A Memória entre duas guerras: uma História da Memória dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira

Share Embed


Descrição do Produto

Már cio Bustamante

A MEMÓRIA ENTRE DUAS GUERRAS: Uma Histór ia da Memór ia dos Veter anos da For ça Expedicionár ia Br asileir a

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.

Área de Concentração: História e Culturas Políticas Or ientador : Pr of. Dr . Rodr igo Patto Sá Motta

Belo Hor izonte Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas 2006

2

Disser tação

defendida

e

apr ovada

pela

banca

examinador a constituída pelos pr ofessor es:

_____________________________________ Pr of. Rodr igo Patto Sá Motta - Or ientador

_____________________________________ Pr of. Celso Castr o

_____________________________________ Pr ofa . Mar ia Elisa Linhar es Bor ges

3

Aos meus pais, irmãos e amigos

4

AGRADECIMENTOS Tendo ingressado no curso de graduação em história da UFMG no ano de 2000, venho trabalhando com a Força Expedicionária Brasileira e com os veteranos desde 2001. Durante toda essa fase mantive contato com uma série de pessoas que agora, antes de qualquer outra coisa, desejo agradecer. Pessoas que, direta ou indiretamente, foram indispensáveis para que essa pesquisa fosse possível. Na Fafich sou grato a todos os professores, funcionários e colegas do Departamento de História, em especial ao meu orientador Rodrigo Patto pela onipresente disponibilidade e pelo respeito às minhas opiniões e pontos de vista sobre os caminhos da história – a ele também peço desculpas pelas “confusões” dos últimos meses. Agradeço também todo o pessoal do Programa de História Oral – coordenadoras e colegas –, local onde estagiei e aprendi alguns dos elementos que consistem no cerne dessa dissertação. Minhas gratificações vão, igualmente, para o Prof. Francisco Ferraz da UEL – cujos textos e observações me ajudaram na confecção deste trabalho. Outro grupo de pessoas fundamentais à realização desse trabalho foram os veteranos da FEB. Meus sinceros agradecimentos à ANVFEB seção Belo Horizonte e AECB seção Rio de Janeiro e, em especial, a ANVFEB seção Juiz de Fora. Gostaria de fazer um agradecimento individual ao veterano José Maria Nicodêmos, pela sua atenção, acolhimento e disponibilidade em me ajudar nos tortuosos imbróglios da memória da FEB. Meus sinceros agradecimentos vão, também, para os amigos que fiz durante todo esse percurso. Ao Rajão, João Paulo e Luiz Alexandre, amizades extremamente ricas, justamente pelas suas diferenças e devido à profundidade e beleza da personalidade de cada um deles. Pessoas com quem aprendi e cresci muito como ser humano e historiador – grandes companheiros que ficarão para o futuro. Devo também considerações a vários

5

outros fiéis amigos feitos nessa trajetória, meus agradecimentos ao Davidson, Fael, Dudu, Enrique, Imara, Mariana, Lu, Humberto, Breno, Cornélio, Frankiw, Galbinha, Ricardo – sobretudo com o apoio das traduções –, João Marcos, Alex e Júnior. Quanto à família, qualquer agradecimento não será o bastante. À minha família de Belo Horizonte pelo apoio incondicional não só durante o período que lá residi, mas em todas as circunstâncias. Meu muito obrigado para a Tia Nolasca, Tio Hilário, Jô e, em especial, para meu eterno “amigo-irmão” Hilarinho – que você seja feliz em seus planos, seja para onde você for terá o meu apoio. Por fim, lembrando que os último serão os primeiros, meus mais sinceros agradecimentos à minha família de Itanhandu. Eles me forneceram elementos dos quais sou extremamente grato e que, apesar da vontade, sei que nunca poderei retribuir à altura. Meu muito obrigado à amizade e solidariedade da Marcela, minha pequena/grande irmã e à simplicidade, confiança e companheirismo do Caio, meu irmão caçula. Meus mais sinceros agradecimentos vão para o meu pai, Antônio, que, mesmo na sua maneira introspectiva, sempre me apoiou e confiou em mim; e também para a minha mãe, Márcia, cuja minha existência eu devo, bem como tudo o que hoje sou e onde consegui chegar – a ela meu muito obrigado. Amo vocês.

6

Êsses homens que estão na fr ente não pr etendem ser bichos sobr enatur ais, nem pensam em der r otar os nazistas a gr ito ou a pelego. Êles lutam. Não são muitos, mas lutam – e lutam honr adamente, lutam dir eito, lutam dia e noite, ao fr io e à chuva, uma luta penosa. Não pr ecisam que ninguém, aqui ou

aí – exager e o que fazem, em tr alalás patr ioteir os. Êles não são monstr os: são lavr ador es, tr abalhador es de vár ios ofícios, estudantes, moços de escr itór ios, simples filhos de família – são r apazes br asileir os que for am mandados par a aqui ou vier am como voluntár ios. E êles dão conta do seu r ecado. Rubem Br aga

Continuo

pr eocupado

com

o

inquietante

espetáculo

pr opor cionado pela memór ia demais aqui, pelo esquecimento demais acolá, par a não falar na influência das comemor ações e dos abusos da memór ia – e de esquecimento. A idéia de uma

política da justa memór ia é, sob esse aspecto, um dos meus temas cívicos confessos.

Paul Ricoeur

7

RESUMO O objetivo desta dissertação é discutir o processo histórico de formação da memória dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira, que lutou na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, entre setembro de 1944 e maio de 1945. Abordando os vários momentos pelos quais passaram: a formação do Corpo Expedicionário, a guerra, a volta para casa e o longo processo de reincorporação social, analisar-se-á a dimensão essencialmente política da produção das memórias individual e coletiva. Aspecto esse enfatizado, sobretudo, a partir da apreciação da relação entre os veteranos e as diversas instituições que fizeram/fazem parte desse processo: Associações de veteranos, Forças Armadas, sociedade civil e o próprio Estado. Se originalmente grande parte dos que compuseram a FEB eram de origem civil, com o tempo vão se aproximando e se identificando cada vez mais com as Forças Armadas. A despeito disso, certos temas caros à identidade dos febianos não desapareceriam nesse movimento, caracterizando, dessa forma, um quadro extremamente delicado e complexo nas negociações em busca pelo reconhecimento e afirmação de suas experiências e identidades Este trabalho fundamenta-se na abordagem da história da memória por meios de fontes orais, bem como prioriza uma percepção que rompe com a história militar tradicional, ao procurar distinguir os diferentes níveis de vivência da guerra e do pós-guerra – altas e baixas patentes – analisando como isso influencia na configuração da memória e da identidade dos vários sujeitos envolvidos no processo. PALAVRAS-CHAVE Memória; Identidade; Veteranos de guerra; Força Expedicionária Brasileira; Segunda Guerra Mundial.

8

SUMÁRIO

SIGLAS

9

INTRODUÇÃO

11

Memória, identidade e os veteranos de guerra

17

Capítulo I – A EXPERIÊNCIA FUNDADORA

46

I.1

Experiências pessoais: o choque da guerra

47

I.2

A convocação

56

I.3

A guerra

88

I.4

O ‘salto identitário’

128

Capítulo II – A VOLTA

135

II.1

De volta ao “Lar”

136

II.2

A reintegração social dos ex-combatentes

151

II.3

Os ex-combatentes, as Associações e o Exército: entre resistência e negociação 167

Capítulo III – ENCONTROS E DESENCONTROS DA MEMÓRIA DA FEB

198

III.1

As heranças de 64

199

III.2

Tempo de rememorar

210

III.2

Memória e comemoração

225

CONCLUSÃO

233

FONTES E BIBLIOGRAFIA

238

9

SIGLAS

AN: Arquivo Nacional AECB: Associação dos Ex-Combatentes do Brasil ALERJ : Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro ANVFEB: Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira ANZAC: Australian and New Zeland Army Corps APERJ : Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro APM: Arquivo Público Mineiro AVFEB: Associação dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira BE: Batalhão de Engenharia CEB: Corpo Expedicionário Brasileiro CIA.: Companhia - Subdivisão de um batalhão comandado por um capitão CPM: Centro de Preparação Militar CPOR: Centro de Preparação de Oficiais da Reserva CRIFA: Comissão de Readaptação dos Incapazes das Forças Armadas CSN: Companhia Siderúrgica Nacional CVCI: Clube dos Veteranos da Campanha da Itália DIE: Divisão de Infantaria Expedicionária DIP: Departamento de Imprensa e Propaganda DOPS: Departamento de Ordem Política e Social DSN: Doutrina de Segurança Nacional ESG: Escola Superior de Guerra FAB: Força Aérea Brasileira

10

FEB: Força Expedicionária Brasileira HCE: Hospital Central do Exército HOESGM: História Oral do Exército Brasileiro na Segunda Guerra Mundial INPS: Instituto Nacional de Previdência Nacional LBA: Legião Brasileira de Assistência MMSGM: Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (Rio de Janeiro) NSDAP: Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista) PAMA: Parque de Material da Aeronáutica (Lagoa Santa) PCB: Partido Comunista do Brasil PE: Polícia do Exército RI: Regimento de Infantaria STO: Serviço de Trabalho Obrigatório STJ : Superior Tribunal de Justiça TO: Teatro de Operações TOGM: Teatro de Operações de Guerra do Mediterrâneo UNE: União Nacional dos Estudantes USP: Universidade de São Paulo

11

INTRODUÇÃO Que a memória constitui um dos elementos centrais ao entendimento das sociedades, sobretudo se considerarmos os últimos vinte ou trinta anos, já se tornou lugar comum afirmar. Entretanto, concordar que essa questão estaria esgotada em decorrência do seu tratamento ad nauseam seria algo indiscutivelmente equivocado, ou em outras palavras, crer que devido ao seu intenso uso, muitas vezes de forma indiscriminada, abusiva e ingênua, a discussão estaria resolvida ou que não apresentasse mais polêmicas seria incorrer em sério erro – para não dizer perigoso. Em face do que vemos atualmente ser dito e feito em nome da memória é mais fácil, justamente, afirmar o contrário, ou seja, que devido à sua onipresença, torna-se urgente e inadiável abordar de forma mais detida questão tão importante. Certa sobrevalorização dos discursos e práticas de memória que hoje vemos, é verdade, não é fato inédito; no entanto, a intensidade que se vê agora, quando pronunciar a palavra ‘esquecimento’ gera constrangimentos e acusações de sacrilégio, é algo próprio de nossa época. As formas e canais por onde se manifesta esse boom da memória nas sociedades contemporâneas são incontáveis: nacionalismos de fim e início de século, comemorações das mais diversas naturezas, políticas patrimoniais de fundos estatais e privados, manifestações literárias de cunho biográfico e memorialístico, filmes e músicas1, festivais e eventos ditos ‘retrô’, em cd-rooms e na internet, projetos voltados ao ‘resgate’ e ‘proteção’

1

No momento em que escrevo este texto, vivemos, sobretudo por meios desses dois elementos das indústrias cinematográfica e fonográfica, um nítido ‘retorno’ das décadas de 70 e 80. Artistas e bandas até então esquecidos ou em decadência voltam a fazer sucesso e a regravar antigos hits. Festas e shows temáticos ganham vez nos espaços de entretenimento das grandes cidades. Quanto ao cinema, tornou-se gosto a refilmagem de filmes que tiveram grande repercussão e se tornaram clássicos naquelas décadas. Em suma, vêse, não se sabe se gerado ou apenas repercutido pela indústria cultural, uma espécie de “entretenimento memorialístico” – nos termos de Andreas Huyssen (2000) – aspecto também presente no crescimento dos museus interativos e via Web por meio de sites especializados na divulgação de nostalgia.

12

da memória de grupos minoritários, desfiles e manifestações públicas, documentários, programas e até canais de TV, na explosão do registro em sintonia com o avanço das tecnologias digitais, a obsessão pela musealização do espaço e das coisas, as políticas de incentivo ao turismo histórico entre outras formas. Ou seja, vê-se que nos, e pelos, mais diferentes meios – políticos e econômicos, sociais e culturais –, bem como em múltiplos níveis – Estado-Nação, grandes e pequenos grupos sociais e indivíduos – a questão da memória tornou-se central. De forma que tal discussão não pode ser, portanto, relegada a uma posição marginal na interpretação e compreensão das sociedades e dos grupos – sob o risco da banalização dessa cultura da memória que está em voga atualmente. Nesse contexto, surgem as polêmicas, questões e categorias levantadas para a problematização e discussão desse tema complexo que é a relação das sociedades com as suas memórias e, por extensão, com o infindável processo de construção e reconstrução das identidades – aspecto esse intrinsecamente ligado às dinâmicas social e explicativa da memória. Pontos importantes discutidos tratam das questões relativas à falta e, mais importante hoje, ao excesso de memória. Pode-se afirmar que a ordem do dia no que toca à condição em que se encontram os debates sobre a memória pode ser sintetizada por termos como “excesso”, “abuso”, “saturação”, “banalização” entre outros – como vêm atestando vários autores e estudos específicos. Essa obsessão pela memória evidencia para as próprias sociedades o fato de que elas têm e vêm de um passado, de forma que se deve valorizar e considerar os esforços pela busca e manutenção da memória, não se esquecendo, entretanto, de se debruçar sobre os problemas e a maneira como essas estão sendo produzidas, difundidas e consideradas pelos respectivos grupos e/ou indivíduos. Polêmicas em torno dos estereótipos políticos e culturais, as estratégias do(s) poder(es), a onda consumista de memória, a autoridade dos

13

que falam em nome dela, entre outros pontos, são fundamentais ao entendimento e à condução de um painel que nos leve à liberdade e não à tirania da memória e da história. Ocorre que este boom acaba por submeter muitas outras memórias e histórias, na medida em que se criam identidades autoritárias e monolíticas, ou que por excesso de uns se esqueçam de outros. Muitas vezes tenta-se o estabelecimento de identidades harmônicas e coerentes o que advém, certamente, de leituras problemáticas do passado – causando impasses frente à natureza fragmentária, para não dizer caótica, dos indivíduos e grupos sociais. A fim de evitar tais configurações, devemos estar atentos para os usos políticos do passado, bem como para o poder que envolve a construção e o estabelecimento das memórias – sejam quais forem os níveis em que esses processos se dão. Desse modo, questões acerca da forma como se faz a seleção e divulgação do passado, as polêmicas sobre o que e como deve ser lembrado e porque, bem como quem está envolvido devem estar sempre em pauta. Paralelamente, temos que ter ciência de que “nem sempre o culto à memória serve às boas causas”2, lembrando que a valorização da memória e das comemorações foi levada ao extremo na Alemanha Nazista, na Itália Fascista e sob o Stalinismo na URSS – o que não é verdade no caso da maioria das democracias, pelo menos até algum tempo atrás e em certos países. Para Todorov, deve-se também lembrar que, intrinsecamente, a memória não é nem boa nem má, dependendo, na verdade, de que forma a mesma se apresenta e como se articulam os vários elementos que a compõe e que estão em jogo na sua difusão. A memória deve servir ao homem e nunca a ela mesma ou a qualquer outra coisa que não seja o homem, de modo que “o passado

2

TODOROV. Tzvetan. “Memória do mal, tentação do bem. Indagações sobre o século XX”, p.189.

14

sacralizado não nos evoca nada além dele mesmo, porque o mesmo passado, banalizado, nos faz pensar em tudo e em qualquer coisa.”3. Em outros termos, se quisermos nos livrar de quaisquer formas de absolutismos ou essencialismos – a memória sacralizada –, bem como da relativização onde vale tudo – a memória banalizada –, é inadiável trazer tais temas ao pensamento e à discussão. Ambas, memória e história, são representações do passado e se definem por, entre outras coisas, ter o passado como matéria-prima, de modo que, frente a mais simples definição de memória, ou seja, que ela é a presença do passado no presente, não nos surpreenderia ver a história também a partir desse prisma. Outros elementos viriam opo-las: a história buscaria a verdade, ao passo que a memória a fidelidade; os princípios também divergem, de modo que a história deve ser impessoal, enquanto a boa memória visa o interesse pessoal4; os regimes de veracidade diferem também, já que “nossas lembranças são irrefutáveis, pois valem por sua própria existência, e não pela realidade a qual remetem.”5, o que não acontece com a história. Dessa forma, pode-se afirmar que a memória é a ‘reconstrução’ de um real, ou melhor, ela é o real para aquele que rememora, pois a memória se estrutura de forma a estabelecer uma identidade. Nesse contexto, é fundamental que se processe o que Todorov chama “Trabalho de memória”, ou seja, não apenas ‘resgatar’ a memória, mas sim pensar a denúncia, o luto, os sofrimentos e opressões, realizar uma espécie de sedimentação e depuração do passado. Não deixando de chamar a atenção para a autonomia da memória, impedimos outros usos, também possíveis, mas que

3

Ibidem. p.195. Deve ficar claro que não pretendo uma definição “objetivista” da objetividade em história – a minha intenção aqui é atribuir um sentido filosófico acerca da diferenciação entre a história, que é uma ciência – com seu regime específico de verdade e que agora não vem ao caso – e memória que, se não portadora de um interesse pessoal como, por exemplo, a preocupação explícita com o estabelecimento de uma identidade , não pode ser vista como tal. 4

15

se enquadrariam numa “má memória”, ou seja, de caráter essencialmente utilitário e politiqueiro. A sacralização, a mitificação, a banalização pelo excesso e pelo consumismo, os abusos das comemorações, a vitimização e a heroicização, entre outras possibilidades, são, na verdade, uma apreciação da memória vista a partir de um foco em que não se valoriza o seu estatuto próprio, que a vê de forma “piedosa” e submetida pela história. Enfim, é uma forma de memória que engole o indivíduo e que torna, para ele, o passado algo pouco palpável e distante – a singularidade das experiências não significa uma desimportância universal, mas, muito pelo contrário, dá a importância da memória e da depuração do passado nos termos da “boa memória” necessária a todos os homens. Pretendo, então, fazer um trabalho de história da memória vendo esta na perspectiva do que Todorov6 denomina “boa memória”, ou seja, percebe-la enquanto um objeto da história sem, no entanto, anulá-la enquanto portadora de um estatuto, significação e conhecimento próprios. Deve-se, dessa forma, colocar de lado certa crítica objetivista à memória, pois, independente do caráter ‘falso’ ou ‘verdadeiro’, manipulatório ou não da memória – se ela representou algo para alguém, e esse alguém vive e estabelece representações e práticas com base nessa memória – ela tem a sua validade enquanto memória mesmo. Enfim, deve-se tomar a memória como objeto considerando a sua peculiar dimensão veritativa, valorizando assim o seu estatuto próprio e independente da história. A memória tem menos a preocupação em conhecer o passado do que agir no presente – ela atualiza o passado no presente com vistas ao futuro, ou seja, estabelece uma coerência e uma identidade ao tempo que é fragmentado. E tudo isso de forma não apenas

5

TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”, p.151.

16

racionalmente calculada, ou percorrendo caminhos estranhos aos indivíduos, na verdade, os únicos e verdadeiros sujeitos do rememorar. Pelos caminhos que vêm sendo indicados – a afetividade e os sentimentos, a preocupação com a fidelidade das lembranças e com a identidade etc. – os indivíduos, num processo que é essencialmente político, pois fruto de um diálogo, bem como de disputas e polêmicas, com outras temporalidades, outros indivíduos e grupos, processa a sua memória com a finalidade de agir no presente, ou simplesmente, viver. Pelo lado da história da memória, esta consiste numa das ramificações da história que mais se desenvolveu nas últimas décadas – em menor escala no Brasil, é verdade. Prova disso são os vários temas que já se tornaram consagrados nessa área, como por exemplo, a memória dos partidos, do proletariado, dos comunistas e de várias correntes políticas, as das resistências francesa e italiana, dos judeus, a dos ex-internos em campos de concentração e dos recrutados pelo STO – Serviço de Trabalho Obrigatório –, das regiões sob ocupação durante as guerras do século XX, dos veteranos de guerra entre outros. Algumas vezes usa-se a história da memória para explicar eventos de grandes proporções, como o caráter dos regimes pós-guerra nos países que tiveram uma forte resistência – esta sempre fragmentada; noutro caso para elucidar a situação do Exército Francês às vésperas da Segunda Guerra que, em decorrências do frescor dos traumas de 1914-18, não se preocupou em atualizar a sua doutrina; e até a recente onda nacionalista no Leste Europeu como um ressurgir de valores até então reprimidos pelo comunismo soviético e que, até então, percorriam caminhos de uma “memória subterrânea”7 entre outros vários exemplos.

