A memoria como materia-prima

May 26, 2017 | Autor: Heloisa Espada | Categoria: Contemporary Art, Video Art, Sound Art
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A memória como matéria-prima

Improvisando. Pode ser o que você quiser, até que você ouça as palavras. Quero escutar atentamente. Firmemente. Ao começar tudo bem: então ouço acordes um pouco desafinados: me sinto um pouco perdido. Dentro e fora de sacos, por cima de barris, através de cercasdearame, corrida de obstáculo. O tempo rege a melodia. Depende do estado de espírito em que você se encontra. Ainda assim sempre bom de ouvir. JAMES JOYCE, Ulisses.

Heloisa Espada

Trad. Bernardina da Silveira Pinheiro

Uma mulher tenta se comunicar com o parceiro, que se nega a ouvi-la e toca bateria com força. Os dois estão fisicamente distantes, em cantos opostos de um grande salão: ele voltado para a parede de uma cúpula geodésica que amplifica e ecoa o som de sua performance musical; ela, ao lado de um tambor sobre o qual duas baquetas se mexem aparentemente sozinhas. O argumento do vídeo Answer Me (2008) é baseado numa anotação de Michelangelo Antonioni no livro Quel bowling sul Tevere – no qual reúne ideias de filmes que não chegou a realizar – sobre o desejo de filmar uma cena de separação não por meio de uma conversa, mas do silêncio entre o casal. Answer Me é o primeiro trabalho de Anri Sala em que a qualidade acústica da arquitetura é “a perso-

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nagem principal”.1 O poder de ressonância do domo – inspirado nos projetos de Buckminster Fuller – faz com que o som da bateria se multiplique e faça vibrar a superfície do tambor que está diante da mulher. Como consequência, as baquetas se movem, fazendo com que a reação muda, mas barulhenta, do homem se torne visível e se aproxime fisicamente da parceira. Dela, ouve-se com dificuldade uma frase do roteiro não realizado de Antonioni – “It is over, admit it. That way everything will be out in the open and we will know what to do” [“Acabou, admita. Dessa forma, tudo fica às claras, e nós saberemos o que fazer”.] – e, poucas vezes, o pedido: “Answer me” [Responda-me]. Na maior parte do tempo, vemos apenas seus lábios se mexendo. O silêncio proposto por Antonioni – “uma dimensão negativa da fala”2 – é traduzido como um diálogo surdo. Do ponto de vista fotográfico, a imagem desfocada da personagem feminina sugere que o homem se recusa também a enxergá-la. O close nos olhos

1 SALA , Anri. “Guided by Voices, Lured by Sounds: An Interview. Anri Sala and Massimiliano Gioni”. In: Anri Sala: Answer Me. Nova York: New Museum/Phaidon, 2016, p. 88.

2 ANTONIONI , Michelangelo. Apud SALA , Anri. “Anri Sala and Raphaela Platow: A Conversation”. In: Purchase Not by Moonlight. Miami/Cincinnati: Museum of Contemporary Art, North Miami/ Louis & Richard Rosenthal Center for Contemporary Art, 2009, p. 60.

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fixos do baterista lembra algumas expressões de ausência nos quadros de Manet, embora sua atitude dê a impressão de ser deliberada, enquanto os personagens do pintor francês parecem inconscientes do próprio estado de absorção. Além disso, Sala enfatiza a distância entre o casal ao contrastar planos fechados com tomadas abertas que sublinham a amplitude do espaço vazio. Longos planos fechados são comuns em seus filmes e usualmente servem para omitir informações – tornando a narrativa cifrada – e concentrar a atenção do espectador no estado emocional ou no esforço físico dos personagens. Essa estratégia remete à fotografia e ao ritmo de Stalker, de Andrei Tarkóvski, outra referência cinematográfica citada por Sala.3 Frequentemente, o artista realiza seus projetos em lugares de profunda densidade histórica. Answer Me foi filmado no interior de uma das cúpulas geodésicas da antiga estação de escuta e espionagem construída pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos em Berlim ocidental, a partir de 1963, para monitorar o antigo bloco soviético. O conjunto de quatro cúpulas – hoje uma ruína da Guerra Fria –

3 SALA , Anri. “Interview: Hans Ulrich Obrist in Conversation with Anri Sala”. In: GODFREY , Mark, OBRIST , Hans Ulrich e GILLICK , Liam. Anri Sala. Londres: Phaidon, 2006, p. 14.

