro do casal de antropólogos nos anos 1920 ainda é bastante relevante, traz insights interessantes.

413 afirmar sua especificidade, sua autonomia, sua independência em relação às outras comunidades. […] o líder primitivo é principalmente o homem que fala em nome da sociedade quando circunstâncias e acontecimentos a relacionam com os outros. O líder primitivo nunca toma as decisões em seu nome, para depois impô-las à comunidade […]. Na verdade, ele dispõe apenas de um direito, ou melhor, de um dever de porta-voz […].” (Clastres 2011 [1976]: 139-140)

Isso opera, em saamaka, de forma segmentar: o kabiténi assume o esforço de marcar a autonomia de sua aldeia em relação a outras; o hédi kabiténi de afirmar a especificidade de sua área do rio ou clã em relação às demais; o gaamá de afirmar a independência da totalidade dos saamaka em relação aos outros povos do Suriname e ao Estado. Mas as unidades não se organizam de forma concêntrica, centralizando nos graus mais altos da hierarquia os poderes de decisão e sobrecodificação sobre estratos inferiores. As regras nunca deixam de ser facultativas, nunca se tornam decretos, leis. O que não quer dizer que não haja poder. Existem já nas sociedades primitivas tantos centros de poder quanto nas sociedades com Estado; ou, se preferirmos, existem ainda nas sociedades com Estado tantos centros de poder quanto nas primitivas. Mas as sociedades com Estado se comportam como aparelhos de ressonância, elas organizam a ressonância, enquanto que as primitivas as inibem (Deleuze & Guattari 1996 [1980]: 87).

Fica clara, pela maneira como encaram a autoridade do gaamá e de seus capitães, a ausência de um aparelho de captura estatal. Os centros do poder estão espalhados, a capacidade de definição das regras, da moral, das situações, pulverizam-se pela trama social, ainda que tendam a concentrar-se mais em certos polos do que em outros – mais no gaamá e nos kabiténi do que naqueles que não possuem cargos; mais nos anciões do que nos jovens; mais nos homens do que nas mulheres, etc. Tais tendências, porém, amiúde invertem-se em situações concretas: quem é reconhecido como óbiama poderoso pode contestar a autoridade de um kabiténi; jovens são “autoridades” em questões que envolvem “progresso” e “desenvolvimento”; mulheres parecem ter mais voz ativa em assuntos como a criação de filhos do que homens. Seria simplesmente incorreto tratar a posição do gaamá como hegemônica, mesmo que seja chamado na literatura de “líder supremo” (paramount leader). O mesmo vale para a gerontocracia e o patriarcalismo. Nas relações internas, os líderes saamaka, como os chefes descritos por Clastres, são ouvidos por ter prestígio. A atenção que é dada às suas palavras “nunca chega ao ponto de deixá-la transformar-se em voz de comando, em discurso de poder”. Eles não mandam, apenas regulam conflitos internos tentando apaziguá-los “apelando para o bom senso, para os bons sentimentos, para a tradição de bom entendimento legada […] pelos antepassados”. Não partem de uma lei ausente da qual seriam órgãos, não sancionam relações de comando obediência, apenas reforçam “o discurso da própria sociedade sobre ela mesma, discurso por meio do qual ela se autoproclama comunidade indivisa e vontade de perseverar nesse ser indiviso” (2011 [1976]: 140-1). Aqui, o poder da fala é também o dever da fala, a arte ética da

414 retórica domina as palavras não para ordenar, mas para aconselhar, comunicar, unir (Clastres 2003 [1973]). Um kabiténi com prestígio é aquele que sabe falar bem em kuútu, sua capacidade de agência política é medida pelo potencial de sua fala surtir efeito. Diz-se de um hédi kabiténi influente em determinada aldeia que ele “pode falar lá” (“a sa táki deo”). Uma figura de autoridade pode ser chamada de tákima (“pessoa da fala”). O prestígio, diferente do poder, é revogável. Mesmo que o cargo de um kabiténi seja vitalício, que ele jamais perca a sua posição, pode perder seu prestígio e suas palavras passam a ser efetivamente ignoradas pela comunidade. As tribos maroons não são Estados dentro de Estados, pois seus líderes não operam pela violência e da sobrecodificação, mas pela retórica e pelo respeito, o que permite mais amplamente reações e fugas. Líderes saamaka são “pessoas da fala” (tákima), “cabeças” (hédima), “pessoas da frente” (fésima), “guias” (tiíma). Não sem motivo, devem estar presentes nas cerimônias funerárias, mesmo quando seu papel é secundário (como no momento de repartir uma herança, púu lái a dooö). Em questões oficiais, nenhum grupo faz nada sozinho. A presença de um kabiténi representa a interdependência da aldeia e do clã, um desejo de união incorporado na figura de um guia – como antepassados guiaram aqueles que os acompanharam na fuga pela floresta. Sua presença portanto traz de volta a complexa maneira com que a hierarquia saamaka marca a simultânea identidade e distinção entre lánti (o conselho da aldeia) e lánti (a população em geral). Ao estarem presentes, capitães marcam simultaneamente os avais da estrutura hierárquica e do povo. Um de meus principais informantes, que não tinha cargo oficial, disse que não era sua obrigação ir ao enterro do gaamá Belfon, quem deveria mesmo ir eram os kabiténi e basiá, “pois o gaamá é o líder deles”. O gaamá, nesse sentido, é visto como líder de uma organização na qual pessoas sem cargo oficial não estão incluídas. Porém, o “líder supremo” é também referido com frequência por saamaka sem cargos oficiais como “nosso líder” (gaamá fuú). Ao englobar seu contrário a hierarquia oficial saamaka cria uma categoria à parte do conjunto total das pessoas, mas que não deixa de ser parte do mesmo conjunto. Isso contribui para que os segmentos não criem ressonância entre si: a estrutura arborescente dos cargos oficiais é paralela interna e externamente aos grupos que “representa”. Os kabiténi não têm mais poder decisório que os anciões das linhagens, digamos. Apenas agem como guias, ajudando a organizar, dar sentido unificado às múltiplas posições externas e internas à aldeia (de jovens, mulheres, estrangeiros, etc). Assim compreendemos a frase “não há funerais sem discussões” em saamaka. De fato, não há quase nenhuma prática relevante levada a cabo sem discussões acerca das maneiras

415 apropriadas de se fazer as coisas. Uma reversão do clichê propagado acerca da chefia ameríndia: se entre os índios ninguém mandava e ninguém obedecia, entre os maroons todo mundo “coloca regras” para todo mundo, o que significa que “obediência” pura e simples não existe. Mais do que as formas específicas dos atos rituais, as discussões, dentro e fora da estética cerimonializada dos kuútu, dão o tom dos funerais saamaka (cristãos e não cristãos). Indicam que as regras (weoti) são facultativas, implicam não uma moral do certo ou do errado, mas um cálculo dos efeitos e riscos que seguir ou não um determinado costume ou decisão têm sobre a vida das pessoas. A tradição é levada muito a sério, posto que nela se encarnam as maneiras já testadas de agência segura; simultaneamente a liberdade é um princípio cardinal, que implica que cada pessoa esforça-se para definir a situação (e os sentidos da tradição) à sua maneira. Cada pessoa vai onde pode, tem o direito de fugir do controle das demais. Se os ancestrais saamaka tivessem seguido as regras que lhes foram impostas, não teriam fugido, seu povo jamais teria existido. Os ancestrais inauguraram um modo de viver que se movimentava num espaço-tempo abrindo o caminho do passado para que seus descendentes pudessem mover-se livremente atrás de seus guias (o que não quer dizer, é claro, que a trilha dos ancestrais deve ser seguida pari passu, há liberdade também frente os mortos). Fundaram uma hierarquia política que se estende para o futuro pela via do parentesco e da organização clânica segmentar. Baseada em regras facultativas, tal hierarquia não segue a forma Estado. Sem centralização real do poder, sem monopólio da violência legítima, sem polícia, sem leis escritas, o que resta é um “sistema jurídico” ou uma “democracia aldeã” que trata de conselhos, consenso e manejo de riscos. Ela aproxima-se mais do que Clastres chamou de “sociedade contra o Estado”. Seria mais preciso dizer que são “sociedades contra um Estado”. Toma como referência atualizações específicas da forma Estado, ao invés de negar a forma virtual da centralização do poder de mando. Constrói-se como contraponto ao Estado escravista colonial, como uma linha de fuga a ele.

Resistências e incorporações Fuga significa resistência, o que nos leva de volta aos kúnu. Os saamaka temem a ação destrutiva dos mortos e, frente a tal perigo, esforçam-se para respondê-lo com união, ajuda mútua, reciprocidade, solidariedade, amor. A união em alguns casos é constitutiva: os neoséki compõem as pessoas criando laços entre a criança e parentes mortos. Em outros, parece ser uma reação: nas trocas em frente à casa de um morto, na união da linhagem contra a agência dos kúnu. A ideia de kúnu é particularmente importante porque demonstra que muito do que

416 faz os grupos saamaka agregarem-se é um agente externo e violento. Muito parecido com aquilo que fez os grupos espalhados de fugitivos agregarem-se em congregações (tribos) para protegerem-se mutuamente: a resistência contra um agente externo e violento, os brancos escravistas e seu braço armado, o poderio militar colonial. Resistência não significa exatamente reação, no sentido de uma resposta a uma agência anterior. Dentro da filosofia na qual me baseio, a resistência é primeira (Deleuze 2005 [1986]: 96). A percepção, o desejo e a atitude de resistir às forças destrutivas, aos perigos do mundo, vêm antes da concretização destas forças. Como contra os espíritos vingativos: a matrilinhagem tem de unir-se para aplacar a fúria de cada ataque dos espíritos vingativos, mas primordial é a união que devem ter para que os kúnu não venham a ser criados. Assim, dizer que hierarquias, cargos políticos e unidades sociais saamaka se fazem “contra um Estado” não significa dizer que são dependentes dele, que sejam reproduções pela negativa do mundo branco, da costa. O desejo de fugir, de resistir, já existia virtualmente antes mesmo da captura. A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem o que é isso. É claro que eles fogem como todo mundo, mas eles pensam que fugir é sair do mundo, […] ou então alguma coisa covarde, porque se escapa dos engajamentos e das responsabilidades. Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. […] Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. (Deleuze & Parnet 1998 [1996]: 49).

