A MATÉRIA DOS LIVROS (Mallarmé, Borges, João Cabral)

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A MATÉRIA DOS LIVROS
(Mallarmé, Borges, João Cabral)

Adalberto Müller (UFF)




Resumo

Através de uma leitura de alguns textos de Stéphane Mallarmé, Jorge Luís
Borges e João Cabral de Melo Neto – que tratam do livro e da biblioteca –
procura-se demonstrar que há uma estreita relação entre a materialidade do
livro e o conceito de Literatura. Define-se, assim, através da mídia (ou
suporte), a relação entre o material e o conceitual, visando esclarecer por
que o paradigma hermenêutico, nos estudos literários, parece ter chegado a
um certo esgotamento na era das imagens técnicas e das mídias digitais. Uma
versão ampliada deste texto foi publicada em Linhas Imaginárias: poesia,
mídia, cinema (Ed. Sulina, 2012).



Os livros
são objetos transcendentes.

Caetano Veloso, "Livro"


A história da Literatura se confunde com a história do livro impresso.
Pode-se justificar essa tese quando se observa a Literatura do ponto de
vista de sua autoconsciência, isto é, na medida em que certos autores
desenvolvem dentro de suas obras uma reflexão sobre a própria mídia que
garante a existência da literatura: o livro. Antes de seguir esse caminho,
convém lembrar que, antes mesmo da existência de uma tal reflexão, e mesmo
da existência do conceito de Literatura, já existia uma tradição de topoi,
como mostrou E.R. Curtius, sobre a relação entre o livro e a natureza,
segundo a qual a própria natureza ou o mundo é um livro escrito por Deus (à
sua imagem) para a leitura dos homens (a tópica do Livro da Natureza, ou o
Livro do Mundo)[1]. Mas não é tanto essa tradição clássico-medieval, que
chega até Descartes, que me interessa discutir aqui. É, sim uma reflexão
em que o livro – considerado como mídia – é tanto imagem do mundo como
espelho da própria Literatura. Por isso, tomo como modelo a obra de três
autores em que o livro (e as coleções de livros) exerceu um papel
fundamental, e um certo fascínio: Mallarmé, Borges e João Cabral.
Mesmo antes de Mallarmé, o livro já era entendido como o principal
meio de preservação e conservação da memória, registrando, mas também
modelando o imaginário. O Dom Quixote, de Cervantes, por exemplo, é um
livro cujo tema central são os próprios livros, ou o que pode advir àqueles
que os lêem em excesso, ou àqueles que só lêem alguns deles, como é o caso
de Alonso Quijano, que durante anos só leu romances de cavalaria.No Dom
Quixote há passagens em que o próprio livro do autor (Cervantes) é
discutido e criticado (ou seja, dentro da obra ficcional), e, num dos
capítulos mais instigantes, na viagem a Barcelona, Dom Quixote e Sancho
visitam uma editora, e descobrem como são feitos os livros. Montaigne,
contemporâneo de Cervantes, escreveu sobre diversos assuntos baseando-se
unicamente no saber contido nos seus livros, que ele citava fartamente, e
que formavam uma das mais completas bibliotecas de seu tempo. Biblioteca
que, aliás, pela sua disposição topológica, muito influenciou o modo de
pensar do filósofo francês. O escritor argentino Jorge Luís Borges, nosso
contemporâneo, numa clave ainda moderna, afirma que os utensílios criados
pelo homem são extensões de seu corpo: assim como as ferramentas são
extensão de suas mãos, os livros seriam extensões da imaginação[2].
O romance também pode ser observado, dentro de um pensamento
sistêmico, como o gênero que assume a posição de principal mídia dentro do
sistema literário, a partir do século XVIII. Siegfried J. Schmidt[3]
demonstra que a formação desse sistema, na Alemanha, ao lado das relações
com outros sistemas (econômico – liberalismo; filosófico – iluminismo,
etc.), implicava num processo de surgimento da autonomia do sistema
literário em relação aos demais sistemas. Tal autonomia seria garantida por
vários fatores: 1) a formação de um novo tipo de escritor, independente da
igreja ou de mecenato, sobrevivendo da venda de seus livros, cujas edições
se tornavam cada vez mais numerosas (Schiller podia vender 10.000
exemplares de William Tell num ano[4]), e atribuindo a si uma função moral
dentro da sociedade; 2) a diversificação do sistema de produção e
distribuição de livros, com a separação do entre o impressor, o
distribuidor e o livreiro, diversificação acompanhada pelo aumento
expressivo de publicações – na Alemanha, cerca de 5000 títulos e cinco
milhões de exemplares à venda[5]) a importância crescente da mediação entre
público leitor e os autores, exercida pelos críticos literários, num número
crescente de jornais e revistas especializadas em livros.
Dentro desse contexto, o romance se desenvolve como forma burguesa de
representação par excellence, uma vez que expressa as experiências
concretas (e até cotidianas) do um indivíduo agindo no ou em confronto com
o meio social (experiência que irá rumar para um progressivo conflito do
indivíduo com o mundo burguês, nas obras de Goethe e Schiller) [6]. O
romance permite ao leitor a descoberta do Eu como "espaço infinito",
adaptando-se melhor a uma sociedade que cada vez mais separa a esfera da
vida privada (indivíduo) da esfera pública (sociedade). Sendo assim, o
romance deixa de ser uma forma de diversão aristocrática (como era no
século XVII) para se transformar no instrumento de criação de uma cultura
burguesa[7]. Por isso, o romance, mais do que um gênero que simplesmente
conquista autonomia estética, passa a ser a mídia preponderante do século
XVIII, passando a definir todo o funcionamento do sistema literário,e do
meio intelectual. Segundo Schmidt


O romance, permitindo a coexistência da narrativa e da
reflexão, desenvolve-se no século XVIII menos como forma
estética autônoma, do que como fórum da discussão e da
comunicação "burguesa". Essa é a razão porque o discurso
romanesco interage com outros discursos, que se tornaram
correntes no debate teórico-literário desse contexto: o
debate da mímesis, o debate do gosto, o debate do efeito,
o debate sobre a emancipação do indivíduo e sua
problemática posição na sociedade, o debate sobre
casamento, sexualidade e amizade.[8]


Enquanto o romance se torna paulatinamente o protagonista da cena
literária (do sistema literário), a poesia vai pouco a pouco se tornar um
sistema cada vez mais fechado (cada vez mais autopoiético), cada vez mais
impossível de comunicação com outros sistemas. O auge desse fechamento do
sistema poético ocorre no final do século XIX, sobretudo com a obra do
poeta francês Stéphane Mallarmé. Num de seus textos mais famosos, Mallarmé
descreve a "crise" do verso com uma frase lapidar:

La littérature ici subit une exquise crise,
fondamentale[9].

