A Medicina e os Médicos Face à Eutanásia

July 17, 2017 | Autor: José Carlos Almeida | Categoria: Philosophy, Ethics, Euthanasia, Medicine, The ethical debate on Euthanasia
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A MEDICINA E OS MÉDICOS FACE À EUTANÁSIA E AO SUICÍDIO ASSISTIDO




§. J 1. O paradigma da cura e da luta contra a doença
As imagens imediatas que associamos à profissão de médico e à medicina
têm a ver com a luta contra a doença e, por último, contra a morte. Duma
forma mais ou menos romântica, mais ou menos fantasista, representamos o
médico como um herói que luta abnegadamente pela vida do seu paciente,
combatendo a doença e fazendo recuar constantemente o espectro da morte.
Nesta batalha constante, a ocorrência da morte representa um duríssimo
golpe na consciência dos profissionais da saúde. A morte significa o
insucesso, o malogro. A morte é o sinal derradeiro do fracasso, uma
machadada no brio profissional. Neste âmbito, às representações que todos
temos sobre a morte, devemos acrescentar aquelas que resultam da
especificidade desta actividade. Na nossa luta colectiva pelo esquecimento
da realidade da morte, a classe médica representa um papel especial: nela
depositamos todas as nossas esperanças, as últimas e mais radicais, para
que a morte seja derradeiramente derrotada. Uma ingenuidade que não
queremos assumir enquanto tal. A medicina e o seu cortejo de produtos e
técnicas representam a guarda avançada nesse combate fundamental.
Inconscientemente, aguardamos a sua vitória. O nosso desejo, tão oculto
quanto ancestral de imortalidade, alimenta o nosso positivismo espontâneo e
congénito. Acreditamos ou desejamos acreditar que a ciência acabará por
vencer todos os obstáculos, ultrapassar todas as dificuldades e re-fundar
uma humanidade finalmente livre de todo o mal e sofrimento.
Poderíamos até pensar que tratando-se duma actividade que
constantemente contacta com a fragilidade da vida estivesse, por essa
razão, melhor posicionada para abordar e entender o fenómeno da morte. Mas
não é assim. A morte é o inimigo, cuja irrealidade a colocou sob uma forma
fantasmática. Ora, a luta contra fantasmas começa por ser uma luta com a
sua própria consciência e as suas representações. Tratando-se de um
fenómeno biológico[1], a dimensão com que lidamos é eminentemente cultural.
O problema da atitude da classe médica diante da morte não é uma questão
puramente de técnica médica, mas tem a ver com valores e convicções. Todos
os médicos têm a sua filosofia espontânea[2] que se cruza, intromete e
molda atitude e práticas. E é nos domínios de ponta da medicina que esse
mundo ideológico se manifesta com mais ou menos violência. É quando os
médicos tocam os limites da vida humana (o nascimento e a morte) que as
questões ideológicas e morais se soltam, como se o esgrimir de argumentos
desta natureza compensasse as insuficiências técnicas e científicas nestes
domínios. Quando os argumentos científicos revelam a fragilidade do
edifício científico, vem em seu socorro a argamassa ideológica!
Apesar da proximidade da morte, do convívio diário com a morte, nem
por isso os médicos estão familiarizados com a morte. Pior do que isso. Não
estão habituados a lidar com a morte e não sabem lidar com a morte.
Educados e ensinados para prolongar a vida, a morte não é ensinada nem
aprendida nas escolas. Do mesmo modo que ao nível do ensino da medicina e
da formação dos médicos se revela uma falta de preparação para lidar com o
fenómeno da dor, desde a sua compreensão até ao seu tratamento. Pelo que se
repete a "(...) necessidade imperiosa de promover a preparação profissional
na área da avaliação e tratamento da dor, implicando desde já uma adequação
dos programas e métodos no ensino médico pré e pós-graduado."[3] Os médicos
não estão habilitados para tratar dos doentes em fase terminal. O médico
não está preparado para enfrentar as situações de morte anunciada e
certa[4]. A medicina, ao longo da sua história secular, fixou-se no
objectivo de curar. Aliás, essa também sempre foi a natural expectativa com
que os doentes se dirigiam ao médico e à medicina. Por outro lado, o médico
não tem, habitualmente, este confronto com a morte quando esta é certa e,
aparentemente, não haveria mais nada a fazer. A sua única arma, se assim se
pode dizer, é a própria experiência da morte dos amigos ou familiares.
Estas são as ocasiões mais frequentes com que lida directamente ou de uma
forma mais próxima com a morte. Os doentes em fase terminal atravessam uma
crise relacionada com a consciência da proximidade e certeza da morte
(previsibilidade da morte) e para os quais a classe médica está mal
preparada, bem como a organização dos serviços hospitalares dispõe de
poucas respostas. Igualmente, os hospitais não estão preparados para lidar
com a morte, quer ao nível dos recursos físicos, quer ao nível da sua
organização e no que respeita aos seus recursos humanos. É que estes
doentes vivem, nos últimos tempos, uma fase de exaltação relacional[5] que
exige mais a proximidade e o contacto com os familiares e amigos do que,
propriamente, cuidados técnicos. As suas necessidades são bem específicas,
mas os médicos terão tendência a tratá-los como aos outros doentes. Há
assim, por parte da classe médica, um comportamento desajustado, um
"comportamento feito muito de técnica e pouco de presença enquanto que é o
inverso de que aqueles doentes têm necessidade"[6]. Ou, como alguns estudos
demonstram[7], perante doentes cuja morte está próxima e é certa, o pessoal
médico e auxiliar terá um comportamento, inconscientemente, menos cuidadoso
e atencioso, porque entendem que já não há nada a fazer. Ora, este nada a
fazer esconde um muito que ainda pode ser feito. O doente incurável recorda
ao corpo médico a sua impotência e derrota. Não se comunica mais com o
moribundo, ele é apenas tido em conta enquanto sujeito clínico. Os doentes
são apreciados na medida em que fazem esquecer à equipa médica que vão
morrer. Os moribundos não têm estatuto nem dignidade. O seu papel é
negativo: fazer de conta que não vão morrer[8]. Uma grande parte dos
doentes acaba por morrer num quarto de um hospital, mas este está preparado
para lidar com a doença e não com a morte. Ora, o médico, integrado em
equipas multidisciplinares, deveria ajudar o doente a lidar com a sua
morte, na medida em que esta não é algo exterior à vida, mas o desfecho
natural de um organismo que funciona dentro de certos limites. O médico, o
pessoal de enfermagem, os serviços hospitalares e a sua organização ainda
não reconhecem, frontalmente, a finitude humana, a evidência mais segura e
clara, tão ofuscante quanto esquecida!...