A desterritorialização que põe em movimento os maroons cria um novo território, nas matas. Criam corpos (pessoas e grupos) compostos de múltiplas linhas e linhagens extensas pelo espaço-tempo, múltiplas relações, de guerra e aliança, com pessoas, divindades, mortos. Mas os corpos nunca são totalmente indivisos, uniformes ou fechados. Constantemente incorporam elementos externos, ativa e reativamente. Os saamaka sempre souberam que, para viver no Alto Suriname, precisam apropriar-se do que é estrangeiro. Fogem, porém, da definição estrangeira acerca do significado desses elementos. Assim compreendo as afirmações de Olívia Cunha sobre a forma que os ndyuka de Moengo mobilizam as ruínas da máquina imperial de lógica predatória em meio das quais vivem, uma antiga bauxite town estadunidense construída em seu território tradicional: Não há oposição radical entre o modelo geométrico, disciplinar e colonial de Moengo e as configuração espaçotemporais do lugar onde espíritos, parentes, não-afins e outros agentes dialogam entre si. De fato, mitos sobre a existência da aldeia [anterior à fundação da cidade] ou de um kampu [habitação temporária] ocupado por uma família nuclear mobilizam, antes de ignorarem, a presença dos bakaa e suas máquinas, trabalhando como uma força de atração e, simultaneamente, sujeita às sanções dos espíritos locais. Esta não-oposição, na qual o projeto industrial que territorializa as forças do império e do capitalismo encontra-se em relação próxima com a paisagem já ocupada por todo tipo de agências humanas e nãohumanas, problematiza interpretações que tomam o primeiro como historicamente “moderno” e as últimas como culturalmente ‘tradicionais.’ ([no prelo])

Não há oposição radical entre tradicional e moderno, há variação contínua entre polos, os modos de vida apresentados por um mundo branco, ocidental (que exige separação entre

417 “tradição” e “modernidade”) e um mundo dos ancestrais (no qual a separação é mais entre aliados e inimigos). Movimento de fuga e incorporação. Os saamaka fogem não apenas das capturas da máquina estatal, eles também fogem das imposições que ora são feitas pelos seus kabiténi e anciões, fogem das regras e decisões que lhes pareçam duras demais. E incorporam tanto elementos vindos do mundo “desenvolvido” (redefinindo-os) quanto substâncias do passado ancestral. Parte crucial do que faz de um líder saamaka uma voz ativa na comunidade é o fato de carregarem cetros nos quais estão presentes os mortos que ocuparam seu cargo. São portadores de uma tradição à qual defendem. As almas no cetro encapsulam o passado, os feitos dos homens que carregaram o mesmo objeto, como, por sua vez, esses homens encapsulavam o povo (lánti) que guiavam. Sendo de uma vez “representantes” dos vivos e “corporificações” dos mortos, a autoridade dos kabiténi, a tradição que defendem, presentificam o passado ancestral. Por outro lado, os cetros são feitos na costa, e trazem brasões da colônia holandesa ou do Estado surinamês, o que é bastante relevante. Os saamaka ora referem-se ao posto de seu líder supremo como “nosso gaamá” (gaamá fuú”), ora como “o gaamá que nos deram” (“dí gaamá dí de dá u”). Isso expressa não exatamente origem externa, mas o fato de que mesmo as materializações mais sagradas de seu passado também absorvem elementos externos, não saamaka: o poder do Estado colonial e nacional, por exemplo, mas apenas quando dobram-se à potência do desejo de liberdade saamaka e concede-os a possibilidade de serem livres para definir seu próprio caminho. Voltemo-nos para os objetos trocados cerimonialmente. Como vimos, os mais relevantes são bens importados, rum e tecidos. Seguindo Strathern, chamei de eclipsamento a forma como as relações de produção e distribuição neles encapsuladas obscurecem sua origem estrangeira e enfatizam os laços internos ao mundo saamaka que devem ser reforçados no momento tenso da morte. Escolhi eclipsamento ao invés de alienação porque não há qualquer ilusão provocada por ideologia: os saamaka jamais se enganam sobre a origem estrangeira da matéria que trocam. Em sua relação com os estrangeiros, jamais são inocentes. Ao contrário, tendem ao cinismo, à desconfiança. Sabem que dependem, para viver como vivem, da economia da costa. Mas o que está em jogo ao pagar óbia, casamentos, serviços funerários e outros com tecidos e rum são as relações locais, o elemento externo é apenas uma forna de por a riqueza externa a serviço dessas relações. Também na estética e ética da política, os saamaka habilmente manipulam presenças e ocultações dos “efeitos de Estado” sobre suas formas de autoridade, muitas vezes valendo-se de insígnias militares, de imagens

418 nacionalistas, da posição de cidadão. Porém, a forma como instanciam a relação entre poder de decisão (via uso da palavra) e conhecimento (histórico, espiritual, etc.) não permitem que suas relações sejam subsumidas pela forma estatal.

Alianças com igrejas Ao abordar a filosofia política saamaka, desviei-me do tema com o qual iniciei a conclusão, o tempo. A digressão foi necessária para compreender as transformações que afetam o Alto Suriname a partir dos princípios éticos que guiam os saamaka na incorporação de elementos externos – em particular, o cristianismo. Como afirmei ao longo dos capítulos, a maneira como cada aldeia, cada família e cada pessoa lida com as igrejas varia imensamente. Parece-me interessante, então, encerrar com esse tema, pois assim fugimos um pouco da ficção que existe uma maneira saamaka de fazer as coisas. Ficção útil para a fluência do texto, no nível de abstração que adotei ao longo desta conclusão, mas que não deve ser compreendida como outra coisa além de uma tentativa de modelo etnográfico que elaborei a partir dar variações que enxerguei em campo. Do ponto de vista de quem está vivo hoje, um evento ocorreu em Sofibuka, há cerca de 120 anos: Anake foi possuído por um espírito. O espírito, na opinião de muitos, foi mandado diretamente por Deus, mas não veio sem apontar para eventos que lhe antecederam: Alabi fora batizado por missionários alemães; parte do clã Awána (com que os Dómbi de Sofibuka tinham relações íntimas) convertera-se ao cristianismo; Boobi pariu Anake após ter ido buscar com seu marido Akodi, na terra dos ndyuka, um óbia que se tornou neoséki da criança. Toda uma série de relações com clãs, linhagens, povos centrada naquele evento. A partir dele, reações diversas fizeram surgir posições distintas frente ao médium e seu espírito. Seria um espírito enganador? Seria o Espírto Santo, do qual falavam os brancos da igreja? Seria um espírito de boa índole com o qual Anake não soube relacionar-se, quando o poder subiu à sua cabeça? As consequências do evento foram de longo prazo, têm reverberações fortes até hoje, a mais saliente das quais foi a fissão de Sofibuka. As reações à possessão de Anake levaram ao estabelecimento de três aldeias – Botopási, Futunaákaba e Pikísééi – cada qual com suas tradições acrescidas aos costumes Dómbi de 120 anos atrás, cada qual com suas definições sobre como relacionar-se com o cristianismo. Cada aldeia saamaka, ainda que múltipla, esforça-se em tornar visível um relativo consenso acerca de sua história e tradições. Se a etnogênese é fruto de um projeto político, a fissão de Sofibuka demonstra que, também num nível segmentar, uma mesma etnia, povo ou

419 clã pode comportar diferentes projetos cosmopolíticos, diferentes definições acerca como se aliar a entes e forças que compõem o mundo. Como quaisquer projetos políticos, mudam ao longo do tempo, são constantemente reavaliados. Onde se instalou, o cristianismo é visto pelos nativos como uma adição a um “modo de fazer as coisas” (fási) previamente existente. Isto não quer dizer que o impacto do cristianismo se limite às aldeias cristãs. Mesmo onde rejeitaram com afinco o cristianismo, tiveram de lidar com a conversão de Alabi, que afinal chegou a ser gaamá; tiveram de lidar com novas formas de pensar o Deus criador, o pecado, o perdão, a hierarquia religiosa. A rejeição completa pode ser uma resposta ao cristianismo, mas ignorar sua existência não. Estudar uma aldeia não cristã negligenciando o fato de que há cristãos no Alto Suriname seria criar uma ficção enganadora de “isolamento religioso”. Nem mesmo autores que passaram ao largo do cristianismo, como Hurault, deixaram de notar que os maroons tinham de se ver com o pensamento cristão. Falando sobre os aluku no final da década de 1950, nota que os ensinamentos cristãos na escola colocavam “magia branca” e “magia negra” no mesmo plano, “mas isso não alterou sua representação do mundo. […] os negros refugiados consideram-se homens puros, animados por princípios morais superiores aos dos cristãos, que em geral enxergam como perversos e suspeitos de feitiçaria” (1970: 35). Impactos do cristianismo aparecem em toda literatura histórica e etnográfica sobre os maroons das Guianas. Van Renselaar & Voorhoeve (1962) e de Beet & Thoden van Velzen (1977) apresentam diversos exemplos de movimentos proféticos entre os maroons, muitos dos quais não tiveram sucesso. Neles, a influência do cristianismo toma várias formas: alguns propuseram o abandono de divindades e óbia (como num caso fracassado em Heikúun, em 1891); em outros, altares para espíritos pareados com o Deus criador continham bandeiras para Jesus Cristo, mas não se filiavam ao cristianismo dos brancos (em Katjoe, 1843); Anake, como vimos, criou sua próprias formas de cristianismo, mantendo contato com os moravianos, enquanto Johannes King, após suas visões do inferno, tornou-se um missionário protestante. Dubelaar & Pakosie (1988) enxergam na escrita Afaka (um alfabeto recebido de espíritos por um ndyuka nos anos 1910) ligações com o catolicismo então pregado pelo missionário Morssink no Tapanahoni. Quanto ao culto de Gaan Tata, também é possível notar aproximações com o cristianismo em suas tendências monoteístas e em seu foco no exame de consciência. O que não quer dizer que o monoteísmo cristão seja um componente definidor de sua teologia, é possível mesmo que se trate de uma negação daquele. De toda forma, os ndyuka no século XIX tinham de lidar com o imaginário cristão, à medida que a distância

420 com o mundo bakáa tornava-se menor. Thoden van Velzen & van Wetering não negam as aproximações, porém postulam cautela: Tais noções teológicas cheiram a cristianismo. Apesar de muitos poucos missionários terem visitado o Tapanahoni durante o séc. XIX, os ndyuka eram bem familiarizados com ideias cristãs. Mas devemos ser cuidadosos ao atribuir “exames de consciência” e ideias relacionadas aos ensinamentos de missionários. […] pediríamos precaução contra a aceitação de correspondências superficiais entre ideias maroons e a teologia judaico-cristã como provas de origens sincréticas (1983: 134n11).