Cf.: TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...” Cf.: POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio” Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 6 7

17

Por outro lado, a história da memória também colaborou com o aprimoramento não só da disciplina, mas também dos historiadores. De modo que se a memória tem uma história, isso significa que essas duas categorias não se explicam por uma relação de oposição. Em outro nível, analisar as representações do passado na história, acaba nos mostrando, na prática, que esta é também uma forma de memória coletiva e que, portanto, os historiadores ou quaisquer estudiosos do passado não são os detentores da verdade histórica, posto que estejam percebendo o passado, na verdade, sempre a partir de demandas do presente8. Por fim, vale colocar que a memória, obviamente, varia de acordo com os indivíduos e grupos sociais, bem como nos diferentes momentos históricos. Há momentos em que ela é mais ou menos valorizada – modifica-se de acordo com a relação estabelecida entre “experiência” e “expectativa”9 –, bem como grupos em que é mais ou menos considerada, e é daí que podemos vê-la enquanto objeto da história. Desse modo, portanto, enfoquemos, a partir de agora, o processo de configuração da memória num dos sujeitos protagonistas do “Extremo” século XX, a saber, os veteranos de guerra. v Memór ia, identidade e os veter anos de guer r a A memória, antes de consistir num espaço povoado por lembranças empoeiradas e sem importância, é formada por uma complexa interação de diferentes temporalidades que habitam os sujeitos no decorrer de suas vidas. Passado, presente e futuro, “experiências” e “expectativas”, estão sempre em ‘jogo’ e, em companhia dos sujeitos que nos rodeiam,

Cf.: ROUSSO. “A memória não é mais o que era”. In: FERREIRA, Marieta de Morais. “Usos e abusos da história oral”. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. 9 KOSELLECK, Reinhart. “‘Espacio de experiencia’ y ‘horizonte de expectativa’ dos categorías históricas” In: “Futuro passado. Para una semántica de los tiempos históricos” Barcelo: Ediciones Paidós Ibérica, 1979. 333-358p. 8

18

serão os responsáveis pelo estabelecimento de algo imprescindível aos indivíduos: a sua identidade – o que evidencia a dimensão prática da memória. Memória e identidade são produtos de um incessante trabalho artesanal – quase sempre inconsciente – dos indivíduos, trabalho este sempre em diálogo com as experiências e as necessidades dos sujeitos. Esse dois elementos são frutos de disputas intricadas e duras lutas, diálogos, investimentos, aceitações e incompreensões, por vezes enfrentam políticas de repressão, esquecimento e exclusão, e competem, também, em lutas pela justificação e legitimação dos poderes, ou seja, são uma espécie de capital simbólico extremamente caro aos indivíduos. Dessa forma, fica clara aqui a dimensão política desses dois elementos, bem como a sua complexidade. Seguindo uma proposta de Todorov10, segundo o qual as experiências extremas consistem em momentos decisivos, e até de mais fácil apreciação, para o entendimento do comportamento humano, apresento o tema a ser discutido: a experiência e a memória da guerra. Ou seja, estou vendo, não na mesma intensidade que Todorov atribui à experiência concentracionária, a guerra como portadora do caráter de uma experiência traumática – o que significa alterações permanentes e irrevogáveis em quem quer que passou por isso, seja militar ou civil. Experiências traumáticas ou catastróficas como as guerras geram profundas remodelações identitárias, com implicações em praticamente todas as esferas sociais – dependendo do tamanho e da intensidade que um conflito assume, bem como do grau de envolvimento das populações. Vêem-se fortes impactos, também – e nesse caso isso é ‘privilégio’ dos soldados –, na estrutura dos sentimentos, ou seja, ocorrem drásticas

10

Cf.: TODOROV, Tzvetan. “Em Face do Extremo” Campinas: Papirus, 1995.

19

alterações no âmbito das suas relações com a família, classe e gênero, bem como no que toca à identidade nacional. No século XX, são as duas guerras mundiais responsáveis por impactos determinantes no processo histórico, redefinindo-o, na verdade, nos múltiplos níveis. Na Europa, por exemplo, sabemos que é impossível compreender o século XX sem tratar das guerras e dos veteranos que voltavam para casa, seja qual for o tema: desde moda, passando por economia e política, até as manifestações culturais e artísticas. No entanto, para nos atermos somente aos que participariam diretamente dos conflitos, como se dava esse trauma? E, de modo geral, quais foram os impactos específicos sobre esse grupo? Conversando com veteranos de guerra, percebemos o peso dessa experiência de imediato, a partir do simples fato de que a maioria deles, posteriormente, acaba organizando suas memórias em função dela, ou seja, a biografia de um ex-combatente, geralmente, se divide em antes, durante e depois da guerra. Cronologia também aplicada ao século XX: o pré-guerra, a I Guerra Mundial, o entreguerras, a II Guerra Mundial, o pósguerra e a Guerra Fria11 – o que deixa claro que a guerra faz parte da estrutura da história e de grande parte das memórias do século passado. Sobre os impactos da I Guerra Mundial, Walter Benjamim afirmou: “No final da guer r a, obser vou-se que os combatentes voltavam mudos dos campos de batalha não mais r icos, e sim mais pobr es em exper iência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxur r ada de livr os sobr e a guer r a nada tinha em comum com uma exper iência tr ansmitida de boca a boca (...) Por que nunca houve exper iência mais r adicalmente desmor alizador a do que a exper iência estr atégica pela guer r a de tr incheir a.” 12

E ainda o autor coloca, posteriormente, que uma geração que foi à escola a cavalo, se encontraria, de repente, num lugar em que tudo entre as nuvens e a terra seria transformado

Cf.: HOBSBAWM. “Era dos Extremos – o breve século XX, 1914-1991” 2o edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 12 BENJAMIN. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, p.198. 11

20

pelo turbilhão de fogo e ferro lançado pelos exércitos em guerra. A guerra total, com os seus mecanismos coercitivos, envolveria todos, de uma forma ou de outra, no evento bélico: conscrição militar universal como pré-requisito à cidadania, a implantação e generalização da lógica industrial, a instrumentalização dos sentimentos nacionalistas e de certo espírito romântico até as vésperas de 1914, a conseqüente valorização do profissional militar, o novo espaço aberto às mulheres entre outros elementos, acabariam por criar uma realidade de onde todos sairiam, na verdade apenas os sobreviventes, radicalmente transformados. Todos sabem, e não se alongará aqui por questões práticas, das condições e da situação a qual foram reduzidos os soldados na guerra de trincheiras: mares de lama, invernos congelantes, fome, doenças de toda natureza, a banalização da violência e da morte, a convivência com ratos, baratas e piolhos, corpos em putrefação para todo lado, as neuroses de guerra, até então ignoradas13, o cansaço, a saudade de casa, a falta de um sentido para aquilo tudo entre outros pontos. Todas essas condições em que viveram os soldados durante a I Guerra foram imortalizadas pelo romance do então veterano alemão Erich Maria Remarque, “ Nada de novo no Front” de 1928, na verdade um libelo pacifista lançado no entreguerras pretendendo evitar o que já era provável desde a assinatura do Tratado de Versalhes: uma outra guerra mundial.

A neurose de guerra, conhecida atualmente por “transtorno pós-traumático”, era vista durante a I Guerra como nada mais do que covardia e medo – seja pelos oficiais comandantes, seja pelos soldados não acometidos por ela, obviamente. Na verdade, até a II Guerra Mundial, quando conceitos como neurose de guerra, fadiga ou exaustão por combate começaram a ser levados a sério – inclusive, a partir de então, unidades de neuropsiquiatria seguiam os soldados de perto, a FEB mesmo teve a sua – muitos os viam com preconceito. Tornou-se célebre passagem em que o general norte-americano George Patton humilhou em público um soldado de sua divisão que se encontrava na enfermaria em função de exaustão e crise de pânico – esse último também comum em situações extremas como as guerras. No entanto, é verdade que, por ordens do alto comando aliado – na época sob responsabilidade do general Eisenhower, o “Eike” – Patton foi obrigado a pedir desculpas, em público, para o tal soldado. Sinal de que as coisas vinham mudando, mesmo que de cima para baixo. 13

21

Se a situação melhorou um pouco na II Grande Guerra, isso não significa que os soldados passaram por menos dificuldades. O fato de serem arrancados dos lares e jogados em uma linha de combate enfrentando duras condições, a morte de amigos, a escassez de elementos essenciais a uma vida saudável e coisas do gênero, fez desse conflito, igualmente, mas em proporções ainda maiores, um turbilhão transformador da vida de milhões de pessoas. A sensação de ruptura e a instabilidade emocional e identitária, como sabemos, tornaram-se problemas que percorreriam todo o século XX, para não citar os reflexos que ainda hoje enfrentamos. Ao contrário das guerras anteriores ao século XVIII, quando os conflitos envolviam, sobretudo, militares profissionais e pequenas parcelas da população regidos por regras de cavalheirismo, as guerras do século XX deram aos soldados uma sensação de pequenez e inutilidade, num contexto em que potências nacionais e complexos industriais disputavam territórios e vantagens políticas e econômicas, na maioria das vezes,

alheias à sua

realidade. Por incrível que possa parecer essa afirmação, as guerras modernas forçam, muito mais do que as anteriores, uma desumanização intensa. A própria estrutura de coerção que mantém um soldado no front, bem como faça com que obedeça as ordens, é radicalmente alterada – agora, “a dinâmica da batalha moderna coage de uma forma mais efetiva do que qualquer sistema de disciplina...”14. São “forças incógnitas”, que jamais podem ser revidadas ou contestadas, que dominam os campos de batalha na modernidade, aprisionam os indivíduos e os mantêm reféns das cargas mobilizadoras das artilharias, das movimentações de gigantescos exércitos motorizados estando, no final das contas, restritos a pequenas atividades e funções minúsculas frente a todo esse processo.

14

KEEGAN. “A face da batalha”, p.303.

22

Na verdade, a guerra moderna pretende ser racional, ou melhor, se percebermos de perto a sua dinâmica, assemelha-se a uma imensa burocracia em funcionamento – e, de fato, as I e II Guerras Mundiais são extremamente burocráticas. Mas é claro que, na dimensão dos soldados que estão em suas trincheiras ou fox-holes, a guerra não se resume a isso, pois as afetividades – o medo, o ódio, a solidariedade etc. – e suas identidades estão em plena transformação. Desse modo, por mais que o discurso político procure legitimar a guerra ou, como temos visto desde o pós-guerra, sobretudo nos últimos anos, certa preocupação em mostrar a guerra como algo “limpo”, “exato” e de “objetividade cirúrgica”, devemos saber que: “O que as batalhas têm em comum é humano (...) O estudo da batalha é, por tanto, sempr e um estudo do medo e, nor malmente, da cor agem; sempr e da lider ança, comumente da obediência; sempr e da compulsão, às vezes, da insubor dinação; sempr e da ansiedade, ocasionalmente da ilação ou catar se; sempr e da incer teza e da dúvida, ausência de infor mação e compr eensão, nor malmente também da fé e eventualmente da visão; sempr e da violência, espor adicamente também da cr ueldade, do auto-sacr ifício, da compaixão; acima de tudo, é sempr e um estudo da solidar iedade e costumeir amente também da desintegr ação – por que é a desintegr ação de gr upos humanos que a batalha visa.” 15

A partir dessas constatações, bem com de que a experiência bélica levou-nos ao extremo, pode-se retomar a afirmação de que os impactos sobre cada soldado, posteriormente veteranos de guerra, serão profundos e permanentes. Portanto, resumidos aqui os fatores em jogo no contexto de uma guerra, dediquemo-nos, agora, às transformações perpetradas – sobretudo após a volta para casa e durante o complicado processo de reincorporação social. v Na Odisséia de Homero, Ulisses volta para casa, Ítaca, após 20 anos de ausência e, em decorrência disso, não a reconhece logo de início. Não a reconheceu, também, porque a

23

deusa Atena deixou o ar a sua volta denso, a fim de que primeiro “despertasse para as coisas” para depois entrar em contato direto com a realidade que há muito deixara para trás16. É através do caso mais famoso de retorno para casa da literatura mundial, que Alfred Schutz inicia um interessante artigo sobre a experiência dos soldados que vão para a guerra e depois voltam – encontrando sérios problemas para restabelecerem a normalidade17. Segundo Schutz, para aquele que retorna ao lar, num primeiro momento, este lhe parece outra coisa que não aquele “Lar” harmônico e aconchegante de antes. Sobre o conceito de “Lar” ele coloca: “‘Lar é de onde se par te’, diz o poeta. ‘Lar é par a onde o homem tem a intenção de r etor nar quando está longe’, diz o jur ista. O lar é o ponto de par tida assim como o ponto ter minal. É o ponto zer o do sistema de coor denadas que atr ibuímos ao mundo a fim de nos movimentar mos dentr o dele.”

E depois: “O car áter simbólico na noção de ‘Lar ’ é emocionalmente evocativo e difícil de descr ever . Lar significa coisas difer entes par a pessoas difer entes. Significa, é clar o, a casa pater na, a língua mater na, a família, o amor , os amigos: significa uma paisagem quer ida, ‘canções que minha mãe me ensinou’, comida pr epar ada de um deter minado modo, coisas familiar es par a uso diár io, costumes, hábitos pessoais – em suma, um estilo peculiar de vida, composto de pequenos elementos impor tantes e quer idos.” 18

Desse modo, conclui-se que o conceito de “Lar” pode muito bem ser visto em consonância com as condições da memória do soldado que está prestes a partir de casa e, nesse ponto, todos esses detalhes passam para ele de modo despercebido, para só mais tarde serem lembrados. E esse é um aspecto importante, pois o “Lar” refere-se a diferentes coisas se se está nele, longe dele, ou se retorna para ele.

15

Ibidem. p.278. Cf.: SCHUTZ, Alfred. “Aquele que retorna ao lar” In: WAGNER, Helmut R.(org.) “Fenomenologia e Relações Sociais. Textos escolhidos de Alfred Schutz” Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979. 289-302p. 17 SCHUTZ, Alfred. “Aquele que retorna ao lar”. 18 SCHUTZ. “Aquele que retorna ao lar”, p.290-291. 16

24

Se interrompida a relação “face a face” do “Lar”, é pressuposto dos indivíduos que compunham originalmente aquele mundo que, com a volta e o restabelecimento da condição ‘natural’, tudo possa voltar a seu curso original – como se nada tivesse acontecido durante o período da interrupção. No entanto, isso raramente acontece – sobretudo quando a partida e a volta são intermediadas por eventos traumáticos para um dos lados, no caso, uma guerra. Quem saiu deixa de acompanhar o vivido do “Lar”, mas quando se espera encontrar aquela situação harmônica de outrora, dá-se o desencontro. Estabelece-se um conflito de memórias entre o veterano, a família e a sociedade. Na verdade, esse sentimento de conflito e perda de identidade se inicia antes mesmo do soldado voltar para casa. A comunicação que se dá por cartas já mostra muito bem o que viria pela frente, bem como as licenças, em casa, que os soldados franceses e ingleses gozavam durante as I e II Guerras. O soldado Louis Mairet ficaria chocado, quando de sua licença na retaguarda, ao ver que a vida de seus familiares e conhecidos continuava como se nada estivesse acontecendo. “Ficou especialmente aborrecido com aqueles que, ao serem informados de algumas das condições precárias do front e da tenacidade do inimigo, bocejavam e reclamavam do preço da carne de vitela”19. Um soldado Inglês, respondendo a um amigo sobre o que falou acerca da vida no front para a mulher, diria: “Ela não me deu uma chance, ocupada como estava em me falar do gato da Sra. Bally que matou o passarinho da Sra. Smith, do novo vestido da irmã da Sra. Cramp, e do cachorro de Jimmy Murphy que tinha destruído a boneca de Annie Allen”20. No que toca às cartas que vinham de casa, estas “... er am fr eqüentemente dolor osas por causa de sua ingenuidade. As ir onias saltavam aos olhos dos soldados: ‘Pr ocur e não ser fer ido!’ ou ‘Nós também estamos passando dificuldades!’ ‘Meu Deus! Com o quê?’, foi a r esposta de EKSTEINS. “A Sagração da Primavera. A Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna”, p. 291. Apud. Diário, 5-12 de março de 1916, Mairet, Carnet, 131-32. 20 Ibidem. p.292. Apud. “ Literary Digest” , 60-10 (8 de março de 1919), p.105. 19

25

Delver t. Ao ler esses comentár ios vindos de casa, a sensação er a de completo isolamento. As tr opas bem que poder iam estar na lua. Viviam e lutavam num lugar além da compr eensão, além da imaginação e até além do sentimento.” 21

A partir do momento em que o “Lar” foi rompido, os integrantes desse deixam de compartilhar as mesmas redes de espaço e tempo – e se expressam, agora, de maneiras por demais divergentes entre elas, sobretudo o soldado que é o mais afetado. Deixa-se de existir o vivido cotidiano do “Lar”, sendo que, tanto os soldados, quanto suas famílias deixam de se reger pelas mesmas coordenadas – estas últimas, vivendo o front interno, também passam por um processo de mudança, que, entretanto, não é tão traumático quanto o primeiro, além de ser efetuado em conjunto. Ou seja, atualiza-se a memória coletiva sem, no entanto, a presença daquele que partiu. O que sobra do “Lar” em ambas as partes não passa de ‘tipos’ que se fundamentam numa harmonia anterior do “Lar”, idealizada, é verdade, em vista das situações tumultuadas pelos quais passam. A pessoa que escreve uma carta tem como referência o ‘tipo’ que habita sua memória – sem saber que está sendo influenciada pela situação presente – desde a partida. Por sua vez, a pessoa que lê, também espera de quem escreve uma compreensão pelo que está passando, esperando que as relações e as memórias do “Lar” ainda estivessem intactas. “No entanto, a mera mudança de ambiente faz com que outras coisas se tornem importantes para ambos, as velhas experiências são reavaliadas, outras novas, inacessíveis ao outro, surgem na vida de cada parceiro”22. Perde-se a intimidade e o entrosamento na dinâmica da memória, dando lugar aos ‘tipos’, estereótipos e à saudade. É essa uma das dimensões traumáticas da guerra.

21 22

EKSTEINS. “A Sagração da Primavera. A Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna”, p. 293. SCHUTZ. Op. cit. p.298.

26

O segundo momento do trauma, mais profundo e problemático, surge com a volta do soldado para o “Lar”. Sabemos que o estabelecimento da identidade se dá num duplo sentido: tem que ser aceita pelo grupo ou indivíduo que a forja e, ao mesmo tempo, cumprir com regras de aceitabilidade e reciprocidade sociais. Vejamos pelo lado do soldado, cujas mudanças foram mais profundas: este tem uma nova imagem de si, que não vai coincidir com a imagem que foi construída a seu respeito pelos que ficaram. O único contato com a realidade do soldado que as pessoas têm se dá através dos estereótipos feitos pela mídia – naquele tom patrioteiro e chauvinista de períodos de guerra já bastante conhecido: rádio, jornais, filmes etc., para não falar no dirigismo desses, preocupados com fatores macropolíticos, com a justificação da guerra e a manutenção do moral no front interno23. Por parte do ausente, uma nova identidade foi estabelecida, que se baseia, inclusive, numa comunidade de memória extremamente forte e que sustentou o indivíduo durante toda a experiência traumática da guerra: a chamada ‘comunidade das trincheiras’, que vai ser, mais tarde também, a sua mais importante base de fundamentação no pós-guerra – pois são os únicos que satisfazem as condições de identificação e aceitabilidade das suas lembranças e de sua experiência. Sem esquecer que a experiência da guerra é algo único e insubstituível. E “não importa o que aconteça, essas circunstâncias particulares são suas experiências únicas, individual, pessoal, que ele nunca vai permitir que seja tipificada”24. É até próprio dos veteranos criarem um sentimento de superioridade em relação ao civil que não participou da guerra, uma superioridade moral, inclusive, dado que chegou próximo da

Como diz o famoso ditado: “Nunca se mente tanto antes de uma eleição, durante uma guerra e depois de uma pescaria”. Creio que a passagem ficou famosa na voz do estadista britânico Sir. Winston Churchill, mas não conto com dados que provem tal afirmação. 24 SCHUTZ. Op. cit. p.297. 23

27

morte, sofreu as piores privações e ainda voltou para casa e não foi recebido como esperava. Nesse contexto, a ‘comunidade das trincheiras’ se transforma na coisa mais importante na vida de um veterano, por questão de necessidades básicas. Foi ela que o manteve quando de sua saída brusca do “Lar” e, depois, somente ela continuou compreendendo o que estava passando. O choque da volta é problemático não apenas devido à incompreensão dos que ficaram, mas também pelo fato de que novas responsabilidades e atitudes são esperadas de homens que não foram preparados para tanto. Após o retorno, o veterano sente-se perdido sem a orientação superior e a segurança tão presente na vida militar – ele se sente como ‘uma criança sem sua mãe’. Tudo isso consistiu num choque intenso para veteranos das duas guerras mundiais que, a despeito das promessas governamentais sobre pensões e reincorporação social, tiveram que se virar sozinhos num mundo que não mais queria saber de guerras e soldados. Enquanto estava em atividade, todas as suas necessidades eram de responsabilidade do Estado – soldo roupas, equipamentos, alimentação etc. – criando um forte vínculo que levava o soldado a se acostumar com esse tipo de relação. A “memória da glória” dura muito pouco tempo, e o militar deixa de ter o prestígio das épocas do conflito. Esse descompasso abismal, que fora criado, produz uma profunda angústia em face da destruição instantânea de elementos até então vistos como imutáveis e sagrados. A maneira como se é retirado do “Lar”, o trauma da guerra e o choque da volta destruiriam as referências dessas pessoas. Hoje podemos perceber a ingenuidade dos

28

soldados e a ânsia pela volta daquela harmonia do “Lar” que tanto prezavam em músicas como esta, de um tommy25 inglês: “Quando acabar esta guer r a Mando às favas a caser na. E mais uma vez a paisana A vida volta a ser bacana. Domingos livr es sem par adas, Sem igr eja, nem passes, nada. Nosso bom Sar gento-ajudante Que enfie os passes... Ele sabe onde. ” 26

Na verdade, os veteranos mal sabiam o que os esperava na volta. v Na França, a partir de 1919, a população e os veteranos dão início à construção dos memoriais da guerra – sendo que em 1922 já existiam mais de 30 mil monumentos de pé. Surgem comemorações organizadas não pelos poderes públicos, mas sim pelas Associações de Ex-Combatentes, caracterizando-se pelo caráter civil, pacifista e antimilitarista dos eventos. “O que importa é que a festa seja desprovida de qualquer aparato militar. Sem tomada de armas, sem revista, sem desfile de tropas. Celebramos é a festa da paz não a festa da guerra”27. Não é a pátria ou nação que é celebrada, mas sim essas que homenageiam os veteranos e a memória dos mortos e de suas famílias. No entanto, é interessante lembrar: se na França os monumentos de caráter pacifista e antimilitarista eram maioria, isso não foi recíproco no Além-Reno, onde predominaram os que glorificavam a luta, monumentos patrióticos do soldado triunfante e o culto aos soldados tombados pela nação. Na Alemanha, também, eram inexistentes monumentos em referência ao Dia do

25

Apelido atribuído aos praças do Exército Inglês na I Guerra Mundial. Os franceses eram conhecidos por “ Poilu” – cabeludo –, e os australianos por “ Digger” – cavador. Já na Segunda Guerra, seriam os “ G.I” . – Government Issue – norte-americanos e os “ Pracinhas” , no caso do Brasil 26 EKSTEINS. Op. cit. p.283. 27 PROST & GÉRARD. “História da vida privada – da Primeira guerra a nossos dias”, p.211. Apud. “ Journal des Mutilés” , 14 de outubro de 1922.