Os médicos lidam com a doença e não com a morte. O paradigma da cura
faz com que os médicos lidem com a doença em função da vida que é o
objectivo fundamental. Apesar de rodeados permanentemente pela morte, os
médicos não estão habituados a lidar com a morte[9]. O que se percebe se
pensarmos que, de acordo com esse paradigma, lidar com a morte seria o
mesmo que lidar com o fracasso. Esta visão negativista da morte é o reverso
duma visão heróica da profissão que tudo faz para salvar um doente ( leia-
se fazê-lo regressar a um estado de saúde. Por outro lado, também os
hospitais se ressentem desse paradigma. Apesar de sabermos e constatarmos
que cada vez mais as pessoas morrem nos hospitais (em França, 70 por cento
das pessoas morrem nos hospitais)[10] estes também não estão preparados, em
termos de recursos físicos e humanos, para operar com a morte e com os
doentes que dela se aproximam. Assim, facilmente reconhecemos que os
médicos, como a maioria das pessoas, não estão aptos para lidar com a
morte. No entanto, não deveria ser assim já que os médicos acabam sempre
por ter a morte por perto, quer enquanto acontecimento, quer enquanto
ameaça inominada ou inominável. Mas que razões encontramos para essa
inabilidade da classe médica em relação à morte? Em primeiro lugar, a
explicação mais imediata prende-se com insuficiências formativas, pelo que
uma das razões estará relacionada com o ensino da medicina. A morte é uma
realidade de outra ordem, metafísica, e o médico, numa perspectiva
positivista, não deve intervir neste domínio metafísico e especulativo,
exacerbando as suas funções. Por outro lado, a ciência médica está
essencialmente marcada pelo paradigma da cura, que já vem da Antiguidade. E
curar era, fundamentalmente, vencer a morte, visto que as doenças eram mais
mortais e a mortalidade mais presente. Finalmente e ao colocarmos assim as
coisas, o médico, ao lidar com a morte, está inconscientemente a reconhecer
o seu fracasso, afastando-se aparentemente da sua tarefa, de uma nobre
missão, revivendo o ambiente terrífico e corrosivo de uma peste que ameaça
tudo e todos, conspurcando a pureza alva das batas.
A ética e deontologias do pessoal da saúde fixaram um objectivo:
curar. Não estão preparados para uma medicina e atitude médicas que se
limitam a confortar, com todos os sentidos que a palavra implica. Confortar
não significa dar umas palmadinhas nas costas do doente e dos seus
familiares, repetindo banalidades: que todos nós temos, um dia, que morrer;
que para morrer basta estar vivo ou que Deus é quem sabe quando deve chamar
cada um para a sua beira. Confortar significa dar conforto, um processo que
exige a intervenção de uma equipa multidisciplinar. Não é verdade que não
há nada a fazer: há ainda muito a fazer.
Mas este paradigma da cura esconde uma concepção redutora da vida. Com
efeito, o paradigma da cura absolutiza uma concepção demasiado biologizante
da vida. A história da medicina é marcada por uma preocupação fundamental
dos médicos: a de curar. O juramento hipocrático definia logo aí a cura
como constituindo a missão fundamental do corpo médico. O recurso a todo o
transe a terapias intensivas, a necessidade de fazer tudo o que é
humanamente possível, caracteriza essa preocupação que muitas vezes se
transforma em obsessão ( uma obstinação terapêutica. É por isso que podemos
falar da existência de um paradigma da cura[11]. E é de tal modo assim que
o fracasso ou o simples impasse são dramaticamente vividos pelo pessoal
hospitalar, podendo, nalguns casos, resultar em situações de sintomas
depressivos[12]. Mas esta obsessão pela cura acaba também por revelar
determinados pressupostos filosóficos e ideológicos que estariam por detrás
da actividade médica. De facto, procurar a cura em todas as situações
releva duma preocupação com a vida humana na sua vertente biológica vista
num aspecto puramente quantitativo. A cura é uma tarefa que tem os seus
limites, não se pode pretender vencer a finitude humana. Segundo BRITO &
RIJO, quando esquecemos isto, "acabamos por cair na idolatria tecnológica e
na absolutização da vida biológica"[13]. Este último aspecto deveria ser
indicado noutros termos: biologização da vida humana e uma crença (ou antes
desejo de acreditar) positivista na. omnipotência da técnica terapêutica.