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fica no topo de Teufelsberg [Montanha do Diabo], uma colina artificial erguida com destroços retirados da cidade na Segunda Guerra. Trata-se de um palimpsesto monumental. Além de dar destino a toneladas de escombros, a montanha solucionou outro incômodo – foi construída sobre o projeto inacabado de uma faculdade militar nazista, projetada por Albert Speer, que os Aliados não conseguiram destruir. A narrativa histórica não explicitada no filme, mas que tangencia os discursos sobre ele como um adendo inseparável da obra em si, não seria capaz de modificar completamente o olhar sobre Answer Me? Embora Anri Sala enfatize seu interesse em abordar o silêncio num local de extrema sonoridade,4 o contexto histórico faz com que a recusa ao diálogo signifique uma frustração com a linguagem que vai muito além da escala privada. Anri Sala parece lidar bem com a realidade de uma economia globalizada e com a facilidade de deslocamento que ela permite. Após ter se tornado conhecido por trabalhos como Intervista (Finding the Words) (1998) e Dammi i colori (2003), que refletem sobre questões políticas de seu país de origem, a Albânia, sua obra ganhou um caráter francamente internacional ao abordar a realidade de países tão diferentes quanto Alemanha, Senegal, Estados Uni4 SALA , Anri. “Guided by Voices, Lured by Sounds: An Interview. Anri Sala and Massimiliano Gioni”. Op. cit., p. 88.

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dos, Bósnia-Herzegovina e Brasil. No entanto, elas parecem lidar justamente com a impossibilidade de uma comunicação universal no mundo dito “globalizado”. Talvez por isso a música esteja no centro de seus interesses nos últimos anos. Não seria ela uma linguagem universal? A resposta de Anri Sala é não. Mesmo a apreensão da música está condicionada a inúmeras circunstâncias de ordem pessoal ou coletiva. Em Answer Me, o contexto molda o conteúdo pela forma com que a qualidade acústica da arquitetura interfere na comunicação, mas também pelas memórias evocadas pelo lugar. O média-metragem 1395 Days without Red (2011), realizado em colaboração com a cineasta francesa Liria Bégéja, também faz referência a um episódio dramático da história recente, o cerco de Sarajevo, entre 5 de abril de 1992 e 29 de fevereiro de 1996, quando vestir roupas vermelhas e brilhantes na cidade era extremamente perigoso por atrair a atenção de franco-atiradores. No filme, uma musicista atravessa a cidade sitiada a caminho do local onde a Orquestra Filarmônica de Sarajevo ensaia o primeiro movimento da Sinfonia patética, a sexta e última composta por Tchaikovsky. Nas ruas vazias, sem comércio e sem carros, alguns poucos transeuntes se arriscam pela necessidade ou pelo desejo de manter suas tarefas diárias em meio à guerra. As pessoas se acumulam nas esquinas e, a cada cruzamento, precisam correr com vigor para minimizar o tempo de exposição em áreas abertas. O espectador é levado a assumir o ponto de vista da mulher por meio de uma câmera em traveling muitas vezes fechada