Mesmo em casos menos excepcionais que movimentos religiosos reformadores, imagens cristãs aparecem entre os maroons. Mesmo os ndyuka tendo, de acordo com a literatura, resistido fortemente ao proselitismo missionário, expedições de 1761 entre eles já descrevem óbiama invocando, entre as divindades, Adão e Eva (de Groot 2009 [1986]: 94). O óbiama saamaka não cristão Tooy, também reza para Jesus, Maria, Adão e Eva, e além disso afirma que Moisés teria sido o primeiro detentor do poderoso óbia Dúnguláli, de quem hoje é médium. Moisés teria usado Dúnguláli para partir o mar; e, depois de morrer, teria virado um wénti (R. Price 2008: 276-8). Na década de 1980, de acordo com Bilby (1990: 338) 15% dos aluku habitantes de St. Laurent frequentavam igrejas cristãs. Tampouco este povo passou incólume ao cristianismo. Além de números expressivos de saamaka, ndyuka e aluku, três das seis tribos maroons converteram-se em massa ao cristianismo: kwinti, paamaka e matawai. Segundo a literatura, os motivos variaram. A riqueza, o poder dos brancos e portanto de seu Deus, sem dúvida eram apelos para que maroons aceitassem pregações dos missionários (Thoden van Velzen & van Wetering 1988: 125-6). A oportunidade de serem alfabetizados certamente influiu (R. Price 1990: 68). Para os paamaka, de acordo com Lenoir (1975), a conversão teria significado o reconhecimento frente ao Estado de sua independência em relação aos ndyuka, que até então os mantinham sob uma espécie de vassalagem. De modo geral, as conversões significaram não a adoção completa do modo de vida dos brancos e da costa, mas um engajamento com uma face desse mundo. O vetor é de fora para dentro dos limites tribais, mas o que significa esse “fora” e esse “dentro” não é tão óbvio. Desde o séc. XVIII, os missionários alemães, em seu proselitismo e em sua incapacidade de compreender o modo de vida saamaka, divulgavam um Deus branco, estrangeiro e com ele uma moral europeia (cf . Veernooij 2009). Simultaneamente, os holandeses esforçavam-se para “pacificar” os maroons, aproximando-se de lideranças menos beligerantes, dando-lhes presentes importados para posteriormente tentar integrá-los à economia colonial como trabalhadores de baixa renda. Na maioria dos casos, tais tentativas surtiram efeitos apenas indiretamente, por meio de profetas, cultos, missionários e evangelizadores maroons. Foi o que ocorreu com o clã Dómbi. O

421 missionário moraviano da época de Anake era Izaak Albitrouw, um ndyuka educado nas missões no Sara Kreek. Johannes Alabi e Johannes King são hoje as grandes referências do cristianismo maroon anterior a Anake, muito mais do que qualquer missionário branco que viveu no Alto Suriname ou na região de Ganze no XVIII e no XIX. O próprio Anake, ao rebelar-se contra os “ídolos pagãos” de Sofibuka, ataca o altar de Gaan Tata, então recentemente chegado de Santigoon e do Tapanahoni, lembrado até hoje como “divindade ndyuka (ndyukagádu). Foi em parte uma reação a um culto não saamaka com tendências monoteístas. O cristianismo, com toda sua carga bakáa, estrangeira, necessitou de vários filtros maroons para fazer sentido para as pessoas de Sofibuka. Uma vez estabelecido, o cristianismo jamais deixa de interagir com práticas não cristãs. Entre os kwinti, afirma van der Elst (1975: 117-8), mesmo com a conversão para o catolicismo, a “antiga religião” era evidente: altares para os ancestrais e goónmamá, oráculos, casas para komatí, possessões. O padrão é o mesmo para os ndyuka católicos da aldeia Langa Uku e para a maioria católica paamaka (Köbben 1968; Lenoir 1973). No caso dos paamaka e matawai moravianos, a situação aproxima-se da que descrevi em Botopási: o cristianismo aparece como religião pública, práticas como óbia, oráculos e possessões acontecem em ambientes privados (Green 1978; Beet & Sterman 1981). Distintas afiliações teóricas e conjunturas etnográficas levaram os antropólogos que trabalharam com o cristianismo maroon a caracterizar a relação com a dita “religião tradicional” de diferentes maneiras. Lenoir afirma que as denominações cristãs teriam sido manipuladas pelos paamaka para fins políticos internos e externos. O efeito religioso, graças às características do catolicismo e do protestantismo seria de uma suplantação plena das práticas religiosas entre os moravianos, e a sobreposição das práticas entre os católicos. Neste ponto, segue a distinção herskovitsiana acerca dos diferentes “cristianismos negros” no Novo Mundo (Lenoir 1973: 195). Porém, se as práticas religiosas (sobretudo públicas) alteraram-se, as crenças teriam se mantido intactas. Não haveria sincretismo, ideologicamente. Desmantelaram altares de divindades como swelie, mas o espírito continua punindo quem transgride suas regras; conceitos cristãos como os Dez Mandamentos só são apreciados quando reforçam “crenças tradicionais” (idem 1975: 315-6). Green enxerga entre os matawai um sistema de crenças duais, em que o cristianismo e a religião tradicional coexistem, mas mantém-se separadas e distintas. Isso derivaria da rigidez da teologia moraviana, que, ao invés de gerar formas híbridas, provocou tradições paralelas (1978: 272). O fato, porém, de Green descrever entre os matawai a perda da

422 importância da poligamia e da autoridade avuncular frente à paterna, coloca problemas ao seu modelo de relativa incomunicabilidade entre os sistemas de crença. Similarmente, Voorhoeve (1983), falando da influência do cristianismo sobre a tradição religiosa creole, o winti, defende que as pessoas vivem em dois sistemas simultaneamente, em conformidade com normas cristãs, mas recorrendo a espíritos e divindades do winti em emergências. Tal coexistência permitiria apenas alguns pontos de contato e, em alguns momentos, oposição. De Beet & Sterman avaliam as posições acerca do cristianismo maroon (1981: 319-24) e, após uma descrição cuidadosa das relações entre o que chamam de “dois sistemas de crença”, concluem haver coexistência de tradições religiosas concorrentes. “A religião matawai é um sistema flutuante no qual, em um determinado momento, ou a religião tradicional, ou o cristianismo é dominante. E visto de qualquer momento, eles elaboraram seu equilíbrio precário, no qual elementos de ambas as religiões são representados” (idem: 359). Neste equilíbrio, o envolvimento pessoal em relação aos dois “sistemas de crença” variaria de acordo com a crença individual. Köbben (1968) pensa o cristianismo como “suplementar”: seria acrescido às crenças e práticas preexistentes como um panteão adicional, com divindades, sacerdotes, templos e línguas esotéricas (o latim), como as têm os cultos aos apukú, komatí e outros. Regras de matrimônio, cultos a divindades e a ancestrais teriam alterado-se pouco, a principal mudança viria nos rituais funerários: o abandono da divinação do cadáver significou o abandono de enterros “clandestinos” para aqueles considerados feiticeiros. Houve portanto “um processo de mútua adaptação”. (ibid.: 73). Thoden van Velzen & van Wetering (2004: 13) compartilham da visão do cristianismo como acrescentada como um panteão extra ao politeísmo nativo, além de notarem o profundo interesse dos maroons pela teologia propagada pelos missionários (idem: 29). Em termos gerais, R. Price segue a mesma linha quando trata dos dilemas e conflitos do processo de conversão no séc. XVIII. Em sua visão, Alabi aparece como “um agente ativo no contínuo, ainda que muito limitado, processo de sincretismo entre o cristianismo e a religião saamaka (que em última análise afetou a nascente comunidade cristã mas teve pouco efeito nos outros saamaka)” (ibid.: 225). Num primeiro momento, “a grande maioria dos saamaka certamente manteve o que estudiosos chamam de 'princípio de dualismo' – a ideia que existem duas “religiões', uma apropriada para estrangeiros, outra para eles, e que preferiam manter as coisas assim” (ibid.: 339-40n16). Com a conversão de Alabi, alguns saamaka compreendem que a religião cristã poderia servir também a eles, mas o fazem

423 seguindo uma lógica “aditiva”, sem deixar de tomar parte em rituais considerados pagãos pelos missionários, o que era visto como um problema pelos últimos, “exclusivistas” em seu monoteísmo. Inversamente, mesmo alguns saamaka que não demonstravam qualquer desejo de se converter eventualmente participavam dos serviços religiosos na igreja. “Parece claro […] que o Cristianismo era usado em montante como uma proteção adicional, a ser acionada quando uma pessoa – escolhendo entre seus outros deuses e remédios – desejasse” (ibid.: 424n27). Acrescentar o cristianismo ao seu modo de vida sem alterar suas bases seria possível pela lógica aditiva da religião saamaka. Em termos políticos, era possível pelo momento de paz com os brancos, no qual a vida se tornou mais belicosa e uma aproximação com a costa era viável. A maioria das pessoas teria integrado certos aspectos do estilo de vida dos brancos nas suas, sem porém abrir mão de suas crenças em prol do cristianismo, que teria sido apenas acrescentado ao repertório cultural. O conteúdo do cristianismo maroon foi bastante discutido na literatura. Apesar das abordagens diversas, esta rápida revisão revela que as posições acerca do tema em sua maioria compartilham um ponto de vista subjacente: uma visão de religiões como sistemas, blocos. O cristianismo, ao entrar em contato com um sistema de crenças previamente existente, poderia suplantá-lo, suplementá-lo, sobrepor-se a ele, sincretizar-se ou criar um metassistema dual. O que parece pairar ao fundo de boa parte das soluções teóricas que vimos é o funcionalismo, de novo. A religião cumpriria certas funções ideológicas na estrutura social: resolução de conflitos, agregação social, legitimação de hierarquias etc. Uma religião concorrente encaixase no sistema removendo, dividindo funções ou fundindo-se com a anterior. As posições de Köbben, R. Price, Thoden van Velzen & van Wetering são mais interessantes porque começam a nos dar elementos pensar como o cristianismo é adotado pelos maroons em seus próprios termos. Porém, não era preocupação desses autores examinar efeitos mais profundos do cristianismo na cosmologia e na moral em aldeias cristãs contemporâneas, para além do “encaixe” de um panteão extra, uma possibilidade a mais de proteção. Para compreender as realocações de práticas e mudanças nas filosofias provocadas pela conversão é preciso voltar à máxima metodológica: fazer um esforço para reificar, tratar como concreto, apenas aquilo que os nativos reificam. Os saamaka não compartilham da ideia de uma “religião” como um bloco, um sistema de crenças mais ou menos permeável. Sua relação com as forças invisíveis do universo e com as práticas que as trabalham aparece mais como um conjunto complexo de alianças.