29

Armistício – ao contrário do que ocorreu na França, Inglaterra e EUA –, ou seja, não queriam saber de nada que lembrasse o humilhante Tratado de Versalhes. Como se sabe a Alemanha perdeu a guerra, o que conferiu a ela impasses mais graves do que os vistos nos outros países. O processo de reincorporação foi muito mais problemático, o acesso a indenizações, pensões e a programas de reintrodução no mercado de trabalho esteve praticamente ausente até meados dos anos 30. A situação era crítica: só em Berlim, em 1919, contava-se pelo menos 100.000 inválidos e feridos de guerra esperando por assistência – e assim a situação permaneceria pelo menos até 1929, quando as coisas se tornariam piores. No âmbito nacional, dessa forma, os veteranos tornavam-se cada vez mais influentes, de modo que sabemos que esses grupos, dado o seu tamanho e importância, freqüentemente opinavam abertamente acerca de questões políticas da nação, e, no caso Francês, vê-se muita pressão para o estabelecimento de uma política de defesa nacional pacífica, por exemplo. No lado alemão, há uma pressão ainda maior dos veteranos junto às estruturas de amparo do Estado e, na esfera da ação política, eles foram fundamentais na radicalização do espectro político alemão tal qual se deu na década de 1930 – juntamente com os comunistas e nazistas. É claro que, às vezes, os veteranos poderiam filiar-se à esquerda, mas é fato que os ex-combatentes alemães da I Guerra se alinharam, em massa, à direita radical – trazendo à tona, constantemente, a experiência da guerra e a ‘comunidade das trincheiras’ como algo a ser reconstruído frente à “punhalada pelas costas” de 1918. Faltava apenas uma organização ou líder capaz de capitalizar esses ressentimentos e atribuí-los a algum ‘bode expiatório’ de modo a criar o inimigo que ‘traiu’ a Alemanha e que deveria pagar por isso numa próxima guerra: os primeiros, o Partido Nazista e Adolf Hitler, o segundo, os judeus.

30

Como se sabe, as bases do NSDAP – Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – eram formadas por veteranos da guerra, dentre eles Hitler, que afirmava que a I Guerra teria sido “a maior de todas as experiências”. Este pretendia a construção de um país que nada mais seria do que a reprodução em larga escala da vida no front. O que mais era o Nazismo que não isto, a pura e simples militarização de todas as instâncias da sociedade? E os veteranos politizavam-se: “A ira de Hitler equivalia à de um número de veteranos suficiente para proporciona-lhe o núcleo de um partido político, quando em 1921 adotou posições de extrema direita”28. Mais tarde diria F.W. Heinz, veterano da I Guerra e, anos depois, chefe das S.A.: “Aquelas pessoas nos disser am que a guer r a estava ter minada. Foi uma gar galhada ger al. Nós mesmos somos a guer r a: sua chama ar de com for ça em nós. Envolve todo o nosso ser e nos fascina com o sedutor impulso de destr uir .” 29

Vale lembrar que os partidos eram formados, em sua primeira fase, essencialmente por veteranos, crescendo e se fortalecendo em quase toda a Europa – na Itália, por exemplo, os

Squadristi fascistas eram formados por 57% de ex-combatentes da I Guerra Mundial30. A despeito de tudo que foi dito até aqui sobre os veteranos do entreguerras, vale lembrar que não se pode percebê-los como responsáveis por tudo o que aconteceu. Sabemos que o Nazismo e o Fascismo consistiram em eventos que foram muito além dos veteranos, e que o imobilismo das Forças Armadas Francesas até as vésperas de 1939 não se explica somente pelo trauma sofrido pelos soldados que foram à guerra. Em suma, vale registrar que a cultura da guerra e os valores e experiências dos veteranos, se não são os responsáveis pela radicalização política da década de 30, certamente ajudaram a colocar

KEEGAN. “Uma História da Guerra”, p.378. EKSTEINS. Op. cit. p.391. 30 HOBSBAWM. “Era dos Extremos – o breve século XX, 1914-1991”, p.128. 28 29

31

‘lenha na fogueira’ – mas não se deve colocá-los, eles agora, como bodes expiatórios, sob o risco de nos distanciarmos de qualquer coisa que lembre o totalitarismo em nós, bem como esquecermos de outros grupos igualmente responsáveis pela tragédia. Outro caso interessante de choque entre memórias de veteranos e da sociedade civil foi analisado por Alistair Thomson31. Em seu trabalho, vê-se a memória individual dos soldados e o descompasso que se estabeleceu entre a mesma e a memória coletiva que colocava a experiência dos ANZAC – Australian and New Zeland Army Corps – como o mito de fundação da nacionalidade australiana. A “Lenda do ANZAC”, como é chamada, criou um estereótipo da experiência da guerra de modo que se encaixasse como um importante elemento no processo de formação da identidade nacional na Austrália – o que acabava, obviamente, passando por cima da percepção e da experiência da guerra vivida e sentida pelos soldados. O mito público criado em volta do digger deixava muita coisa de fora – erros, tragédias, problemas, covardia, neuroses, derrotas, perdas etc, vendo o soldado como um herói portador de invulnerabilidades física e psicológica. A tragédia do desembarque em Galipoli – o fracassado desembarque das tropas australianas no território turco em 25 de abril de 1915 –, nesse contexto, era glorificada. O problema é que as memórias dos digger entraram em pane, porque elas não conseguiam se identificar com essa visão, e por muito tempo sofreram com neuroses que só ajudavam a piorar o quadro. Achavam-se soldados medíocres e covardes, tinham medo e eram pouco confiantes – dificilmente conseguiram se restabelecer depois que viam grupos inteiros de amigos serem exterminados num único ataque e os poucos restantes deles voltarem mutilados. Qualquer manifestação de medo ou hesitação não era bem visto por

32

um mito de fundação da nacionalidade, induzindo os veteranos a reprimirem seus sentimentos em vista da imagem pública que deviam manter. O mito nacional, dessa forma, reprimia os vários aspectos humanos da ‘guerra burocrática’, como as mortes, as mutilações, os sons e cheiros aterrorizantes, a fadiga, a exaustão nervosa, o estresse, as neuroses, as crises psicológicas de ansiedade etc. O que, obviamente, gerou grandes traumas e problemas de reincorporação entre os veteranos. A longo prazo os problemas só aumentaram, gerando mais constrangimentos e incompreensão: continuavam não conseguindo empregos, as promessas de apoio do Estado não foram concretizadas e, além de tudo, foram acusados de abuso da situação em que se encontravam para conseguir auxílios e vantagens. Apesar de tudo, a “... lenda do ANZAC funcionou porque muitos veteranos queriam e precisavam identificar-se com ela.”32, bem como pelo fato de ser a única coisa em que poderiam se agarrar mesmo que desprezassem parte de suas individualidades – o que, é certo, não sairia de graça. E no Brasil? Como se deu a questão dos veteranos de guerra? O envolvimento do Brasil na II Guerra Mundial foi bem mais limitado se comparado aos países citados até aqui, e isso também vale no que toca ao envolvimento da sociedade em geral com o evento. O Brasil nunca foi palco de batalhas, e a única presença de tropas estrangeiras em território nacional foi o estabelecimento das bases no Nordeste pelos aliados e – se considerarmos as águas territoriais – submarinos alemães que acabaram por avariar ou colocar cerca de 35 navios a pique. No mais, as únicas influências da guerra que a população brasileira sentiria diziam respeito à falta de alguns gêneros em decorrência da paralisação do mercado

THOMSON, Alistair. “Anzac memories. Living with the legend”. Melbourne: Oxford University Press, 1994. 32 THOMSON. “Memórias de Anzac: colocando em prática a teoria da memória popular na Austrália”, p.94. 31

33

externo, às filas desde padarias a pontos de ônibus, o gasogênio, às informações via rádio e jornal e, por fim, uma falida tentativa – pelo Estado Novo e outros grupos como a UNE, por exemplo – da criação de um clima de mobilização e de estado de guerra. Tudo isso com direito à criação de campanhas para recolhimento de metal, comissões especiais de trabalho e economia, ensaios de defesa civil em caso de bombardeio aéreo nas maiores cidades, legiões de assistência e, por fim, a criação de um clima de medo via mídia governamental. E finalmente, a partir de 1943/44, a formação de um Corpo Expedicionário a ser enviado que, parecia, nunca sairia de terras brasileiras. Em suma, a guerra se fixou mais no âmbito das negociações internacionais e de governo. Mas porque isso é importante? Essas especificidades, entre outras, do caso brasileiro, serão de fundamental importância ao entendimento das memórias da guerra até hoje, passados mais de sessenta anos após a volta. Ao contrário da maioria dos países que enviaram soldados para o front, todo o processo de formação bem como o contexto em que ele se deu são muito particulares. Em primeiro lugar o contingente era extremamente reduzido se comparado ao tamanho da população – pouco mais de 25.000 soldados numa população de cerca de 42 milhões de habitantes. Pelo menos 2/3 da tropa era formado por reservistas de 2o e 3o classes, tentativas de burlar a convocação eram regra e não exceção, os militares profissionais, isto é, de carreira, em sua maioria, tentaram permanecer o mais distante possível da formação e envio do corpo. De resto, o grupo acabou embarcando para a Itália com pouco e péssimo treinamento, sem armas e uniformes adequados, com um péssimo moral, desacreditados de si mesmos e pela sociedade, sem saber para onde iam nem o porquê, ridicularizados por populares e por alguns setores da mídia – quando estes conseguiam vir à tona, é claro.

34

Sem entrar nos detalhes das batalhas, a serem tratados posteriormente, o processo de volta foi mais problemático ainda: foram rapidamente desmobilizados e a FEB dissolvida, não contaram com projetos sistemáticos de reincorporação social, tiveram as suas experiências e memórias estigmatizadas pelos grupos políticos que viriam depois de Getúlio Vargas e, rapidamente, cairiam no esquecimento pela memória nacional. Há certas questões impressionantes nas fontes e depoimentos que tratam da questão da volta e da reincorporação dos veteranos: a despeito das variadas vertentes, opiniões e da multiplicidade de pontos de vista, certas polêmicas, como a dissolução da FEB ainda na Itália, por exemplo, são unânimes em receber críticas – entre outros pontos. A sensação de deslocamento é sem precedentes, e os soldados brasileiros já sentiam isso dias após a chegada, ainda no Rio de Janeiro. Depois vinha o isolamento, sentem-se como um corpo estranho, apesar de serem vistos como heróis e todos quererem falar com eles e tocá-los, até esquecê-los para sempre, alguns meses depois. Nas suas faces, o mundo desmoronava completamente, e essas múltiplas rupturas e traumas dificultariam ainda mais o estabelecimento de uma identidade e um senso de continuidade e coerência de si mesmos. E tudo isso era apenas um começo, de muitos outros que ainda viriam pela frente. v A bibliografia acadêmica existente sobre a FEB é pequena33, e a que se dedica ao tema a ser aqui discutido, a história da memória dos veteranos, se restringe a uma, que é a

Listo aqui as referências de que tenho conhecimento até o momento: LINS, Maria de Lourdes Ferreira. “A Força Expedicionária Brasileira: uma tentativa de interpretação” São Paulo: 1972, dissertação de mestrado em História, FFLCH – USP. CABRAL, Francisco Pinto. “Um Batalhão da FEB no Monte Castello” São Paulo: 1982, tese de doutorado em História, FFLCH – USP. NEVES, Luis Felipe da Silva. “A Força Expedicionária Brasileira; uma perspectiva histórica” Rio de Janeiro: 1992, dissertação de mestrado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – UFRJ. SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra” São Paulo: 1996, dissertação de mestrado em história, Departamento de História – PUC-SP. RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória: Uma história da memória do Ex-combatentes brasileiros” Niterói: 1999, dissertação de 33

35

dissertação de Patrícia Ribeiro. Indiretamente, a tese de Francisco Ferraz também trata do tema; quanto ao restante das referências, a temática enfocada é a história das relações internacionais que culminaram com a declaração de guerra ou sobre a história da FEB propriamente dita, sua formação e a guerra – essas duas últimas numa perspectiva essencialmente macroanalítica e da macropolítica, que interessa, agora, apenas a título de eventual consulta. Fazer história da memória é fazer a história de como os sujeitos rememoram determinados eventos ou (re)sentimentos, em determinados períodos, procurando perceber como compreendem e dão inteligibilidade ao seu passado, bem como os vínculos identitários estabelecidos por meio das ligações entre experiência individual e o contexto histórico. Portanto, fica claro que a memória varia de acordo com o momento em que é trazida à tona, uma vez que está sendo chamada à ação e vem em resposta a algo demandado por aquele momento. Em nossas memórias, contamos o que achamos que somos e o que queremos nos tornar, memórias são “passados significativos”, lembra Thomson, que compomos para nos sentirmos confortáveis com nossas identidades34. Isso exige uma aproximação e abordagem cuidadosas seja do tema ‘memória’, seja das fontes elencadas para o trabalho. Vale colocar que as fontes base desta dissertação são depoimentos orais – no total vinte depoimentos –, embora duas outras tipologias de fontes servirão de apoio e de baliza para comparação. Isso não quer dizer que a fonte oral, para ser válida, deve ser confrontada com outras, mas sim que a “análise cruzada”35 sempre

mestrado em História, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – UFF. FERRAZ, Francisco César Alves. “A guerra que não acabou: a reintegração social dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira (19452000)” São Paulo: 2002, tese de doutorado em História, FFLCH – USP. Há ainda alguns trabalhos avulsos publicados, inclusive de brasilianistas, bem como alguns capítulos de livros: Cf.: Referências Bibliográficas. 34 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.10-11. 35 Cf.: THOMPSON, Paul. “A Voz do Passado - História Oral”. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

36

enriquece uma pesquisa – já que cada espécie de fonte fornece um tipo, formato ou ponto de vista próprio da realidade. Também não é verdade que a fonte oral seja mais adequada para se fazer a história da memória – na verdade é tão fundamental quanto as outras. Devemos ter em mente que uma testemunha, ao falar, “não falará senão do presente, com as palavras de hoje, com sua sensibilidade do momento, tendo em mente tudo quanto possa saber sobre esse passado que ele pretende recuperar com sinceridade e veracidade”36. E essa especificidade da fonte oral deve ser vista como uma potencialidade, na medida em que nos permite ver e sentir a vivência dos sujeitos, perceber ao vivo a dinâmica da memória, sobretudo na sua dimensão individual – humana – para além de caracterizações homogêneas e declaradamente políticas – elementos esse inacessíveis nos arquivos tradicionais. Por outro lado, é necessário desconstruir o discurso de depoente – sem esvaziar o seu sentido próprio – de modo a não cair nas peças que a memória freqüentemente prega na historiografia. Dentre os vários elementos que compõem a memória, tais quais os acontecimentos vividos, o vivido por tabela, os marcos cronológicos e personagens, as cristalizações bem como as regiões mais fluidas37, as tradições e etc., temos que ter em mente que é necessário perceber o que é o “vivido” e o que é o “recordado”, o que é a “experiência” e o que é a “memória”, bem como o que faz parte de uma memória herdada e/ou compartilhada38. Ou seja, daí se vê a necessidade do uso de outras fontes que sirvam de parâmetro para a análise do recordar em outros momentos que não o do depoimento apenas – a despeito das dificuldades, e muitas vezes limites, que isso representa. ROUSSO. “A memória não é mais o que era”, p.98. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio” Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 36 37

37

No entanto, deve ficar claro que não se pode eliminar algo que não possa ser considerado e confirmado por mais de uma fonte, pois dessa forma “corremos o risco de ocultar a tensão constitutiva própria dos testemunhos”39, ou seja, tomar a memória a partir de uma noção rasa de objetividade, discussão essa que é de competência da história. Devemos ver o cruzamento de fontes – sobretudo quando analisamos a memória de pessoas vivas – como algo que não seja desrespeitoso e nem questione a veracidade daquela memória enquanto portadora de estatuto próprio. Enfim, sempre todo cuidado é pouco, na medida em que “... muitas vezes a compar ação se r evela inconveniente, ou até ofensiva par a o indivíduo. Ninguém vai dizer a uma pessoa que acaba de per der o filho que a sua dor é compar ável à de muitos outr os pais desditosos. (...) par a cada um de nós, a exper iência é for çosamente singular e, de r esto, a mais intensa de todas. Existe uma ar r ogância da r azão que é insupor tável par a o indivíduo, ao ver -se despossuído de seu passado e do sentido que lhe atr ibuía, em nome de consider ações que lhe são estr anhas.” 40

A história oral das décadas de 70 e 80, ao procurar criticar as concepções acerca da relação opositiva entre história e memória, se caracterizou como um instrumento de pesquisa de forte teor populista, na medida em que acabou aproximando demais as duas categorias. Isso lhe rendeu críticas que até hoje pairam sobre sua validade e confiabilidade como metodologia de pesquisa voltada à produção de documentos e, por seqüência, de conhecimento científico. No entanto, isso não é de se estranhar, já que, superadas as críticas no âmbito teórico, na prática, ainda, muitos pesquisadores acabam manuseando tal método de forma equivocada, o que justifica crítica ainda válida hoje proferida por P. VidalNaquet:

Cf.: AMADO, Janaína. “O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral” História, São Paulo, n.14, 1995. 125-136p. Editora da Unesp. 39 DUTRA. “Para uma sociologia histórica dos testemunhos”, p.79. 40 TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”, p.91-92. 38

38 “Há tr inta anos abundam as obr as que tr atam de nos dizer o que se passou precisamente nesse dia, segundo a lembr ança de cr ianças e adultos guar dadas em fitas magnéticas: elas não r epr esentam uma r eflexão sobr e a memór ia mas pr ecisamente o contr ár io. Com efeito, esses livr os não tr atam de expr essar nossa r elação como passado mas de supr imir a distância que nos separ a dele, fazer como se a r epr esentação o tor nasse pr esente.” 41 (grifos do autor)

Por outro lado, se essas críticas ainda são válidas para grande parcela dos trabalhos que lidam com fontes orais e, mais especificamente, que se debatem sobre a metodologia da história oral, vale elencar aqui elementos que apontam saídas interessantes a essa abordagem mais “populista”, como ficou conhecida. Saídas essas que foram, também, responsáveis por uma maior aceitação da fonte oral nos meios acadêmicos sem, no entanto, deixar de lado particularidades que vêm desde seu surgimento42. Desse modo, ao trabalharmos com as fontes orais, algumas considerações devem, necessariamente, permanecer constantemente no horizonte do trabalho do pesquisador. A fonte oral, ao contrário de qualquer outra, é construída deliberadamente para atender às finalidades de uma pesquisa, ou seja, o depoente, encontra-se numa situação atípica, que é transmitir as suas opiniões, pontos de vista, fazendo uma síntese de sua biografia num curto espaço de tempo em que consiste uma entrevista. Isso é algo complexo e cansativo para ambos: testemunha e pesquisador – de forma que esses elementos externos devem sempre ser considerados quando da análise da fonte. O depoimento é uma “fonte

VIDAL-NAQUET, Pierre. “El héroe, el historiador y la elección.” In: Los judíos, la memoria y el presente. México: Fondo de Cultura Economica, 1996. p.247. Apud. SEIXAS. “Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica, p.77/78. 42 Discutirei rapidamente aqui alguns aspectos da metodologia da história oral e das fontes orais em geral No entanto, creio não ser necessário um tratamento mais detalhado por dois motivos: em primeiro lugar, penso não ser mais necessário uma preocupação sistemática em legitimar a oralidade enquanto uma fonte de informações – a fonte oral vem se tornando banal com o tempo e devemos deixar que esse processo siga seu caminho natural. Em segundo, já tive a oportunidade de faze-lo em outra oportunidade. Cf.: BUSTAMANTE, Márcio. “Os pracinhas e a Segunda Guerra através da história oral” Belo Horizonte: 2004, Monografia de graduação em História, FAFICH-UFMG. Sobretudo o Capítulo 1. 41