Esse paradigma da cura acaba por traduzir uma visão redutora da vida
humana. Bem alertava, por isso, a Conferência Episcopal Espanhola, quando
sugeria que a medicina se devia orientar para o benefício da pessoa, e não
se limitar "a um puro esforço tecnológico para prolongar a vida"[14]. O
paciente deve ser visto não apenas como possuindo um corpo, visto como uma
máquina biológica com as suas regras de funcionamento, mas antes como uma
unidade que contempla diversas dimensões: biológica, psicológica, social,
religiosa e ideológica. A saúde e a doença contemplam essas dimensões.
Porque a saúde não é a simples ausência de qualquer doença. A saúde implica
um conjunto de condições físicas, psíquicas e sociais que garantem o bem-
estar e o conforto do indivíduo.
O facto de no debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido, se
registar a intervenção de numerosos médicos e pessoal de enfermagem deve-
nos pôr de sobreaviso em relação a um problema que daí pode decorrer: a
excessiva medicalização da eutanásia e do suicídio assistido. Como já
referimos, apesar de haver uma componente técnica, a questão não é
essencialmente técnica[15]. Por outro lado, também não se trata apenas de
uma questão de direitos e deveres da classe médica e de enfermagem. Apesar
de estarmos diante de situações que podem colidir com direitos e deveres,
apesar de se criarem situações de conflitos de deveres, não nos podemos
esquecer dos direitos do paciente. Face aos direitos que devem ser
reconhecidos a cada um sobre a sua morte, os direitos e deveres dos médicos
tornam-se secundários.
Se, nos últimos tempos, temos assistido a uma excessiva medicalização
da sociedade, com os médicos a invadirem domínios que outrora eram da
competência das pessoas e das comunidades, acabando com práticas seculares
no tratamento dos problemas de saúde, estabelecendo academica e
administrativamente o que pode e deve ser feito, ridicularizado hábitos
ancestrais[16], tal não nos deve levar a afastar da esfera de autonomia
privada o domínio de cada um sobre a sua morte. A dependência progressiva
face ao médico e a atribuição de um poder desmesurado às suas práticas e
discurso, acompanhada do facto de cada vez se falecer mais nos hospitais,
não nos pode levar a abdicar de ter uma palavra sobre o modo como queremos
passar ou enfrentar os últimos dias da nossa vida.
O discurso médico acaba por se centrar excessivamente sobre si mesmo,
incapaz de pensar soluções que não passem pela sua esfera de actuação (e,
como vimos, existe uma concepção redutora sobre esta). O discurso reflecte
o desapossamento do paciente em relação à sua vida mal acaba de entrar no
hospital. O cidadão deixa de existir para passar à condição de doente nas
mãos do médico. Este é o eixo central do processo. Inevitavelmente,
reflecte sobre os seus direitos e deveres, esquecendo as angústias do
paciente.
O tratamento da dor também tem revelado as suas deficiências. A função
principal da dor é a de sinal, na medida em que constitui um alarme
biológico. Enquanto reflexo de um disfuncionamento, os médicos,
naturalmente, mobilizaram a sua atenção e os seus cuidados para a causa de
que a dor era um reflexo. A dor tornou-se, assim, uma realidade secundária
no estado do doente. Era um sintoma e não o alvo principal dos cuidados.
Por outro lado, associando-se a dor ao sofrimento, e sendo este visto como
punição, castigo ou merecido sofrimento, uma determinada mentalidade
conservadora, não isenta de preconceitos de ordem religiosa, aumenta ainda
mais a passividade médica face à dor. Vista a dor (e a morte) como
consequência do mal cometido pelos homens ou marca irremediável do seu
posicionamento original, é assim remetida para um plano moral onde a
expurgação da dor apenas se pode situar, também, num plano moral. Pelo que
de nada valeria uma intervenção médica.




§. J 2. Os problemas colocados pela evolução das tecnologias médicas
Fala-se da eutanásia como um problema, mas devemos começar por ver que
a eutanásia surge como uma resposta e uma tentativa de solução em relação a
um problema. Que problema é este? A medicina, bem como as ciências em
geral, têm registado nos últimos tempos avanços muito grandes que visam
salvar e prolongar a vida das pessoas que, há uns anos atrás, encontrariam
a morte. Novas terapêuticas e fármacos, novos métodos de cirurgia e
neurocirurgia, transplantes, utilização de novas tecnologias, tudo isto
contribui para prolongar a vida do paciente para lá do que, até há bem
pouco tempo, era impensável. Com efeito, cada vez se morre mais tarde. a
esperança média de vida aumenta. No século XVIII era de 35 anos, enquanto
no início do século XX era de 50 anos. Mas, actualmente, situa-se entre os
69 e os 72 anos, havendo 4% dos óbitos que ocorrem em indivíduos com idade
superior a 90 anos e 23% dos óbitos em indivíduos com idades situadas acima
dos 80 anos[17]. Esta nova situação leva a que médicos e outros
profissionais da saúde, especialistas em moral e ética, doentes e
respectivas famílias se interroguem sobre a utilidade e pertinência de
novos tratamentos que adiariam a morte sem cuidar da qualidade de vida que
daí decorre, sobre as possibilidades de real recuperação, chegando-se mesmo
a propor a interrupção ou a não aplicação dos tratamentos ou até a própria
morte medicamente assistida, desde que o paciente tenha dado, duma forma
consciente, informada e reiterada, o seu consentimento. A eutanásia surge
assim como uma possível solução para um problema para o qual o avanço da
medicina contribuiu significativamente, uma medicina que, "ao poder
prolongar a vida dos seres humanos de maneira quase indefinida mas em
condições precárias, o que faz em muitas ocasiões é prolongar
indefinidamente a dor e o processo de morrer"[18].
