A melancia, o cinema e as crianças

May 30, 2017 | Autor: Solange Jobim | Categoria: Walter Benjamin, Cinema, Clarice Lispector, Linguagem
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A melancia, o cinema e as crianças Solange Jobim e Souza Um dia desses vi sobre a mesa uma talhada de melancia. E, assim sobre a mesa nua, parecia o riso de um louco (não sei explicar melhor). Não fosse a resignação a um mundo que me obriga a ser sensata, como eu gritaria de susto às alegres monstruosidades pré-históricas da terra. Só um infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade que se repete desde o começo da história do homem. Só depois é que vêm o medo, o apaziguamento do medo, a negação do medo – a civilização enfim. Enquanto isso, sobre a mesa nua, a talhada gritante de melancia vermelha. Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei muitas coisas. Para falar verdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também é algo para se ver. [Clarice Lispector]

Esta

epígrafe se oferece como um ponto de partida para aproximarmos o olhar mediado pela câmara da experiência poética. Com seus movimentos, enquadramentos, ampliações e aproximações, a câmara captura o real em diálogo com a imaginação. Entretanto, a câmara, nada mais é do que um instrumento que nos permite mostrar para os outros, de forma ampliada, coisas que, de certo modo, temos a capacidade de ver a revelia do seu uso propriamente. Mas para que isto aconteça é necessário cultivar experiências que fazem do olhar um diálogo permanente com a imaginação. É preciso não ter medo de experimentar o mundo para além dos enquadramentos impostos por uma cultura massificada que normalmente limita os modos de ver. Ousar enxergar novas formas nos objetos convencionais é a proposta deste pequeno texto. Neste momento cabe evocar um autor, Walter Benjamin, que desenvolveu de forma exemplar uma narrativa que aproxima o conhecimento filosófico com a linguagem poética. Convidei Walter Benjamin e Clarice Lispector para fazer parte desta conversa. Os fragmentos que compõem os escritos de Walter Benjamin, especialmente em sua obra Infância em Berlim por volta de 1900, desembocam numa visão precisa e sensível do cotidiano. Neles, a

identidade do narrador é um aspecto secundário diante do mundo predominantemente encoberto por objetos e imagens que se destacam. Suas preferências se manifestam por lugares, objetos e situações decorrentes, revelando, assim um estilo que enfatiza principalmente a relação da pessoa com as coisas e através delas com suas lembranças. Em armários, escrivaninhas, corredores, ruas, parques, a criança constitui, apesar dos adultos, um mundo com uma significação própria e o cotidiano se transfigura. Neste contexto mágico as convenções normalmente assumidas pelos adultos se tornam secundárias. Mas o que tudo isto tem a ver com cinema? Por que trazer as idéias de Walter Benjamin e Clarice Lispector para o leitor pensar sobre o cinema que é feito para o público infantil? Confesso que estes autores me convencem de que quando temos a intenção de apostar no cinema como um modo de criação poética com imagens, nada mais apropriado do que evocar a experiência da criança com o mundo das coisas. O cinema se oferece então como a linguagem privilegiada para evidenciarmos o mundo que surge do diálogo da criança e dos adultos com a cultura de uma época. No cinema criança e adulto se confrontam e nesse confronto buscam uma reconciliação, um entendimento comum. Que esta experiência de reconciliação se ofereça como espaço compartilhado para a transformação das utopias e dos sonhos em realidade. Dentre as múltiplas possibilidades de se fazer cinema para o público infantil apostamos nas produções que respeitam a criança como um interlocutor sensível e capaz de contribuir para reinventar a condição humana. Mesmo que o cinema não possa por si só transformar o mundo, ainda assim podemos apostar no cinema como um modo de narrar nossas histórias, transformando-as em revelações que nos permitem uma tomada de consciência da necessidade de agirmos com responsabilidade. Fazer da experiência estética com as imagens uma ética da existência. A intimidade com que as crianças negociam criativamente outros sentidos possíveis para o mundo “civilizado” deve merecer a atenção especial dos que fazem cinema para o público infantil. Infelizmente os apelos da indústria cultural para sustentar economicamente a mídia voltada para o consumo e o mero entretenimento têm sido mais poderosos, colocando em risco permanente a distribuição e a exibição da diversidade cultural das criações cinematográficas. Em meio ao turbilhão de ofertas de imagens direcionadas às crianças, há que existir critérios que orientem nossas escolhas. O cinema de qualidade, voltado para o público infantil, deve ter como premissa o compromisso com a estética da existência. Para falar a verdade, mesmo sem melancias o mundo através das lentes do olhar do infante é livre é ilimitado. Os poetas sabem disto. O cinema pode e deve ser a poesia escrita na imagem e apostar em um mundo em que as crianças de hoje possam conclamar com orgulho a inveja do amanhã. REFERÊNCIAS – LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978.

– BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de Mão única. São Paulo. Editora Brasiliense, 1987. – SOUZA, Solange Jobim. Infância e Linguagem. Campinas, São Paulo, Papirus, 2006, (10ª edição). Sobre o(a) autor(a): Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UERJ. Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Pesquisadora do CNPq.

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