39

provocada”43, o que nos propõe a necessidade de uma percepção da diferença entre “ação ocorrida” e “ação contada”. Nesse âmbito, vale lembrar também da importância do contexto da entrevista e da relação estabelecida entre testemunha e pesquisador na qualidade dos dados coletados, e sobre isso já existem várias discussões consagradas44, sobretudo na área da antropologia e da psicologia social – que se apoiam também na determinação da “tendenciosidade e a fabulação da memória, o significado da retrospecção e a influência do entrevistador”45. E dessa forma, ‘distorções’ da memória, invenções, incoerências, silêncios, exageros, distanciamentos devido à dor que trazem certas memórias e a imaginação deixam de consistir em impecilhos, passando a elementos próprios da riqueza do suporte oral e das narrativas. Procurar informações sobre as redes de sociabilidade, bem como informações biográficas, as origens, os meios por onde circulam os grupos de que participa entre outros dados sobre o testemunho, também favorecem uma boa análise – fazendo o que E. Dutra46 chama “sociologia histórica dos testemunhos”. Esse tratamento acaba por potencializar algo que é bastante próprio das fontes orais, que é permitir que estabeleçamos uma ponte entre a experiência individual e a vivência coletiva como nenhuma outra fonte permite com tanta precisão e riqueza. Na verdade, é uma trajetória de campo, prática própria da antropologia social, que migra para a história via história oral – o que atesta o seu caráter interdisciplinar. Várias outras categorias e questionamentos podem ser levantados na

Cf.: FRANK, Robert. “Questões para as fontes do presente”. In: CHAVEAU, Agnés & TÉTARD, Phillipe. “Questões para a história do presente”. São Paulo: EDUSC, 1999. 103-118p. 44 Cf.: BOURDIEU, Pierre. “Compreender” In: BOURDIEU, Pierre (coord.). “A miséria do mundo”. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 1997. p. 693-733. & LE VEN, Michel Marie. “História oral de vida: o instante da entrevista” In: SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von (org.) “Os Desafios Contemporâneos da História Oral.” Campinas: UNICAMP, 1997. p.213-221. 45 THOMSON. “Aos cinqüenta anos: uma perspectiva internacional da história oral”, p.52. 43

40

abordagem dos depoimentos orais. Dentre eles, podemos destacar a verificação da tipologia do depoimento e do depoente, se uma narrativa apela mais ou menos para a dimensão individual e/ou coletiva, a questão da existência ou não de uma autoconsciência de sujeito histórico e etc. Por fim, vale colocar que, quando trabalhamos com fontes orais – mas sobretudo quando o tema é a memória – certos deslocamentos devem ser realizados: seja de modo a preservar a autonomia desta, seja a bem de uma perspectiva flexível de objetividade e veracidade científicas. Muitas vezes, nos depoimentos, depois de transcritos e prontos para análise, fica difícil ter certeza acerca do fato narrado, no entanto, e disso não há dúvida, sabemos da existência dessa narrativa, ou melhor, de uma memória ou de um estado discursivo composto com o nosso apoio. Rompendo com a abordagem tradicional – que já se tornou lugar comum nas ciências humanas – que estabelece uma diferença rígida entre o “fato” e a “representação do fato”, na medida em que o que mais importa é a repercussão que um ou outro tem – sobretudo no caso da memória e da sua dinâmica de transmissão e circulação – um novo quadro de veracidade, mais rico, surge. “A história oral e as memórias, pois, não nos oferecem um esquema de experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias”47 – o que nos permite afirmar que, na verdade, não existe fonte falsa, mas sim abordagens problemáticas e rasteiras. Em outros termos, é a valorização da esfera simbólica dos fatos e das representações destes.

DUTRA. “Para uma sociologia histórica dos testemunhos: considerações preliminares” Locus, Juiz de Fora: n.2, v.6, 2000, p.75-84 47 PORTELLI. “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significados nas memórias e nas fontes orais”, p.72. 46

41

Isso nos leva ao próximo, e último, ponto fundamental à questão da objetividade em história oral, que é a questão da representatividade dos depoimentos. Como já afirmei, trabalho nesta dissertação com cerca de vinte depoimentos, de modo que se pode questionar: como esse número restrito pode dar conta de um universo de pouco mais de 25.000 ex-combatentes que voltavam para o Brasil e se lançavam no turbilhão do processo de reincorporação social? Mais uma vez vale lançar aqui os nomes de Paul Thompson, que tem a preocupação de fazer um levantamento sociológico/quantitativo do grupo a ser estudado – o que procurei fazer dentro do possível –, e de Alessandro Portelli48 que trabalha com a noção de “representatividade qualitativa”. A idéia de Portelli é trabalhar tendo por base os casos mais “excepcionais”, ou que passaram por experiências radicais e que abram mais possibilidades no que toca ao grupo no qual ele está inserido. Isso permitiria ao pesquisador vislumbrar o horizonte de expectativa daquele grupo que, em termos de imaginário, é profundamente determinante no comportamento e na atitude dos demais. Mas não só por isso uma entrevista é representativa do grupo do qual o respectivo testemunho faz parte, mas também porque “os textos (...) são expressões altamente subjetivas de pessoas, como manifestações de estruturas do discurso socialmente definidas e aceitas (motivo, fórmula, gênero, estilo). Por isso é possível, através dos textos, trabalhar com a fusão do individual e do social...”49. E concluindo, acerca da questão da objetividade a partir das fontes orais, usando os instrumentos tradicionais de crítica interna e externa da história, e apoiando-se numa bibliografia que trata do processo de reincorporação de ex-

Cf.: PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais” Tempo. Rio de Janeiro: vol.1, n.2, 1996. p. 59-72. & PORTELLI, Alessandro. “As fronteiras da memória. O massacre das Fossas Ardeatinas. História, mito, rituais e símbolos” In: História & Perspectivas, Uberlândia, (25 e 26), jul./dez.2001 jan/jul.2002. 9-54p. 49 DUTRA, Eliana de Freitas. “Para uma sociologia histórica dos testemunhos...”, p.64. 48

42

combatentes, é possível dar um bom embasamento ao trabalho com os depoimentos colhidos. Seriam os jornais de campanha – periódicos que rodam nas mãos dos soldados da retaguarda e, quando possível, do front no período de guerra – outra das fontes a ser mobilizada. Segundo Luis Felipe Neves50, justamente pelo caráter simples e rústico dessas publicações, é difícil ter-se ciência de todos os que existiram, até porque não houve uma preocupação sistemática em arquivar esses documentos, de modo que o acesso hoje é extremamente difícil – estando, na sua maioria, em arquivos pessoais de veteranos ou nos arquivos das associações, sempre de modo incompleto e aleatório. O interesse nesses jornais se justifica pelo fato deles permitirem vislumbrar certos valores, o espírito de corpo, o clima da experiência da guerra, as sensibilidades da época, de modo a colocar isso frente a frente com a memória da guerra de anos depois, a fim de analisar a sua evolução diacrônica. Por meio dos periódicos de campanha, percebemos a importância da narrativa humorística, no apoio ao bem estar psicológico dos soldados, bem como na solidificação dos laços de solidariedade entre as tropas – o que justifica, no que toca ao comando, a tolerância de coisas que em períodos normais jamais seriam aceitos. Interessantes são as críticas e reflexões sobre a guerra e, às vezes, à posição ridícula em que se encontram lutando por algo que não diz respeito a eles, e que não faz o sentido esperado pelo comando. Os jornais também evidenciam uma cultura oral, expressões, o vocabulário, o senso de humor e as aspirações dos soldados naquele momento – informações que se revelam extremamente ricas para a comparação com a memória da guerra.

50

NEVES. “A Força Expedicionária Brasileira; uma perspectiva histórica”, p.50-52.

43

Quanto às memórias ou diários escritos durante ou depois da guerra, eventualmente alguns serão usados e citados, na medida em que também cumprem um papel importante no estabelecimento da memória de alguns veteranos, e de até certos grupos de veteranos onde circulam textos de colegas ou que se consagraram em seu meio. De qualquer forma, o uso desses documentos será mais restrito e pouco sistemático, isso porque pretendo privilegiar, no momento, os depoimentos – principalmente porque disponho de maior base para o tratamento desses, o que não acontece no caso das memórias escritas. v Definido o norte teórico dos principais conceitos e categorias a serem mobilizados, abordado o papel dos veteranos nas sociedades, bem como elencadas as fontes e a respectiva metodologia de abordagem; resta agora tratar da estrutura e organização do argumento que norteará esta dissertação. Os próximos três capítulos tratarão da história dos ‘três tempos da memória dos veteranos’. “Tempos” esses não definidos de forma arbitrária, mas em função do que se pode perceber nas fontes, na bibliografia sobre o tema, nos eventos e nas conversas com cada veterano. Esses “tempos” consistem numa espécie de eixo sobre o qual se organizam as lembranças das experiências, são as “fases da vida”, que cada um de nós cria de modo a organizar as nossas memórias e, por extensão, nossas identidades. É claro que servirão apenas como um guia geral, de forma que cada “tempo” possui diferentes intensidades, durações e significados para cada um que recorda. E isso varia de acordo com a trajetória posterior à guerra e presente de cada indivíduo. O pr imeir o capítulo tratará da ‘experiência fundadora’ da identidade que os perseguiria por toda a vida, ou seja, o choque da participação na composição de uma Força Expedicionária que lutaria no maior conflito bélico da história. Farão parte desse capítulo

44

considerações sobre os vários aspectos que se tornariam centrais na conformação da memória de cada veterano, a saber: a percepção da formação do Corpo Expedicionário, a guerra, as viagens de ida e de volta, a avaliação de outros sujeitos – mídia, Estado, família, amigos e a sociedade em geral – bem como a influência de questões macropolíticas que, depois do conflito, acabariam fazendo parte da nova identidade dessas pessoas. Procurando fazer um ‘jogo de escalas’ entre as dimensões pública e privada, macro e micro, espero poder enfatizar a pluralidade de versões e significados das memórias dos veteranos – oriunda das múltiplas interações entre esses níveis. Tratar das lembranças do processo de reincorporação dos veteranos é o tema do segundo capítulo. Será feito o mesmo trabalho, ou seja, analisar os aspectos centrais no estabelecimento da memória da FEB, avaliando agora o segundo “tempo”. Tal qual a guerra, a reincorporação costuma ser uma experiência traumática para a maioria dos veteranos, e isso fornece elementos decisivos à trajetória e identidade dos mesmos. Esse segundo momento se mostra sempre como o de duração mais fluida na memória: para alguns, poucos dias após a chegada no Brasil já bastaria para que tudo voltasse ao ‘normal’, para outros é um processo até hoje inacabado, sem nos esquecer daqueles que pereceram nele. Simultaneamente, procurarei evidenciar os caminhos que a memória – ou esquecimento – da FEB tomava nos âmbitos macropolítico e público/institucional – já que são elementos que, a todo o momento, estão dialogando e determinando a trajetória e memórias dos veteranos de guerra. Por fim, é no ter ceir o capítulo que abordarei uma fase mais tranqüila e distante dos turbilhões dos dois primeiros “tempos”. Momento de estabilização e “cristalização” – mas nunca totalmente – das lembranças. Costuma ser a fase da maturidade da memória, quando se avaliam as experiências, aprende-se a viver com os traumas e com as passagens ‘mal

45

resolvidas’. É nessa hora também que se faz um “balanço geral”, traçando o ‘testamento’ de uma vida e atribuindo à mesma uma função para a eternidade – dimensão pedagógica que a memória sempre traz em seu bojo. Nesse capítulo, será tratada também a atualidade da memória dos veteranos, abordando as comemorações, festas e Encontros – ou seja, a caracterização destas e o que significam e como são significadas pelos veteranos. Aqui, mais uma vez, a pluralidade de versões dadas ao passado e à memória saltará aos olhos.

46

Capítulo I A EXPERIÊNCIA FUNDADORA

47

I.1

Exper iências pessoais: o choque da guer r a Normalmente, quando pensamos em guerras, soldados, exércitos em movimento e

estados em mobilização, vêm à tona uma série de valores que julgamos próprios desse distante mundo, conhecido através da leitura de livros e jornais, ou assistindo a noticiários e filmes pela televisão e cinema. Patriotismo, abnegação, ódio pelos inimigos, austeridade física e psicológica, disciplina, ordem e altruísmo, explosões de alegria pelo fim dos conflitos51, rigor, trabalho, disposição etc., seriam algumas das categorias com os quais observaríamos tais eventos. E os homens que participaram desses embates então, verdadeiros super-heróis que, finda a guerra, voltam para casa gloriosos, tiram o ‘uniforme’ e retomam a vida de onde pararam. Essa imagem um tanto romântica das guerras, sobretudo as do século XX, é ainda mais forte em países como Inglaterra, Austrália, Estados Unidos e França, primeiro devido ao peso que a guerra detém na história desses países e, segundo, porque o voluntariado consistiu, pelo menos na Primeira Guerra, na maior fonte dos soldados que cerraram as fileiras dos respectivos exércitos. Tais fatores tornariam o terreno ainda mais movediço para interpretações que procurassem fugir desses estereótipos, que tanto prejudicariam os ex-combatentes e a memória daqueles tempos. No Brasil, a questão, dependendo do ponto de vista, tende a ficar ainda mais dramática, pois na medida em que não há um passado belicoso ou conflitos de grande envergadura em território nacional – ou mesmo fora, exceto a Guerra do Paraguai –, menos se compreende a guerra e suas conseqüências sobre os que dela fizeram parte – e, no que toca à FEB, isso se torna mais verdadeiro.

51

A imagem de cidades inteiras em festa e de populações em regozijo após a libertação, tornar-se-ia marca registrada das memórias da Segunda Guerra Mundial em função, sobretudo, da cobertura feita pela mídia na época e pela filmografia posterior sobre o evento.

48

Certa historiografia mais tradicional ou mesmo a historiografia militar clássica ajudaria a reforçar esses estereótipos – no Brasil e no mundo –, bem como a tornar o assunto monopólio de militares estrategistas, especialistas ou pequenos grupos deslumbrados com a dimensão técnica da guerra52. Afirmando que uma batalha é “decisiva” – adjetivo primordial nesse tipo de análise – historiadores militares e jornalistas se referem, em geral, às conseqüências em nível de categorias globais e genéricas mais amplas: como a queda de um general ou político, a derrota de um país, ao expansionismo, recursos econômicos e questões macropolíticas. Segundo Keegan: “Por cur ioso mecanismo de defor mação pr ofissional, a busca de r esultados do histor iador militar é quase sempr e dir igida a um ou a outr o desses dois níveis: ou ao nível dos efeitos imediatos da batalha no poder de combate do exér cito e na mente do seu comandante, ou ao nível do seu impacto no mor al e nos r ecur sos da potência que empr eende a guer r a. No entanto (...), os efeitos mais impor tantes, os r ealmente ‘decisivos’ da batalha são mais imediatos e pessoais do que os per tencentes a tais categor ias.” 53

Por outro lado, hoje já se tornou comum a crítica sobre essas abordagens mais ‘duras’, o que têm feito da guerra evento mais ‘humano’ – abordagem até então restrita apenas ao gênero literário54. A revolução historiográfica dos anos 70 para cá possibilitaria isso, de forma que hoje já contamos com uma bibliografia relativamente extensa tratando do tema a partir de abordagens inovadoras. No Brasil, a historiografia militar também vem sendo revisitada, seja por pesquisadores de instituições civis55, seja pelas próprias Forças Armadas que, no entanto, ainda mantém suas publicações tradicionais – que cumprem outras funções. Dessa forma, ao contrário de valores como os citados acima, outros vêm substituí-los na interpretação do fenômeno bélico: a angústia, o medo, a vergonha, a solidariedade e a camaradagem, a guerra das baixas patentes, as neuroses, o pânico, a

52 53

Cf.: KEEGAN, John. “A Face da Batalha” Rio de Janeiro: Bibliex, 2000. KEEGAN, John. “A Face da Batalha”, p.312.

49

saudade, as práticas de resistência, a desobediência, o autoritarismo, ou seja, as relações humanas em geral. E as mudanças não operam apenas no nível da historiografia acadêmica. No âmbito da memória social essas reviravoltas têm possibilitado a revisão de uma série de tabus e histórias nacionais. Estas, por muito tempo, estabeleceram noções rígidas da experiência da guerra, de modo que as mudanças, dessa forma, têm valorizado uma apropriação mais democrática e humana da história, bem como possibilitado a muitos ex-combatentes, que não se enquadravam no mito do herói nacional ou do soldado com nervos de aço, que fizessem as pazes com o passado – depois de décadas de sofrimento, exclusão e desentendimentos56. Mas e quanto à FEB? Como se deram as coisas com os ex-combatentes brasileiros? Diria desde já que trajetória destes, bem como a imagem da FEB na memória coletiva não é das melhores, e não digo isso em termos de que a avaliação a respeito da Força Expedicionária deva ser positiva, pelo contrário. O que incomoda é como a memória desse período, e dos homens que tomaram parte, se configurou durante todo esse tempo, desde 1945. Como veremos, a despeito de certa memória oficial – e vale lembrar que quando uso o termo ‘memória’, lanço mão dos três elementos que, numa relação complexa e tensa a formam: ‘lembrança’, ‘esquecimento’ e ‘silêncio’ – vê-se nas entrevistas com excombatentes que a experiência, a memória da guerra e, sobretudo, do pós-guerra, são extremamente plurais e fragmentadas.

O exemplo clássico é o romance de Erich Maria Remarque, “Nada de novo no front”, de 1928. Cf.: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (orgs.) “Nova História Militar Brasileira” Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. Entre uma série de outras obras seja na área da história, seja no campo da antropologia social. 56 Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories” Melbourne: Oxford University Press, 1994. 54 55

50

Nos depoimentos, percebe-se que a experiência da guerra e da volta – essa completamente silenciada pela memória oficial – detém uma dimensão multifacetada, contrariando a homogeneidade e a assepsia da memória oficial e da identidade por ela reivindicada. A relação que se estabelece entre os a(s) memória(s) oficial(ais) – esta, na verdade, não tão sólida quanto admite ser – e as memórias pessoais vão além de uma relação pacífica e harmônica, como já se pretendeu mostrar. Vê-se formas de resistência, rachas na memória, políticas, deliberadas ou não, de ‘esquecimento’, adaptações, cooptações, ressentimentos, silêncios, revolta e todo aquele leque de elementos próprios do complicado processo, nomeado por Pollak, do “enquadramento da memória”57. Processo esse onde as fronteiras do que é o quê são sempre fluidas, encontrando-se em constante processo de mutação. No entanto, vale lembrar, seguindo as premissas de Thomson em um de seus artigos58, que não tenho a intenção de me colocar numa posição ingênua de simplesmente contestar o que ele chama de “mito” – ou memória oficial –, mas sim perceber como este interage com as reminiscências individuais criando complexas redes de recordação do passado e geração de identidades. Analisar os discursos de memória é algo que deve ser feito com cuidado e sensibilidade, é necessário ter em mente o caráter permanentemente instável dessa categoria. Devem-se descolar as várias camadas temporais que dele fazem parte, prestando atenção nos eixos sobre os quais as lembranças se organizam – de modo a compreender qual é a identidade que, naquele momento, o depoente reivindica, o que ele silencia e o porquê, bem como as outras identidades que uma vez reivindicou. Desse modo, pode-se

Cf.: POLLAK, Michel. “Memória, esquecimento, silêncio” Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 3-15. 58 Cf.: THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e as memórias” Projeto História, São Paulo: 15 abr. 1997. p. 51-71. 57

51

notar que, grosso modo, a memória dos ex-combatentes se estruturaria em três tempos: a guerra, a volta, e a atualidade – portando, nessa ‘trajetória’, identidades variadas. Nesse capítulo, tratar-se-á do que chamarei ‘a experiência fundadora’, isso porque a vivência da guerra – via participação na Força Expedicionária Brasileira – tem o significado de um rompimento radical com a vida que se levava até então, bem como com as expectativas que se tinha da mesma. A participação na guerra lhes traria a consciência de que eram, agora, lutando no maior conflito bélico de todos os tempos, sujeitos da história – e pelo resto de suas vidas teriam que lidar com essa nova identidade, seja de forma pacífica ou conturbada. Nas lembranças e silêncios desses senhores, hoje na casa dos 80/90 anos, a guerra e o pós-guerra assumem, ainda hoje, na maioria das vezes, os papéis de protagonistas. Dessa forma, dediquemo-nos agora a entender o significado da guerra para quem dela fez parte, percebendo como, a partir dessa experiência, forjou-se a base de uma arraigada e durável/mutável identidade e que, também, consistiu na ‘matéria-prima’ com que os excombatentes lidariam por toda a vida para (re)produzir suas lembranças e identidades. v S. Ribeiro (82 anos, 3o cia. do 9o Batalhão de Engenharia – 9oBE) nasceu na cidade de Cristina, sul de Minas Gerais, no ano de 1922. De família pobre, a sua mãe, solteira, trabalhava como doméstica para sustentar a família – que contava com mais dois meiosirmãos – e só conseguiria prover todos os filhos com a ajuda do avô. Durante toda infância e grande parte da adolescência, trabalhou na fazenda do, até hoje amigo, José Ferraz – de modo que só pôde estudar até o 3o ano do ensino fundamental, e quando completou dezoito anos alistou-se no Exército – o que, na verdade, não lhe trouxe grandes constrangimentos. Isso porque, em primeiro lugar, queria conseguir um emprego melhor, numa cidade maior.