O avanço da ciência e da técnica no mundo ocidental nunca foi isento
de problemas. Mesmo que confundido com questões de ordem ideológica, esse
progresso sempre foi interrogado ao nível das suas repercussões na própria
condição humana. A medicina também não escapou a esse questionamento. Ainda
para mais, tendo em conta que se trata de um sector do conhecimento que
registou grandes avanços e que, por outro lado, trata o homem na sua nudez
mais desesperante e inquietante. No entanto, estamos diante de um paradoxo
que se pode enunciar da seguinte maneira: "A tecno-ciência permite
doravante prolongar a vida das pessoas que, sem ela, já teriam falecido
segundo o processo natural das coisas, mas a contrapartida representa, por
vezes, um tributo excessivo a pagar: o prolongamento dos sofrimentos e da
angústia, o surgimento de crises no seio da família, sem esquecer o aumento
de custos que pode obrigar a escolhas impossíveis."[19]
O espectacular desenvolvimento da medicina criou um contexto
completamente diferente no tratamento dos doentes em fim de vida daquilo
que acontecia há algumas décadas. Sem curar a própria doença, podem pôr-se
em práticas tecnologias paliativas que retardarão o momento da morte ao
resolver complicações secundárias, por exemplo, de tipo respiratório,
hematológico ou digestivo. A morte deixa de ser um momento identificado com
precisão para se tornar num processo, muitas vezes, prolongado, ao longo de
dias, semanas ou meses. Deste modo, assistimos ao desenvolvimento de um
poder ainda maior do médico: "encontra-se, queira ou não, em situação de
regular as condições de fim de vida e a manutenção ou não da lucidez. Ele
decide, de certa maneira, o momento da morte."[20]
Pessoas que, ainda há poucos anos, morriam na sequência das doenças
que os atingiram, vêem a sua vida prolongada através dos mais diversos
meios mecânicos e terapêuticos e que consubstanciam o avanço técnico e
científico da medicina nos últimos tempos. Não se pense, contudo, que a
medicina prolonga a vida; em rigor, devíamos afirmar que retarda ou adia o
momento da morte, porque perante certas formas artificiais de sustentação
da vida e a forma concreta como esta decorre nos seus derradeiros momentos,
teremos dificuldades em classificar como vida, com as características
básicas e fundamentais de consciência e autonomia que, normalmente, lhe
estão associadas. Criou-se, assim, uma espécie de sobrevida ou
sobrevivência, uma zona intermédia entre a vida e a morte, mantida
artificial e artificiosamente, que premeia estatisticamente o esforço dos
médicos e da medicina e contribui para o seu aspecto triunfal, mas que
ocorre à custa do doente e dos seus familiares que vivem (n)uma zona
cinzenta com sentimentos contraditórios, que não chegam para afastar o
clima depressivo que a acompanha. Prolongar esta espécie de vida pode
significar o prolongamento da dor e do sofrimento, obrigar a família a
viver um período mais ou menos prolongado de ansiedade e incerteza, uma
forma pouco compensante de pré-luto. O irrecusável avanço da medicina tem,
inegavelmente, aspectos positivos. Mas traz também consigo estas
consequências que colocam novos problemas ou nos obrigam a pensar velhos
problemas, aparentemente esquecidos. Não é por acaso que o relançamento do
debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido ocorre na sequência da
mediatização de vítimas destes avanços da medicina.
O desenvolvimento dos meios de diagnóstico vieram dissipar algumas
dúvidas e fazer surgir outras, ao mesmo tempo que clarificavam zonas mal
iluminadas do diagnóstico, criavam-se outras zonas de sombra. A mudança dos
motivos que conduziam à interrupção da gravidez ou à suspensão dos
tratamentos resultam do desenvolvimento em grande medida da evolução dos
meios diagnósticos, que nos permitem antecipar com segurança cenários
infaustos. A função do sangue fetal e a biologia molecular vieram ampliar a
nossa capacidade de diagnóstico; porém, antes do seu aparecimento, "era
hábito interromper a gravidez quando se constatava a existência de uma
seroconversão toxoplásmica.[…] A radicalidade do método evitava o
aparecimento de dúvidas morais."[21]
Mas os avanços da medicina caminham em vários sentidos. Do mesmo modo
que se caminhou no sentido de prolongar a vida ou adiar a morte, também se
evoluiu no sentido de encontrar formas indolores de por termo rapidamente à
vida. Porém, a tradição hipocrática não valoriza suficientemente esta
direcção. O seu progresso identifica-se com a luta contra a morte, como se
houvesse um desejo inconsciente de vencer definitivamente a morte. De
facto, o sonho de imortalidade nunca abandonou o homem. O desejo de uma
juventude eterna e a obsessão pela saúde e pela posse de um corpo perfeito
fazem parte desse projecto milenar. E a medicina está ao seu serviço[22].






§. J 3. A decisão de interrupção dos tratamentos é normal nos
hospitais
Todos os dias se tomam decisões nos hospitais que constituem
procedimentos eutanásicos, interrompendo formas de vida sub-humana.
Desligam-se ventiladores, suspendem-se infusões intravenosas, cancelam-se
cirurgias ou retiram-se medicamentos. A decisão de não prestar cuidados
intensivos, invasivos ou ressuscitadores equivale, nos doentes terminais, a
interromper uma forma de vida mantida artificialmente e, portanto, a
apressar a morte. A escassez de recursos físicos por um lado e a lenta e
prolongada agonia de alguns pacientes por outro conduz inevitavelmente à
suspensão de tratamentos e, por sua vez, à morte do paciente. As máquinas
têm que ser desligadas, o mais que não fosse para dar lugar a outros
pacientes, porventura com outras esperanças ou possibilidades de
recuperação. Por isso se pode afirmar que "a eutanásia indirecta é um facto
consumado na prática hospitalar"[23] Entre nós, a conduta do médico que se
encarregue de tal procedimento nem sequer é condenável deontologicamente.