A definição de literatura virá em seguida, associada ao nome de Victor
Hugo, que praticou, pelo que lemos em Mallarmé, aquela idéia da poesia
universal progressiva de F. Schlegel: "[Hugo] rabattit toute la prose,
philosophie, éloquence, histoire au vers, et, comme il était le vers
personellement, il confisqua chez qui pense, discours ou narre, presque le
droit à s'énoncer » (205). Mas a associação mais interessante é aquela que
Mallarmé estabelece entre o verso e a literatura, o que deixa claro que a 
"crise de vers" é sinônimo de não apenas de uma crise da poesia, mas uma
crise da literatura: "la forme appelée vers est simplement elle-même la
littérature; que vers il y a sitôt que s'accentue la diction, rythme dès
que style"(id.) A poesia transcende o verso, na medida em que cada poeta é
capaz de encontrar um ritmo e um "instrumento" (diríamos, uma mídia)
adequada. Pois "toute âme est une mélodie, qu'il s'agit de renouer; et pour
cela, sont la flûte ou viole de chacun."(208) Esse pensamento "musical" da
poesia, levará Mallarmé a afirmar que a nova poesia está na música de
Wagner : "ou la musique rejoint le Vers pour former, depuis Wagner, la
Poésie."(209) Trata-se aqui de buscar, na poesia, tal como ela se apresenta
– encerrada no livro – uma outra forma de poesia, "dos tempos incubatórios"
(208), capaz de transcender – "je la dis Transposition – Structure"(211) –
o dado referencial, que a linguagem força à presença, rumo ao dado musical,
através do poder da sugestão: "libérer, hors d'une poignée de poussière ou
réaltié sans l'enclore, au livre, même comme texte, la dispersion volatile
soit l'esprit, qui n'a que faire de rien outre la musicalité du
tout."(210). Isso se obtém pela famosa tese de uma "obra pura" obtida
através da "disparition élocutoire du poëte, qui cède l'initiative aux
mots" através do "ancien soufle lyrique" (211).Não se trata aqui, como
queria Hugo Friedrich[10], apenas de uma Entpersonalisierung, sem outra
conseqüência que o afastamento do poeta do mundo (Entrealisierung) trivial
e burguês (coisa que Mallarmé não aprovaria). Trata-se de trazer a poesia
de volta para a sua materialidade, para o seu caráter performativo, ou
seja, para o seu devido lugar nesse mundo.
Por isso, o Livro será visto como instrumento espiritual, não no
sentido de um esvaziamento de significação em relação à realidade, mas de
uma vivificação de seu espírito através da letra: "hymne, harmonie et joie,
comme pur ensemble groupé par quelque circonstance fulgurante, de relations
entre tout."(224) Mallarmé se queixa de que o livro até então não fora
considerado em seu aspecto "exterior" (224), e decide fazê-lo comparando-o
com o jornal, que é a forma de mídia impressa preponderante, tanto do ponto
de vista econômico e político, quanto do ponto de vista do público leitor.
A primeira e importante constatação: a crise começa na "livraria",
metonimicamente representando a literatura (produção e mercado literários):
"de discredit où se place la librairie, a trait, moins à un arrêt de ses
opérations, je ne le découvre; qu'à sa notoire impuissance vers l'oeuvre
exceptionelle (293)". A questão que se coloca para o poeta é ainda mais
cruel: "à quoi bon trafiquer de ce qui, peut être, ne doit se vendre,
surtout quand cela ne se vend pas."
A obra excepcional, para Mallarmé, está menos associada a uma
qualidade intrínseca da literatura, do que a uma correlação entre a
literatura e a forma de "obra" que realmente interessa o público, aquela
que se lê nos jornais e nas revistas (a mídia, como diríamos). Mallarmé tem
consciência de que as mudanças no hábito de leitura que a imprensa
jornalística trouxe foram muito mais importantes do que todos os movimentos
literários. "Un commerce, resumé d'interêts énormes et élementaires, ceux
du nombre, emploie l'imprimerie, pour la propagande d'opinions, le narré du
fait divers et cela devient plausible dans la Presse, limité à la
publicité, il semble, omettant un art(...) la fiction proprement dite
s'ébat aux travers de 'cotidiens' achalandés, triomphant à des lieux
principaux, jusqu'au sommet." (291)
Mallarmé refere-se aí provavelmente ao espaço que ocupavam dentro da
mídia os romances e folhetins, e ao espaço que passou a ocupar uma
diversidade de textos jornalísticos que oscilavam entre a prosa criativa e
o ensaio. Mas é sobretudo a forma gráfica que trazia a "arte", anunciando
uma possibilidade nova para a poesia: "A juger l'extraordinaire
surproduction actuelle, ou la Presse cède son moyen intelligemment, la
notion prévaut, cependant, de quelquer chose de très décisif, qui
s'élabore: comme avant une ère, un concours pour la fondation du Poème
populaire moderne... "(292, grifos meus). O Livro, é em parte, o resultado
dessa busca, assim como Un coup de dés é uma "amostra" (ou uma caricatura?)
desse livro, na medida em que buscava incorporar ao poema o "movimento" da
tipografia. Tivesse vivido nos anos 20, Mallarmé teria chegado à conclusão
de o cinema poderia ser esse poema popular moderno, como Einsenstein. No
entanto, sua preocupação com o verso, o levou a pensar um outro destino
para o livro.
É por isso que "Le livre, instrument spirituel", começa com a frase,