52

Tinha a intenção de ir para São Paulo, mas, para conseguir trabalho, era necessário o certificado de reservista, exigência da nova lei do serviço militar de 1939, o que o levou a se apresentar em um quartel do Exército em Itajubá – lá, teria de ficar por mais algum tempo, até que conseguisse a dispensa. Viria então o ano de 1942 e, com a declaração do estado de guerra do Brasil à Alemanha, a cessão de dispensas seria bloqueada – o que, por conseqüência, o faria desistir de consegui-la. Além disso, seria transferido para o 9oBE, em Aquidauana, Mato Grosso, então criado por ocasião da mobilização para a guerra, a fim de integrar a 1oDIE – a Divisão de Infantaria Expedicionária. De qualquer forma, Sebastião não achou ruim tal situação, pois, e aqui ele deixa clara a segunda razão que levava os jovens ao voluntariado, havia uma vantagem em estar ali: “Estava ali mesmo, não der am baixa mais e...tinha que seguir (...) Acontece que...sabe de uma ver dade também: é que naquela época nós estávamos passando até falta mesmo...por aqui...então todo mundo quer ia ir par a o Exér cito, por que lá tinha comida, não é? Tinha comida, então...além disso, não tr abalhava, não é? Por que lá er a só fazer exer cício e tinha comida...” 59

Permaneceria lá em treinamento, sendo depois transferido para o Rio de Janeiro, juntamente com o 9oBE – e de lá embarcaria para a Itália no 3o escalão, em 22 de setembro de 1944, já vinculado a então recém criada Força Expedicionária Brasileira. Caso interessante, também, se daria com o ex-combatente J. Pedreti (11oRI – o décimo primeiro regimento de infantaria de São João Del Rei) –, natural da cidade de Juiz de Fora. Pedreti trabalhava numa loja de autopeças que, com a crise de escassez do petróleo em decorrência do acirramento da Segunda Guerra Mundial no restante do mundo, acabaria mandando-o embora. Algum tempo depois conseguiria novo trabalho, entretanto, pediramlhe que conseguisse o certificado de reservista, agora exigido dos empregadores. Dessa

53

forma, devido à mesma situação de S. Ribeiro, teria a sua dispensa suspensa: “Aí a guerra começou e me seguraram lá...”60. Por fim, permito-me narrar a trajetória de mais um ex-combatente. A. Neto (81 anos, I cia/I batalhão/1o RI – Primeiro Regimento de infantaria do Rio de Janeiro) nasceu em Itamonte em 1923, e com três anos foi morar na cidade de Itanhandu – ambas no sul de Minas Gerais. Não vinha de família abastada, mas tinha uma situação confortável, o que lhe permitiu que, com doze anos, fosse para Taubaté terminar o ginásio. Lá ficaria até 1938, quando decide ir para o Rio de Janeiro fazer o “complementar” – depois, faria vestibular para o curso de arquitetura na Universidade do Brasil. Durante o “complementar”, como não estava quite com o serviço militar, fez, conjuntamente, o CPOR/RJ (Centro Preparatório de Oficiais da Reserva/Rio de Janeiro). Recebeu convite, então, para fazer um estágio em Petrópolis já como aspirante a oficial, e lá permaneceria por mais seis meses, indo, depois, parar em Lorena, pois fora designado para tal, por mais oito meses. Depois, não teria, pelo menos até voltar da guerra, como completar o seu curso de arquitetura, pois viria de Lorena para o Rio de Janeiro já como tenente da Força Expedicionária Brasileira. Dentro de mais alguns meses, embarcaria no navio de transporte de tropas norte-americano USS General M.C. Meigs, em 22 de setembro de 1944, destino: o TOGM – ou Teatro de Operações de Guerra do Mediterrâneo. Continuando, incorreria em grave equívoco se, a partir desses pequenos excertos das biografias – certamente bem mais complexas do que isso – dessas três pessoas, tentasse articular maiores análises. No entanto, a partir dessas pequenas passagens é possível que se

59 60

Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005. Entrevista com J. Pedreti, Juiz de Fora, dezembro/2004.

54

apresentem duas considerações sobre o tema que aqui vêm sendo discutido – de modo a estabelecer os princípios do trabalho que se seguirá. A primeira questão diz respeito à condição traumática que a guerra traz, com maior ou menor intensidade, para qualquer indivíduo que lhe encare. Até agora, falaram-se apenas dos caminhos que levaram esses três homens a serem integrados na FEB, ou seja, nem da guerra, propriamente dita, tratou-se ainda, mas já é possível perceber como ela mudaria trajetórias de vidas que vinham se consolidando e se definindo, destruindo planos e aspirações que possuíam até então. E por forçoso que isso possa parecer, mais cedo ou mais tarde, a vida de todas as pessoas envolvidas diretamente nesse processo seriam alteradas, valores revistos, identidades reformuladas, expectativas renovadas – ou destruídas –, ferimentos – físicos ou psicológicos – infligidos entre outros eventos. Por outro lado, essa observação poderia ser contestada, pois não é difícil, também, encontramos ex-combatentes que narrem suas histórias de vida de forma coerente, reta e homogênea, como se a guerra não passasse de um encadeamento natural dos fatos. No entanto, deve-se ter cautela com esse tipo de narrativa, não que sejam formas errôneas de percepção da guerra – não é isso – mas deve-se saber que quem pronuncia tais palavras são ex-combatentes já há seis décadas, que passaram por muitas outras coisas e, lidando com essa experiência no decorrer de suas vidas, foram ‘negociando’ com suas lembranças e identidades de modo que, ao entrevistálos, pode-se ter a sensação de que a história contada é algo padrão, corriqueiro. Mas, na verdade, é uma memória trabalhada – ou seria ‘tarimbada’ – que, na velhice, tende a assumir, mas nem sempre, como se verá, certa estabilidade e maturidade próprias dessa fase da vida. Mas ainda poderia ser dito: “Existiram os voluntários, eles sabiam o que queriam, escolheram esse caminho!”. No caso da FEB, sabe-se que o número de voluntários foi

55

mínimo – sobretudo entre os setores que foram às ruas pedir a guerra em função de uma passageira euforia em decorrência do afundamento dos navios brasileiros em 1942. Nesses casos, talvez, o choque da convocação tenha sido poupado, no entanto, posteriormente, ele se mostraria igualmente traumático, na medida em que se criava uma expectativa da guerra que, mais tarde, se mostraria ridícula. Prova disso é que, na Segunda Guerra, na Europa, o voluntariado se mostraria muito reduzido em relação ao conflito de 1914-18 As causas disso? O peso da memória das trincheiras e dos problemas dela oriundos que martelavam toda a sociedade européia e anglo-saxã. Entre os países que tiveram altos índices de voluntariado, a despeito de questões como nacionalismo ou idealismos em geral, estudos recentes61 têm mostrado que as principais causas desse alistamento em massa se devem à pressão dos amigos e colegas – turmas inteiras que formavam companhias e até batalhões inteiros, ímpeto aventureiro, vontade de viajar e conhecer o mundo – de graça –, diversão, uma forma de fugir do trabalho e da autoridade familiar, alternativa ao desemprego e à pobreza entre outros aspectos. Nota-se que a maioria das razões, portanto, que levaram milhões de jovens a se alistarem tinha como pano de fundo expectativas de redenção ou, no mínimo, melhorias na qualidade de vida – mais tarde, isso só se mostraria como um fosso, ainda maior, entre a expectativa e a experiência de estar numa guerra. Quanto ao segundo aspecto que se pode deduzir dos excertos, e nesse caso me refiro especificamente à FEB, é a pluralidade no que toca às origens dos que a compuseram – bem como das trajetórias pessoais – fatores que se mostram, igualmente, cruciais na configuração da memória de cada um. Vários são os trabalhos acadêmicos sobre a FEB, mas até hoje não se chegou a uma conclusão sólida e/ou bem delimitada acerca do ‘tipo

61

Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories” Melbourne: Oxford University Press, 1994.

56

médio’ do febiano, bem como quais critérios foram levados em conta no ato da convocação. E creio que isso seja mesmo impossível, não por falta de fontes ou incompetência dos pesquisadores, mas simplesmente porque tais características não existiram. Dessa forma, ao estudar a FEB, é com essa paisagem que se tem que lidar. Se se forem escolher algumas palavras para definir o caráter do processo de convocação e formação da FEB, certamente palavras como caos, correria, oportunismo, desrespeito, alienação, autoritarismo entre outras, cairiam como uma luva. Desse modo avaliar-se-á, agora, como o período da convocação aparece nas reminiscências dos excombatentes – período que, em geral, serve de marco na definição do ‘primeiro tempo’ da memória desses sujeitos. v I.2

A convocação Tendo que cumprir com as obrigações militares para permanecerem no emprego,

muitos dos homens que integrariam a FEB escolhiam fazer o chamado “tiro de guerra”, possibilitando que, ao invés de ficarem permanentemente no quartel, trabalhassem durante o dia, ou noite, e fizessem o treinamento obrigatório após, ou antes, do trabalho. Obviamente que isso chateava muita gente, pois além de não ganharem nada – soldo ou alimentação – saíam cansados de um dia de trabalho para, depois, enfrentarem exercícios físicos duros e oficiais insensíveis à situação gritando nos seus ouvidos. Outros ainda nem preocupados estavam em conseguir o tal certificado de reservista, e acabavam indo parar no exército por meio do sorteio entre os civis – prática corrente desde o Império62.

Cf.: MENDES, Fábio Faria. “A ‘Lei da Cumbuca’: a revolta contra o sorteio militar” Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, n. 24, 1999, p. 267-294. 62

57

O ex-combatente M. Couto (81 anos, II/11o R.I.), alistou-se e foi sorteado para fazer o serviço militar e, dado que também tinha de ajudar a mãe, e mais 10 irmãos, via isso como um grande incômodo. Couto já tivera a oportunidade de conhecer a vida militar quando fez parte da Força Policial entre 1938 e 43, e, de modo geral, não havia criado gosto por tal ofício. “Eu tinha feito uma pr omessa: ‘Eu nunca mais vou par a a for ça militar ... ’. Então se fala que a gente paga nessa ter r a... um mês depois eu fui sor teado... (...) Apr esentei-me ao Exér cito... aí eu fui ser vir no CPM: Centr o de Pr epar ação Militar ... em tr aje civil... quem tr abalhava dur ante o dia, estudava a noite; quem tr abalhava à noite, tr abalhava de dia no Exér cito... e eu tr oquei diver sas vezes por causa do empr ego: ar r umava um empr ego aqui, aí mudava par a noite e voltava par a o dia... e não ganhava nada... o Exér cito não dava nada...”

É claro que Couto desejava o fim daquilo tudo o mais rápido possível, e informa que, no CPM, ficara estabelecido que os aprovados seriam dispensados, enquanto os outros seriam incorporados definitivamente às fileiras do Exército que, naquela altura, já previa o envolvimento do país na Segunda Guerra, procurando, portanto, conseguir novos recrutas. Mas: “Quando chegou no dia não teve nada disso, todo mundo foi incluído”63. Dessa forma, a sensação de rompimento com a situação, bem como com as expectativas de vida, iam, aos pouco, mostrando-se mais profundas. Sabe-se que grande parte dos convocados, antes das tropas se dirigirem para o Rio de Janeiro ou mesmo de serem incluídas na FEB, faziam o chamado “tiro de guerra”, permanecendo em casa, passando apenas parte dos dias nos quartéis. Dessa forma, não se criava um vínculo forte com a vida militar, tornando-se, então, não mais que um fardo a ser tolerado. A vida dessas pessoas era completamente ligada à comunidade onde estavam64, o que sugere que a quebra desses vínculos por meio da força, a curto e longo prazos, geraria

63 64

Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002. McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945”, p.286.

58

sérias conseqüências. A curto prazo, como veremos mais adiante, essa violência contra os cidadãos se mostraria no desinteresse para com a mobilização e a guerra – o que geraria uma série de formas de resistência. A longo prazo seriam criados desencontros entre, de um lado, as memórias individuais na sua constante busca por reconhecimento público e legitimação de suas identidades e, por outro, a rigidez de uma memória oficial que justificava a guerra em função de discursos grandiloqüentes sobre a pátria e a liberdade que, como estamos vendo, muito pouco sentido fez para os então recém convocados. Frank McCann fala de uma prática corrente naqueles tempos que evidenciaria esse forte vínculo entre os convocados, suas famílias e a comunidade, e mostra como esses laços contribuiriam para dificultar e fragilizar o esforço mobilizador – dentro e fora dos quartéis. “O pessoal dos r egimentos er a, via de r egr a, or iundo das r edondezas [quer dizer, o pessoal da ativa – os militares] e muitos deles mor avam nas cidades com suas família, indo ao quar tel cumpr ir seu dever , do mesmo modo que seus vizinhos iam tr abalhar em lojas e fábr icas. Quando um homem er a r econvocado, a família ia com ele. Em tempos nor mais esses deslocamentos er am toler áveis e pouco fr eqüentes, mas quando o 11oRI (...) r ecebeu 1.600 homens do 12o RI de Belo Hor izonte e do 10o RI de J uiz de For a, e quando o 6o RI, de Caçapava, São Paulo, r ecebeu conscr itos em situação semelhante, as cidades-sedes de aquar telamento começar am a ar r ebentar as compor tas. E o que fazer com as famílias quando as unidades se deslocassem par a a concentr ação da FEB nos ar r edor es do Rio de J aneir o? As pr ovidências impr ovisadas do Gover no par a esper ar esposas e famílias no Rio de J aneir o devastavam o mor al da tr opa.” 65

O processo de convocação mobilizaria milhares de homens por todo o país – mais de 100.000, já que Vargas, inicialmente, visava o envio de três divisões para o front –, e já na segunda metade do ano de 1943 se dariam os primeiros testes de seleção. No entanto, sabese que nessa primeira fase, o convocado, para estar à altura dos requisitos mínimos necessários a um integrante da FEB, teria de ser enquadrado na chamada “classe especial”, ou “classe E”. Esta se baseava nos critérios do Exército norte-americano, que estabelecia a

65

Ibidem. p.286-287.

59

altura mínima de 1,55 para praças e de 1,60 para oficiais, peso correspondente à altura, não portar corretor de visão, ter equilíbrio mental e emocional, bem como possuir, pelo menos, idade mental de 10 anos – entre outros elementos. Interessante lembrar que, nos depoimentos dos ex-combatentes, há uma informação que freqüentemente é dada de forma diferente por cada um – que é justamente a questão do rigor dos exames de saúde. Os critérios americanos adotados seriam considerados rígidos aqui no Brasil, mas uma série de convocados acabariam sendo aprovados e levados a integrar o Corpo Expedicionário. No entanto, percebeu-se que não seria possível completálo, pois a saúde dos brasileiros de forma alguma correspondia às tais exigências – para se ter uma idéia, o principal item de reprovação nos teste de saúde foi “dentadura incompleta”. Por conseguinte, o Estado-Maior da FEB teria de relativizar os critérios de modo que fosse possível, pelo menos, a formação de uma divisão. Daí a variação de respostas entre os depoentes, vários deles falando da rigidez dos testes, ao que outros opõem – bem como algumas memórias escritas66 – a fragilidade dos mesmos. O ex-combatente O. Arruda (82 anos, II/11oRI), que foi à guerra como sargento comandante de grupo de combate, foi reprovado nos primeiros exames, pois era baixo mesmo para um praça, mas, na falta de suboficiais, autorizou-se que “...aproveitassem todos os aproveitáveis.”67. Com essa ‘flexibilização’ foi possível completar o Corpo Expedicionário, mas, como se veria durante a guerra, a duras penas – pois a FEB, já na Itália, teria um número considerado alto de baixas em decorrência de doenças e problemas dentários. Esse relaxamento também ajudou na imensa demanda por reposição de efetivos, “...para Para dar apenas três exemplos mais conhecidos, Cf.: SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira” Curitiba: Edição do autor, 1985. & ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB” 3 ª edição. Porto Alegre: Cobraci Publicações, s/d. & SCHNAIDERMAN, Boris. “Guerra em Surdina” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira Editora, 1964. 66

60

compensar o fluxo de transferências e evasão de praças e oficiais que causou claros nas fileiras”68 – questão ainda a ser detalhada. É possível, ainda, evidenciar mais algumas características gerais dos convocados que, ora uma, ora outra, sempre acabam coincidindo com os depoentes entrevistados. A maioria dos febianos era formada por civis recrutados, ou seja, reservistas de 1o, 2o ou 3o categorias que, portanto, estavam muito pouco ambientados à vida militar – o que tornaria a experiência ainda mais penosa. A imensa maioria, também, vinha de cidades do interior, sobretudo dos estados do sudeste e portavam um alto grau de analfabetismo ou tinham baixo nível educacional. Quanto aos oficiais e suboficiais, sabe-se que pelo menos 60% dos que formariam a FEB eram oriundos dos CPOR’s, em decorrência, principalmente, dos altos índices de transferências de oficiais da ativa para unidades não expedicionárias – fato que ficou marcado nas páginas do Diário Oficial que, regularmente, anunciava as tais transferências. No que toca às suas ocupações, os oficiais R/2 – reserva – vinham de um nível mais abastado: advogados, médicos, arquitetos, engenheiros e profissionais liberais em geral. Obviamente que, a longo prazo, tal fato teria um impacto decisivo na configuração das memórias dos ex-combatentes – dado que recairia diretamente sobre o ‘orgulho’ em ter participado da FEB. Bem como a sensação, por parte dos que não foram, de ridículo e de constrangimento ao estar cara-a-cara com os que voltavam ‘gloriosos’ – fato que ajudaria a explicar a marginalização dos ex-combatentes que continuaram no Exército após a guerra. Ainda hoje se vê um mal estar entre os ex-combatentes ao lidarem com essa questão,

67

Entrevista com O. Arruda, Belo Horizonte, agosto/2002. MAXIMIANO, César Campiani. “Neve, fogo e montanhas: a experiência brasileira de combate na Itália” In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (orgs.) “Nova História Militar Brasileira” Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p.346. 68

61

procurando, alguns deles, razões outras que não torne tão menosprezada a experiência da FEB: J. M. N.: “Eu par ticular mente, que isso não seja gr avado e nem que você escr eva isso no futur o, desde aqueles dias em que a gente estava se pr epar ando, eu ficava muito... como é que eu vou falar ? Eu ficava muito sem entender o númer o de oficiais de CPOR que estavam ingr essando na For ça Expedicionár ia... não par a desfazer deles, não estou me desfazendo deles... eu ficava pensando assim: ‘Gente, nós temos um efetivo, embor a pequeno, mas nós temos um efetivo no Exér cito... ser ia mais inter essante uma divisão for mada com esse efetivo... ’ J. Fonseca: ‘Mas se a FEB se or ganizasse só com pessoal da ativa, o Br asil ficar ia desguar necido... pr ecisar am comissionar tenente a capitão por que os capitães já estavam envelhecidos’” 69

Um deles interpreta o fato como, no mínimo, estranho e vergonhoso, o outro prefere contornar a situação com um argumento que, certamente, não explicaria satisfatoriamente a razão de tantos oficiais da reserva estarem sendo convocados. Interessante é que alguns ainda conseguem tratar de forma mais criativa o fato da FEB ter sido amplamente rejeitada na sua origem. Mesclando os irrefutáveis fatos acerca da origem humilde dos convocados, bem como do desinteresse dos mesmos em relação ao evento da guerra e, por último, elementos típicos do que chamaria “memória oficial”, D. Medrado (81 anos, I/11oRI), faz da memória da FEB uma experiência de louvor à identidade nacional. Da exclusão e da negação, consegue-se tirar um orgulho calcado na noção do sacrifício e do patriotismo: Nós tivemos muita dificuldade, por que (...) nós tínhamos companheir os que for am convocados que não sabiam nem como usar uma cama, nem como esticar uma cama, ou como fazer uma cama, dor mir numa cama, usar uma instalação sanitár ia... às vezes não sabia nem como calçar uma botina, tinha dificuldade, e acabava machucando o pé por que não estava habituado àquilo, não é? Er a gente muito simples mesmo... uma gr ande maior ia er a gente muito simples. Mas por isso mesmo foi uma gente muito fácil de ser manobr ada, e de ser colocado nas cabeças deles que ir iam ser vir a pátr ia numa situação daquela... por que dizia-se que nós íamos numa guer r a par a colocar fim nessa desgr aça que er a a guer r a...então deu a essa gente humilde, a esse soldado e a esse pr acinha...ele se sentiu r efor çado...ele se sentiu como uma pessoa altamente r esponsável. ‘Eu saí de lá do inter ior ... lá da minha casa de café...montado em meu cavalo...e vou par a for a do país...par a ser vir

69

Entrevista com J. Fonseca e J. M. N., Juiz de Fora, dezembro/2004.