Esta é uma situação corrente em todos os hospitais do mundo. Até
porque esta forma de eutanásia, eutanásia indirecta (ou também chamada
negativa), é aceite pela maioria das tradições religiosas, nomeadamente a
cristã e o catolicismo, e pelos códigos deontológicos da classe médica. A
obstinação terapêutica, os actos heróicos sem esperança, foram abandonados:
"A questão da eutanásia negativa (indirecta) está resolvida
eticamente."[24]
Inquiridos sobre a existência ou não de práticas eutanásicas durante a
sua carreira, um significativo número de clínicos de diversos países
responderam afirmativamente, no sentido do recurso a procedimentos que
encurtaram a vida ou tiveram a morte como efeito secundário ou que ficaram
pela pura e simples suspensão de tratamentos ou desligar dos meios
mecânicos que mantinham artificialmente a vida dos seus pacientes. Quando
enfrentaram o pedido directo do paciente ou dos seus familiares, muitos
médicos, perante uma situação terminal comprovadamente irreversível,
acompanhada de dores e sofrimento irremediável, um grande número de
inquiridos acedeu ao pedido insistente do doente e/ou familiares. Noutras
circunstâncias, também o pessoal, nomeadamente pessoal de enfermagem,
reconheceu participar, duma forma mais ou menos directa, neste
procedimentos. Em França, ficaram célebres os processos judiciais que
envolveram enfermeiras que confessaram publicamente os seus casos.
Apesar desta situação que se vive nos estabelecimentos de saúde, o
discurso oficial recusa reconhecê-la. As situações descritas não são
reconhecidas como eutanásicas. E desde logo porque se entende que não
existem ou são muito raros os casos em que o doente ou os seus familiares
solicitam ao médico ou ao enfermeiro esse acto misericordioso. Contudo,
deve-se perceber porque é que as coisas se passam assim, para que não se
conclua depois que a solução eutanásica não é desejada pela população, ou
apenas é colocada por um discurso inflamado pela paixão e oriundo de gente
de boa saúde[25].
Em ABIVEN[26] sublinha-se o carácter excepcional do pedido eutanásico
feito aos médicos. Mas não se relaciona esse carácter excepcional do pedido
eutanásico com o facto de ser proibida na lei e ainda porque, como se
reconhece mais à frente[27], esse pedido nunca ser formulado ao médico por
parte dos familiares. É fácil adivinhar que esse desejo seja formulado
pelos familiares quando conversam e desabafam entre si, mas é mais difícil
admitir que esse pedido seja formulado directamente ao médico. Mesmo que
desejado, a sua formulação enquanto pedido é um passo complexo e radical:
trata-se de decidir pela morte de alguém, o que não é de modo nenhum
realizado de ânimo leve, mesmo que corresponda ao desejo expresso e
continuado do paciente. Por outro lado, temos que reconhecer que é ainda
mais difícil e delicado formulá-lo ao médico que está encarregue de tratar
o paciente. Não só porque se sabe que os médicos, oficialmente, se opõem à
eutanásia, mas também porque temem deixar ver o seu familiar que está na
cama do hospital numa posição ainda mais fragilizada face ao empenhamento
do médico, pois temem que assim tenham deixado escapar algum secreto desejo
de se verem livres dum familiar que pode ser um estorvo ou tenham acabado
de manifestar desinteresse pelo seu destino, o que pode ser um subtil
convite feito ao médico para que afrouxe o seu empenhamento e os próprios
tratamentos. Compreende-se, por isso, que formular o pedido eutanásico seja
um passo delicado e arriscado. Por essa razão, não sejam tantas vezes
formulado quantas vezes é desejado, apesar das circunstâncias. A eutanásia
a pedido do doente é rara porque existe, entre vários motivos, aquele que
se liga ao facto de, tradicionalmente, o médico aceitar muito dificilmente
que a prescrição do que se deve fazer possa partir do doente. E este tem
consciência de que o médico vê muito mal essa iniciativa do doente. A
formulação, por parte deste, de um qualquer pedido já é por si só
extremamente dificultada por toda uma tradição de subalternização do doente
face ao médico. Por maioria de razões estamos diante de uma situação ainda
mais complicada, pois trata-se do doente pedir algo ao médico que está fora
daquilo que ele considera ser as suas atribuições. Neste sentido, o facto
de serem raros os pedidos formulados pelo doente ao seu médico para que
este o ajude a morrer não nos devem levar a tirar conclusões sobre a não
admissão por parte deste doente desta solução, mas antes a expressão de uma
posição do doente em que este se anula ou auto-limita no exercício dos seus
direitos face ao poder e a posição do médico ou, pura e simplesmente,
esquecimento dos seus direitos.