já conhecida de seus contemporâneos, de que "tout au monde existe pour
aboutir à un livre" (294). Essa frase, ao contrário do que querem muitos
literatos, deveria ser lida enfatizando-se o artigo ("un") e não o
substantivo ("livre"). Pois é em um livro que Mallarmé está pensando, não
em um livro qualquer. Por isso ele começa o ensaio descrevendo a si
próprio, sentado num banco de jardim, com um livro nas mãos e um jornal
(descrito pejorativamente como "lambeau" (294), mas depois como "feuille
étalée, pleine" (296). Passa a comparar então o livro com o jornal, e vê
neste último uma série de conquistas: para começar, a dobra, ou "pliage" do
jornal, que permite a fantasia de se penetrar sensorialmente no texto (e
sem o recurso de uma faca, como se fazia, para abrir as folhas de um
livro); a disposição inteira ("à même", p. 295) do texto numa página (não
quebrada, pouco a pouco, como no livro); a seqüência de vários tipos de
texto, inclusive de anúncios, que o leitor vai selecionando conforme a sua
fantasia; e sobretudo as diversas possibilidades de "composição
tipográfica", que transformam as "vinte e tantas letras" num "rito" (296).
Por isso, o livro deveria ser "a expansão total da letra" (296),
aproveitando dela uma "mobilité" (id.), criando um "jeu" (id.) que
"confirme la fiction". Um livro não deve ser um amontoado de temas ou
histórias ou frases ou versos ou sonetos que depois serão inseridas num
livro, como se este fosse matéria inerte e indiferente ao que foi escrito.
Um livro deve ser planejado como livro, em sua "materialité" (296) antes
mesmo de ir ao prelo: "la fabrication d'un livre, et de l'ensemble qui
s'épanouira, commence dès une phrase" (296). Não é sem razão que a
literatura está em crise, pois ela se transformou numa seita de nefelibatas
flutuantes no livre jogo da imaginação (poetas, escritores) e da
interpretacão (críticos, professores de literatura), que não atentam para a
materialidade daquilo que lhes permite a sobrevivência, o livro. Por isso,
a empreitada de Mallarmé parece tão difícil, para ele mesmo, e para seu
discípulo Valéry, que chegou a imaginar a construcão de uma "máquina
tipográfica" que criasse o Livro automáticamente. Mallarmé tem consciência
de que tal livro ainda não fora escrito, uma vez que os livros consistem,
na sua totalidade, num "va-et-vient successif incessant du regard, une
ligne finie, pour recomencer: pareille pratique ne répresente le délice"
(296). Pelo contrário, é indice de uma monotonia extrema: "toujours
l'insupportable colonne qu'on s'y contente de distribuer, en dimensions de
page, cent et cent fois"(297).
Mais...(297)
Introduzindo assim, com essa conjuncão adversativa isolada num
parágrafo, em itálico, Mallarmé passa apresentar seu programa, uma mínima
amostra dele. Por que não, por exemplo, uma página composta de uma única
linha (mantendo o leitor em espera), seguida de grupos secundários de
frases noutra página, dispostas como "un semis de fioritures"(208). Essa é
uma das vias que a poesia pode tomar para encontrar a Música, não apenas
através do ritmo do verso ou de artifícios retóricos (assonâncias, rimas,
paronomásias), mas de um encontro com a materialidade do livro em outras
bases: uma "Sinfonia literária" não se faz sem se reconhecer que a
literatura passa em primeiro lugar pelo olho do leitor. Por isso, o
"mistério da letras" é menos misterioso do que parece ser. O que parece
"ininteligível" – a acusação que Mallamé já conhecia de ser obscuro – é na
verdade "peu séparable de la surface concedée à la rétine" (301). O leitor
– inclusive o profissional – quer o sentido do texto, um sentido que está
por trás das palavras impressas, por isso se tece entre tal leitor e o
livro "um véu" (298). A verdade é que o sentido, se há, está na página
mesmo, em sua superfície, tão visível para o leitor (ou invisível,
dependendo do caso) quanto uma borboleta branca no meio de uma multidão
(298).
Resta saber se ainda há tal leitor.
Menos conhecido do público e da crítica é o Mallarmé jornalista.
Melhor seria dizer: tipógrafo-editor-jornalista, de uma revista de moda
feita para as mulheres mais elegantes de Paris, e sobretudo de Versalhes.
Entre setembro e dezembro de 1874 (portanto ainda sob os ventos da Comuna),
Mallarmé dedica-se com afinco na edição de La Dernière Mode: Gazette du
Monde et de la Famille[11]. Mallarmé não apenas supervisionava o trabalho
editorial (incluíndo a composição, que lhe valeu uma experiência material
com a tipografia, que seria depois utilizada no Un coup de dés), mas
redigia, ou melhor plagiava, textos sobre os mais diversos asssuntos de
moda, como os tecidos da estação, os melhores chapéus, os vestidos de
noiva, e tudo o que poderia tornar mais atraente uma mulher do monde
parisiense. Mesmo que seus textos fossem pastiches de outras revistas da
época, como demonstrou a pesquisadora japonesa Tomoko Sasahara[12], não é
impossível de se ver por trás do texto-pastiche o texto "autoral", um pouco
como acontece com o Pierre Ménard de Borges. Veja-se, por exemplo (e com
todas as vírgulas), o texto sobre as "Jóias", que ele assina sob o
pseudônimo de Margarette de Ponty:

Cherchons le Bijou, isolé, en lui-même. Où ? partout ;
c'est-à-dire un peu sur la surface du globe, et beaucoup à
Paris : car Paris fournit le monde de bijoux. Qui ! Toute
contrée, comme, par sa nature, une flore, ne présente-t-
elle pas, issus de mains de l'homme, un écrin complet ?
L'instinct de beauté et de relation avec des climats
divers, qui règle, sous chaque ciel, la production des
roses, de tulipes et des oeillets, est-il étranger à celle
des pendants d'oreilles, de bagues, de bracelets ? Fleurs
et joyaux : chaque espèce n'a-t-elle pas comme qui dirait
son sol ? Tel éclat de soleil convient à cette fleur, tel
type de femme à ce joyau.[13]

Além das conseqüências filosóficas para a sua poesia de tais afirmações, do
ponto de vista da repercussão e imbricação mútua de uma na outra (como
ocorre nessa frase lapidar "Cherchons le Bijou, isolé, en lui-même", que
bem poderia ser um verso de um de seus poemas), é importante salientar o
rigoroso trabalho de lay-out , com a utilização de diversos tamanhos e
formas de tipos, que possibilitam a verticalização da leitura, e também com
o aproveitamento orgânico dos espaços em branco e das gravuras, que passam
a compor com os textos uma unidade indissolúvel. Não é difícil perceber que
La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille foi a oficina de
preparação de Un coup de dés, embora ambas as "obras" pareçam pertener a
universos bem distintos: um, ao universo da coqueteria e da vaidade,
outro ao universo de uma poesia de vanguarda, feita de modo subtilíssimo,
para um círculo restrito de leitores. A verdade, no entanto, é que a
distância pode parecer menor, se observarmos as edições da revista de moda,
e do poema tipográfico, sob o prisma da estética. Pois, de um ponto de
vista não dogmático, o domínio dos cosméticos e o da cosmologia são um e o
mesmo, o da ordem e beleza do kosmos.
Assim como Mallarmé, o escritor argentino Jorge Luís Borges escreve
uma "literatura de segundo grau", que fascina não apenas os literatos, mas
todo um rol de pensadores e escritores pós- (estruturalistas, modernos),
como Foucault, Hayden Whyte, Italo Calvino. Num de seus textos mais
célebres, "La Biblioteca de Babel"[14] o escritor argentino Jorge Luís
Borges desenvolve uma de suas diversas cosmogonias, em seu tão peculiar
estilo ensaístico-ficcional: "El universo (que otros llaman la Biblioteca)
se compone de un numero indefinido, y tal vez infinito, de galerías
hexagonales..."
Sabemos que Borges cultivou desde cedo um fascínio pelos livros, não
apenas pelo seu conteúdo, mas por sua própria materialidade. Além do fato
de ter sido Diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, atesta-o sua
paixão por certos volumes raros, suas constantes referências à Britannica e
a edições específicas de alguns autores (De Quincey, Dante), seu estilo
bibliofílico, de passar de um livro a outro em seus textos como quem anda
entre estantes de uma biblioteca universal, além dos textos em que o livro
é o tema (como os contos "A muralha e os livros" ou "O livro de areia"). A
idéia contida em alguns conto e ensaios, de um livro único e irrepetível,
coaduna-se com a filosofia de Borges, segundo a qual toda repetição de um
evento ou de um ser, é não apenas improvável, mas fastidiosa. No entanto, o
mundo é para Borges um pesadelo de repetições, como as incontáveis salas
iguais do Labirinto. Por isso também Borges odiava os espelhos, pois o
espelho é uma diabólica ferramenta para criar novas formas de repetição.
Borges, mesmo cego, ainda o odiava:

El hecho de no verte y de saberte
Te agrega horror, cosa de magia que osas
Multiplicar la cifra de las cosas
Que somos y que abarca nuestra suerte.
("Al espejo", p. 1134)