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momento atual a partir de um ponto de vista histórico; por outro, é lançado com radicalidade no tempo presente por meio de abordagens do som como fenômeno físico de alto impacto sensorial. Sobretudo a exposição na sede carioca do IMS – onde uma música improvisada e dissonante invade as salas e os jardins da antiga residência do embaixador Walther Moreira Salles – coloca em pauta a relação da obra com a arquitetura. Num primeiro momento, os trabalhos foram escolhidos com o intuito de conciliar as exigências de controle acústico e de luz às características do projeto modernista

em seu rosto. Sua travessia é entremeada por cenas da orquestra ensaiando. Ela, por sua vez, repassa a sinfonia sozinha, ora em silêncio, ora murmurando, numa tentativa de se concentrar na música e de salvar a própria vida. A sinfonia é transfigurada por sua respiração ofegante, pelas pausas e pela necessidade de se recuperar a cada cruzamento. Answer Me e 1395 Days without Red integram o projeto Anri Sala: o momento presente, que compreende duas exposições nas sedes do Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, em 2016, e em São Paulo, em 2017. Sem a intenção de configurar uma retrospectiva, as mostras reúnem obras de diferentes fases, desde Intervista (Finding the Words), até instalações sonoras recentes, como The Present Moment (in D) (2014) e The Present Moment (in B-flat) (2014).5 Trata-se da primeira apresentação ampla no Brasil desse que é um dos mais importantes artistas contemporâneos. As duas mostras – com listas de obras distintas, pois foram elaboradas em diálogo com as características de cada espaço – explicitam a dimensão política e, ao mesmo tempo, estética6 da obra de Sala, por meio de instalações, vídeos, fotografias e objetos. Por um lado, o espectador é levado a avaliar criticamente o

Planta da exposição Anri Sala: o momento presente no IMS do Rio de Janeiro

1 No Barragán No Cry; 2 Title Suspended (Sky Blue); 3 No Window No Cry; 4 Làk-kat 3.0; 5 Untitled (corner); 6 e 7 Bridges in the Doldrums; 8 1395 Days without Red; 9 Tlatelolco Clash/ Le Clash; 10 Untitled (cactus_II);

11 Jemeel Moondoc responde à sua própria performance em Long Sorrow; 12 Long Sorrow; 13 Untitled (tagplant 1 e 2); 14 Answer Me; 15 Who is Afraid of Red, Yellow and Green; 16 Intervista (Finding the Words)

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5 Os dois trabalhos serão apresentados juntos como uma única instalação no ims de São Paulo. Ver o texto “Passado imperfeito e futuro presente”, de Natalie Bell, neste catálogo [pp. 130-149].

6 O texto “A agenda política do siri”, de Jacques Rancière, publicado neste catálogo, aborda a relação entre estética e política na obra de Anri Sala [pp. 150-165].

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de Olavo Redig de Campos, conhecido pelas longas paredes de vidro que conectam os interiores da casa com os jardins desenhados por Roberto Burle Marx. A partir desse desafio, alguns espaços foram mantidos transparentes. Quando foi necessário bloquear a luz e o som, Anri Sala, em colaboração com a arquiteta Ana Paula Pontes, usou painéis na espessura das esquadrias originais e os dispôs leveNo Window No Cry (Luigi Cosenza, La Fabbrica Olivetti, Pozzuoli), 2015 caixa de música, vidro, esquadria de metal Foto de Luciano Romano

mente afastados dos caixilhos, de forma a preservar a leveza dos vidros. O foco na relação dos trabalhos com a casa se apoia na percepção de que a arquitetura, como a música, é uma poderosa âncora de conexão com o presente. O artista buscou potencializar a experiência do público em relação ao espaço propondo uma nova forma de circulação, bloqueando passagens usuais e induzindo o visitante a percorrer áreas externas pouco habitadas. Numa intervenção ainda mais direta, ele substituiu uma das vidraças que dão para o pátio interno da casa pela obra No Window No Cry (Olavo Redig de Campos, Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro) (2016).7 O trabalho, que faz parte de uma série,8 é um painel de vidro com uma concavidade na qual é acoplada um cilindro metálico para caixa de música, com as notas da canção “Should I Stay or Should I Go”, o maior sucesso da banda de punk rock britânica The Clash. O som emitido pelo cilindro quando tocado pelo público – ou quando se move sozinho por meio de um mecanismo – se apresenta como uma memória musical vaga e distorcida

