A melancolia em A terceira margem do rio

May 25, 2017 | Autor: Jaime Ginzburg | Categoria: João Guimarães Rosa, Melancolia
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Publicado em Revista VEREDAS A MELANCOLIA EM A TERCEIRA MARGEM DO RIO Jaime Ginzburg Este texto constitui parte de um trabalho mais longo a respeito da melancolia em Guimarães Rosa. Entre os textos do autor, em pelo menos dois este elemento é central: o romance Grande sertão: veredas e o conto A terceira margem do rio. Nestas páginas, tentaremos esboçar uma reflexão a respeito do tema, examinando o segundo caso, com base em concepções de melancolia encontradas na antigüidade e na idade média. Uma etapa posterior envolverá, necessariamente, a consideração de idéias modernas, encontradas especialmente em escritores românticos e na psicanálise. O ponto de partida de A terceira margem do rio é uma decisão de um pai, de fazer uma canoa, em que cabia apenas um remador. Ele resolve dizer adeus à família, sem deixar claras as razões pelas quais faz isso. A mãe do personagemnarrador, diante da situação, diz ao companheiro: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”. O filho pergunta a ele se pode ir junto, e este o abençoa, depois entra na canoa e vai embora. E o pai, como se seguisse a determinação da mãe, não volta. De acordo com o narrador, “Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais”. Surgem hipóteses a respeito de motivos pelos quais ele teria agido assim, de loucura e doença a pagamento de promessa.

2 O filho resolve deixar mantimentos regularmente para o pai, em uma pedra de barranco, para garantir sua subsistência. A mãe tenta, de várias maneiras, reverter a situação, inclusive com a ajuda de um padre, mas não consegue. Diante disso, o narrador diz: “A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas que, com aquilo, a gente nunca se acostumou, em si, na verdade.” O pai lá permanece, semanas, meses, anos. A sobrevivência do pai se torna cada vez mais improvável, mais inviável. A família passa a silenciar o assunto, sem falar mais dele. Depois que a irmã do narrador tem um filho, ergue-o junto ao rio para mostrar ao pai, e este não aparece. Então, aos poucos, a família se desintegra. Os irmãos se vão, a mãe se vai, e o narrador permanece junto ao rio. E começa a envelhecer, percebe os “primeiros cabelos brancos”. Então, ele tem uma idéia. Tenta se aproximar do pai, e anuncia que tem a vontade de tomar o lugar do pai, que “já fez o seu tanto”. Então, o pai fica em pé, e movimenta-se na direção do filho. É o primeiro gesto do pai visto em anos. O narrador, diante da imagem, treme, e corre, “porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além”. O conceito de melancolia surge com Hipócrates, na Grécia antiga, que a define como um estado de tristeza e medo (PIGEAUD: 1988, 58). Ele se refere aos

melancólicos

afirmando

que

“seu

estado

mental

é

perturbado”

(TELLENBACH: 1979, 24). Tristeza e medo são centrais para este narrador. A afirmação mencionada, de que é preciso se acostumar com algo, sem se acostumar nunca, une-se a outras, como “sou homem de tristes palavras” e “sofri o grave frio dos medos”, para acentuar a expressão desses sentimentos. Ao longo

3 da estória, a tristeza motivada pela ausência se desenvolve; no final, a visão do pai se movendo provoca medo intenso. Sua vida era dedicada a um cuidado com o pai, cujo modo de existência não se explica pelo pensamento racional convencional. Sendo filho desse pai, partilha com ele a experiência do imponderável. Logo depois que o pai decidiu ir embora com a canoa, o narrador diz: “todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira”. O conceito de louco é empregado geralmente de maneira distintiva, por oposição ao são, ao equilibrado. Para este narrador, reconhecer o pai como louco representaria lançar suas referências centrais no domínio do incorreto, do equivocado. Ao invés de fazê-lo, o narrador assume um elo de companheirismo com ele, mesmo quando não é mais possível falar dele em família. Diz o narrador: “Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos.” O narrador, ao colocar em questão a possibilidade de estar louco, desmonta o próprio conceito. Na passagem citada, se vale de extremos: ou a noção não vale para ninguém, ou para todos. O imponderável, para o narrador, se torna universal humano. Ou ninguém está errado, ou todos estão. As distinções fundamentais que organizam nossa relação com o mundo se problematizam, e isto ameaça nossos hábitos cognitivos regrados. A experiência de A terceira margem do rio subverte os limites perceptivos que distinguem o familiar do estranho, o real do alucinatório, o vivo do morto, e o racional do louco. O pensamento do narrador oscila entre os