Assim como o espelho, o Eterno retorno seria a sua forma filosófica de
refutar a multiplicação, e afirmar que não há passado nem futuro, apenas o
presente, e que este contem em si todas as coisas, como já afirmava
Agostinho[15]. Em outros termos, Borges nega a infinita variedade das
coisas do mundo, dizendo que a combinação das coisas diferentes (como o
alfabeto) só gera coisas análogas (esteticamente, Borges desautoriza a
idéia de "novo"). Percebe-se um certo pessimismo em suas afirmações, que se
coadunam com o tão propalado conservadorismo político. Mas não se trata de
pessimismo, mas sim de uma atitude de quem quer entender a Rerum natura a
partir de um princípio antigo, eléatico, de que, se tudo é movimento, não
há movimento. E portanto, o mal e o sofrimento são ilusórios, assim como a
necessidade de deuses, ou de um Deus (ou de um Livro). Ele próprio afirma
que a doutrina da invariabilidade das coisas pode ser um consolo em tempos
sombrios (entenda-se, em tempos como os de Perón): "En tiempos de auge la
conjetura de que la existencia del hombre es una cantidad constante,
invariable, puede entristecer o irritar: en tiempos que declinam (como
éstos), es la promessa de que ningún oprobio, ninguna calamidad, ningun
dictador podrá empobrecernos" ("El tiempo circular", 396).
É necesário recordar, como fez a sua amiga María Esther Vázquez, que
"A biblioteca de Babel" é um reflexão que Borges faz a partir de sua vida
pessoal. Entre 1937 e 1946, Borges trabalhou numa pequena biblioteca de
Buenos Aires, a Biblioteca Municipal Miguel Carné, onde ficou até ser
trasladado, pelo regime peronista, ao humilhante cargo de inspetor de aves,
ovos e coelhos[16]. Na Biblioteca Miguel Carné, Borges teve que se adequar
a um trabalho medíocre de catalogação burocrática de livros
desinteressantes. A visão dos bibliotecários e dos espaços em seu conto
resulta dessa atmosfera "kafkiana" de seu trabalho na Miguel Carné. Mas o
significado do conto ultrapassa os limites das referência biográficas.
Senão, vejamos.
Seu argumento transforma a Biblioteca numa metáfora do Universo – mais
do que isso, um nome[17] para o Universo. As salas hexagonais, compostas
cada uma "invariablemente" de vinte estantes, interligam-se por corredores
iguais. Nos saguões da Biblioteca, encontra-se um espelho que "duplica as
aparências", e que leva alguns homens a acreditar que o espelho é uma prova
de que a Biblioteca (leia-se, o Universo) não é infinita, ao que o narrador
retruca, reticente: "yo prefiero soñar que las superficies bruñidas figuran
y prometen el infinito..." (465) O narrador borgesiano usa aqui uma de
suas táticas, a de contrapor duas visões de mundo opostas, criando um
paradoxo hermenêutico – sua forma estilística de traduzir o labirinto e as
"fastidiosas repetições" dos espelhos. Por um lado, afirmando sua
predileção, apresenta uma das "escolas" filosóficas dos habitantes da
Biblioteca, que argumentam que todas as salas são idênticas, e, logo,
infinitas. Ao contrário destes, os "místicos" acreditam na existência de
uma grande sala circular, com um livro "circular de lomo continuo". Trata-
se, aqui, de uma visão teológica, que se define pela célebre sentença
medieval sobre Deus, traduzida por Borges para esse contexto: "La
Biblioteca es una esfera cuyo centro cabal es qualquier hexágono, cuya
circunferencia es inaccesible" (406).
Ao continuar a descrição (ou interpretação?) da Biblioteca, o narrador
elabora dois axiomas para descrevê-la. 1) a biblioteca é eterna ("existe ab
aeterno"), sendo o homem apenas um momento na eternidade da Biblioteca; 2)
"El número de simbolos ortográficos es veinticinco" (406). Numa "nota do
editor", afirma-se que estão excluídos os algarismos de as maiúsculas", e
incluídos o ponto e a vírgula, além do espaço. Essa afirmação, por mais
tautológica que possa parecer, constitui o vórtice do texto de Borges. Pois
é a possibilidade de combinação infinita desses vinte e cinco símbolos que
cria a infinita variedade e diversidade de livros, e também a infinita
diversidade e variação de interpretações. Por isso a Biblioteca é "de
Babel". Ela pode conter em si todas as combinações possíveis, o que
resulta, para alguns, num universo caótico e sem sentido. O narrador afirma
que com essas combinações, tudo pode estar contido na Biblioteca:

La historia minuciosa del porvenir las autobiografías de
los arcángeles, el catálogo fiel de la Biblioteca, miles y
miles de catálogos falsos, la demostración de la falacia
de eses catálogos, la demostración de la falacia del
catalogo verdadero, el evangelio gnóstico de Basílides, el
comentário de ese evangelio, la relacción verídica de tu
muerte, la versión de cada libro a todas las lenguas, las
interpolaciones de cada libro en todos los libros, el
tratado que Béda pudo escribir (y no escribió) sobre la
mitología de los sajones, los libros perdidos de Tácito.
(468)

Essa consciência teria dado, segundo o narrador, uma esperança aos homens,
uma vez que, se tudo poderia estar contido na Biblioteca, não haveria
problema que não pudesse ser resolvido graças à descoberta de algum livro
que trouxesse uma solução. No entanto, séculos depois, os homens perderam a
esperança, e começaram a surgir seitas que acreditavam em livros perdidos
para sempre, outros que achavam melhor queimar todos os livros (uma sutil
alusão aos nazistas). Outra crença, também composta de fanáticos, passou a
acreditar nas palavras do Homem do Livro, segundo o qual deveria haver um
livro único que contivesse tudo o que foi dito em todos os demais.
Ao final do conto, o narrador volta ao "antíguo problema" do
infinito[18], para dizer que a Biblioteca não é infinita: melhor acreditar
que ela seja ilimitada e periódica. Ou seja: "se un eterno viajero la
atravessara en cualquier dirección, comprobaría al cabo de los siglos que
los mismos volúmenes se repiten en el mismo desorden (que, repetido, seria
un orden: el Orden). Mi soledad se alegra con esa elegante esperanza"
(471). Estamos aqui diante do mesmo postulado de "El jardín de los senderos
que se bifurcan", segundo o qual não há um tempo uniforme e absoluto (como
na física newtoniana), mas uma série de tempos que se bifurcam e correm
paralelos. O personagem do conto, Stephen Albert, alude à teoria do avô de
Yu-Tsun (espião e assassino), Ts'ui Pen (que dedicou sua vida a criar um
romance e construir um labirinto), o qual

creía en infinitas series de tiempos, en una red
cresciente y vertiginosa de tiempos divergentes,
convergentes y paralelos. Esa trama de tiempos que se
aproximan, se bifurcan, se cortan o que secularmente se
ignoran, abarcan todas las possibilidades. No existimos en
la mayoría de esos tiempos; en algunos existe usted y no
yo; en otros, yo, no usted; en otros, los dos. (479)

A necessidade de que as variações não sejam infinitas é também tema do
conto "Funes, el memorioso". Irineo Funes era um personagem dotado de uma
espécie de distúrbio da memória, que lhe tornou possível de recordar-se de
absolutamente todas as coisas que viveu, viu, sentiu. A memória de Funes é
como aquele nominalismo absoluto de Locke, citado por Borges, segundo o
qual todas as coisas poderiam ter um nome próprio. Ele não conseguiria
pensar num cão genérico, apenas nos infindáveis cães que cruzou pelo seu
caminho. Ou seja, Funes não era capaz de pensar, pois "pensar es olvidar
diferencias, es generalizar, abstraer" (490).
O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto escreveu uma poesia em
que o aparente conflito entre a abstração e a concretude se resolve na
materialidade do poema. João Cabral descobriu muito cedo, com Valéry, que o
interesse da poesia está nesse jogo de um pensamento puro, capaz de
abstrair as coisas, e a sua contrapartida, que é o rigor de fazê-las
materializar-se na escrita. Assim, ele elabora uma Psicologia da
Composição, título de um de seus livros, em que descreve essa tensão entre
o concreto e o abstrato na linguagem:

Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.