7 Ver reprodução da obra no pôster anexado a este catálogo.

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8 A primeira versão de No Window No Cry surgiu em 2010, na 29ª Bienal de São Paulo, ocasião em que Anri Sala apresentou o vídeo Le Clash (2010) e a instalação No Window No Cry (Oscar Niemeyer, Biennial

Pavilion, Sãoo Paulo) (2010). Os outros trabalhos da série são: No Window No Cry (Juan O’Gorman, Biblioteca Central de la Unam) (2011), No Window No Cry (Le Corbusier, Maison-atelier Lipschitz, Boulogne) (2011),

No Window No Cry (Junzo Sakakura, Institut francojaponais de Tokyo) (2011), No Window No Cry (Alexis et Philippe Dumont, Galerie Ravenstein, Brussels) (2014) e No Window No Cry (Luigi Cosenza, La Fabbrica Olivetti, Pozzuoli) (2015).

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pela circunstância de sua execução, assim como, de resto, pode-se entender a Sinfonia Patética murmurada pela mulher que cruza Sarajevo. No IMS da Gávea, além de ser instalado na própria arquitetura, No Window No Cry (Olavo Redig de Campos, Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro) (2016) cria uma espécie de sinergia com outros ambientes, pois remete diretamente aos vídeos Le Clash (2010) e Tlatelolco Clash (2011) – desenvolvidos a partir do mesmo tema musical –, também presentes na exposição. Em Le Clash, a música é imediatamente reconhecível e, ao mesmo tempo, parece fantasmagórica e estranha ao ser interpretada por instrumentos muito anteriores ao movimento punk. No vídeo, um homem carregando uma caixa de música e um casal empurrando um realejo executam versões de “Should I Stay or Should I Go” enquanto caminham em direção da casa de concertos Salle de Fêtes, no Grand Parc, em Bordeaux. Fechado desde 1993, o local foi um importante cenário do movimento punk nos anos 1980 e 1990. Mais uma vez, Sala articula a relação entre espaço e música a partir da memória do lugar e da ideia de que uma melodia sempre será tocada e lembrada de maneira diferente, por mais simples e conhecida que seja. Primeiro, vemos o homem que caminha em silêncio com a caixa de música. Sua expressão é de devaneio, como se o ato quase mecânico de mover a manivela do instrumento o mantivesse longe dali. Às vezes, ele para, e se ouve apenas o som do órgão; às vezes, as notas da caixa são sobrepostas ao som do realejo. Sua figura absorta, de ritmo lento,

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empresta um caráter um tanto melancólico à dúvida dos versos do The Clash. O casal que empurra o órgão com alguma dificuldade aparenta ter frequentado a Salle de Fêtes. Mas talvez eles sejam apenas parte do sonho acordado do homem. Fragmentos de história, arquitetura e música são superpostos e reordenados em Tlatelolco Clash, em que “Should I Stay or Should I Go” reaparece como uma memória coletiva, já sem conexão direta com o espaço mostrado. Na praça das Três Culturas, Cidade do México, transeuntes manuseiam cartões perfurados de realejo que correspondem a quatro segundos da canção. As pessoas usam o cartão para se proteger do sol e o inserem num órgão mecânico, de modo que a música é tocada aos pedaços, em diferentes ritmos. A praça das Três Culturas é conhecida por reunir três momentos emblemáticos da formação cultural do México: as ruínas do templo asteca Tlatelolco, uma igreja colonial construída com pedras de destroços da antiga civilização e um conjunto habitacional modernista. Além de ter sido palco da última e mais sangrenta batalha entre astecas e espanhóis, o lugar é conhecido pelo Massacre de Tlatelolco, ocorrido em 1968, quando cerca de 300 estudantes foram mortos por forças da polícia e do exército a dez dias dos Jogos Olímpicos da Cidade do México. A praça possui ainda fragmentos de prédios destruídos durante o terremoto que abalou a cidade em 1985. No filme de Sala, pessoas de diferentes idades, etnias e classes sociais, mas que provavelmente vivem ali, interrompem seu trajeto para tocar os quatro