424 Alianças no sentido de “trabalhar com”, “engajar-se com”, “ter fé no funcionamento de”. Sendo as possibilidades de engajamento múltiplas, também serão as posições diante do cristianismo. Não se tratam portanto apenas de crenças individuais, como diziam de Beet & Sterman. Para alguém nascido, batizado e criado numa aldeia afiliada a uma igreja, manter a conexão com ela é o trajeto esperado, é dar prosseguimento aos laços estabelecidos desde antes de seu nascimento e socialização. Depois de adulto, converter-se ou não implica em um dilema acerca da forma de associação que se quer estabelecer com o mundo dos brancos e da costa (ou certos aspectos deles), com potências espirituais (Deus, Jesus, óbia, divindades, mortos) e com diferentes alianças já firmadas entre pessoas, grupos, e esses agentes. Um dilema análogo ao que a conversão implicou para Alabi, Anake, e seus seguidores. Clivagens internas são levadas em conta: ser moraviano, pentecostal ou rastafári implica em aproximarse mais de certos grupos, linhagens, clãs, aldeias, povos. Isto não foi ignorado pelos missionários, que tiveram mais sucesso quando se aproximaram de figuras influentes e autoridades políticas nas aldeias (cf. Veernooij 2009). Sim, ser cristão exige, em algum nível, engajar-se com alguma organização eclesiástica e, assim, com a cidade, com brancos e creoles, mas isso tudo é menos relevante do que o engajamento com Deus. Para os saamaka, o cálculo não é, de forma alguma, primariamente sociológico. A questão central é a crença, a fé. Como vimos, em saamaka, crer (biíbi) tem duplo sentido, “acreditar” e “confiar”. Crer em algo significa, por um lado, não pôr sua existência em dúvida, e, por outro, ter fé em sua potência. Confiar em certa força (kaakíti) não humana – seja advinda de óbia, feitiço, divindades do rio e da floresta, de Jesus, Haile Selassie ou Deus diretamente – é necessário para que suas intervenções no mundo terrestre sejam eficazes. Não basta fazer um ritual, banhar-se com plantas da floresta, rezar para Deus ou para antepassados, é preciso fazê-lo com fé, de outra forma os efeitos desejados não surtirão. A conversão, entendida nessa chave, não implica necessariamente uma ruptura. Crer num novo Deus (ou numa nova versão do mesmo Deus) significa rearranjar suas alianças com potências sobrenaturais, posto que a versão cristã do criador pode exigir uma nova visão acerca de divindades e poderes “intermediários”. Como vimos, sem negar sua existência, mas tornandoas demoníacas (para os pentecostais) ou um pouco menos perigosas (dada a proteção mais atuante da versão moraviana do Deus criador). Ser cristão pode implicar alteração na relação com ancestrais. Os pentecostais julgam como “idolatria” qualquer oferenda, libação ou oblação para mortos. Certo tipo de troca fica vedada, pois numa relação mais “utilitária” com antepassados, estes poderiam ser usados pelo

425 diabo. Presentes e benesses devem fluir diretamente de Deus. Mas nem os pentecostais deixam de respeitar a autoridade de alguns mortos. Não deixam de fazer parte de uma linhagem, não deixam de seguir as tradições de antepassados. Apenas fazem certas seleções distintas acerca de quais feitos são relevantes em um ancestral para que seus passos sejam seguidos. Ter convertido-se, ter sido um bom fiel (kéíkima), ter tido relações de proximidade com a igreja e com Deus tornam-se critérios. Anake, sobretudo, torna-se um exemplo a ser seguido por muitos pentecostais, já que teria recebido inspirações diretas do Espírito Santo. Nas palavras de Lantifáya que formam a epígrafe do filme de Ben Russel, vimos que a fuga das plantations foi autorizada e aconselhada pelos deuses. As divindades guiaram, abriram caminho para os ancestrais saamaka. Estão, em certo sentido, à frente dos ancestrais, enquanto pessoas às quais seguir (por serem espíritos, é claro, isso não implica em seguir seus costumes, humanos não vivem como divindades). O Deus criador deve vir sempre à frente de qualquer antepassado e de outras divindades, dizem os saamaka. Os desígnios de Deus fazem o tempo passar, o sol se levantar, as pessoas nascerem, permitem que os espíritos ajam. Nesse sentido, o que os saamaka cristãos fazem é sobretudo enfatizar a primazia do Deus criador. E compreender que a descrição mais apropriada desse Deus está na Bíblia. Para os saamaka moravianos, ser “gente de igreja” também é seguir os passos de ancestrais. Há cerca de 120 anos, seus antepassados resolveram aderir ao cristianismo, fundaram, em aliança com moravianos, uma tradição particular, que a princípio deve ser seguida por quem faz parte da aldeia. Uma tradição que implica em certas regras distintas daquelas das aldeias não cristãs. Se a fé implica “trabalhar com” uma potência ou ser, dando crédito e estabelecendo laços, deve implicar, em alguma medida, seguir as regras impostas por esta potência. Todo óbia, toda divindade, apresenta regras (weoti) ou tabus (tjína) que, se não forem seguidas, impossibilitam que surtam os efeitos desejados. Ou pior, podem causar consequências danosas. O mesmo vale para as igrejas: novas regras as acompanham, derivadas da Bíblia (muitas vezes por intermédio dos sínodos, dos missionários, dos reverendos, do conselho da igreja etc). Tais regras têm a diferença crucial de estarem escritas, tendo assim a capacidade de serem mais dogmáticas. Mas nem em saamaka nem em lugar nenhum (com exceção talvez de contextos ultra fundamentalistas) a Bíblia tem uma interpretação única, fechada. Em Botopási, as pessoas discutem os mandamentos bíblicos avidamente, de maneira não tão distinta da que discutem regras advindas de outras fontes. A referência ao livro sagrado traz uma possibilidade de argumentação a mais, mas não deixam de usar, paralelamente,

426 argumentos referentes aos costumes, aos antigos: enterrar desta maneira pois é assim que se faz nesta aldeia, recorrer a tal solução porque assim instruiu um grande kabiténi do passado, tomar certa decisão porque segue os ensinamentos de Jesus. Assim como apropriam-se de bens estrangeiros para “amarrar ventres”, assim como valem-se da legitimação estatal para reforçar a autoridade de seus líderes, as regras e ensinamentos da igreja são redefinidos pelos saamaka. Alguns aspectos chamam atenção, como a insistência moraviana na monogamia: em Botopási, a poliginia não apenas é tolerada como é símbolo de hombridade, de ser um provedor capaz. A poliginia é desencorajada apenas para membros do conselho da igreja, pois quem tem mais de uma esposa não pode sentar-se nos bancos à frente da igreja. Nunca vi, porém, recorrerem a argumentos bíblicos para legitimar a poliginia (o que não seria difícil, tomando o Antigo Testamento). As regras da igreja são refratadas pela leitura moraviana antes de o serem novamente pela modulação particular do moravianismo em Botopási. Por outro lado, a homossexualidade e o sexo oral são atacadas pelos saamaka por serem “contra a Bíblia”, por “Deus não gostar”. Tampouco os saamaka não cristãos aprovam práticas homossexuais (cf. Price 2013a), de modo que nesse caso vemos o argumento religioso reforçando princípios previamente existentes. Dar importância à paternidade é um comportamento visto pelos saamaka como positivo, e fortemente reforçado pela igreja: nas aldeias cristãs, dizem meus informantes, é mais malvisto que um homem engravide uma mulher e não cuide do filho. Quanto à distância entre homens e mulheres, vemos Botopási acompanhando um relaxamento das normas moravianas: nas igrejas da cidade como na da aldeia, até algumas décadas atrás homens e mulheres entravam por portas distintas e sentavam-se separados. Nas aldeias saamaka, sempre foi comum homens e mulheres participarem de atividades distintas, sentarem-se em locais diferentes em kuútu e até mesmo andarem por caminhos distintos (S. Price 1993 [1984]: 12ss). Hoje, em Botopási, na igreja e fora dela, isso é mais uma preferência do que uma regra estrita. Da mesma forma nas igrejas moravianas na cidade. Mas nesse caso o relaxamento parece estar sendo acompanhado (num ritmo mais lento) também pelas aldeias não cristãs (onde hoje há mulheres kabiténi, por exemplo), o que significa que o motivador das mudanças não necessariamente é a igreja, parece tratar-se de uma tendência em todo o Suriname. Poderíamos seguir com exemplos acerca do consumo de álcool, adultério, casamentos com adolescentes, educação das crianças... Em todos esses casos, preceitos morais ou éticos das relações saamaka são afetados pela igreja. Não há modelo geral: os saamaka não seguem apenas as regras cristãs que confirmam seus conceitos “pré-cristãos”, nem redesenham toda

427 sua vida em função da igreja. Tampouco há homogeneidade na maneira com que encaram a influência da Bíblia em seus afazeres. O ponto mais importante parece ser que, também ao pensarem as “regras da igreja” (kéíki weoti), não as tomam como regras coercitivas. Seguem definindo a situação em seus termos. Tomam aspectos do cristianismo que lhes pareçam importantes moralmente e utilitariamente, exemplos de retidão, poderes protetivos, contatos com o mundo desenvolvido e tudo mais que lhes ajude a líbi búnu, viver bem suas vidas, suas relações. Rejeitam, porém, qualquer excesso de centralização que a igreja possa vir a lhes impor. Estão fugindo disso. Que “cada um vá onde puder” significa também que cada pessoa siga as regras – da igreja e outras – como entendê-las, que cada um use sua liberdade de associar-se com os poderes que lhe pareçam benéficos.