Benedito Nunes demonstrou que João Cabral cria em seus poemas um nexo
metafórico, de caráter mágico-mítico, para depois desfazer a trama de
imagens, através de um processo de desagregação da metáfora, que desnuda a
linguagem: "uma vez que o mecanismo desnudado foi o da própria linguagem,
em seu mecanismo real, a imagem da flor será, finalmente, convertida à
matéria lingüística de seu suporte verbal, a palavra mesma, como signo
escrito"[19]. A poesia de Cabral realiza assim um processo de
materialização da escrita, tornando palpável ao leitor não apenas a
ferramenta com que trabalha (a linguagem, as palavras), mas o próprio
suporte, a própria mídia. Não é por acaso que João Cabral resolveu ele
mesmo dedicar-se à impressão de livros, numa velha tipografia manual
Minerva. Sua poesia está profundamente impregnada de uma reflexão sobre os
livros, e sobre como a escrita e o livro dão forma ao fluxo e à dispersão
da fala, criando uma obra de engenharia[20] poética.
As tópicas da escrita e do livro aparecem ao longo de toda a obra de
Cabral, e vão assumindo diferentes valores. A princípio, a escrita surge
descrita como luta para despir-se de uma poesia cheia de "flores". Graças a
uma atenção ao ao aspecto "mineral" do papel, o poeta obtém o controle da
expressão:

Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho[21].

A luta do poeta contra o fluido, o apressado e o úmido corresponde a
uma vontade de petrificar-se, o que o situa dentro de uma tradição que
remonta, pelo menos, a Horácio, com seu desejo de criar um monumentum aere
perennius – desejo que, em Cabral, converter-se-á num exercício ascético,
numa "educação pela pedra", como diz o título de um livro seu. Mas as
linhas mestras desse projeto estético já estão claramente definidas na
Psicologia da composição:

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza


da palavra escrita (96).

Vê-se que, para Cabral, o caráter "mineralizante" não se limita à
poesia, mas à natureza mesma do livro e da escrita. Por isso, a busca da
poesia será a de "cultivar o deserto/ como um pomar às avessas" (id.) Uma
das consequências dessa atitude será uma mineralização da própria
subjetividade, que já se separa do corpo no ato mesmo de escrever,
assumindo uma posição distanciada com relação aos sentimentos, o que se
reconhece com facilidade na poesia de Cabral, e sobre o que já muito se
escreveu[22]. Outra, menos comentada, é uma espécie de tranferência de
características da escrita e do livro para as coisas mesmas. É o que ocorre
com um poema de Paisagens com figuras, intitulado "Paisagem tipográfica",
sobre o trabalho do artista e especialista em tipografia catalão Enric
Tormo:

(...)
A paisagem tipográfica
de Enric Tormo, artesão,
é ainda bem mais simples
que a horizontal do Ampurdán:


é ainda mais despojada
que a vila de Cervera,
compacta, delimitada
como bloco na galera.


A paisagem tipográfica
de Enric Tormo impressor,
é melhor localizada
em vistas de arte menor:
na pobre paginação
da Tarassa e Sabadell,
nas interlinhas estreitas
das cidades do Vallès,


nos bairros industriais
com poucas margens em branco
da Catalunha fabril
composta em negro normando
(...)(159)


Tal como, durante séculos, usou-se o "livro" como uma metáfora para
representar imageticamente o mundo, tornando-o assim "legível"[23], Cabral
descreve a Catalunha através de uma curiosa e divertida confusão entre
topografia e tipografia, tornando sensível ao leitor não apenas o
"significado" do texto, mas a implicação material do texto no livro. Assim,
a paisagem se torna concreta, não se dispersa numa série de impressões
vagas, transformando-se num exemplo contra toda forma de dispersão. Trata-
se, como se vê, numa atitude estóica, mas do estoicismo materialista de
Lucrécio. Só que ao invés de investir contra os males da religião, como fez
Lucrécio, Cabral procura criar uma educação pelos sentidos, para ver e
compreender o mundo de olhos abertos, acreditando que o fazer e o criar são
sempre melhores do que a indiferença. É o exemplo da pintura de Mondrian:

(...) quando a alma borracha
tem os músculos lassos
e é incapaz de molas
para atirar-se ao faço (...)


(...)só essa pintura pode,
com sua explosão fria,
incitar a alma murcha,
de indiferença ou acídia(...)
(378)


A culminância dessa visão didática e construtiva é atingida em A
educação pela pedra, livro construído segundo critérios geométricos e
algébricos[24], em que Cabral atinge o ideal da filosofia arquitetônica de
Le Corbusier e da poética filosófica de Paul Valéry: a de transformar o
livro numa machine à emouvoir. Deixando de lado as amplas implicações
semânticas e históricas desse livro-chave, vale acreditar que ele contém em
si mesmo o seu próprio "manual", que desvela ao leitor o funcionamento de
seu mecanismo, ou de sua mola. Encontra-se esse manual em diversos poemas
já bastante comentados, como o clássico "Catar feijão", ou "Tecendo a
manhã", tomados como exemplo de poesia metalingüística e moderna. Contudo,
é na questão menos observada da materialidade da escrita e do próprio livro
que se pode atar melhor os "fios" dessa poesia, e revelar, no fundo, qual é
o comprometimento de Cabral com a Literatura. Tal questão surge de maneira
muito clara em dois poemas: "Retrato do escritor" e "Para a feira do
livro", que, aliás, é o último poema de A educação pela pedra:

RETRATO DO ESCRITOR


Insolúvel: na água quente e na fria;
nas de furar a pedra ou nas langues ;
nas águas lavadeiras; até nos álcoois
que dissolvem o desdém mais diamante.
Insolúvel: por muito o dissolvente ;
igual, nas gotas de um banho ao lado,
e nas águas do banho que o submerge,
em beatitude, e de que emerge ingasto.