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segundos de “Should I Stay or Should I Go” com o cartão que lhes foi dado. O sentido de diversidade se coloca não apenas pela sobreposição de ruínas de diferentes épocas, mas por meio de roupas, joias, cabelos e atividades dos transeuntes. As frações da música foram executadas fora de ordem, de dia e à noite. O artista então as colocou na ordem da melodia da canção, provavelmente conhecida por todos, de modo que planos diurnos e noturnos se intercalam a despeito do que seria “correto” em termos de continuidade. A música executada em partes, aparentemente estranha àquele contexto em si fragmentado e descontínuo, se torna um elemento de ordenação do tempo. A ideia de que o presente é composto pela justaposição de realidades distintas e camadas desconexas também surge em Tlatelolco Clash, por meio dos planos fechados que mostram a sombra do cartão perfurado sobre rostos e sobre a vegetação do lugar. Na exposição Anri Sala: o momento presente, outras fotos retomam o mesmo sentido. Untitled (tagplant 1) (2005) e Untitled (tagplant 2) (2005) [pp. 88-91], tiradas em Belo Horizonte, mostram o detalhe de um muro em que uma trepadeira cresceu sobre os signos incompreensíveis de uma pichação. Untitled (cactus_II ) (2011) [pp. 72-73] mostra um cacto levemente transfigurado, pois visto por detrás de um vidro ondulado. Desde 2005, quando realizou Answer Me, Anri Sala tem feito uma série de instalações intituladas Doldrums com instrumentos de percussão que exploram a noção de simultaneidade e sobreposição por meio da manipulação de ondas sonoras. Nelas,

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pares de baquetas se movem a partir da vibração do próprio tambor, que reage a uma fonte sonora instalada nele que emite frequências graves. O som das baquetas se soma a fragmentos de outros sons, criando uma experiência invariavelmente dissonante, cacofônica e confusa. O artista costuma explicar que o título Doldrums se refere a uma região equatorial do oceano Atlântico conhecida pelos longos períodos de calmaria, quando os ventos desaparecem ou são muito fracos. Por ser imprevisível, o fenômeno ficou conhecido entre navegadores como uma espécie de armadilha mortal capaz de manter embarcações paradas na região por dias ou semanas. Em português, doldrum pode ser traduzido como calmaria, marasmo, estagnação ou depressão. Para a mostra no IMS do Rio de Janeiro, mais uma vez em conexão direta com a arquitetura, Anri Sala criou Bridges in the Doldrums (2016),9 que ocupa a sala de azulejos, no interior da casa, e a varanda do painel de cobogó, na parte externa. A instalação é baseada no arranjo musical To Each His Own (in Bridges) (2015), de autoria de Anri Sala, em colaboração com o músico André Vida, composto para clarinete, saxofone, trombone, percussão e amplificador de baixo. Trata-se de uma colagem de 74 “pontes musicais” – termo usado para denominar a parte da

9 Ver reprodução de Bridges in the Doldrums (2016) no pôster anexado a este catálogo.

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In-Between the Doldrums (Pac-Man), 2016 dois tambores, partes de alto-falantes, presilhas, baquetas e som estéreo 4’34”