Conversão e transformação A organização desta tese e desta conclusão pode passar a falsa impressão de que apresento um modelo saamaka para depois acrescentar a ele o cristianismo. Para perceber que não se trata disso, basta lembrar que os rituais que formam o eixo de minha argumentação são aqueles de uma aldeia cristã. O que não significa que sejam menos exemplarmente saamaka do que rituais funerários de aldeias não cristãs, não sirvam para pensar o Alto Suriname para além de Botopási. Como acenei no capítulo 1 e retomei no capítulo 6, entendo que as variações de regras e costumes entre uma e outra aldeia saamaka não permitem pensar numa forma “original” de ser saamaka, alterada por fatores externos. Podemos encarar as aldeias saamaka como um grupo de transformações, atualizações ou territorializações particulares de um fundo virtual, algo que poderíamos chamar, para simplificar, de “costumes saamaka”. Colocando em termos mais simples isso pode significar que práticas ou ideias observadas em uma aldeia iluminam práticas e ideias vistas em outras. O corte do sangaafú pode ajudar a compreender a separação entre mortos e vivos em Botopási, mesmo que não efetuem tal gesto nos ritos fúnebres da aldeia cristã.268 268 Uma abordagem transformacional, no sentido forte, necessitaria de um estudo comparativo mais amplo. Como hipótese de trabalho, defendo que o escopo do grupo de transformação deve ir além dos limites saamaka, compreendendo todas as tribos maroons e demais populações afro-americanas das Guianas. Por isso utilizo dados paamaka, matawai, ndyuka, aluku e creole em minhas análises com tanta frequência. Ao aplicar a ideia de transformação para material não mítico, no caso saamaka, é necessário contemplar transformações históricas no modelo. Algo que o próprio Lévi-Strauss, não obstante leituras simplistas de sua obra, sempre fez. Como vimos, os saamaka compreendem a passagem do tempo como afetando suas relações com o tempo ancestral, criando uma distância cada vez maior em relação a ele – o que não o torna modelo último para as territorializações particulares, mas fundador de uma certa tradição e portanto implica um salto qualitativo que separa as territorializações saamaka das não saamaka dentro do universo mais amplo das tradições afroguianenses. Outros autores valeram-se da ideia de transformação levistraussiana para pensar materiais não míticos, especialmente na chamada Nova Etnografia da Melanésia (Harrison 1984;

428 As aldeias cristãs formariam um subconjunto particular de territorializações, certamente marcadas por um salto qualitativo que torna particularmente visíveis as diferenças em relação ao não cristianismo de alhures. A territorialização em saamaka de outra tradição, a cristã, reorganiza diversos aspectos da vida a partir de um evento marcado no tempo e no espaço: a conversão. Pensando transformações nestes termos, como deformações topológicas (Lévi-Strauss 2011 [1971]), posso esquivar-me de interpretações da mudança cultural como as que vimos acima, nas quais apareçam duas culturas ou sistemas de crenças estanques em contato. Posso também evitar pensar nas relações culturais usando a ideia de continuum (Drummond 1980), pois, como indicam os saamaka, existem pontos de vista válidos a partir dos quais as diferenças são da ordem do discreto. Há um constante jogo entre diferenças contínuas e discretas (ou diatônicas e cromáticas) quando comparamos aldeias saamaka. Hoje, no Suriname, praticamente todo moravianismo é creole ou maroon. Não se pode falar de um “cristianismo europeu” em choque com a “cultura afro-americana”. Compreendo o cristianismo saamaka como uma dupla territorialização de tradições que não remetem a instâncias originais – a cristã e a saamaka – isto implica em compreender a conversão para além dos termos de uma “adoção” ou de uma “hibridização”. O modelo de Robbins (2004) da conversão urapmin, apesar de bastante rico, é baseado numa visão da adoção do cristianismo como ação recíproca entre duas culturas, cada uma marcada por um “valor fundamental” (paramount value), no sentido dummontiano: o individualismo da cultura cristã e o relacionalismo da cultura urapmin. Mosko (2010) problematiza tal visão, alega que não há porque entender os engajamentos dos melanésios com o cristianismo como rupturas, disjunções ou colisões culturais, nem mesmo como fusões sincréticas ou hibridismos simples, já que variações do cristianismo permitiram encarar a pessoa como divíduo. Quando tradições cristãs e “nativas” deixam de ter referentes últimos, originais, ou “valores fundamentais”, a preocupação passa a ser outra. Meus questionamentos, ao longo da tese foram acerca das versões saamaka-cristãs a propósito do que é ser cristão e do que é ser saamaka.269 A título de conclusão, apresento alguns efeitos da transformação-conversão no que tange ao tempo. Abordei mais acima a diferença entre o espaço-tempo dos mitos (kóntukoondë) e o dos ancestrais, o passado (fésiten) enfatizando que a principal diferença entre eles é que para o primeiro, a passagem do tempo não altera as relações que os saamaka estabelecem com Strathern 2006 [1989]: 287ss; Mosko 1991). Goldman (2011: 417-8) atualmente empreende um projeto que trata das religiões de matriz africana no Brasil nesta chave. 269 Cf. Reinhardt (2007: 75) e Austin-Broos (1997: 44) para interessantes críticas das ideias de ruptura e de mistura, respectivamente, em outros contextos de cristianismos afro-americanos.

429 ela, enquanto para o segundo o devir histórico tem um efeito relevante: o aumento da distância com relação ao mundo dos ancestrais e o acúmulo de espíritos vingativos faz com que o mundo dos saamaka vivos seja cada vez mais fraco e perigoso. Os cristãos concebem ainda outro espaço-tempo do qual podem derivar ensinamentos, experiência, exemplos, isto é, a partir do qual podem elaborar práticas e crenças: o tempo bíblico. Em um primeiro sentido, aproxima-se do passado ancestral, histórico, por ter referentes temporais e espaciais mais mundanos que o tempo mítico (Jesus viveu há cerca de 2000 anos, na Galileia). Dito de outra forma, na leitura saamaka os personagens bíblicos – Adão, Eva, Moisés, Noé, Rei Davi, etc. – efetivamente viveram, como humanos, nesse mundo. Porém, a geografia e a cronologia da Bíblia desenrolam-se num espaço-tempo tão distante que acabam perdendo a conexão com a passagem do tempo experienciada pelos humanos. Não faz diferença que estejamos há dois, cinco ou dez mil anos do jardim do Éden, este espaço-tempo já se tornou . Isso significa que os saamaka encaram as pessoas da Bíblia como “mais reais” que Anansi e outros personagens de mitos, dão-lhes maior estabilidade ontológica, mas não tanta quanto dão aos ancestrais acerca dos quais narram histórias do passado. Personagens bíblicos não são ancestrais saamaka. Óbvio, pois não há conexão genealógica que os torne consubstanciais com nenhuma matrilinhagem atual, mas não tão óbvio quando consideramos que a Bíblia também fornece um parentesco que engloba toda a humanidade como descendentes de Adão e Eva. Os saamaka não levam às últimas consequências a ideia de uma origem genealógica compartilhada por todos homens e mulheres da terra. Os atos dos personagens bíblicos não geram kúnu que os afetem. A segmentação que interessa nesse aspecto ocorreu muito mais recentemente, ainda que o corte nem sempre seja claro, vimos. Lenoir (1975: 315) afirmou que, para os paamaka, argumentos sobre homicídio passam mais pelo temor aos kúnu do que pelo “não matarás”. O mesmo é verdade em Botopási, mas o decálogo é levantado em algumas ocasiões. Os personagens bíblicos são similares aos antepassados no sentido de que podem ser tomados como parâmetros para vida na terra, exemplos de pessoas do passado cujos passos podemos seguir. Seus atos, os eventos nos quais tomaram parte, também marcaram o mundo, provocando consequências que se estendem até o presente. Não sem motivo, as principais datas do calendário cristãos em Botopási são Natal, Páscoa e Pentecostes, que marcam eventos fundamentais na história de Jesus: nascimento, morte e batismo dos discípulos no Espírito Santo (como em outros contextos cristãos, o tempo nesta religião também é marcado por eventos). Porém, Jesus guarda uma diferença crucial com os antepassados saamaka: ele

430 não necessita ser entendido como um morto, pois ressuscitou três dias após sua crucificação. Assim explicou-me uma pentecostal quando questionei sua insistência em acusar os “pagãos” e moravianos de “não viverem bem”, ao rezarem para mortos. Para ela, o filho de Deus está em outro patamar, mais que uma inspiração, um modelo de vida, ele é um agente que cura as pessoas, protege-as, livra-as do pecado. Assim, pode agir como intermediário entre o criador e os humanos, substituindo as rezas aos mortos (que para ela são guiados pelo diabo). Na perspectiva oposta, um homem de Botopási que não frequentava a igreja perguntava-se se devemos mesmo pedir perdão para Jesus, já que ele foi morto pelos judeus e pelos romanos e portanto seria kúnu de outros povos. Percebemos que o principal dilema teológico que enfrentam os saamaka cristãos reside na questão do perdão, que implica em pensar o escopo genealógico e temporal da ação dos mortos e que, por sua vez, remete aos efeitos deletérios da ação humana sobre as pessoas com as quais mantém relações, especialmente parentes. A partir deste dilema podemos entender os casos comuns de conversão no leito de morte, que R. Price (1990: 260-4) narra acerca dos saamaka no séc. XVIII. Como seria de se esperar, todos envolveram pessoas com laços próximos de parentesco ou afinidade com batizados ou que em algum momento de sua vida flertaram com o cristianismo. Em Botopási, todos os nascidos na aldeia a princípio são batizados, mas algo similar ocorre: as pessoas, quando vão ficando mais velhas, passam a frequentar a igreja com mais afinco. Isso certamente passa pela respeitabilidade que, como vimos, a visibilidade na igreja garante, mas alguns de meus informantes jovens cogitavam se isso não seria devido ao medo da morte. Wietz, missionário moraviano em saamaka, escreve em 1793: Enquanto o negro pagão tem tanto pavor da ideia de morte a ponto dele em caso algum aproximar-se da sepultura de um amigo falecido, nossa gente [os convertidos] encontra-se com prazer na manhã do domingo de Páscoa, de acordo com o costume da igreja moraviana, no cemitério para rezar a litania matinal de Páscoa e declarar que sentem conforto considerando que também descansarão com seus irmãos no sepulcro até que o Senhor os chame novamente pelo poder de sua ressurreição (citado em R. Price 1990: 427).

Price interpreta o medo da morte infundido pelos missionários como uma distorção das crenças e práticas saamaka (ibid.: 428). Concordo com o autor que os saamaka de forma geral valorizam tanto a vida na terra que nem as promessas de vida eterna no paraíso (hemel) são capazes de convencê-los plenamente de que a terra dos mortos (deodëkoondë) é preferível ao espaço-tempo onde vivem. Talvez faltasse aos missionários compreender que a relação entre os saamaka e seus mortos não poderia ser redutível ao medo. De todo modo, entendo que as ideias de paraíso e inferno encaixam-se numa lacuna cosmológica, ou melhor, numa relativa indefinição escatológica que permite aos saamaka cristãos elaborar – tentativamente –

431 imagens mais precisas da vida após a morte. Isso inclui, sobretudo entre os pentecostais, imagens do fim dos tempos. Porém, o dilema teológico não parece permitir que façam associações muito rápidas entre o apocalipse qual descrito na Bíblia e o acumulo de kúnu que poderia vir a “quebrar o mundo”, pois a volta de Jesus, na Bíblia, envolve o perdão aos que o aceitaram como salvador, e os kúnu jamais perdoam. O cristianismo, da perspectiva dos saamaka cristãos, permite que encarem de forma um pouco mais temerária não exatamente a morte, mas certos mortos. O cemitério pode ser localizado adjacente à aldeia, podem frequentá-lo na Páscoa, diminuir o ritmo de suas trocas com ancestrais e kúnu, tratar com um pouco menos de pavor dos “mortos feios”. Cito novamente as palavras de um informante, que disse que as únicas regras da igreja (kéíki weoti) com relação a mortos são: “não tenha medo, reze para Deus e viva bem” (“ná fëeoë, bégi Gádu, líbi búnu”), muito diferente das inúmeras regras dos “pagãos”. Este homem mesmo, porém, dava certa razão aos não cristãos pelo cuidado que tinham com mortos, e não deixava de compreender que “viver bem” com os mortos, em saamaka, significava muitas vezes equilibrar as regras da igreja com as dos ancestrais, dos óbia, dos kúnu. Não me interessa saber se o medo da morte / dos mortos é fundamento dos rituais funerários e da religião. Nem buscar origens. O que é relevante é que os mortos, em todas as suas diferentes formas, parecem ser a principal expressão do tempo em saamaka. Ancestrais, fantasmas, neoséki, kúnu, colocam em relação pessoas vivas no presente com pessoas e eventos do passado. Projetam as consequências de atos passados – e dos presentes – para o futuro. O cristianismo é uma das expressões da aproximação dos saamaka como o mundo e o tempo modernos, do desenvolvimento, do progresso, que segue outra lógica. Porém, o cristianismo – como outros objetos, instituições e forças estrangeiras com os quais sempre estiveram em contato – ao ser territorializado no Alto Suriname, é redefinido, torna-se efetivamente saamaka. O que significa que também os cristãos têm de se haver com o tempo dos mortos.