*


Solúvel: em toda tinta de escrever,
o mais simples de seus dissolventes ;
primeiramente, na da caneta-tinteiro
com que ele se escreve dele, sempre
(manuscrito, até em carta se abranda,
em pedra-sabão, seu diamante-primo) ;
solúvel, mais: na da fita da máquina
onde mais tarde ele se passa a limpo
o que ele se escreveu da dor indonésia
lida no Rio, num telegrama do Egito
(datiloscrito, já se acaramela muito
seu diamante em pessoa, pré-escrito).
Solúvel, todo: na tinta, embora sólida,
da rotativa, manando seu auto-escrito
(impresso, e tanto em livro-cisterna
ou jornal-rio, seu diamante é líquido).[25]


João Cabral desenvolve aqui, à sua maneira, aquela idéia expressa em
muitos teóricos da oralidade e da mídia, de que o surgimento da escrita e o
desenvolvimento do livro produzem várias espécies de separação: do corpo em
relação à mídia, do sujeito em relação ao sentido, do autor em relação ao
leitor (Ong[26], Gumbrecht[27],Kittler[28]). Para Cabral, as diversas
formas de escrita constituem diferentes graus de dissolução ou solvência do
sujeito em relação ao seu texto. A princípio, o sujeito, sem a escrita, ou
ainda sem escrever, é tomado como uma unidade inteira e "insolúvel",
palavra que pode ter tanto um sentido físico (o de solvência) quanto um
sentido moral ou gnômico. Para Cabral, o sujeito em questão (o escritor)
não se dissolve nas coisas, ou com as coisas, ele mantém-se inteiro, mantém
aquela "resistência" que o poeta admira na pedra, ou nas lâminas de aço. Ao
contrário do sabão do poeta Francis Ponge[29], alegoria de um ser/poeta que
se confunde com o seu meio (a água), formando "bolhas retóricas", o
escritor de Cabral se afasta de toda forma de solvência, como a água
doméstica (a vida íntima), a água da desrazão (os "álcoois") ou a água da
religião ("o banho que o submerge, em beatitude"[30]).
Mas, no exercer de seu ofício, eis que o poeta, empedernido ou
empedrado[31] no ato do fazer, se torna solúvel, em diferentes graus.
Observe-se que quanto mais o porcesso de escrita se afasta do corpo, tanto
mais "solúvel" se torna o escritor. A meta a atingir, assim, é a de uma
assepsia, a "luta corporal" se converte no "diamante...líquido" da folha
impressa, seja em livro ("cisterna"), em que a comunicação é restrita, ou
jornal ("rio"), em que a comunicação se abre para um público mais amplo,
perfazendo o ideal da comunicação escrita (cf. "Rios sem discurso"). Como
já se observou, a poesia de Cabral oscila entre "duas águas", uma mais
fechada e auto-referencial, outra de maior "volume na área de
comunicação"[32]. Por isso, não estranha que a definição de livro do poema
a seguir o apresente como um objeto "mudo":



PARA A FEIRA DO LIVRO
A Ángel Crespo


Folheada, a folha do livro retoma
o lânguido e o vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa ;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o :
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.


*


Silencioso: quer fechado ou aberto,
incluso o que grita dentro ; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos ;
modesto : só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde o queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.


Dedicada ao seu tradutor e amigo espanhol Ángel Crespo, o poema que
fecha A educação pela pedra constitui uma especie de porta de saída ou
postigo, para quem entrou na maquinaria da poesia. Desenvolve-se, na sua
primeira parte, através de um símile complexo, composto de três elementos:
folha (da árvore)-folha (do livro) ; árvore-livro ; vento-voz, para mostrar
que o livro acaba desmentindo ou superando a sua origem (folha, árvore,
voz), ou dela se separando. Na segunda parte, uma nova série de símiles,
agora em forma de comparação, entre o "fechado" e "anônimo" do livro e o
"aberto" da pintura e da música. Não é por acaso que o ponto de culminância
da definição do livro seja o termo "severo", seguido apostos. Ele lembra
tanto a severidade de Severino (Morte e vida severina), capaz de enfrentar
as adversidades da miséria, quanto o comportamento rigoroso e ascético do
próprio poeta no seu fazer.
A ascese tão buscada de Cabral, que culmina na "máquina do poema", é
fruto de uma série de parti pris estéticos, éticos e políticos. Estéticos,
porque toma de antemão o partido de uma poesia antilírica, contra uma
tradição, segundo Cabral, demasiado sentimental, típica da lírica de língua
portuguesa[33]; ao mesmo tempo, investe contra a indefinição, o vago, o
impreciso, de uma tradição simbolista, presente ainda em certos autores do
surrealismo, ou adjacentes a ele[34]. Éticos, quando assume o
comprometimento da poesia menos com questões pessoais e mais com a
realidade social, não se furtando a valer-se de seu caráter didático, para
escrever sobre problemas brasileiros, como a miséria ou a mortalidade
infantil. Políticos, enfim, porque se converte num projeto coerente e um
exemplo de obstinação do correto e do duradouro ("lição de pedra"), num um
país onde as obras públicas são feitas para durar um ou dois mandatos, onde
"tudo parece que é construção e já é ruína"[35], como canta Caetano Veloso,
onde a política virou sinônimo de corrupção e da utilização da coisa
pública como patrimônio familiar.
Mas a contrapartida disso, é óbvio, é uma perda de naturalidade, de
encantamento, e de en-canto, que os poetas brasileiros da geração dos anos
70 e 80 irão criticar em Cabral. Pois, como vimos, em A educação pela
pedra Cabral converte-se enfim num homem-livro (como o Poe, eternizado na
sua obra-lápide, segundo Mallarmé)[36], e a Literatura chega, acaso, ao seu
fim, ou à sua finalidade. Resta saber se, além da Literatura, aina há
poesia. A resposta pode ser afirmativa, se a pensarmos também em outras
mídias, ou a partir de outras mídias. Se a pensarmos na voz, solúvel e
soluçante do performer, porque não-morta no "mineral" do livro. Se
pensarmos na música, dispersa e "viva enquanto voam suas redes", e por isso
mesmo mais instigante, feita da matéria mesma da vida, de seu fluxo. Se a
pensarmos nesse "papel de vidro", que se movimenta sem que o leitor
perceba, que é o texto digital na tela do computador. O próprio Cabral, ou
melhor, o outro Cabral, que admirava tanto a música de Antonio Mairena,
deveria saber, pois sentiu de perto o corpo das bailaoras andaluzas. E
terá sabido o que era a poesia viva do corpo.