Composto por Anastasio Mitropoulos Foto de Andrea Rossetti

música que faz a transição entre o tema principal e o fim, com melodia e ritmo significativamente diferentes do restante da composição – de canções pop, de jazz e folk, de diferentes épocas e lugares. Compiladas em ordem de tempo e em ritmo crescente, a sucessão de pontes cria uma sensação de gradual aceleração e a ideia de uma corrida para o nada, pois o arranjo nunca chega a um desfecho. Na sala de azulejos, ouvem-se as gravações originais de um clarinete, um trombone e um saxofone executando as pontes de To Each His Own (in Bridges) apenas em frequências altas. Na varanda, ouvimos fragmentos da mesma melodia a partir de caixas de som instaladas no interior de quatro tambores e por meio de um aparelho subwoofer, que paira sobre os demais sons e transmite somente as baixas frequências. Os dois ambientes são separados por uma porta de vidro fechada, de modo que eles são visualmente acessíveis, mas acusticamente isolados um do outro. Para chegar até a varanda do cobogó, é preciso dar a volta pela parte de fora da casa. Na área externa, cada um dos três tambores suspensos de cabeça para baixo emite esporadicamente

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e individualmente a gravação de um dos três instrumentos de sopro. Neles, o artista alterou levemente a música original para enfatizar as baixas frequências e, assim, fazer vibrar a pele dos tambores a partir do som que vem de dentro deles. Em consequência, as baquetas sobre eles se movem. O mesmo acontece com o instrumento deitado no chão, com a diferença de que ouvimos dele apenas o som de uma percussão executando To Each His Own (in Bridges). A partir dessa operação um tanto complexa, Anri Sala articula uma série de interpretações da mesma música tocada em diferentes instrumentos, mídias e frequências. Sobretudo o som extremamente grave do subwoofer surge como um zumbido junto ao ouvido, como o resquício distante de uma performance que aconteceu em outro tempo e espaço. Sala recorre a um panorama cultural diversificado – To Each His Own (in Bridges) reúne pontes musicais de canções tão distintas quanto “Send in the Clowns”, na interpretação de Sarah Vaughan, “Summer Love”, com Justin Timberlake, e “Se bota a matar”, do duo cubano Buena Fe – sem a pretensão de conciliar ou harmonizar os fragmentos. A disposição das três baterias de cabeça para baixo e de uma caída no chão também sinaliza que há algo errado com a harmonia daquela composição. A experiência envolve simultaneamente familiaridade e recuo. Por um lado, envolve um repertório musical que circula na maior parte dos países; por outro, a fruição é interrompida a todo momento por lacunas, superposições e distorções sonoras que dificultam o envolvimento do espectador com o trabalho.

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No filme Long Sorrow, a música surge mais uma vez como estratégia de concentração numa situação de risco. Nele, o saxofonista Jemeel Moondoc faz uma improvisação de jazz pendurado do lado de fora do 18º andar de um prédio em Berlim, um conjunto habitacional modernista dos tempos da guerra fria que foi apelidado pelos moradores como Langer Jammer, “long sorrow” [sofrimento longo] em inglês. As tomadas mostram a ação sempre de forma indireta. Na primeira cena, a câmera entra lentamente num cômodo vazio, onde um objeto que lembra um vaso se movimenta de leve, como se estivesse apoiado no batente da janela. Mais adiante, entende-se que se trata do arranjo de flores na cabeça do músico que está do lado de fora tocando saxofone. Em nenhum momento vemos o instrumento. Uma série de closes em primeiríssimo plano mostra apenas o rosto de Moondoc, escancarando seus poros em seu esforço para tocar música diante do abismo. Segundo Anri Sala, para realizar a performance, ele procurou um músico para quem o free jazz não fosse uma questão de estilo, mas uma necessidade: “Alguém para quem a música não fosse somente uma conciliação contínua com o vazio da vida, mas fosse também o que o mantém conectado a ela”.10 Numa das partes mais bonitas do filme, Moondoc