4 termos opostos desses pares. Essa oscilação é afim à perturbação indicada na noção hipocratiana de melancolia. Um discípulo importante de Hipócrates foi o árabe Constantino el Africano, na Idade Média. Para ele,

“Os acidentes que a partir dela [da melancolia] sucedem na alma parecem ser o medo e a tristeza. Ambos são péssimos porque confundem a alma. Com efeito, a definição de tristeza é a perda do muito intensamente amado. O medo é a suspeita de que algo ocasionará dano” (CONSTANTINO: 1992, 15) A noção de tristeza em Constantinus é desenvolvida como uma teoria da perda. Melancólicos são, entre outros, os “que perderam seus filhos e amigos mais queridos, ou algo precioso que não puderam restaurar” (Idem, 21). Como se observa, o melancólico estaria numa espécie de ponto-chave tenso, a partir do qual vê com sofrimento o passado, em razão das perdas, e se perturba com o futuro, pelo medo de um possível dano. O narrador de A terceira margem do rio cultiva regular e meticulosamente a ausência do pai. Trata-se de uma situação ambígua, pois o culto se justifica pela idéia de que, mesmo ausente, o pai esteja lá, no rio, presente. Como poderia o pai sobreviver nesse tempo todo, questiona-se o narrador. Então, o mais provável seria que estivesse morto. Essa hipótese é enfatizada quando lemos que, na visão próxima do final, ele parecia vir “da parte de além”. Porém, se estava morto, que sentido tiveram todos os anos de cuidado e interesse?

5 O conto constitui sua melancolia ambiguamente, a partir de uma experiêncialimite, em que a perda é constitutiva do sujeito, e tão profunda que não é aceita. Os outros membros da família renunciam à esperança da volta, aceitam a irreversibilidade da perda, mas não o narrador. Ele está lá, quer estar lá, apesar de nunca se acostumar com aquilo, nunca deixar de estranhar. De acordo com Constantinus, apoiado em Rufus de Éfeso, “os acidentes melancólicos são incompreensíveis” (Idem, 32). Aristóteles desenvolveu uma tese sobre a melancolia, defendendo que ela se associa ao pensamento contemplativo. O narrador, à beira do rio, anos e anos, voltado para o pai, vive de um modo em que a ação prática dá lugar à espera meditativa. Não sabemos dele em que trabalha, como sobrevive, o que sabemos a respeito de como ocupa as horas de seus dias é que se dedica ao pai. Sua atenção está voltada para ele, no rio, ao longe. O filho dedica o tempo de sua vida ao pai, e ao mesmo tempo, diferentemente de seus demais familiares, renuncia a uma vida própria. No pensamento grego, existe uma associação entre o planeta Saturno, o deus Cronos e a condição melancólica. Cronos é responsável, de acordo com a mitologia, pela construção e destruição, pelo nascimento e pela morte. A dualidade de Cronos é apresentada no conto. O pai deu a vida ao filho, mas, diante da proposta, ao final, vindo do além, se oferece para lhe dar a morte. Em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Riobaldo, atingido pela perda de Diadorim, diz: “E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava. E Diadorim, às vezes

6 conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. Para que eu ia conseguir viver?”1 A melancolia de Riobaldo é um dos elementos constitutivos do ponto de vista da narração de sua trajetória. A tristeza pela ausência da pessoa amada é um dos elementos constitutivos de seu ponto de vista, para o qual muitas distinções convencionais se desfazem – “Tudo é e não é”. A análise dessas e de outras obras de Rosa, tendo como enfoque a compreensão de seus elementos melancólicos, além de ajudar a refletir a respeito de problemas de interpretação que elas colocam, pode tornar visíveis afinidades eletivas, com referências às quais encontramos articulações e linhas de continuidade, Bibliografia ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX, 1. Paris: Rivages, 1988. CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. Buenos Aires: Fundación Acta, 1992. KLIBANSKY, Raymond, PANOFSKY, Erwin & SAXL, Fritz. Saturne et la mélancolie. Paris: Gallimard, 1989. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. 12 ed. ______. A terceira margem do rio. In: ____. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. Paris: PUF, 1979.

1

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. op.cit. p.458.

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