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[1] Cf. CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média latina. Rio de
Janeiro: I.N.L., 1957. Cf. tb. BLUMENBERG, H. Die Lesbarkeit der Welt.
Frankfurt/Main:Suhrkamp,1981. A abordagem de Blumenberg vai além da Idade
Média e do Renascimento, e procura entender diferentes concepções do livro
do mundo e da "legibilidade" desse livro nas obras de, entre outros,
Schlegel, Humboldt, Valéry e Mallarmé. Cf. Também CHARTIER, R. A aventura
do livro: do leitor ao navegador. São Paulo, UNESP, 1998.

[2] BORGES, J.L. Cinco visões pessoais. Brasília:Editora da UnB, 1985. A
idéia de mídia como extensão do corpo foi usada também por Marshal
McLuhan, em 1962.
[3] SCHMIDT, S. Die Selbstorganization des Sozialsystems Literatur im 18.
Jahrhundert. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989.
[4] Id., p. 325.
[5] Id, ibid.
[6] Cf. LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Ática, 1998.
[7] SCHMIDT, S. Die selbstorganisation des Literatursystems…, op. cit, p.
400.
[8] Id., p. 401.
[9] MALLARME, S. Oeuvres. Ed. Y-A. Favre. Paris: Garnier, 1985, p.205.
Doravante cito essa edição com a numeração da páginas entre parênteses.
[10] FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades,
1978.
[11] MALLARME, S. La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille.
Paris : Ramsay, 1978.
[12] Apud MALLARME, S. Oeuvres Complètes II. Ed. Bertrand Marchal. Paris,
Gallimard, 2003. p. 1715.
[13] MALLARME, S. La Dernière Mode: Gazette du Monde et de la Famille.
Paris : Ramsay, 1978, p. 25.
[14] BORGES, J. L. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1974. Doravante
cito essa edição no texto, com a numeração entre parênteses.
[15] Como afirma Monegal, "L'idéalisme de Borges est un solipsisme(…)pour
soutenir que, hors du présent, le temps n'existe pas, que ce même présent
que contemple notre moi est déjà de nature ilusoire". MONEGAL, E.R. Borges
par lui-même. Paris: Seuil, 1970, p. 47.
[16] VÁZQUEZ, M. E. Reflexiones acerca de "La Biblioteca de Babel".
Barcelona: Anthropos, n. 142-143, marzo-abril 1993, p. 97-104.
[17] Cf. "El Golem": ("El nombre es arquetipo de la cosa / En las letras de
rosa está la rosa")
[18] Com o problema do infinito também se depararam os atomistas. Leibniz,
que critica alegoria das letras dos atomistas (o alfabeto seria um modelo
para entender as combinações do átomos), imagina uma representação do mundo
como uma Biblioteca Universal. Borges não menciona Lebniz. Sobre o tema
leibniziano da Biblioteca, Cf. BUMEMBERG, Hans. Die Lesbarkeit der Welt.
Frankfurt/Main: Surkhamp, 1981, cap. X.
[19] NUNES, B. João Cabral: a máquina do poema. Org. Adalberto Müller.
Brasília: Editora UnB, 2007.
[20] Lembre-se que seu livro decisivo se chama O engenheiro, e que, entre
seus mentores mais importantes, está o poeta e engenheiro Joaquim Cardozo,
que foi responsável por muitas das obras da construção de Brasília, na
parte de cálculo.
[21] MELO NETO, J. C. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994, p. 94.
[22] Cf. NUNES, B., op. cit.; LIMA, L. C. Lira e antilira. 2. ed. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1995; MERQUIOR, José G. Razão do Poema. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1965; VILLAça, A.
[23] BLUMENBERG,H., op. cit., passim.
[24] Uma leitura precisa desses aspectos em NUNES, B. A máquina do poema,
op. cit.
[25] MELO NETO, J. C. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do
Autor, 1966, p. 94-95. Cito os poemas a partir dessa edição, por ser a que
preserva intacto o projeto matemático-geométrico do livro, sobretudo no que
diz respeito à paginação.
[26] ONG, W. Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998.
[Orality and literacy, London, 1968]
[27] GUMBRECHT, H. U. Modernização dos sentidos. São Paulo: 34, 1998.
[28] KITTLER, F. Gramophone, film, typewriter. Stanford: Stanford
University Press, 1999.
[29] Cf. PONGE, F. O sabão. Tradução e notas de Adalberto Müller. In:
MÜLLER, A. Música e mímesis na obra de Francis Ponge. Tese de Doutorado.
Universidade de São Paulo: 2002.
[30] Essa imagem é de Ponge, em O sabão, op. cit.
[31] Cf. F. Ponge, "Le galet"/ "O seixo", em O partido das coisas. São
Paulo: Iluminuras, 2000.
[32] Cf. NUNES, B., op. cit, Prefácio.
[33] Cf. Da função moderna da poesia, em Obras completas, op. cit., passim.
[34] Cf. "Anti-Char", em Museu de tudo, Obras completas, op. cit.
[35] VELOSO, C. "Fora da ordem". Circuladô.

[36] "Tel qu'en lui-même enfin l'éternité le change".
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