10 SALA , Anri. “Interview: Hans Ulrich Obrist in Conversation with Anri Sala”. Op. cit., pp. 15-17.

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responde ao sino de uma igreja que surge por acaso. O ato de improvisar o mantém em estreita conexão com os sons da cidade, como se a consciência do perigo o levasse a uma relação mais estreita com a realidade e a criação. Os trabalhos de Anri Sala frequentemente fazem parte de um processo em aberto, permanecendo disponíveis para novos desdobramentos. No IMS do Rio de Janeiro, o vídeo Long Sorrow ocupa uma das salas da exposição, e seu jazz improvisado é ouvido também a partir de caixas de som dispostas no jardim do pátio central, criando novamente uma conexão entre o interior e o exterior da casa. A música ouvida a céu aberto é uma gravação de Jemeel Moondoc, em 2006, um ano depois da filmagem de Long Sorrow, improvisando novamente a partir de sua performance original.11 O som na área externa é sincronizado com a música do filme, de maneira que a primeira surge como uma reverberação, ou um eco, da segunda.

11 Além da performance realizada por Jemeel Moondoc na galeria Chantal Crousel, em Paris, em 2006, Anri Sala deu continuidade ao trabalho com uma série de apresentações do vídeo Long Sorrow em que o próprio Moondoc se apresentou ao vivo, realizando uma improvisação

in loco a partir da música criada nas circunstâncias do filme. Em seguida, o artista criou uma nova série de projetos sonoros correlacionados, com destaque para a performance 3-2-1, em que o saxofonista André Vida se apresenta ao vivo junto da projeção de Long Sorrow, improvisando a

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partir da música do filme e da segunda gravação de Moondoc, realizada em 2006. Entre outras apresentações, 3-2-1 foi realizada durante a individual do artista na galeria Serpentine, Londres, em 2011, e durante a mostra Anri Sala: Answer Me, no New Museum, Nova York, em 2016.

A exposição brasileira ganhou ainda uma nova versão de Làk-kat, filmado em 2009, no Senegal. Após realizar Làk-kat 2.0 (British/American) (2015), em que o trabalho é mostrado simultaneamente em duas telas, uma com legendas em inglês britânico, outra em inglês americano, o artista propôs para o Brasil a videoinstalação Làk-kat 3.0 (Brazilian Portuguese/Portuguese/Angolan Portuguese) (2016),12 composta por três telas que levam as legendas citadas no título. O passado colonial do país e suas raízes na África fazem com que as relações de poder abordadas pelo filme sejam facilmente identificadas e ganhem novas dimensões aqui. O vídeo mostra três garotos num ambiente escuro, onde um adulto os faz repetir palavras em uólofe, idioma original da região que atualmente abrange alguns países da chamada África Ocidental (Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Mali e Mauritânia). A princípio, os vocábulos se referem aos conceitos de escuridão e claridade e, em seguida, descrevem tons de pele e maneiras variadas de se referir a estrangeiros. O diálogo surgiu do interesse de Anri Sala pelo fato de que hoje em dia, no Senegal – onde uólofe e francês são idiomas oficiais –, muitos nomes de cores são falados apenas na língua do colonizador. Por outro lado, o uólofe tem mais palavras do que a

12 Ver texto “Làk-kat”, de Moacir dos Anjos, neste catálogo [pp. 46-57].

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maior parte das línguas para definir diferentes tons de preto e branco, o que está presente em Làk-kat. Com o objetivo de se aproximar de expressões típicas do Brasil, de Angola e de Portugal, Sala escolheu três escritores para realizar as traduções: a brasileira Noemi Jaffe, o angolano Ondjaki e o português José Luís Peixoto. As três traduções para o português, assumidas como recriações, muitas vezes transformam o sentido da palavra original ao adaptá-la às realidades culturais e históricas dos três países, que, por sua vez, também são muito diferentes entre si. Por isso, há casos em que as versões diferem significativamente. Os termos em uólofe, por denominarem relações culturais muito específicas do Senegal, são em alguns casos intraduzíveis. Anri Sala: o momento presente apresenta também a obra que tornou o artista conhecido, realizada como trabalho de conclusão de curso, quando ele estudava vídeo na École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs de Paris. Intervista: Finding the Words (1998)13 condensa uma série de aspectos que continuam prementes na obra de Sala: a obsessão por ausências e faltas, a capacidade de extrair sig-

13 Intervista: Finding the Words (1998) foi exibido no Centro Universitário Maria Antonia da Universidade de São Paulo, em 2011, junto ao vídeo Dammi i Colori (2003).