§. J 4. Dor e sofrimento
Quando, no doente dito terminal, falamos em dores e sofrimentos
insuportáveis, distinguimos duas realidades, que se relacionam mas que não
podem ser confundidas. O sofrimento é a expressão de uma determinada
situação que pode ser caracterizada pela existência de dores, nomeadamente
crónicas, mas que não se esgota na existência de dores. Neste sentido, o
sofrimento é mais amplo que a dor e pode até haver sofrimento sem dor, do
mesmo modo que podem haver dores que não causam sofrimento, mas, por
exemplo, prazer. Sendo o sofrimento uma realidade mais ampla que a dor é
também mais complexa[28]. Normalmente, associamos a dor a realidade física,
a uma lesão, actual ou potencial. O sofrimento seria mais do âmbito
psíquico. Quando afirmamos que alguém está a sofrer referimo-nos a um
estado psicológico, aos seus sentimentos, à sua alma. O sofrimento exprime-
se sensivelmente e, por isso, ele é visível; mas trata-se do reflexo de um
estado mental, provocado por uma lesão dolorosa. Mas existem outras
situações que nos fazem sofrer e que não têm nada a ver com a dor. No
doente terminal são inúmeras as situações que conduzem ao sofrimento: a
começar, o medo da morte ou o medo e a angústia provocados pela incerteza
quanto ao modo como se irá morrer. A certeza da morte próxima e a
ignorância relativa a essa mesma morte, porque agudizadas no doente,
conduzem necessariamente ao sofrimento. Também fará sofrer a consciência
que se tem da própria situação que se está a viver quando esta é degradante
e humilhante.
Resulta de tudo isto que sor e sofrimento são realidades distintas que
podem estar associadas ou não; a dor pode ou não provocar sofrimento e este
por ou não ter por detrás de si uma situação dolorosa, na medida em que
esta pode ser definida, em sentido estrito, como uma experiência
desagradável associada a lesão real ou possível[29]. Ora, Um dos argumentos
contra a eutanásia vem dos médicos que tratam a dor, nomeadamente, aqueles
que trabalham em unidades da dor, secções hospitalares dedicadas
exclusivamente ao controlo e domínio da dor, com base num aprofundado
estudo da dor e com pessoal altamente qualificado.
A primeira unidade da dor foi criada nos anos sessenta em Washington
por John Bonica, autor de Tratamento da Dor, publicado em 1953 e
considerada a Bíblia da algologia. Em Espanha, a primeira unidade da dor
foi implantada no Hospital 12 de Outubro de Madrid, sob a direcção de José
L. Madrid. O tratamento da dor recorre a diversas metodologias. Aí, 80% dos
casos são tratados farmacologicamente, por via oral ou venosa. Existem,
para os outros casos, terapias mais agressivas, tais como, secção de
nervos, implante de eléctrodos, crioterapia. Também se pode recorrer à
acupunctura eléctrica, hipnose ou relaxação. Segundo aquele médico[30] a
eutanásia não se justifica se tivermos em conta as dores físicas do
enfermo, perante os grandes avanços da algologia e da medicina paliativa.
Ficam por resolver as dores psicológicas e espirituais que assaltam o
paciente na sua fase terminal. Por outro lado, afirma também que a
depressão respiratória causada pela administração de morfina já é
controlável. Mas será que as dores físicas são todas controláveis? E que
peso têm as tais dores psicológicas e espirituais no conjunto do sofrimento
do paciente e para as quais não existe qualquer terapia?
A dor isola o doente da realidade que o rodeia, porque a dor capta e
monopoliza a atenção do doente. A dor crónica acaba por se tornar uma
realidade omnipresente e, por isso, obsessiva. O doente afectado por dores
crónicas focaliza a sua atenção na dor que o faz sofrer, impede-o de
dormir, deixa-o exausto e interrompe o seu relacionamento o seu
relacionamento com o meio envolvente. Aqui estão também incluídas as
próprias pessoas, mesmo aquelas que lhe são mais próximas. Tudo aquilo que
interessa e apenas o que lhe interessa é o alívio das dores. É o único
objectivo que o mobiliza verdadeiramente[31]. A dor crónica, ao contrário
da dor aguda, domina o doente. Todas as actividades que não estejam
relacionadas com o alívio das dores não lhe interessam e representam um
enorme esforço. A sua capacidade de raciocinar também fica debilitada. A
depressão ataca facilmente estes doentes. Incapazes de dormir, os doentes
com dores crónicas ficam completamente exaustos[32].
Se a dor não é apenas um acontecimento patológico, um acontecimento de
base corporal, então o tratamento da dor não passa apenas por terapias que
incidam sobre o corpo. No doente terminal a dor mais profunda não é que
resulta do corpo que tenho, mas deste corpo que eu sou. E o corpo que eu
sou naquela fase é a revelação mais evidente, cruel e miserável da minha
finitude. A consciência dolorosa da finitude é a consciência do ser prestes
a deixar de ser. A dor do doente terminal é uma dor obsessiva, porque se
acha possuído pela dor, a dor tomou conta dele, da sua vontade, dos seus
desejos, da sua consciência. Subitamente, ele já não é mais do que esta
dor. A dor não é um predicado, um acidente ou um incidente. A dor tornou-se
ontológica. Vire-se para onde se virar, o ser é dor. Está resumido à dor
que ele é, a dor tomou conta do ambiente à sua volta, ocupou todo o tempo e
o espaço, manipula os outros e o olhar dos outros. Tornou-se impossível
situar a dor, o que poderia constituir uma boa maneira de a dominar. A dor
cercou-o e ocupou-o. A dor ocupa-o e já não existe território neutro, não
existe escapatória.




§. J 5. A saúde e o corpo saudável – objetivos e obsessões
No nosso tempo a publicidade e os meios de comunicação elogiam a todo
o momento a perfeita saúde e o corpo são como modelo de perfeição. Em
resposta a essa tendência cultural criou-se um preconceito moderno que leva
as pessoas a envergonharem-se da doença e a esconder a morte. Por oposição
a um corpo perfeito e imaculado, a doença surge, de novo, como uma
maldição[33].