62

ao país, e tr azer par a o país uma liber dade, par a tr azer par a o país um r esultado desses’...então o sujeito encheu o peito...o sujeito se sentiu, r ealmente, uma pessoa impor tante e que estava cumpr indo um papel impor tante: que ir ia botar fim numa desgr aça que er a a guer r a.” 70

Esse trecho é extremamente rico para entendermos o funcionamento da memória, pois, e isso ficará claro com o correr do texto, pode-se perceber a imbricação de vários gêneros de argumento e de camadas temporais na fala de depoente. Que muitos excombatentes, atualmente, justificam e valorizam a FEB em termos de valores e virtudes nacionais é algo aceitável, mas atribuir esses valores à massa dos febianos na época do conflito é algo próprio das reviravoltas que só a memória possibilita. Vale ressaltar que D. Medrado é um ex-combatente que continuou no Exército e trabalhou, desde o início, no estabelecimento da AECB/BH (Associação dos Ex-combatentes do Brasil/seção Belo Horizonte) – sendo, até hoje, um dos responsáveis por fazer a ponte entre os excombatentes e o Exército. José Murilo de Carvalho, em prefácio à publicação do “ Diário de Campanha” do expedicionário Sebastião Boanerges Ribeiro71, afirma que conceitos como “fascismo”, “democracia” e “liberdade” não aparecem e, consequentemente, fazem pouco sentido para aqueles soldados que só ouviam estas palavras da boca de chefes de estado através do rádio. Afirma ainda que, analisando o diário, nota-se que a principal referência identitária desses homens que lutariam na Europa se fundamentava na família, na terra, nos amigos, na religião entre outros elementos típicos da comunidade que os cercavam. Fica claro, também, no trecho acima, a idéia de que teria sido fácil “manobrar” essas pessoas, inculcando-as com a idéia de acabar com a guerra e salvar o país. No entanto, essa versão é de difícil sustentação e, se ainda aparece nos depoimentos, é porque tratar da

70

Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

63

resistência à convocação surge, para muitos, como algo doloroso e até mesmo contrário à memória da FEB – como fica óbvio nas palavras desse mesmo depoente: Márcio: Por quais r azões que essas pessoas conseguir am dispensa? D. Medrado: Razões diver sas... r azões, com sincer idade, que eu não gostar ia de fazer comentár ios... eu me negar ia a fazer comentár ios a esse r espeito por que é uma coisa que me deixou muito amar gur ado, eu fiquei muito amar gur ado com essa coisa...” 72

Outro ex-combatente, relatando caso sobre pessoas que conseguiam dispensas, interrompese e diz: “... pode gravar e depois fica feio...”73. No entanto, a despeito de certa memória ‘oficiosa’, sabe-se que a resistência à incorporação na FEB foi muito presente e intensa, como podemos notar na maioria dos depoimentos e em fontes de outra natureza. No próprio D. Medrado, vê-se como a questão é reprimida e conta com forte carga de ressentimentos. De alguma forma, isso acabaria detendo um forte peso na memória da FEB, mesmo que muitos não gostassem e que fosse sentida como algo doloroso e humilhante. De qualquer forma, onde está escrito que temos total autonomia quando o assunto é nossa memória? Lembramos tudo o que queremos? Esquecemos o que nos faz sofrer? Creio que não. v H. Medeiros (84 anos, I/1o RI) é o tipo de depoente difícil de ser encontrado, sobretudo hoje em dia, entre os ex-combatentes: contestador, tratando ‘coisas sérias’ com ironia, e desprezando certa militarização da memória da FEB, pode-se aprender e observar coisas muito interessantes com a sua narrativa – que é bastante pessoal. É raro vermos um depoimento como o seu principalmente depois de todas as reviravoltas pelo qual passou desde o fim da guerra. Mesmo portando uma memória que,

71 72

RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha” Belo Horizonte: Ed. do autor, 2002. Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

64

digamos, não faz parte do ‘campo hegemônico’, pela forma como narra certas coisas, dá para perceber as condições trágicas em que se deu a formação do Corpo Expedicionário como um todo. Medeiros também foi parar na guerra a contragosto, estudou só até o ginásio, pois para continuar nos estudos teria que ir para outra cidade, mas o pai não tinha condições de mantê-lo. Coloca que, no início dos anos quarenta, seu pai o chamou no canto e disse: “‘Seu pai não tem condições de tocar a família mais não... agora é você o cabeça da família [que contava com a mãe e mais seis irmãs]”. Nessa época trabalhava nas Casas Pernambucanas e, para conseguir algo melhor, tentou entrar para a Marinha Mercante, mas não conseguiu devido ao estudo insuficiente. Pensou também em ir para o Exército, enfatizando que hoje poderia estar bem como alguns colegas seus, mas nunca teve apreço pela disciplina e vida militares. Na época da criação da FEB já tinha o certificado de reservista de 2o categoria, obtido em 1937 no tiro de guerra. No entanto, acabaria sendo convocado para se apresentar no Rio de Janeiro – uma vez que morava em Barra do Piraí. “Foi inter essante... a cadeia já começou na convocação, por que quando nós fomos convocados, foi um punhado, não é? Aí mar camos tudo par a viajar par a o Rio. Quar tel gener al lá na Pr aça da República no Rio... aí compr amos a passagem e eu falei: ‘Eu não vou. Eu não vou compr ar passagem... eu não!... estr ada de fer r o não é do gover no? E ele não está chamando a gente? Então ele que pague a passagem! Eu não vou pagar ...’(...) ‘Ah, então também não vou pagar ...’...‘não pago...’(...)Quando chegamos na vila militar , tinha lá um escol esper ando a gente...uma patr ulha...o sar gento da patr ulha vir ou par a a gente e: ‘Antes de chegar vocês já estão dando alter ação.’ Eu falei: ‘Não estamos dando alter ação não sar gento. O pr oblema é o seguinte: nós fomos convocados, a estr ada de fer r o é do gover no, quem convocou foi o gover no, então ele que paga a passagem, eu não pedi pr a vir .’ (...) ‘Então está tudo pr eso, vamos par a o quar tel.’ Fomos lá par a o quar tel gener al, chegou lá [r iso], o oficial até r iu e falou: ‘No final você tem r azão.’ Eu falei: “Ué, mas não está chamando, nós estamos aí ué! Ele que pague a passagem ué, foi ele que chamou a gente, não pediu par a vir .’” 74 (os grifos indicam ênfase do depoente)

73 74

Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002. Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002.

65

A convocação é algo traumático, como está atestado até aqui, mas, ao mesmo tempo, muitos encontram dificuldades em assumi-la dessa forma, pois a memória oficial, pública, percebe tal fato como algo “glorioso” e “heróico” – de modo que resta ao ex-combatente ou o reconhecimento público ou a marginalização – caso insista na versão “subversiva” do evento, ou subterrânea, com diria Pollak. É claro que essas opções não se apresentam dessa forma aos sujeitos, mas é uma série de circunstâncias, valores, necessidades e escolhas que os levam para um ou outro lado – quando não para um limbo intermediário. Dessa forma, como mostra Thomson, no mito dos Anzac, dar sentido à convocação é sempre algo complicado – e no caso do Brasil esse problema assume outras cores, já que aqui o alistamento foi majoritariamente obrigatório e, no caso australiano – na Primeira Guerra – , o voluntariado consistiu na âncora de todo o processo. Em suma, em cada caso existem certas polêmicas que dificultam a significação da convocação ou do voluntariado. E, tal como no trabalho citado, é comum que a narrativa da convocação porte uma série de pequenas contradições e hesitações, idas e voltas, pontos cegos, imprecisões e esquecimentos que, por mais que se explore, não se tornam claros. Isso aparece, em intensidades diferentes, na maioria das entrevistas, ou seja, a trajetória da vida antes da guerra é contada de forma muito lacunar e resumida – apressada até – enveredando-se rapidamente pela experiência da guerra. A maneira como se foi parar no Exército também é apresentada de forma genérica e apressada. Para poucos as justificativas da guerra fazem um sentido mais que superficial, até hoje – o que torna a memória daqueles tempos um tanto constrangedora, pois foram momentos em que não se tinha autonomia, e é difícil explicar isso para os outros e para si mesmos. Às vezes, é mais fácil ‘esquecer’. É um constrangimento pelo fato de terem as expectativas da juventude roubadas pela convocação e pela guerra, de modo que, seja ridicularizando o discurso

66

oficial, seja incorporando-o, os ex-combatentes teriam que lidar com essa realidade e se estabelecerem como sujeitos. Portanto, portadores de memória e identidade. Voltando ao ponto, é justamente tarefa do historiador perceber como se dão esses processos, de modo que discutindo as formas de resistência à convocação e à disciplina militar, ver-se-á como se forja mais um elemento das memórias individuais dos excombatentes, e em que medida essas lembranças ainda permanecem, a despeito de uma memória oficial que insiste em calar certos elementos. Como se deu com Medeiros, os problemas relativos à convocação já apareciam desde o início, seja em casos como esse do pagamento do transporte que, segundo ele, deveria ser feito pelo governo, seja com a questão da transferência das famílias para onde iam os convocados. Somando ao descrédito geral da FEB e do processo mobilizador do Estado Novo como um todo, temos o quadro onde se daria a experiência e o choque da convocação. Tudo isso, certamente, incentivaria todo tipo de coisa para que se escapasse do Corpo Expedicionário. Já em janeiro de 1944, um boletim de informações do Ministério da Guerra dizia que “... a atmosfera em torno do Corpo Expedicionário Brasileiro continua (a ser) de franca indiferença e derrotismo.”75. Essa situação permaneceria até o embarque das tropas a partir de julho do mesmo ano e, quanto ao clima de derrotismo e ridículo, este perpassaria toda a cobertura da guerra – piorando ainda mais quando do afrouxamento da censura estatal. O Estado-Maior da FEB ainda teria outras oportunidades de assumir, de forma velada, as condições duras pelas quais se dava a convocação, bem como a falta de interesse em fazer parte da FEB:

67 “A inspeção de saúde er a classificada como r igor osa, mas nas malhas apar entemente fina das r êdes, haviam se escoado inúmer os tubar ões ‘filhinhos de papai’, poder osos e bem ampar ados. A gr ande massa dos mobilizados ali estava por que não conseguir a escapar , embor a não se possa dizer que fôr a um r ecr utamento de ‘pau e cor da’, como na guer r a do Par aguai” 76

Como fica claro na citação, não eram apenas os “filhinhos de papai” que fugiam da convocação – e casos como esses são muito comuns nas entrevistas – mas eram eles que conseguiam fugir apenas, pois, formas generalizadas de burlar a convocação não faltaram – cada um fazendo o que estava à sua altura. Quanto à violência do recrutamento, de fato, não se deu através do “pau e corda”’, mas existiam outras formas de coerção tão perversas quanto esta, como se está vendo. No entanto, há um aspecto que se mostra muito interessante nos depoimentos que é o fato de que, definitivamente, muita gente queria escapar da FEB e, simultaneamente, há a necessidade de valorizar tal experiência bem como colocar que se desejava, ou no mínimo tolerava-se ir para a guerra. Qual é a conseqüência disso? Uma ‘multidão’ de depoentes que conhecem ou conviveram com dezenas de casos de fugas, deserções e coisas do gênero, mas que nunca pensavam em, eles próprios, fazerem o mesmo. É difícil para o historiador analisar e julgar cada caso individualmente – se é que é esse nosso papel –, do ponto de vista documental mesmo, torna-se complicado saber quem está ‘mentindo’ ou falando a ‘verdade’. A despeito desses julgamentos, o importante é que percebamos essas contradições e tensões existentes nos depoimentos e saibamos avaliá-las como representativas da memória conturbada de indivíduos e de um grupo que, às duras penas, tenta estabelecer uma identidade reconhecida e aceitável apesar dos inúmeros

75

Ministério da Guerra, Rio de Janeiro, Boletim de informações n.1, 29 de janeiro de 1944, OAA. Apud. McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945”, p.292. 76 BRAYNER, Mal. Floriano de Lima. “A verdade sôbre a FEB – memórias de um chefe de Estado-Maior da FEB na campanha da Itália”, p.74.

68

percalços do passado e do presente. Existem, e existiram, muitos entraves aos excombatentes para que expressem uma memória tranqüila de suas experiências, pois, assumindo que não queriam ir à guerra, teriam de ir contra a memória oficial do Exército, além de criarem sérios constrangimentos entre os colegas e a própria Associação. No entanto, independente desse tipo de opressão da memória, passagens sobre resistência à convocação – pelas formas mais contraditórias ou veladas que seja – pululam nos depoimentos e em várias memórias escritas sobre a FEB. Tal fato atesta como foi problemática não só a formação da FEB, mas também toda trajetória posterior à guerra em que os ex-combatentes tiveram que lidar com memórias então vistas como ‘subversivas’, ‘antinacionalistas’, ou que evidenciassem desrespeito à memória da FEB e ao ‘espírito público’. Numerosos casos tornaram-se típicos dos problemas que o governo e o Exército enfrentavam para formar a FEB. Um pelotão do 6o RI, por exemplo, teve oito diferentes comandantes durante o ano de 1944 – todos, menos um, conseguiram fugir à convocação através de transferências com apoio de autoridades. Vários comandos de companhias, em todo Corpo Expedicionário, passariam por rodízios como este. Mas engana-se quem supõe que essas fugas, ou tentativas de fugas, se reduzissem aos “filhinhos de papai” – como prefeririam muitos. O. Arruda, que como comandante de grupo, ficaria sabendo de uma série de casos e tentativas visando driblar o recrutamento, coloca que era comum que inventassem doenças, inserindo pasta de dente na uretra – para simular gonorréia –, ou passando uma pomada específica nas costas para que o pulmão aparecesse com alterações nas radiografias. Cita ainda casos de automutilação, falsificação de atestados, “manobras” via contatos, colocar alho nas axilas para desenvolver febre, entre outras formas. Por sua vez, parece que quis

69

mesmo ir à guerra, pois já havia ficado chateado com o fato de ter sido excluído devido à baixa estatura, e ainda narra uma situação onde teve a oportunidade de sair da FEB, com ajuda de uma autoridade – cujo nome se negou a dizer – mas que recusou tal oferta. Evidenciando, ainda, o descrédito que se tinha acerca da FEB: Autoridade: “‘“... Você vai par a a guer r a e vai mor r er lá! ’ (...) ‘... O pau de vassour a vai ser o seu fuzil... ’ (...) ‘... vocês não têm tr einamento nenhum de guer r a, vocês vão mor r er , todos. ’... O. Arruda: ‘Doutor , eu me admir o muito de o senhor , membr o do gover no, estar me falando uma coisa dessas; o senhor pode telefonar ou escr ever par a a minha mãe, falando que não vou atender ao pedido dela e que estou muito bem no Cor po Expedicionár io... ’77

Nas palavras de um outro depoente, M. Couto78, dois casos de resistência à convocação assumem um significado interessante, ao falar de um colega que conseguiu dispensa colocando pasta na uretra, Couto enfatiza: “ouvi falar” que ele teve uma infecção e quase morreu; ao que outro amigo que mentiu sobre uma doença: “levou ferro”. Ou seja, é como um castigo, bem merecido, para aqueles que sujariam a memória de um futuro passado que assumiria outros significados que não daquelas circunstâncias. Na verdade, era preciso muita coragem para tentar fugir da convocação – muitos não a teriam e, portanto, não contestariam tal medida. Dessa forma, anos depois, isso poderia ser reavaliado não como falta, mas sim como um ato de coragem por participar da FEB – era a união do útil com o agradável Antes mesmo das tropas se concentrarem nas cidades sede, onde passariam por um dos exames, ou no Rio de Janeiro – passando, então, por mais testes –, nas próprias cidades de origem já era comum para os que tinham ‘mais condições’, procurar formas de fugir da obrigação militar, conforme coloca A. Neto: “Mas na FEB teve muita gente que foi convocada e não quis ir par a a guer r a... mas eu não vou dizer nome de ninguém, até já mor r er am... mas

77 78

Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002. Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.

70

pagar am par a não ir ... os pais r icos pagar am par a não ir par a a guer r a... em Itanhandu tiver am vár ios...” (...) “Você sabe que aqui [No Rio] até que não houve tanto disso? Aqui a gente já estava mais esclar ecida, mais tudo... mas lá no inter ior isso é uma coisa hor r or osa. Conheço funcionár ios da pr efeitur a de Itanhandu que nem r eser vistas er am... for am lá par a aquelas fazendas dos par entes e sumir am... desapar ecer am [r iso]...” 79

Quanto à relação que Neto estabelece entre certa cultura rural e a cultura urbana, é algo que perpassa outros momentos da entrevista. Mas talvez ele tenha razão em um ponto, depois que as tropas foram levadas para o Rio, de fato, diminuiriam casos como o que ele descreveu – já que estavam distantes de suas famílias e conhecidos – o que não significa que todos aceitassem tal situação – pois novas formas de escapar àquela situação, pelo menos temporariamente, surgiriam. S. Ribeiro, do 9o BE, enfatizaria as fugas ainda quando em Aquidauana e, posteriormente, no Rio de Janeiro: “Inclusive, nessa época, lá no Mato Gr osso fugia muita gente também... na vésper a de embar car ... antes de embar car par a o Rio, aí fugiu bem gente lá... uns mato-gr ossenses mesmo, de lá... não quiser am ir não... aí muita gente fugiu mais na vésper a, não é?” Márcio: “No pr ópr io Rio também, aconteceu muito isso?”. “Teve. No Rio teve gente que fugiu ainda depois de estar dentr o do navio... estavam no navio, nadar am e saír am... tr ês... tr ês aqui de Delfim Mor eir a... o navio depois se afastou lá na Guanabar a e ficou longe, não é? E à noite fomos dor mir , não é? Isso lá no fundo [do navio], lá par a baixo... aí eles pular am na água e nadar am pr a longe... nós tínhamos muito tr einamento par a nadar ... lá no r io em Aquidauana...” 80

Interessante, ainda, é a forma como estes soldados apropriaram-se do conhecimento obtido no próprio Exército. No Rio de Janeiro surgiriam as famosas “tochas”, termo atribuído pelos febianos às fugas sem autorização para visitar as famílias ou para andar pela cidade atrás de ‘aventuras’. O termo seria, ainda, usado para os passeios na Itália após o fim da guerra, enquanto esperavam pela ordem de retorno – e, como será tratado mais a frente – consistiu em elemento fundamental na definição da identidade do febiano – existiria até um

71

periódico chamado “ A Tocha” . O termo “tocha”, ou “acender uma tocha”, acabaria caindo no gosto do vocabulário dos ex-combatentes, que usam até hoje quando de uma viagem junto com os colegas para os Encontros da Associação, ou quando das viagens para quaisquer eventos comemorativos da FEB. As tochas, ainda no Rio de Janeiro, eram voltadas para a visitação das famílias – grupos inteiros fugiam do quartel e só voltavam após o fim de semana. O embarque da FEB foi muito demorado, além dos vários alarmes falsos, o que deixava as tropas mais angustiadas e desejosas de ver, muito provavelmente pela última vez, pensavam eles, seus entes queridos. Houve momentos em que essas tochas foram até confundidas, por parte do comando, como deserções em massa81. O esforço dos oficiais era no sentido de coibir as tochas, proibindo as visitas familiares mesmo quando as tropas não estivessem com alguma tarefa ou treinamento marcados, o que acabava gerando um círculo vicioso, pois os praças fugiam e voltavam no sétimo dia, antes de serem considerados desertores, enchendo, depois, as cadeias do quartel. Quando soltos, nova proibição por parte do comando, levando a novas fugas82. Aí, várias estratégias eram usadas, sabe-se até de casos em que se fazia amizade com os maquinistas dos trens que, em local marcado, diminuíam a velocidade para que os “tocheiros” pudessem subir – dado que as estações eram vigiadas pela temida PE, a Polícia do Exército83. Houve até a “questão dos bigodes”, quando um general que, sabendo da inexistência desse hábito entre os americanos, decidiu proibir o uso do mesmo na FEB – já que o regulamento não dizia nada sobre isso, tornou-se impossível ser penalizado por desrespeito a tal ordem de

79

Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004. Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005. 81 ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.70-71 82 Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002. 83 Ibidem. p.90. & MAXIMIANO, César Campiani & GONÇALVES, José. “Irmãos de armas – um pelotão da FEB na Segunda Guerra Mundial”, p.47-48. 80

72

modo que, então, “a oposição se revelou em tôda sua intensidade...”84, e o uso do bigode generalizou-se. Toda essa rigidez disciplinar do Exército Brasileiro seria mudada na FEB – devido, sobretudo, à influência da doutrina americana e da experiência real de guerra, questões que serão, ainda, trabalhadas detalhadamente. Mesmo distantes de suas cidades natais, muitos ainda tentavam, a todo custo, fugir do Corpo Expedicionário – a despeito da maioria, que já se encontrava resignada por não ver mais como sair da situação. Dessa forma, entre os vários exames de saúde que foram feitos antes do embarque para a Itália, erro foi cometido ao liberar a tropa, que ia freqüentar os bordéis – alguns então, deliberadamente, mantinham relações com o intuito de contrair alguma doença que os colocasse para fora da FEB85. v Apesar de todos esses impasses o Corpo Expedicionário estava em formação e acabaria mesmo, contrariando o senso-comum, indo para a guerra – de modo que os treinamentos começaram nas cidades-sedes dos regimentos, e, depois, no Rio de Janeiro, local de reunião das unidades expedicionárias antes do embarque. O Exército tinha sérias complicações de infra-estrutura àquela altura, e a mobilização para a guerra e a conseqüente criação da FEB, levando ao inchaço do sistema, multiplicariam os seus problemas. As condições dos quartéis eram péssimas, a alimentação pobre e de baixíssima qualidade, a higiene era precária e as condições sanitárias em geral tornaram-se alarmantes. O armamento brasileiro era antigo e antiquado, sendo de diversas origens: alemão, francês, dinamarquês etc. De modo que os dois últimos escalões tiveram o

PIASON, José. “Nosso último dever na FEB” In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.79-112. 85 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.34. 84

73

primeiro contato com o armamento a ser usado na guerra, o americano, apenas na Itália – inclusive, freqüentemente, ás vésperas do batismo de fogo. Na memória dos veteranos o treinamento no Brasil é restrito a exercícios físicos como marchas, corridas entre outros. Tais treinamentos visavam não apenas melhorar o vigor físico dos soldados, mas, igualmente, preparar o espírito para o que vinha pela frente: “Estávamos cansados daquela tortura. Exercícios penosos, sem finalidade; a crueldade dos treinamentos parecia um preparo psicológico para aceitar a guerra.”86. No entanto, ainda coloca Boanerges, mais do que aceitar a guerra, a idéia do treinamento era que fizesse com que os soldados quisessem a guerra, pois concluíam que nada mais podia ser pior do que aquilo. No 11, em São João Del Rei, ficaram conhecidas as “marchas da fome”, onde os recrutas passavam três a quatro dias marchando sob sol e chuva com o mínimo de comida ou quaisquer tipos de apoio. No final das contas, esse teria sido uma das poucas jogadas inteligentes do comando da FEB – já que isso acabava desenvolvendo o espírito de corpo entre as tropas, bem como fazendo com que os soldados desejassem embarcar o mais rápido possível – onde teriam um pouco de paz. Sobre as marchas, coloca W. Soler (82 anos, I/11oRI): “Então nós saímos mar chando de São J oão Del Rei e par amos... não me lembr o bem onde par amos... na beir ada do r io Nazar é ou uma coisa assim... for am cinco dias e quatr o noites sem cozinha... nós saímos par a cá e a cozinha saiu par a lá... a cozinha só encontr ou a tr opa no quinto dia. Eu tenho um colega que fez isso, ele é engenheir o, e fala assim: ‘W., o que foi mais pesado par a você: aquela mar cha de Nazar é ou a guer r a?’. Eu falo que foi aquela manobr a... for am cinco dias e cinco noites fazendo r epouso de quatr o ou cinco hor as e andando o r esto... e chuva que Deus dava, não é? Metade desses cinco dias er a de tempor al...” 87

Junto a tudo isso, os convocados sofriam com a rigidez disciplinar do Exército Brasileiro – até então fundamentado na doutrina militar francesa, que estabelecia um forte

86

RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha”, 18p.