In memoriam Amingo morreu em 2014, idoso. Eu não estava no Suriname, não pude acompanhar seu funeral. Ouvi depois que houve certa polêmica acerca de como e onde celebrá-lo: ele nasceu em Pikísééi, morou anos em Brokopondo e depois em Botopási, onde chegou a ser batizado. Quando adoeceu, foi transportado para a cidade, mas faleceu a caminho do hospital. Seu corpo foi levado a Sééi, mas em Botopási queriam que ele fosse enterrado como cristão, afinal, era batizado. A família na aldeia natal não transigiu, tudo que puderam fazer lá onde

432 viveu seus últimos anos foi uma pequena homenagem. Era uma figura intermediária, que deixa claro que a diferença entre um saamaka cristão e um não cristão nem sempre é óbvia. Sempre que me lembro de Amingo, recordo uma conversa que tivemos na última vez que o vi. Nosso diálogo resume muito do que aprendi com os saamaka acerca de tempo, memória, distâncias, territórios, eventos, laços de parentesco e amizade, violência, liberdade e bem viver. Era maio de 2013, no dia seguinte eu deixaria a aldeia e não sabia quando retornaria. Um outro amigo dizia em tom acusatório que eu rapidamente me esqueceria das pessoas de Botopási. Amingo, que ouvia, concordou, disse que o esquecimento é “uma força que trabalha dentro de nós”, contra a qual é quase impossível lutar. Depois de um, dois anos, você vai lembrando a pessoa cada vez menos, a distância dói cada vez menos, até que você esquece completamente. Eu perguntei: “mas e se você olhar fotos e coisas do tipo?” Ele disse que aí a lembrança volta, de fato, mas só momentaneamente, logo esmaece de novo. A exceção é quando você é de fato amigo de alguém, mantém contato, fala no telefone frequentemente. Perguntei se era assim também com os filhos dele que moram na cidade. Ele disse que sim, mas fez uma ressalva: quando você é pai, não esquece fácil dos filhos, a conexão é mais forte. Eu perguntei sobre sonhos. Ele disse que, de fato, os sonhos ajudam a lembrar: quando você sonha com alguém é porque o espírito dela veio visitar durante a noite, e isso vai fazer você lembrar dela. Amingo lembrou que quando alguém faz algo de ruim com você, não é fácil esquecer. A dor que a pessoa causou demora muito para passar. Se sangue cair no chão, ele penetra 40 cm no solo e por isso demorará 40 anos para que se esqueça o ocorrido. A cicatriz lembra sempre do mal que fizeram. Eu respondi dizendo que aquilo que se aprendeu, as coisas que as pessoas ensinam, também deixam marcas que podem ser carregadas consigo. Ele concordou. E complementou que Deus nos fez com livre-arbítrio para andar pelo mundo, ver coisas, aprender coisas. Por isso é importante vivermos bem uns com os outros, comer juntos, conversar, rir.

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Glossário Aannemer – “Obreiro”, posto de membro da congregação da EBGS ajudante em tarefas da igreja, abaixo de dienaar. ABOP – Algemene Bevrijdings- en Ontwikkelings Partij (Partido da Libertação e do Desenvolvimento Geral), de maioria ndyuka, liderado por Ronnie Brunswijk. Adátu – Divindades (gádu) relacionadas a anfíbios, auxiliares dos komatí. Afgoderij – Idolatria, forma derrogatória de referir-se a práticas consideradas “pagãs” (heiden). Ainéimu – M. q. Aannemer. Aitidei – Cerimônia celebrada uma semana após o enterro (em aldeias cristãs) que marca o fim do período mais crítico do ciclo funerário. Akáa – Alma, princípio vital individual de cada pessoa. Ver jejé, joóka. Akatási – Tipo de cupinzeiro que solta uma espuma, morada de certos apukú. Angula – tecido amarrado na cintura para trabalhos pesados ou perigosos, como lavar um cadáver. Avö – Tapá kootö especial distribuído durante o ciclo funerário para homens e mulheres. Apukú – Divindades (gádu) da floresta que habitam pedras, cupinzeiros e árvores. Ver akatási, kankantíi, katu. Azan – arco de palhas de inajá que protegem as aldeias não cristã da entrada de espíritos malignos. Baáka – A cor preta. Também luto. Baáku – Buraco, sepultura. Baákuma – Coveiro, homem encarregado de cavar e tampar sepulturas. Sinônimo: baákumíi. Bakáa – Holandês, branco e/ou estrangeiro. Pessoa, instituição ou objeto não saamaka. Bákasë – “Lado de trás”, a floresta e a área de roças e capoeiras. Antônimo de gandá. Báki – Engradado ou recipiente para líquidos. Nos rituais funerários em Botopási, o caixão temporário. Ver bungulá. Bakúlu – Pequenos demônios (didíbi) associados pelos maroons aos indo-surinameses, usados para conseguir riquezas. Bandáambaa – Tipo de dança comum em cerimônias funerárias. Bángi – “Banco” em geral. Nos rituais funerários em Botopási, o catafalco. Basiá – Ajudante. Posição política oficial presente em todas as aldeias, espécie de auxiliar dos kabiténi. Em certos eventos há basiá temporários (ver deodë basiá). Basiá bái – Grito ou chamado do basiá: anúncio público para convocar reuniões (kuútu), comum em casos de anúncio de mortes. Basiá páu – Cetros dos basiá que simbolizam sua posição e contém espíritos daqueles que ocuparam o mesmo cargo antes deles. Báusë – Jusante. No rio Suriname, as aldeias mais próximas a Paramaribo, em geral tidas como mais desenvolvidas que as de jusante (líbasë).

448 Beoë – Literalmente “barriga” ou “ventre”. No domínio do parentesco, “linhagem”. Quando usado sem qualificadores geralmente aponta para a matrilinhagem. Ver mamá beoë e tatá beoë. Bégi – Oração ou reza (para Deus, espíritos de mortos, divindades etc). Também pedido ou súplica. Béi – Enterro, não é usado como metonímia para todo o ciclo funerário, denota apenas o momento em que levam o caixão até a cova e o enterram. Beleids- en Bestuurcentrum – “Centro Político-Administrativo”, construção que em Botopási serve como casa de reuniões (kuútu wósu) para o conselho da aldeia (lánti). BEP – Anteriormente Bosnegers Eenheid Partij (Partido da União Maroon), atualmente Broederschap en Eenheid in de Politiek (Fraternidade e União na Política), o mais antigo partido maroon em atividade, fundado em 1973, hoje de maioria ndyuka. Biíbi – Crença, fé. Bioongö – ingredientes secretos e centrais nos óbia. Bisí basiá – Cerimônia de investidura do cargo de basiá, em presença do gaamá. Bisí kabiténi – Cerimônia de investidura do cargo de kabiténi, em presença do gaamá. Bóbi – Seio. No domínio do parentesco, segmento mínimo (uma mulher e seus filhos). Bonuman – No uso creole, um especialista nas artes mágicas com poderes de cura. No uso saamaka, especialista nas artes mágicas estrangeiro. Ver óbiama, wísima. Boóko didia – “Quebrar a luz do dia”, ficar acordado a noite inteira. Vigília funerária realizada nas madrugadas anteriores ao enterro e ao aitidei. Boongó – Jacaré-coroa (Paleosuchus trigonatus) ou divindades (gádu) relacionadas a ele. BP-2011 – Broederschap in Politiek (Fraternidade na Política), partido maroon, dissidência majoritariamente saamaka da BEP. Bungulá – Caixão provisório sobre o qual o cadáver (ou suas unhas e cabelos) é colocado. Com ele fazem consultas oraculares ao fantasma do falecido. Busineongë – “Negro do mato”, termo que engloba todas as seis tribos maroons das Guianas. Em geral não é considerado derrogatório. Bútu – Pagamento, taxa, multa. Em geral paga em tecidos e bebidas. Daán – Aguardente, em geral rum branco. Usada como moeda cerimonial em funerais, casamentos, pagamentos por serviços com óbia ou outras trocas simbólicas. Ver tái beoë, hópo táfa, lái mánda. Deodë basiá – Posição temporário de organizador de um funeral. Homens (wómi basiá) e mulheres (mujeoë basiá) possuem funções diferentes. Deodëkoondë – “Terra dos mortos”, o além, ondem habitam os fantasmas. Deodë wósu – “Casa do morto”, o local onde serão feitos boa parte das atividades dos ciclos funerários. Em muitos casos trata-se da casa onde o falecido vivia. Deési – Remédio, medicação da medicina tradicional ou da ocidental (bakáa deési). Ver óbia, uwíi. Didíbi – Diabo ou demônio, no singular ou no plural. Figuras sobrenaturais presentes tanto nas aldeias cristãs quanto nas pagãs.