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nificados do que não é dito e a opção por abordar a história a partir de narrativas ambíguas. Em 1997, numa visita a Tirana, sua cidade natal, o estudante de artes Anri Sala encontrou um rolo de filme preto e branco em que sua mãe, Valdet Sala, aparece num Congresso da Juventude Comunista da Albânia ocorrido há 20 anos. As imagens mostram claramente a jovem participando de um evento festivo do partido, mas o filme não tem som. Primeiro, ela aparece num palco ao lado do antigo líder Enver Hoxha; na sequência, dando uma entrevista para o órgão oficial do partido. Na busca pelas palavras perdidas da mãe, Sala atravessa Tirana para conversar com diferentes pessoas envolvidas na situação: o entrevistador, conhecidos que fizeram parte do comitê central do partido e o homem na época responsável pelo áudio perdido. Aos poucos, os encontros revelam as arbitrariedades do regime por meio de depoimentos críticos e amargurados. Paradoxalmente, ele conseguirá traduzir os lábios mudos da mãe (imagem que reaparecerá em Answer Me anos depois) com a ajuda de professores de uma escola para surdos. A estratégia revelará um discurso politicamente codificado e impessoal, composto por respostas prontas, previamente combinadas, que não faziam mais do que ratificar a ideologia do partido. Ao se deparar com o resultado da tradução, Valdet Sala não reconhece as próprias palavras e nega aquele discurso. A partir daí, ouvimos seu depoimento honesto e contraditório sobre um projeto político fracassado, que se mostrou enganoso em diversas instâncias, mas que ainda guarda, pelo menos de um ponto de vista

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pessoal, sentimentos confusos sobre a utopia de um mundo socialmente justo. “Tenho sentimentos misturados, não é preto no branco”, Valdet responde à pergunta do filho sobre se ela se sente incomodada com o filme que ele está fazendo. O trabalho aborda também as ambiguidades da relação entre mãe e filho. O jovem duvida da própria mãe e investiga, de certa maneira, a honestidade de suas posições políticas. Por outro lado, ela nunca Intervista (Finding the Words), 1998 vídeo em canal único, som estéreo, cor 26’

deixa de representar o papel de mãe e, a certa altura, suas reflexões sobre a Albânia se tornam inseparáveis das preocupações com a própria família. Numa das cenas finais, seu rosto aparece em primeiríssimo plano, num ambiente de pouca luz, o que acentua a intimidade entre entrevistador e entrevistada, agregando outras camadas de significados ao vídeo. Antes de mais nada, Intervista coloca em pauta aquilo que não pode ser resgatado por nenhuma reconstrução histórica, não tanto pelas palavras perdidas da mãe que, por fim, puderam ser desvendadas, mas pela impossibilidade de se abordar objetivamente o passado. Entre performance, ficção e documentário, os trabalhos mostrados em Anri Sala: o momento presente, no Rio de Janeiro e em São Paulo, propõem experiências nada apaziguadoras por meio da justaposição de contingências pessoais, históricas e políticas. O intraduzível, o que não pode ser comunicado por palavras, riscos, incertezas e ambiguidades de toda ordem, lacunas e conflitos insolúveis são conteúdos frequentes. Sua obra apresenta novas configurações do presente a partir de memórias e realidades muitas vezes inconciliáveis. Should I stay or should I go?

HELOISA ESPADA é curadora de artes visuais do Instituto Moreira Salles.

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