74

papel da hierarquia e que, por conseguinte, celebrava uma profunda diferença de tratamento entre soldados e oficiais. Isso refletia, inclusive, nas condições de tratamento de cada extrato: alimentação diferenciada, exigência de continências em quaisquer circunstâncias, filas diferenciadas, cessão de lugares a oficiais em ambientes públicos e por aí vai – sem contar as punições. Mais tarde, e esse é um dos poucos elementos que congrega todos os veteranos, voltariam da guerra experimentados numa cultura militar muito mais flexível e funcional – sob inspiração da escola americana – fundando a separação entre o velho Exército de Caxias, que ficou aqui, e o novo Exército da FEB, que foi para a Itália, trazendo uma nova concepção completamente reformulada de Forças Armadas88. De qualquer forma, seja nos duros treinamentos, nas tochas, na difícil relação com os oficiais, ou, em outros termos, o fato de se identificarem como elementos comuns de uma mesma ‘tragédia’ – como viam a convocação e a ida para a guerra na maioria das vezes –, soldados, suboficiais e baixo oficialato iam, aos poucos, criando os primeiros laços de solidariedade que durariam por toda uma vida. Manuel Castells, ao discutir as tipologias de identidades, o como e o porquê delas se configurarem de uma determinada forma, estabelece, entre outras, a chamada “identidade de resistência”, que é “... cr iada por ator es que se encontr am em posições/condições desvalor izadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, constr uindo, assim, tr incheir as de r esistência e sobr evivência com base em pr incípios difer entes dos que per meiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos...” 89

A identidade de resistência, desta forma, se caracterizaria principalmente pelo fato de levar à formação de “comunas”, ou comunidades de resistência. Indivíduos que se identificam por se encontrarem em uma situação opressiva comum, o que faz da união entre

87

Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002.

75

essas pessoas ou grupos, algo que os proteja ou pelo menos atenue os problemas pelos quais passam. Mais tarde, já na Itália, com o fortalecimento dos laços e a realização dos primeiros combates da FEB no front, cria-se entres os praças um sentimento de desprezo, às vezes beirando o ódio, pelo alto oficialato, bem como, também, uma relação de ‘quaseidentificação’ e respeito para com o inimigo – tudo isso em decorrência de uma série de fatores que ainda se verá nessa dissertação. Essas identidades, por sua vez, cultivam, entre outras coisas, uma memória comum, mantendo, até hoje, elementos vivos que perpassam por toda uma rede subterrânea – fora dos limites da memória oficial, bem como avessa ao esquecimento público geral que há acerca da FEB. É interessante observarmos como esse tipo de identidade de resistência, bem como a formação de laços de solidariedade que, posteriormente, se transformariam numa sólida comuna de resistência, é comum entre soldados em guerra. O exemplo do trabalho de Thomson com os Anzac serviria, novamente, para perceber-se isso num outro contexto. O suporte dos amigos de Fred Farrall – um dos depoentes de Alistair – seria fundamental na transição de sua identidade de “ farm boy” para a de soldado. Além de terem dado esse apoio uns aos outros, forneceram-lhe segurança, o que possibilitou a permanência de Fred num dos mais conturbados fronts da Primeira Guerra Mundial: Galipolli. Essa sua ligação com os amigos contrastaria com o significado nacionalista e de auto-sacrifício da lenda dos Anzac, já que na sua narrativa a morte dos colegas – Fred perderia todos na guerra – não se liga àqueles valores, o que geraria uma série de implicações negativas para ele após a volta para casa.

Cf.: ANDRADE, Goes de. “Espírito da FEB e espírito de ‘Caxias’”. In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.309-392. 89 CASTELLS, Manuel. “O poder da identidade”, 24p. 88

76

Todos os exércitos que lutaram na Segunda Guerra sabiam da força e da importância desse tipo de vínculo entre os soldados, de modo que incentivava, após o ingresso nas Forças Armadas, a preservação dos grupos – mais ainda se estes vinham já estabelecidos do meio civil. Entretanto, vimos que em razão das condições de formação da FEB, ou seja, as infindáveis transferências e deserções, tal processo sempre estava sofrendo fortes abalos de modo que, só na Itália, de fato, as ‘fratrias’ tornar-se-iam sólidas. M Couto, que fez o CPM em Belo Horizonte, sendo incorporado no 12o RI e depois enviado ao 11 de São João Del Rei, realizou todo esse percurso, bem como toda a guerra, com um grupo só – obviamente com pequenas e médias alterações durante esse tempo – que formava todo 1o pelotão da 6o cia. do II/11RI – cerca de 45 homens. Em sua memória, até hoje, os mais próximos são lembrados com uma agilidade de como se encontrassem todos os dias. v Uma vez que o tema dessa dissertação é a memória da FEB, antes de discutir o momento seguinte ao processo de convocação, ou seja, a guerra propriamente dita, é válido abordar alguns pontos relativos ao processo de mobilização na perspectiva do Estado, tentando perceber como ele dialogaria com os ex-combatentes anos mais tarde. A mobilização da sociedade, o chamado a todas as classes e setores, bem como de todos os esforços consistiu em iniciativa, ideologicamente e politicamente, afinada ao projeto estadonovista – muito mais do que com os objetivos gerais da Segunda Guerra. Nesse contexto, a FEB corresponderia em um dos pontos altos de uma tendência que já se vinha conformando há pelo menos dez anos como uma das prioridades na política nacional, como coloca E. Dutra: “A constr ução de um sentimento de nacionalidade é fr uto de iniciativas gover namentais desde o início de 1936, as quais são incr ementadas no segundo semestr e de 1937, par ticular mente em seu final, após o golpe de

77

novembr o, numa clar a indicação dos objetivos ideológicos e estr atégicos dos seus pr otagonistas.” 90

Nesse ínterim, adota-se o Exército como modelo de organização social e, num claro movimento de militarização da sociedade91, o estado procura promover a monopolização da autoridade, visando, com isso, englobar a sociedade, unificando-a e tratando-a como um mero instrumento à disposição do Estado-Nação. Para isso, lança mão de uma série de instrumentos, como a difusão do medo – sobretudo via anticomunismo –, o fortalecimento e expansão dos aparelhos policiais e repressivos, o esforço propagandístico, as campanhas de defesa civil passiva, as campanhas de recolhimento de metal etc. Há uma clara tentativa em estabelecer um rígido projeto de ordenação dos corpos e do tempo, via militarização, disciplina, obediência e união – sobretudo no espaço do trabalho92. Dessa forma, não seria a guerra e o esforço mobilizatório espaços igualmente interessantes para a promoção dessas políticas? Certamente que sim. Dessa forma, conclui Cytrynowicz: “O envio da FEB foi, por tanto, mais uma necessidade inter na a política do país, de for talecer a base de apoio do Estado Novo e das For ças Ar madas – opor tunidade par a r eestr utur ar , r eequipar e moder nizar estas for ças –, além de pr ojetar o país nas discussões do pós-guer r a, do que uma decisão ideológica ou política no plano inter nacional de luta contr a a Alemanha Nazista, confor me colocada nos anos de 1942, 1943 ou 1944 e celebr ada como histór ia oficial do engajamento militar do país.” 93

Sem esquecer, entretanto, que o envio da FEB contou com sérias resistências dentro do próprio alto-escalão estadonovista. Sobretudo Dutra e Góes Monteiro, publicamente conhecidos por suas simpatias pelo Eixo, em vários fizeram esforço visando a não cooperação Brasil - Estado Unidos e o impedimento do envio de contingentes brasileiros para lutar na guerra ao lado dos Aliados. No entanto, como diz a velha fórmula, teoria e

DUTRA, Eliana. “O Ardil Totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30”, p.185. Ibidem. p.236. 92 Ibidem. p.336. 90 91

78

prática são coisas muito diferentes e, a despeito do forte caráter corporativista e fascistóide do discurso estadonovista ser claramente perceptível, é fácil perceber, como já vimos até aqui, os furos no processo de mobilização em decorrências das práticas de resistência criadas. Embora só trato nesse texto da Força Expedicionária Brasileira, mas vale notificar que essas práticas se apresentaram em numerosos setores e níveis da sociedade na época. Já se referiu aqui à má imagem com que a FEB contava entre a sociedade – de modo que as fugas, as condições do Exército, as ‘politicagens’ vistas por todos, a demora do embarque, bem como a idéia dificilmente aceitável de que o Brasil mandaria suas mal ajambradas tropas para lutar contra os ‘monstros nazistas’ na Europa, sabotava o mínimo de confiança que se poderia ter – por dentro e por fora dos quartéis. Funcionava como um círculo vicioso: quanto mais o Estado procurava levar a sério o discurso da guerra, mais ridicularizado este era – levando ao aumento dos esforços governamentais e, por conseguinte, à vontade dos convocados em escapar daquilo tudo, explicitando o constrangimento da situação. Para piorar a situação, a mídia oficial e/ou de grande circulação pisava e repisava nos “méritos” da FEB, nas responsabilidades democráticas do Brasil, na nossa tradição militar, entre outras amenidades – algo que contrastava radicalmente com o que as pessoas viam na formação do Corpo Expedicionário94, conforme atesta essa carta, censurada, destinada ao cabo Darcy Meirelles: Coloca o censor: “Falta de confiança no valor e pr epar o do Exér cito Br asileir o” Então transcreve os trechos censurados: “Quer ido, tenho estado muito apr eensiva por saber que vocês já entr ar (sic!) em luta c/ o inimigo, por quanto tenho absoluta cer teza de q. vocês não estão suficientemente

CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”, p.34-35. Em McCANN Jr., Frank D. “A aliança...”, p.318., vários são os títulos de jornais citados, dentre eles: “ O Globo” , “ A Notícia” , “ Folha Carioca” , “ Diário Carioca” e “ O Jornal” . 93 94

79 pr epar ados p. isso. Ser á uma loucur a mandar cr ianças como vocês, q. ainda sentem a falta da mamãe, p/ guer r ear uns monstr os como os nazistas. Não sei o que acontecer á dessa idiotice. Nem posso imaginar uma maluquice tão gr ande.” (...) Só há gr ande far tur a e notícias animador as na Hor a do Br asil. Por essa r azão, todas as noites ouço as novidades e a gente acaba por acr editar um pouco naquelas mentir as. Pelo menos dor me-se mais a vontade, c/ sonhos menos pesados. É como se tomássemos uma dose de ópio.” 95

Em suma, no final das contas, “Quem permaneceu na unidade foram os idealistas, os voluntários [ambos minorias absolutas], os resignados ou simplesmente os que não conseguiram ser excluídos”96. Mal sabiam os recém convocados a intricada situação que resultaria – a longo prazo – de todo esse emaranhado. Pois se o desdenho em relação à FEB era o que imperava naquele momento, o contrário se daria após a volta para casa – por parte dos agora ex-combatentes. Nota-se a formação de uma espécie de nó que dificultaria o estabelecimento de uma memória aceitável e coerente; nesse momento, a memória teria de dar as suas reviravoltas, fazendo ‘ligações’ aqui, ‘esquecimentos’ ali e ‘abafamentos’ acolá. Pois seria por demais contraditório, para eles mesmos, para os que ficaram e, sobretudo, para o governo que acabava de derrubar Vargas, tomar considerações positivas pelos febianos – então símbolos do Estado Novo. E mais, dado que a FEB respondia mais às necessidades internas do regime do que qualquer outra coisa, a questão da justificação da entrada do país na guerra é um ponto mal resolvido e, por conseguinte, empurrado às margens, entre os ex-combatentes – não no caso da memória oficial, é claro. Muitos ex-combatentes preferiram assumir o discurso do soldado apolítico, inclusive aqueles que conseguiram permanecer nas fileiras do exército após a volta. N. Silva (81

95

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro - APERJ - fundo DPS. MAXIMIANO, César Campiani & Gonçalves, José. “Irmãos de armas – um pelotão da FEB na Segunda Guerra Mundial”, 37p. 96

80

anos, I/11oRI) é exemplo paradigmático desse caso. Quando perguntado sobre a pouca participação do pessoal da ativa na FEB, coloca que foi necessária a convocação em virtude da falta de efetivos e do perigo que o país correria em ficar desfalcado – sobre os testes de seleção, afirmaria que: “... isso, a gente não tomava parte... era mais o treinamento...”97. Por fim, respondendo questão sobre a aparente contradição de o Brasil ir lutar pela democracia sem tê-la em seu próprio território, coloca que esse era um problema que não cabia ser resolvido por “nós”. Já D. Medrado, que entrara para o Exército em 1942 para tirar o certificado, retido em função da declaração de guerra, se envereda pelo argumento da pressão popular, o mais comum e aceito não apenas entre os ex-combatentes, ao responder questão sobre o porquê do país entrar na guerra: “... quando eu fui par a o exér cito ainda não existia nenhum indício do Br asil tomar par te no conflito... falava-se em guer r a e tal, mas não falava-se no Br asil em guer r a, não é? A guer r a só veio...nós par ticipar mos...o jovem, o soldado, o povo, só veio sentir a guer r a quando for am afundados os nossos navios aí. Esse foi o pr incipal motivo, não é? Por que a gente não ouvia falar ...a gente er a muito jovem...a gente não tinha muito acesso a essas notícias, e não tinha também um gr ande inter esse por isso. Depois é que a gente foi tomando conhecimento dessas coisas e começamos a nos empolgar , não é? E ver , inclusive, que nós estávamos caminhando par a uma tomada de posição.” 98

Segundo essa tese, Getúlio Vargas teria entrado na guerra em decorrência da pressão popular. Uma variação da tese, que assume as simpatias do Estado Novo pelo Eixo, ainda enfatiza que tal pressão levaria o país a se posicionar ao lado dos aliados, além da declaração de guerra e do envolvimento militar. No entanto, sabe-se que as manifestações realizadas no Brasil durante o ano de 1942, sob organização da UNE – União Nacional dos Estudantes –, foram extremamente exageradas. Primeiro pela memória e segundo,

97 98

Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003. Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

81

sobretudo, pela mídia e pelo Estado, que ainda aproveitou os movimentos pró-democracia para aumentar a base de apoio do governo, na medida em que este defendia, agora, a causa aliada da democracia – ou seja, quem criticava o Estado Novo, passava a apoiá-lo sem ao menos perceber99. É claro que a FEB poderia consistir, contrariamente, num elemento esfacelador do corporativismo estadonovista, pois voltaria como uma tropa que lutou em nome da democracia e não a possuía em seu próprio território – abrindo espaço para o fortalecimento da oposição. A tese da pressão popular em decorrência do afundamento dos navios em nossas costas, no entanto, acabaria servindo como uma ótima justificativa para os ex-combatentes, haja vista a falta de explicações e de sentido para aquilo tudo – mesmo assim, para muitos deles, até hoje, pouco sentido fazem tais divagações100. Na maioria das vezes, sobretudo naqueles que não possuem um envolvimento direto com as Associações, a justificação da guerra em termos macropolíticos ou de movimentos sociais pouco convence – nem mesmo a interação desta com as experiências pessoais são bem articuladas nos depoimentos. A idéia das manifestações como causa da entrada do país na guerra aparece nas entrevistas de forma descolada e desconfortável, como um bloco, ou algo que, sente-se, não faz parte daquele mundo. Outro argumento dessa natureza que também, vez ou outra, surgia, se ligava à questão econômica, afirmando que a FEB teria ido a troca da CSN101 – Companhia Siderúrgica Nacional –, de fato, montada pelos americanos no âmbito das negociações para o alinhamento do Brasil. Variavam, nesses casos, versões que, ora enfatizavam a autonomia nacional que se conquistou à época com Getúlio, ora acusavam o

Cf.: CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...” CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”, p.323. 101 Entrevista com O. Arruda, Belo Horizonte, novembro/2001. 99

100

82

governo de rendição ao imperialismo norte-americano – polêmicas ainda comuns, igualmente, na historiografia sobre o assunto. Em obra produzida logo após o fim da guerra, alguns oficiais da reserva fizeram uma série de críticas à organização do processo mobilizador e da FEB como um todo, não ficando de lado a questão das deficiências no treinamento dos soldados bem como da “educação moral” e da justificação da guerra, então coloca Mario Amaral: “A Educação Mor al er a uma instr ução difícil de ser ministr ada tendo em vista as r azões que levar am o Br asil à guer r a e o mor al do povo br asileir o. Er a necessár io convencer o soldado que ia par a a guer r a de que ia pr eser var a integr idade da sua Pátr ia, contr a um inimigo que ameaçava usur pá-la, que lutar ia, par a vingar a mor te de homens mulher es e cr ianças inocente, em tor pedeamentos de navios br asileir os, a pouca distância dos nossos litor ais. Mas, par a que êsses motivos que, apesar de for tes tivessem os efeitos que dever iam ter tido, impunha-se que o gover no fizesse o pr epar o da opinião pública par a a guer r a e nada fêz além de declar ar publicamente que declar ava guer r a ao Eixo, por ‘imposição do povo br asileir o’” 102

Percebe-se nas entrelinhas em que medida a idéia da pressão popular foi forjada, e muito mal forjada, na época do evento. A necessidade de argumentos grandiosos para justificar as guerras é evidenciada de modo explícito e, seja mal ou bem feita, quase sempre, mais a curto e nem tanto a longo prazo, se apresenta como algo avesso ao mundo e à realidade do convocado. Dessa forma, na época dos embates, como veremos a frente, tais pontos de vista eram deliberadamente ignorados pelos soldados, que davam todo um significado particular àquilo que estavam passando. Mais tarde, em função das pressões da memória oficial e da necessidade de reconhecimento público de suas experiências, tais argumentos vão sendo incorporados por muitos, não passando, entretanto, de algo marginal e até ‘artificial’ no contexto da significação que fazem de suas guerras particulares. Mas voltando a enfatizar o

AMARAL, Mário. “A instrução da FEB” In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.171-172. 102

83

que já se falou sobre a pluralidade de versões, vale lembrar que uns dão mais peso à versão oficial – portando narrativas mais impessoais –, ao que outros pouca confiança atribuem a tais questões – prendendo-se mais as narrativas pessoais –, de modo que há, ainda, os que desprezam ou ridicularizam tais preocupações, como faz S. Ribeiro: “Ah...não tinha papo não...” ...[soldado] não sabe de nada [risos]...eram só os graudos lá...que fala lá entre eles e ninguém fica sabendo...”103 Era comum que, na maioria das entrevistas, eu me sentia ridículo em fazer perguntas sobre macropolítica – com o passar do tempo percebi que elas cabiam cada vez menos nos roteiros, na verdade, de modo muito lacunar e superficial, ou seja, como eram as respostas. Ao contrário, as entrevistas rendiam quando falávamos da guerra do soldado e da experiência pessoal de cada um – mesmo entre os mais apegados à memória público-oficial que, como ficou claro, valoriza aquele tipo de abordagem. Interessante, também, que as questões relativas à política e justificação da guerra apareciam menos ainda quando realizava entrevistas em grupo, o que gerava uma dinâmica curiosa entre eles: parece que sozinhos comigo, um jovem historiador, teriam que passar uma imagem ‘aceitável’, gloriosa’ e ‘grandiloqüente’ da FEB, pois a experiência da guerra não poderia se resumir a uma série de casos desconexos – diria a memória oficial vigilante. Mas quando se sentiam mais confortáveis com a situação, voltavam às suas memórias pessoais, com os quais, como se pode ver têm ótimo entrosamento além de fazer todo o sentido. v Contra tudo e todos o Corpo Expedicionário foi formado e antes do embarque teve seu nome mudado, definitivamente, para Força Expedicionária Brasileira. Entretanto, se

103

Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.