449 Dienaar – “Servo”, posto de membro da congregação da EBGS ajudante em tarefas da igreja, acima de aanemer. Dinái – M. q. Dienaar. Djulá – Exclamar o nome da matrilinhagem de seu pai (tatá beoë) para proteger-se de acidentes. Dominee – Reverendo, clérigo da EBGS. Dómineongë – “Negro Dómbi”, membro do clã Dómbi. Dópu – Batismo cristão, literalmente “mergulhar”. Duumíkoondë – “Terra do sono”, o tempo-espaço onírico, não completamente desconectado da realidade desperta. Sinônimo: dúngukoondë (“terra escura”). EBGS – Sigla para Evangelische Broedergemeente Suriname. Eenheid – União entre as pessoas. Costuma ser traduzido em saamaka como lóbi. Evangelische Broedergemeente Suriname – Igreja Moraviana do Suriname, literalmente “Congregação Fraternal Evangélica do Suriname”. Sigla: EBGS. Famií – Família, tanto matrilateral quanto patrilateral. Faáka páu – Altar principal de uma aldeia não cristã, onde cultuam espíritos de ancestrais e divindades. Fási – Maneira, modos. Ver guwénti fási. Fésima u kéíki – “Líderes da igreja”, os membros do kerk bestuur. Fésitén – “Passado”, especialmente o passado heroico de fuga das plantations e guerra contra os brancos. Literalmente “tempo da frente”. Sinônimo: fósuten (lit. “primeiros tempos”). Fií – Liberdade. Fíi – Sentir (sentimentos e sensações). Também oráculos. Fíofio – Maldição gerada por hipocrisia entre parentes e amigos. Fisikái – Membro do gabinete do gaamá. Em geral um hédi kabiténi ou kabiténi. Fósubaákumíi – Homem que é coveiro (baákuma) pela primeira vez. Fuúku – Maldição verbal, imprecação, pode ser considerado um tipo de wísi. Em geral tido como mais potente que sibá. Gaáma – Chefe político supremo de cada tribo maroon das Guianas. Gaán lánti – O povo em geral de uma aldeia. Ou o governo do Suriname. Gaán óbia – Os principais óbia de cada clã saamaka. Gaánsëmbë – “Gente grande”, velhos, anciões antepassados. Gaánsëmbë u mátu – Cobras gigantes muito poderosas, relacionadas, mas não iguais, às anacondas (Eunectes sp.). Gaánwómi – “Grandes homens”, os anciões da aldeia, especialmente os que ocupam assentos no conselho da aldeia (i.e., fazem parte de lánti). Gádu – Deus ou divindade, espírito de origem não humana. Ver apukú, komatí, vodú, mása gádu. Gádu a kamían – Divindade local, o espírito que é dono de um lugar no mato, em geral um apukú.

450 Gandá – Lugar onde as pessoas vivem. Dependendo de onde se está pode se referir à aldeia, a um acampamento, ao “centro” da aldeia. Antônimo de báka së. Gangása – Galpão, em geral usado para guardar coisas ou como cozinha. Neles também podem ocorrer kuútu. Geébi – Cemitério, em qualquer aldeia saamaka faz parte da floresta (bákasë). Geschiedenis – História, conjunto de conhecimentos relativos ao passado. Goón uwíi – “Folhas da terra”, qualquer planta. Em geral designa ingredientes de medicinas e óbia. Goónmamá – “Mãe da terra”, ser invisível que habita o solo. Sua versão masculina é chamada de goónpá. Guwénti fási – “Modo costumeiro”, possível tradução para “cultura”. Ver kulturu. Háika deodë – “Ouvir o morto”, visita formal até outra aldeia para atestar uma morte e prestar condolências. Hasúa – Combate desportivo no estilo luta livre no qual o objetivo é derrubar o adversário. Comum entre baákuma. Hédi baákuma – O líder dos coveiros (baákuma). Hédi basiá – Um basiá de status mais elevado que os demais. Trabalha próximo de um hédi kabiténi e/ou do gaamá. Hédi kabiténi – Cargo oficial intermediário entre gaamá e kabiténi, responsável por um trecho do rio (písi wáta) e/ou por um clã loo. Hédima u kijóo – Líder dos kijóo, representa os homens adultos jovens (não anciões) sem cargo oficial junto ao conselho da aldeia. Hédima u mujeoë – Líder das mulheres adultos, representa-as junto ao conselho da aldeia. Heiden – Pagão, forma muitas vezes derrogatória de se referir aos não cristãos. Heiden koondë – “Aldeia pagã”, isto é não-cristã. Opõe-se a kéíki koondë. Hógi – Coisa perigosa, ruim ou má, infortúnio. Pode ser antônimo de bom/bem (búnu). Hói suwagi – “Segurar cunhada”, casamento em levirato. Hópo táfa – “Levantar mesa”, oferecer ritualmente comida e bebidas. Ingigádu – Divindades (gádu) relacionadas aos ameríndios (íngi). Jái – A noite de ano novo e as comemorações que a seguem nas próximas duas semanas. Jái Kuútu – Kuútu anual realizado em geral em janeiro, que tem como fim discutir os problemas atuais da aldeia e traçar metas para o próximo ano. Jejé – Espírito, ente espiritual dotado de volição. Ver gádu, joóka, akáa. Joóka – Fantasma, espírito desencarnado um morto, m. q. kootö sëmbë. Ver jejé. Kaakíti – Força espiritual que torna um ser vivo ou espírito capaz de agência. Kabiténi – Capitão, cargo político oficial, líder de uma aldeia. Kabiténi páu – Cetros dos kabiténi que simbolizam sua posição e contém espíritos daqueles que ocuparam o mesmo cargo antes deles. Kái akáa – “Chamar alma”, feitiço (wísi) no qual a alma da vítima é atraída para depois ser pregada ou baleada. Káimagádu – M. q. boongó.

451 Kambósa – Coesposa. Kamísa – Veste tradicional masculina, espécie de tanga. Kándúu – Tipo de óbia que protege contra ataques sobrenaturais ou roubos. Kankantíi – Samaúma (ceiba pentandra), maior árvore da floresta, lar de certos apukú. Katu – Apuí (ficus fagifolia), árvore parasita, morada de certos apukú. Kééti – Caulim, argila branca usada em rituais de óbia e gádu. Kéíki – Igreja, tanto o local físico quanto uma denominação religiosa. Kéíki koondë – “Aldeia de igreja” onde qualquer forma de cristianismo é a religião oficial. Opõe-se a heiden koondë. Kéíki sëmbë – “Gente de igreja”, cristão, em geral pessoa nascida e criada numa kéíki koondë. Opõe-se a koondë sëmbë. Kerk bestuur – Conselho da Igreja, grupo de pessoas que organizam as atividades cristãs e os cultos dominicais em Botopási. Kési – Caixão, ataúde. Késima – Homens encarregados de construir os ataúdes. Kijóo – “Jovem”, todos os homens adultos que não atingiram o status de ancião (gaánwómi) e não possuem cargo oficial. Formam junto com as mulheres (mujeoë) a população geral da aldeia (gaán lánti), oposta ao conselho da aldeia (lánti). Kokobesma – Pessoa que nasceu com deformidades nos membros, ou portadora de lepra. Komatí – Divindades (gádu) relacionadas ao jaguar (Panthera Onca), a outros felinos selvagens e aos urubu-rei (Sarcoramphus papa). Koondë – Aldeia, ou, por extensão de sentido, país ou “terra” de alguém ou algum tipo de entidade. Ver deodëkoondë, kóntukoondë, duumí koondë. Koondë sëmbë – “Gente de aldeia”, isto é, alguém nascido e criado em uma aldeia não cristã. Opõe-se a kéíki sëmbë. Kóntu – Mitos, fábulas, histórias sobre o trickster Anansi e sobre diversos personagens animais, contados em boóko didía e outras situações. Kóntukoondë – “Terra dos contos”, espaço-tempo separado do mundo dos humanos onde se passam os kóntu. Koósu – Tecido. Em geral pano de algodão importado da costa usado em trocas rituais e como matéria-prima para vestimentas. Também a vestimenta feminina tradicional, espécie de saia. Kootösëmbë – “Gente fria”, espírito de morto, m. q. joóka. Kulturu – Cultura, práticas tradicionais e/ou folclore dos diferentes povos, incluindo sobretudo práticas mágico-religiosas não institucionais. No caso dos maroons, pode ser usado como sinônimo de óbia. Kúnu – Espírito vingativo de morto (humano ou não) que amaldiçoa matrilinhagens. Kuútu – Reunião, assembleia. Principal instituição política saramaka, fórum de decisões coletivas e anúncios públicos. Kuútu gangása – “Galpão de reuniões”, m. q. kuútu wósu.

452 Kuútu wósu – “Casa de reunião”, construção coletiva na aldeia na qual são realizados lánti kuútu. Lái mánda – “Encher cesta”, oferecer ritualmente víveres para serem preparados pelas deodë basiá e servidas durante ritos funerários. Lái páka – “Encher pagamento”, m. q. lái valísi. Lái valísi – “Encher a mala”, ato de doar um enxoval à noiva, oficializando um casamento. Lánti – O povo da aldeia, ou por oposição e por sinédoque, o conselho da aldeia formado pelos basiá, kabiténi e gaánwómi. Lánti kuútu – “Reunião do povo”, “reunião do governo”, os kuútu que envolvem todas as matrilinhagens e/ou todos habitantes de uma aldeia. Líbasë – Montante. No rio Suriname, as aldeias mais distantes de Paramaribo, em geral tidas como menos desenvolvidas que as de jusante (báusë). Quando se está na cidade, significa por sinédoque o território saamaka como um todo. Líbisëmbë – “Gente viva”, ser humano. Limbá uwíi – Ritual que encerra um ciclo funerário, pode ser visto como um “segundo enterro”. Em geral realizado por volta de seis semanas depois de um enterro. Loo – Clã, maior segmento da tribo saamaka. Lóbi – Amar, gostar. Pode significar também união entre as pessoas, sendo neste sentido sinônimo de eenheid. Maksin – Depósito onde são estocados e contabilizados víveres e tecidos a serem distribuídos na casa do morto. Maksin meester – Encarregado da maksin. Mamá beoë – A matrilinhagem da mãe de uma pessoa, i.e., a matrilinhagem à qual a pessoa faz parte. Mánda – Cesta de vime usada para transporte de objetos e grãos. Ver Lái mánda. Mánu beoë – A matrilinhagem (beoë) do marido de uma mulher. Ver mujeoë beoë. Mása Gádu – “Senhor Deus”, o criador. É reverenciado em aldeias cristãs e pagãs. Mátuma – “Homens do mato”, aqueles que fazem uma expedição de caça para trazer carne para um funeral. Mátumamá – “Mãe do mato”, seres invisíveis que habitam a floresta, relacionadas aos apukú e a gaán sëmbë u mátu. Sua versão masculina é chamada de mátupá. Mujeoë beoë – A matrilinhagem (beoë) da esposa de um homem. Ver mánu beoë. Mujeoë kó a mánu – Mulheres casadas com homens de uma linhagem (beoë). Ver wómi kó a mujeoë. Neongë – Negro. Pode significar o mesmo que pessoa (sëmbë) ou, quando usado sem qualificador, os afrosurinameses da costa (não maroons). Neongëtoongö – M. q. sranantongo. Neoséki – Espécie de padrinho espiritual, alma reincarnada (em geral de um ancestral) que faz uma criança crescer e empresta-lhe características físicas e morais. NDP – Nationale Democratische Partij (Partido Democrata Nacional), fundado em 1987 pelo então ditador Dési Bouterse, baseado num discurso multiétnico consegue eleger o presidente Jules Wijdenbosch em 1996 e Bouterse em 2010.