Nunca como no nosso tempo se viveu uma tão grande obsessão pela posse
e manutenção de um corpo perfeito, equilibrado, saudável. Multiplicam-se as
clínicas e os ginásios, desenvolvem-se disciplinas físicas, o culturismo, a
aeróbica, a dança jazz, ou práticas orientais onde o exercício do corpo tem
uma forte componente. O incremento das medicinas tradicionais e
alternativas inscreve-se no projecto da saúde, de um corpo saudável e em
harmonia com o meio que o rodeia. Inventam-se dietas e produtos miraculosos
para emagrecer. O corpo gordo é uma ofensa quando não é penalizado nos
aviões pelo espaço excessivo que ocupa. Aos fins-de-semana, famílias
inteiras, de fato de treino, a pé ou de bicicleta dedicam o seu tempo livre
ao exercício físico. Inventam-se alimentos light para não agredir a saúde e
o corpo. Proliferam as cirurgias estéticas para corrigir o que o modelo pré-
definido pelo figurino da época. É possível prolongar a juventude. Não se
trata ainda da imortalidade, mas já estivemos mais longe[34]. A saúde
passou de preocupação a mania. Num ambiente assim, como é que é olhada a
pessoa doente? Jean Paul Sartre recorda uma visita a um país de leste e um
cartaz onde se afirmava que um operário tuberculoso era um operário que não
produzia. Hoje o sistema é outro, mas o doente e a doença não são bem
vindos. O doente é um estorvo e um encargo para a família e para o Estado.
Ainda para mais incomoda-nos o facto de nos estar a lembrar constantemente
que também podemos ser atingidos pela peste. Felizmente que só acontece aos
outros! ( eis o lema máximo da despreocupação e dos despreocupados.




§. J 6. Paternalismo médico e autonomia do doente
Segundo PINTO DA COSTA e comentando os diálogos de Platão, a saúde é
uma propriedade natural pelo que a doença representa uma situação anti-
natural. Assim, a doença perturba a capacidade de formular juízos e desvia
o homem do bem. logo, "o enfermo não é só um incapacitado físico, mas
também moral"[35]. Recorrendo à etimologia da palavra enfermo, o ilustre
professor portuense refere que o enfermo (in-firmus) é o indivíduo sem
firmeza física ou biológica e moral. É esta fragilidade do doente que
justificaria que fosse tratado como uma criança. Daí o paternalismo médico
que, longe de ser uma aberração moral, "seria a única maneira natural de
actuar com os doentes". A diminuição da autonomia e da consciência do
doente, quando não perca completa daquelas faculdades, leva a que seja o
médico quem se tem que encarregar do doente. Essa é uma das situações que
nos leva ao paternalismo médico[36]. Mas não é a única causa. Aliás, o
paternalismo médico é o resultado de uma relação médico-doente que se
inicia mal o doente dá entrada no hospital. A entrada do doente no hospital
é acompanhada de um conjunto de formalidades burocráticas, por vezes
verdadeiramente labirínticas, quase sempre exasperantes para aquele que se
encontra doente e estás a sofrer e tem de se confrontar com a indiferença,
o excesso de zelo e a frieza dos funcionários, que se deliciam em invocar e
fazer cumprir todos os regulamentos, directrizes e normas de funcionamento.
Este processo moroso é um ritual, um verdadeiro ritual de passagem e cuja
liturgia cumpre um papel simbólico importante: o mundo do hospital
representa um espaço distinto do mundo de lá de fora e a pessoa doente tem
de ser investida (até vestida) nesta sua nova identidade: "A entrada no
hospital envolve um rito de passagem em que a pessoa é transformada de
cidadão livre em doente dependente"[37]. Despojado dos seus haveres
pessoais, é-lhe entregue uma nova indumentária que uniformiza todos os
doentes e, doravante, ele é reconhecido através dum processo que resume o
seu passado a uma história clínica ( a sua história passa a ser a história
das suas doenças e dos seus episódios clínicos. A partir daqui abre-se um
novo tempo e um novo espaço, com regras próprias. Nesta sua nova condição,
o cidadão abdica dos seus direitos e entrega-se nas mãos dos que vão cuidar
dele. O ritual de passagem, o formalismo da sua inscrição e admissão como
doente, legitimam esta sua nova dis-posição, sancionam um contrato oculto
onde o cidadão acaba de vender a sua alma, disponibilizando o seu corpo.




§J 7. Os pedidos do doente terminal e o testamento de vida
Decidir pelos outros acerca da sua morte é uma forma de abuso de
poder[38]. Ao decidir sem ouvir o doente ou sem respeitar os seus desejos é
uma forma de manter o desequilíbrio que sempre existiu na relação médico-
doente. O médico que não escuta o seu doente escuda-se na perspectiva de
que a relação entre si e o seu paciente é uma relação entre o saber e a
ignorância, para além de não respeitar a pessoa que o doente é.
Um dos princípios da ética médica e que deve orientar a prática médica
é o respeito pela pessoa. respeitar a pessoa significa, em termos de
conduta médica, escutar os desejos e pedidos do doente[39]. O testamento de
vida pode ser uma das formas de concretizar o respeito pela pessoa. Com
efeito, no testamento de vida antecipam-se instruções respeitantes,
nomeadamente, à abstenção de toda a obstinação terapêutica, o uso de
analgésicos mesmo que possam vir a apressar a morte ou que se proceda,
eventualmente, à eutanásia. Na perspectiva de que, com a evolução da doença
ou porque se entrou em coma ou houve uma diminuição da lucidez, o paciente
se veja impossibilitado de exprimir os seus pedidos, o doente recorre a um
documento escrito e por si assinado contendo essas instruções. Poderá
também designar um representante que o substituirá na expressão dos seus
desejos, se o não puder fazer.
Contudo, mesmo perante o pedido do doente, formulado através de um
testamento de vida poderão colocar-se algumas questões: será que o médico
deve suspender a sua própria avaliação ética e médica da situação perante
aquele pedido?; e até que ponto o signatário, colocado agora na real
situação que está a passar, se isso fosse possível, manteria a sua decisão?
Mesmo perante o pedido formulado directa e verbalmente, levantam-se alguns
problemas, nomeadamente o de saber até que ponto o paciente compreendeu bem
o significado e as consequências da sua decisão e das alternativas que lhe
restam. Obedecer imediatamente ao pedido do doente seria um alienar da
responsabilidade médica que em nenhum momento pode ser afastada. Até porque
numa época em que aumenta o número de acções interpostas por pretensas
vítimas de negligência médica, compreende-se que o pessoal médico se reuna
de todos os cuidados de forma a evitar sentar-se no banco dos réus. No caso
dos pedidos eutanásicos, o médico deve também assegurar-se que o doente
formula esse desejo de uma forma plenamente consciente[40] e livre de
pressões, que a sua vontade é firme e reiterada. Deste modo, a relação
médico-doente deve aprofundar-se o mais possível.






Índice


1. O paradigma da cura e da luta contra a doença
2. Os problemas colocados pela evolução das tecnologias médicas
3. A decisão de interrupção dos tratamentos é normal nos hospitais
4. Dor e sofrimento
5. A saúde e o corpo saudável – objetivos e obsessões
6. Paternalismo médico e autonomia do doente
7. Os pedidos do doente terminal e o testamento de vida
-----------------------
[1] A morte existe sob uma forma biológica e sob uma forma social.
[2] Sobre a filosofia espontânea dos cientistas, veja-se Louis ALTHUSSER,
La philosophie spontanée des savants
[3] Pedro CANTISTA, «A dor e a clínica», in Dor e Sofrimento, pp. 292-293.
[4] ABIVEN, p. 67
[5] Segundo Michel de M'UZAN, De l'art à la mort, Paris Gallimard, 1977,
cit. in ABIVEN, p. .
[6] ABIVEN, p. 86.
[7] [Identificar os estudos]
[8] De CLOSETS, p. 114.
[9] POHIER, 33.
[10] POHIER, 34
[11] BRITO & RIJO, p. 13
[12] [Existe um artigo sobre estes problemas de saúde junto do pessoal
hospitalar, uma forma de stress.]
[13] BRITO & RIJO, p. 17.
[14] Cit. in BRITO & RIJO, p. 19. [arranjar o próprio texto]
[15] Ver Edgar MORIN: restringir o problema aos técnicos, à sua visão e
linguagem pode significar afastar do debate os cidadãos que, apesar de
interessados, não estão dentro do jargão técnico.
[16] Ver Ivan ILICH, A convivencialidade, Publicações Europa-América.
[17] BRITO & RIJO, p. 12.
[18] CASADO GONZALEZ, p. 14.
[19] EAC, 62.
[20] ABIVEN et al., Euthanasie ( alternatives et controverses, p. 47.
[21] MILLIEZ, pp. 96-97.
[22] Ver EAEJ, 13-14.
[23] EAEJ, 38.
[24] Joseph FLETCHER, «Santidade da vida por oposição à qualidade de vida»,
in Robert M. Baird & Stuart E. ROSENBAUM (org.), Eutanásia ( as questões
morais, p. 102.
[25] Segundo ABIVEN et al., pp. 11-12, a quase totalidade de opiniões
emitidas nestes debates é feita por pessoas que gozam de boa saúde, pelo
que a polémica nunca é desenvolvida em situação, mas apenas é formulada em
termos abstractos e descontextualizados. Contudo, quando aparecem os
próprios doentes, muitas vezes em situações terminais, muitos deles, talvez
a maioria, é favorável a soluções eutanásicas. Donde não é correcto
pretender concluir que só a ligeireza das situações permite opiniões,
também elas ligeiras, favoráveis à eutanásia.
[26] p. 134.
[27] p. 137.
[28] "O sofrimento privado não tem necessariamente a ver com a dor."
(Patrick WALL, Dor ( ciência do sofrimento, p. 27.
[29] Ver a definição da Associação Internacional para o Estudo da Dor, in
DS, 299.
[30] Cit. in JIMÉNEZ, p. 74.
[31] WALL, 75.
[32] Apesar desta vigília, a atenção do doente fica-se na sua dor, ao ponto
de algumas terapias consistirem em contrariar esta fixação ( terapias de
distracção (WALL, 209-210), tal como fazemos a uma criancinha que se
aleija, em que tentamos distraí-a, afastando a sua atenção da situação que
lhe provocou a dor ("Pronto, pronto, já passou!... Olha aqui este carrinho
tão engraçado!...)

[33] Para ver o hedonismo e o culto do corpo no nosso tempo, cf.
LIPOVETSKY, A era do vazio.
[34] Ver O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde.
[35] P. 29.
[36] EAEJ, 23.
[37] WALL, 113
[38] LA MARNE, p. 50.
[39] Paula LA MARNE, p. 12.
[40] Numa perspectiva psicanalítica, as reticências em relação ao discurso
consciente do sujeito seriam ainda maiores já que se deveriam admitir
interferências do inconsciente.
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