453 NPS – Nationale Partij Suriname (Partido Nacional do Suriname), fundado em 1946, de base creole, que governou o país sob o presidente Ronald Venetiaan após o fim da ditadura, de 1991 a 1996, e depois novamente entre 2000 e 2010 Óbia – Magia, especialmente as benfazejas. Categoria sobrenatural que abrange vários objetos, fórmulas, receitas, sobretudo que incluem plantas de poder. Ver wísi, gaán óbia. Óbia wósu – Casas de óbia, sede de culto a uma divindade específica. Óbiama – Especialista em óbia ou aquele que o aplica. Ontwikkeling – Desenvolvimento, progresso. O termo pode ser usado como antônimo de kulturu. Paamúsi – Promessa. Também um curto rito que antecede o limbá uwíi. Paatí líbi ku deodë – Gesto ritual que separa vivos e mortos. Paípái míi – Filhos de homens de uma matrilinhagem (beoë), isto é, pessoas que tem tal linhagem como tatá beoë. Papá – Toque de tambor que fala com os mortos. Papagádu – Divindades (gádu) ligadas às jiboias (vodú). PBP – Progressieve Bosneger Partij (Partido Maroon Progressista), um dos primeiros partidos maroons, hoje extinto. Písi – “pedaço”. Quando refere-se ao espaço de uma aldeia, uma subdivisão ou bairro da mesma. Pikádu – Espécie de maldição que recai, quase mecanicamente, em quem comete atos imorais ou antissociais. Píkimá – Aquele que responde, respondente. Posição de fala nos kuútu de quem serve de intermediário entre um falante e um ou mais ouvintes. Em geral ocupada por basiá. Politíki – Retórica, lábia, tentativa convencer ou enganar alguém com palavras. Também uma brincadeira na casa do morto, durante os funerais que envolve descobrir regras que tenham sido quebradas, a fim de cobrar uma multa (bútu). Posthouder – Oficial (em geral militar) que ocupava até o início do século XX o posto de intermediário entre as tribos maroons “pacificadas” e o governo colonial. Púu baáka – “Remover luto”, cerimônia cerca de seis meses depois do enterro que remove as últimas restrições para um viúvo enlutado. Púu basiá – “Remover basiá”, cerimônia que destitui os cargos de dëdë basiá após o aitidei. Púu lái a dooö – “Tirar os bens de casa”, cerimônia que divide os pertences de um falecido, cerca de um ano depois do enterro. Púu míi a dooö – “Tirar a criança de casa”, cerimônia de apresentação de uma criança à aldeia, realizada cerca de um mês depois do nascimento. Púu tjína – “Remover tabu”, fazer algo pela primeira vez para “abrir caminho” para que possa ser feito novamente. Também o rito que encerra o período mais perigoso do luto, logo após o aitidei. Saamáka – A tribo saamaka, seus membros, sua língua e seu território (o Alto Suriname). Saamákatoongö – A língua dos saamaka. Sangaafú – Cana-do-brejo (Costus arabicus ou Costus scaber), importante ingrediente em óbia e fundamental no ato de paatí líbi ku deodë nas aldeias não cristãs.

454 Santa Jejé – O Espírito Santo, possui pentecostais e o faz “falar em línguas”. Sëmbë – Pessoa (humana ou não humana). Sibá – Imprecação, maldição verbal, pode ser considerado um tipo de wísi. Ver fuúku. Singi-boekoe – Hinário moraviano. Síngi ndéti – “Noite de hinos”, parte das vigílias na qual entoam hinos moravianos. Ver boóko didia. Sónúkúmútu – Nascente, leste. Associado ao dia, à vida, às coisas boas. Sónugo – Poente, oeste. Associado ao escuro, à morte, ao perigo. Sranan – Suriname e sua língua franca, o sranantongo. Sranantongo – A língua dos crioulos da costa surinamesa, espécie de língua franca do Suriname. Também chamada simplesmente de sranan. Súndjubáka – “Costas sujas”, maré de azar em geral causada por alguma infração que se cometeu, algum tabu (tjína) ou regra (weoti) quebrada. Suwáki – “Doente”, “fraco”, pessoa afligida por um mal físico ou espiritual, em geral que corre risco de morte. Suwáki wósu – “Casa do doente”, a habitação de uma pessoa quando ela está suwáki e por isso recebe visitas. Tái beoë – “Amarrar ventre”, “amarrar linhagem”. Troca ritual durante o ciclo funerário, mais especificamente as de artigos têxteis. Taku deodë – “Morto feio”, vítima de morte acidental, afogamento, assassinato violento ou suicídio, que tornam o corpo e o espírito do falecido especialmente perigoso. Taku jejé – Espírito maligno, seja divindade ou fantasma. Ver joóka. Tapá – Fechado. No campo do sobrenatural, proteção espiritual. Uma pessoa tapá é alguém poderoso magicamente, que tem o corpo fechado. Tapá kootö – Veste tradicional masculina, um koósu decorado ou não, amarrado no ombro. Tatá beoë – A matrilinhagem do pai do pai de uma pessoa, da qual ela não faz parte mas estabelece relações de proximidade. Teombë – Formas de arte visual típicas maroons, incluindo tecidos adornados, cabaças entalhadas e esculturas em madeira. Também carpintaria em geral. Tjína – Tabu alimentar ou comportamental. Regra imposta por uma divindade, uma igreja, ou pela constituição de uma pessoa que, se quebrada, trás consequências físicas e espirituais. Ver weoti. Töneo – Divindades (gádu) da água, similares aos wénti. Ver watamamá. Túwë daán – “jogar rum”, libação, feita para antepassados ou divindades. Também a cerimônia que torna público um casamento. Túwë njanján – “Jogar comida”, oblação, feita para antepassados ou divindades. Também cerimônia celebrada três dias após o enterro (em aldeias não cristãs) que marca o fim do período mais crítico do ciclo funerário. Ver aitidei. Uwíi – Cabelos, folhas, ervas. Também qualquer ingrediente de origem vegetal usado para fabricar remédios (deési) ou óbia. VE – Sigla para Volle Evangelie.

455 Véntu – Vento, ou qualquer agência de qualidade sobrenatural, invisível. Vereniging Saramakaanse Gezagsdragers – Associação das Autoridades Tradicionais Saamaka, que luta pelos direitos territoriais saamaka. Sigla: VSG. Vodú – Jiboia (Boa constrictor), boídeo que possui alma (akáa) e por isso é capaz de possuir pessoas, agindo como divindade chamada papágádu. Volle Evangelie – Igreja do Evangelho Pleno, engloba denominações protestantes pentecostais e neopentecostais. VSG – Sigla para Vereniging Saramakaanse Gezagsdragers. Wakatíki – Cajado que os basiá e os kabiténi usam para simbolizar seu poder. Distinto dos kabiténi páu e dos basiá páu. Wátamamá – “Mãe d'água”, seres elementais invisíveis que habitam o rio, como sereias, relacionadas aos töneo e wénti. Sua versão masculina é chamada de wátapá. Wásideodë – Lavar o morto, preparando-o para ser enterrado. O processo inclui vesti-lo em koósu. Wásideodëma – Encarregados de lavar cadáveres. Wátawenú – Divindades (gádu) relacionadas à anaconda (Eunectes sp.). Weonkë – Loja. As das aldeias vendem principalmente produtos importados e funcionam também como bares e pontos de encontro. Weoti – Regras, em sentido amplo, sejam leis nacionais, regras de uma aldeia, de uma tribo, da igreja, de uma divindade, de um óbia. Ver tjína. Wénti – Divindades (gádu) da água, similares aos töneo. Ver watamamá. Winti – Espíritos e divindades, para os creole surinameses. Também o nome dado à religião de matriz africana dos creole do distrito de Para e da região costeira do Suriname. Wisi – Feitiço, magia usada para prejudicar um outro. Wísima – Feiticeiro, aquele que pratica wísi. Woodu – Provérbios, parábolas e metáforas que são mananciais da sabedoria saamaka. Wómi kó a mujeoë – Homens casados ou que têm filhos com as mulheres de uma matrilinhagem (beoë). Ver mujeoë kó a mánu. Wósu – Casa. Ver wósudéndu, deodë wósu. Wósudéndu – Literalmente o “interior de uma casa”, no domínio do parentesco, matrissegmento (subdivisão do beoë), grupo de parentes mais próximos. Zéi – Grande bandeira erguida em funerais para pessoas idosas, capitães, ou viúvas de capitães. Zoondu – Crime, ato imoral ou antissocial passível de punição sobrenatural. Pode ser usado para traduzir “pecado”.

456

Termos de Parentesco Consanguíneos Nëneo

MMMM / FFFF / etc.270

trisavós

G+4

Tógbo

MMM / FFF / etc.

bisavós

G+3

Avó

MM / MF / FM / FF

avós

G+2

Mamá

M

mãe

Tatá

F

pai

Tío

MB

tio (irmão da mãe)

Sísa

Z

irmã

Baáa

B

irmão

Mujeoë míi

D

filha

Wómi míi

S

filho

Sísa míi

ZS / ZD

Míi

DD / SS / ZDS / ZSS / DDD / etc.

G+1

G0

G-1

sobrinho/a (filho/a da irmã) 271

neto/a

G-2...

Afins (ego masculino) Mái

WM / SW

sogra / nora

Pái

WF / DH

sogro / genro

Mujeoë

W

esposa

Bála

WB / ZH

cunhado

Suwági

WZ / BW

cunhada

G±1

G0

Afins (ego feminino) Mái

HM / SW

sogra / nora

Pái

HF / DH

sogro / genro

Mánu

H

marido

Kambósa

HW

coesposa

Sisa mái

HZ / BW

cunhada

Suwági

HB / ZH

cunhado

G±1

G0

270 Quase todos esses termos podem ser classificatórios (com exceção, parece-me, de tio, sísa míi, mujeoë, mánu e kambósa). Por exemplo: baáa é também primo de qualquer grau em G0: MZS, FFBSS etc; bála pode ser qualquer afim masculino em G0: WMBZ etc., e ainda pode ser usado para afinidade potencial. Uma pessoa pode tratar qualquer neto, bisneto, trisneto etc., direto ou classificatório, por míi (literalmente “criança”, também “filho/a”). Nëneo e togbó referem-se a quaisquer parentes consanguíneos em G+4 e G+3 respectivamente. 271 Entre G-2 e G+2 existe uma forma de tratamento jocosa: homens podem chamar os netos e avôs de bála (cunhado), as netas e avós de mujeoë (esposa); mulheres podem chamar as netas e avós de kambósa (coesposa), os netos e avôs de mánu (marido). Especialmente nas relações de gênero cruzado isto inclui brincadeiras

Anexo: Mapas

Anexo: Fotografias

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