84

mudou o nome, em nada alterou o ânimo da mobilização e dos outros preparativos – como prova uma piada que circulava nas vésperas do embarque dizendo que, com a modificação do nome, o Brasil aproveitou para tirar o “Corpo” fora. Nas lembranças dos ex-combatentes, os preparativos para o embarque e a viagem para a Itália costumam aparecer de forma marcante, além de, a despeito da crise generalizada de náusea, vir carregada por um olhar simpático. Estavam experimentando muitas coisas novas como navegar, conhecer novas pessoas e lugares e pareciam mesmo felizes, pois tiveram uma despedida festiva e, se não conseguiram sair da FEB, pelo menos os tempos ingratos dos duros treinamentos físicos haviam terminado. Além de tudo isso, durante a viagem para a Europa, teriam os primeiros contatos com a máquina e a doutrina de guerra norte-americanas, que tanto influenciaria e marcaria a nova identidade que então se formava. Entrar no navio e partir para o desconhecido: esse evento, pode-se afirmar, consiste num dos momentos em que, de fato, se vê algo novo nascendo entre aqueles que agora faziam parte da então Força Expedicionária Brasileira. Era como se fosse o momento onde a ‘ficha acabara de cair’ – muitos boatos circulavam, o embarque demorava e tudo levava a crer que a guerra acabaria antes e tudo não passaria de mais um estardalhaço ou fogo de palha ‘à brasileira’. A distância da guerra e de todo aquele discurso sobre ela era tão longínquo que se tornava inconcebível a alguém se ver – não tendo a mínima noção do que consistia um front da Segunda Guerra – lutando na Europa. Nesse contexto, a viagem já consistia em experiência traumática, mas recompensadora, para os febianos: “... só a tr avessia do oceano já foi uma batalha... tensão à noite... navio escur o, silêncio... eu ia lá par a baixo par a fiscalizar a minha tur ma... cada tenente er a r esponsável pelo pelotão... então a gente fazia... ficava lá mesmo... lá em baixo... subsolo do navio... escur o, calor , gente vomitando...

85

foi muito... e quando a gente chegou lá na Eur opa já estava uma amizade entr e tenente, soldado, capitão, os major es, os cor onéis... tudo isso...” 104

Importante, também, foi essa viagem para o fortalecimento dos, até agora, frágeis laços de solidariedade e camaradagem criados por ocasião dos passeios pelas ruas do Rio de Janeiro, dos treinamentos conjuntos ou de uma fuga em grupo para visitar as famílias. Dentro dos navios, a formação de uma nova comunidade era, agora, inexorável – pois havia a delimitação física do navio, e a limitação da liberdade pela rígida rotina do navio e da língua de sua tripulação, o que acabava não deixando muitas escolhas sobre o que fazer, a não ser se conhecerem melhor. Eram combatentes rumo à guerra, começavam a imaginar o que os esperava, a pensar na possibilidade real dos combates, nas possíveis perdas – surgia, com isso, o amadurecimento como soldado junto da aceitação de uma situação que tinham, agora, que encarar. A formação dessa nova identidade, voltando a Castells, seguia o princípio básico das chamadas “identidades de resistência”, que é a formação das chamadas comunas e, nesse ínterim, não faltavam elementos com os quais os agora ex-combatentes pudessem contrastar. No navio, bem como nas cerimônias de despedida, os soldados começavam a perceber que a guerra deles seria muito diferente da guerra dos políticos, da mídia e das altas patentes, até dos que ficavam, de modo que já era possível notar uma ponta de rejeição sobre aqueles que tentavam atribuir um sentido àquilo tudo que não condizia com o que viviam e sentiam. Desse modo, frente a toda ridicularização de que a FEB foi alvo quando da sua formação, bem como às tentativas desesperadas de fugir daquilo tudo, por eles mesmos empreendidas, qualquer discurso patrioteiro naquela altura cheirava a mais

104

Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.

86

deboche. W. Soler coloca que a despedida de Getúlio Vargas, que foi ao navio G. Meigs vistoriar e confortar as tropas não deu bons resultados: “... então o seguinte: er a em beliches, e eu me lembr o bem de quando nós entr amos, está vendo? Que o navio já estava todo tomado... a tr opa toda embar cada... então o Getúlio Var gas foi num dos pavimentos e fez uma saudação aos pr acinhas... dizendo que par tissem com Deus e que os aguar dava na volta com a vitór ia... e deixou uma mensagem lá que, em par te, pelo que eu senti, e pelo que os outr os colegas falar am, uns gostar am, outr os for am neutr os, outr os não gostar am e disser am que nem dever ia ter ido lá, está vendo?” 105

Ainda nesse discurso, Getúlio Vargas diria algo que se fixou na memória dos excombatentes – não naquele momento, é verdade, pois tudo que falou devia entrar por um ouvido e sair pelo outro. Com os problemas da volta e da reincorporação, esse discurso seria revisto, servindo apenas para mostrar como os soldados tinham razão em ignorá-lo no ato de sua elocução, dado que era algo que além de impalpável, mostrar-se-ia, posteriormente, mentiroso. Na ocasião, Vargas falaria da necessidade de vingar a morte de brasileiros, do apoio popular à causa, da luta pela liberdade, da nossa tradição pacifista, mas audaz contra os invasores e, por fim, o que ficaria marcado, das promessas de apoio na volta – mas, como disse, nesse momento isso seria pouco notado, pois não sabiam o que os aguardava após o retorno106. Entre outras coisas, ficaria na lembrança dos ex-combatentes a organização no navio americano, as filas, a funcionalidade, a boa qualidade – apesar de diferente – da alimentação, as normas higiênicas e sanitárias, a fraca distinção entre oficiais e praças etc., coisas que, para um GI americano passariam desapercebidas. Quanto à influência da doutrina americana, esse era apenas o começo de muito que ainda viria – como ainda será discutido a seguir. Da chegada na Itália, uma série de coisas também ficaria marcada, pois

105 106

Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002. Discurso de despedida do 1o Escalão da FEB, CPDOC – Arquivo Getúlio Vargas.

87

era a primeira vez que viam o poder destrutivo e desmoralizador de uma guerra moderna, e como ela transformava tudo entre o céu e a terra, inclusive as pessoas. Os pracinhas não conheciam os ‘barbarismo’ da guerra, dado que “Oriundos, quase todos, de cidades pacatas do interior do Brasil, de onde saíram atendendo à convocação para a guerra – uma guerra distante de motivos e razões mais distantes ainda – sobre a qual tudo ignoravam uns e pouco sabiam outros107. Desembarcando em Nápoles, teriam contato com a desolação trazida pela miséria e pela escassez das mínimas condições de sobrevivência, a desnutrição, a destruição completa das cidades, o desespero de adultos e crianças por restos de comida e até pontas de cigarro. Isso afetaria profundamente os ex-combatentes de todos os países que, em geral, ao conviverem com misérias como essas e outras, acabam assumindo um forte discurso pacifista pelo resto de suas vidas, de modo que, no íntimo, o ex-combatente W. Soler, ainda na Itália, assumiria um compromisso de respeito àquela situação dos que viviam a guerra: “Entr amos em uns tr ês lugar es... então eu ouvi o chor o daquela gente, a misér ia daquela gente, o abandono, a tr isteza, chor o de dar nó na gar ganta... eu, então, num dia desses eles tr ouxer am vinho, custar am fazer o capitão tomar o vinho, por que ele não quer ia de jeito nenhum, até eu tomei e tal... nesse dia eu fiz uma pr omessa comigo mesmo, e cumpr i: que, em homenagem a esses coitados, sofr imento, sem comida, sem assistência, sem nada, eu não ir ia par ticipar de nenhuma festa de vitór ia no Br asil, nem no Rio nem na minha ter r a...e não par ticipei... não desfilei no Rio e não fui r ecepcionado na minha ter r a... nem uma homenagem na minha ter r a até hoje...não fiz questão e nem faço... uma pr omessa que eu fiz, intimamente, vendo aqueles abandonados, eles chamavam de esfolati, não é? Aqueles abandonados, aqueles dester r ados, aquela misér ia toda na Itália... aquilo me tocou mesmo, sabe?” 108

Por fim, vale dizer que a ida para a Itália consistiria num verdadeiro rito de passagem, muito mais do que a convocação e o treinamento, até então quase sempre desprezados, mas não por isso menos importante na conformação da nova identidade de combatente e depois

107

SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.28.

88

ex-combatentes – a viagem estabeleceu as delimitações físicas dessa comunidade, ‘homogeneizou’ as experiências, fez deles ‘iguais’. A experiência de estarem a sós e longe de casa ampliaria a auto-percepção da nacionalidade brasileira e de combatentes, já que apenas longe de casa é que os soldados aproximavam-se e se viam como uma unidade, como uma fratria, de fato109. v I.3

A guer r a Outros dos estereótipos com que se acostumou ver as guerras se aplicam à idéia de

como é um front e/ou uma retaguarda. Geralmente o termo guerra nos traz à mente palavras como destruição, morte, ignorância etc. o que, certamente, não condiz com a complexidade e a multiplicidade de um evento como esse. Por estranho que possa parecer, deve-se lembrar que a guerra é feita por homens, e não por armas, o que significa que, junto dos soldados estão a sua cultura, os seus gostos, a sua subjetividade, qualidades e defeitos, as vontades, sonhos e expectativas entre outros elementos que, dadas as circunstâncias, são inteiramente reformulados, e não meramente destruídos ou silenciados. Em virtude de certa imagem que os militares passam em geral, pensa-se que a guerra é como nos vídeo-games: lutar – vencer – morrer – perder, mas as coisas não funcionam dessa forma – a despeito disso tudo, dos objetivos da guerra e da destruição que ela traz, a vida continua. Enfim, por mais bizarro que isso possa soar, ela faz parte da vida, ela também é vida – a guerra produz cultura, valores, comportamentos, ou seja, ela forma homens – consistindo numa prática humana como muitas outras.

108

Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002. E de fato, em todos os eventos, homenagens e até no Encontro Nacional das Associações de que participei, Soler nunca esteve presente em nenhum deles. 109 Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.43.

89

É na retaguarda onde isso pode ser mais bem visto, pois é onde nem todas as atenções estão voltadas para a guerra propriamente dita, o que não quer dizer que tudo o que lá ocorra não tenha relação com a guerra como um todo: as batalhas funcionam como catalisadoras de tudo o que ocorre ao seu redor. A simples existência dela, e a expectativa em dela participar de alguma forma, leva soldados, populações inteiras, os que trabalham na manutenção do front, o pessoal da reserva entre outros a se comportarem de uma maneira que não a mesma de situações de paz. Em primeiro lugar, na maioria das vezes, não se luta em casa, não se veste a roupa usual ou se usam as mesmas coisas, novidades surgem, a possibilidade da morte ronda a todo o momento – o que leva ao afrouxamento da moral –, bem como a expectativa da volta para o lar, vive-se a saudade, e as relações com os amigos são muito mais profundas, a presença das mulheres é rara e, por fim, faz-se parte de uma instituição extremamente complexa, que são os exércitos. É Keegan quem faz interessante descrição do cotidiano de uma retaguarda do Exército Inglês durante a Primeira Guerra, não muito diferente da Segunda, exceto por sua maior mobilidade: “Por detr ás das linhas – os batalhões abandonavam as tr incheir as r egular e fr eqüentemente, par a ‘descanso’ – as aldeias ofer eciam casas, palha, cer veja, pommes frites e campos par a o futebol. Os camponeses tr atar am de explor ar o filão e o exér cito e as igr ejas constr uír am cantinas impr ovisadas, onde a cer veja er a mais bar ata e mais for te (...) Outr os pequenos locais atr aentes tinham, entr etanto, começado a fazer nome: clubes onde se fazia música (...) onde todos os visitantes mistur avam-se, independente da posição hier ár quica (...) A sua r ede de estr adas [da região onde estavam], desvios, cr uzamentos (já muito melhor ada), encontr ava-se impr essa no mapa mental do exér cito, e os nomes das localidades, tinham sido já adaptados ao linguajar dos soldados...” 110

Havia ainda os espetáculos e peças de teatro, os cinemas, o mercado negro e o tráfico de bebidas bem como os bordéis de todos os preços e para todos os gostos. Deve-se lembrar

110

KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.197.

90

que numa guerra como essa milhões de pessoas estão em trânsito, vários idiomas e costumes em contato. Verdadeiros ‘idiomas de guerra’ nasciam e morriam rapidamente – no caso da FEB criou-se uma mistura de português, italiano e inglês, e, casualmente, até o alemão –, formando mesmo uma espécie de ‘cultura da guerra’, inspirada em elementos próprios e bastantes articulada àquelas circunstâncias. Criavam-se termos próprios para as armas, os inimigos, os civis, os perigos, as coisas do lar e etc., termos esses que, não raro, variavam de pelotão para pelotão. Nesse contexto, os jornais produzidos entre as tropas circulavam, anunciando causos, piadas com uma ironia peculiar, fatos do grupo em questão, gozações e pequenos informes, reforçando e (re)produzindo a identidade desses soldados. Esses jornais de campanha são extremamente importantes para o entendimento da formação e reprodução das identidades dos soldados. Caracterizam-se por uma narrativa humorística – muitas vezes um humor negro e até tétrico, que constrange quem não está acostumado à banalização da violência comum nas guerras – que está ligada diretamente às práticas voltadas para a manutenção da saúde psíquica dos combatentes, consistindo num interessante suporte de trânsito entre a cultura oral e escrita. Isso é fundamental numa guerra, já que dessa forma os soldados não disporiam apenas de fontes externas forjando as suas experiências, mas produziam também os seus próprios pontos de vista. Por outro lado, deve-se ter em mente que esse processo nunca era completamente independente, estando sempre em conflito com os regulamentos militares e com representações oriundas de outros grupos: as cartas de casa, os jornais oficiais e a censura do comando. É comum, por exemplo, ver textos patrioteiros e/ou valorizando virtudes guerreiras em meio a piadas, charges e reclamações – idéias que vinham, muito provavelmente, diretamente do gabinete de algum oficial S/2 (informação/inteligência) preocupado com o moral e a disciplina entre

91

as tropas. Isso atesta que a formação da identidade dos febianos estava sempre sendo influenciada e em constante interação com o discurso oficial sobre a guerra111. Em suma, vê-se que a linguagem, seja ela oral ou escrita, desempenharia – e ainda desempenha entre eles – papel fundamental na configuração de suas identidades, como se dá com qualquer outro grupo social. Durante a guerra, criariam novos valores, um vocabulário – e até um ‘quase idioma’ – próprio, representações e até uma ética específica que, conjuntamente, consistiam numa linguagem do combatente – esta, então, refletindo toda uma ‘cultura da guerra’. Não só refletia, é verdade, pois essa linguagem também moldava os novatos e quem estava à volta, bem como reforçava a identidade dos veteranos – criando uma espécie de círculo de (re)produção cultural e identitária112. Exemplo interessante pode ser notado no diário recém publicado do ex-combatente S. Boanerges, já citado: nos primeiros meses pouca interação se vê com o mundo da guerra, mas conforme vão ocorrendo as primeiras batalhas, são incorporados novos termos do cotidiano da guerra, vê-se o entrosamento com os colegas, com a terminologia militar e o aparato técnico daquele evento113. Sabe-se que o treinamento da FEB foi muito escasso e deficitário, bem como que a maioria dos que embarcou eram civis ou militares da reserva com o mínimo de experiência do mundo militar – de qualquer forma, com a convivência junto dos outros exércitos na Itália, e durante as primeiras investidas no front, os expedicionários acabariam incorporando valores caros à formação militar. Não me refiro aqui às questões técnicas, estas também importantes, mas de mais fácil resolução, mas sim à formação de um espírito

Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.45. BURKE, Peter. “A arte da conversação”, p.18-41. 113 Cf.: RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha” Belo Horizonte: Ed. do autor, 2002. 111 112

92

militar que faça com que os soldados suportem uma guerra. A educação e formação militares visam um tratamento ‘dessensibilizado’ das batalhas, já que é um tema muito emotivo, de modo que um tratamento ‘humano’ comprometeria a formação dos oficiais e praças. Interessante paralelo pode ser visto na formação dos estudantes de medicina, também levados a racionalizar a dor e a morte. A padronização, racionalização, as relações pessoais hierárquicas, o formalismo, a expressão oral militar, a valorização da repetição, da rotina etc., são elementos centrais na formação de um oficial. Certamente que consiste numa formação que leva à desumanização e a despersonalização, mas que, caso contrário, significaria o afogamento dos soldados nas ondas de medo e angústia em que consiste a guerra114. Colocaria o então 3o sargento Sebastião Boanerges em seu diário no dia 20 de março de 1945: “O major amer icano, médico da enfer mar ia, disse-me que ter ei alta amanhã. Sair ei do hospital. Visitei algumas enfer mar ias: vi muitíssimos sem per nas, sem br aços e outr as mutilações hor r íveis, conseqüência da inconcebível guer r a. Todos, quase todos, são br asileir os. Houve um show com ar tistas amer icanas.” 115

Apesar de parecer cruel, essa banalização da morte e da violência possibilitava a sustentação moral e psíquica dos soldados que, não raro, também a tratava com sarcasmo, ironia e até desprezo: O. Arruda: “... quem me passou o fr ont, sujeito de Sete Lagoas, [inaudível]... mor r eu... falou assim: ‘Você abr e o olho, por que o alemão está dando ataques a toda hor a’... ‘Está cer to’... dali a pouco a gente se instalou... toda hor a vinha um mor teir o, tir o indir eto... mas foi e foi e nós nos acostumamos... a gente se acostuma com tudo, inclusive com a mor te... passa a não ligar ...” Márcio: Vir a banal... O. Arruda: Passa a não ligar , é a coisa mais simples que tem... chegou a ponto de falar em assim: ‘Fulano mor r eu’... ’Ah, mor r eu? Foi tar de’...” 116

KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.22. RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha”, p.62. 116 Entrevista com O. Arruda, Belo Horizonte, agosto/2002. 114 115

93

E aqui já se envereda pelo sentido e significado dados à guerra pelos soldados e suboficiais – que diferem em muito dos estereótipos atribuídos por outros grupos – o que geraria conflitos não apenas durante a guerra, mas, sobretudo, entre as versões da memória a serem valorizadas no pós-guerra. Era justamente essa diferença de experimentação do evento bélico que produziria as relações de camaradagem com os colegas, o reconhecimento e uma quase identificação com o soldado do outro lado da terra de ninguém ou o sentimento de ódio e desprezo pelos oficiais e pessoal da retaguarda que não sabiam o que era estar num front. Esses últimos, na FEB, seriam apelidados de “sacos B”, em alusão aos dois sacos distribuídos aos soldados para guardarem seus objetos pessoais: o saco A, onde eram guardadas as coisas mais importantes, ia para frente com os soldados, ao passo que o saco B ficava nos depósitos da retaguarda. Até hoje, entre os ex-combatentes, os termos são muito usados e, no âmbito da memória não oficial, as experiências de cada um são valorizadas muito em função da posição ocupada no front ou na retaguarda – quanto mais próximo e maior o tempo de permanência na frente, mais respeitado é um excombatente. As variações nos níveis de experimentação da guerra são os principais elementos congregadores e que, portanto, estão à testa da configuração da identidade dos variados grupos que fazem a guerra. Desse modo, surgem os conflitos de versões que gerariam tensões durante a guerra e nas memórias após a volta para casa: “O comandante tr ava a sua batalha num ambiente r azoavelmente estável – o ambiente do seu quar tel-gener al, povoado de oficiais do estado-maior que, por r azões de eficiência, devem manter uma calma r acional; e ele visualiza os eventos e os par ticipantes na batalha, de novo por r azões de eficiência, em ter mos per feitamente abstr atos (...) imensos blocos de ser es humanos, intelectualmente imagináveis, que vão par a aqui ou par a ali, que cumpr em (ou falham) o que ele or dena. Ao soldado não é concedida tal visão or denada e or ganizada. A batalha, par a ele, dá-se num ambiente físico e emocional extr emamente instável (...) r epentinamente (...) pode não ver mais do que o solo sobr e o qual se atir ou a fim de se pr oteger e ficar deitado, imóvel, com a

94

car a colada no chão, dur ante (...) minutos ou hor as; pode sentir sucessivamente abor r ecimento, exultação, pânico, r aiva, tr isteza, confusão, e mesmo essa sublime emoção a que chamamos cor agem. E a sua per cepção com os seus camar adas soldados flutuar á da mesma for ma.” 117

Interessante colocar que, mais tarde, alguns ex-combatentes que lutaram junto à infantaria – sargentos e tenentes – e que por circunstâncias várias se aproximaram do que se convencionou chamar memória oficial, contam uma narrativa de caráter mais impessoal e ligada à visão do comando – como se manobrassem divisões num campo de batalha – do que às suas experiências de pequena escala na FEB; os mesmo depoentes que, por sinal, se dedicaram mais às questões de justificação da guerra bem como da macropolítica. Isso não significa que esqueceram as suas experiências, mas demonstra qual o conceito que fazem de uma memória que tem como alvo o meio público. Voltando, a lógica do vencer X perder que é própria dos escalões de comando quase nunca se aplica aos praças e, geralmente, a única identificação externa que o soldado tem durante a batalha é com os seus companheiros mais próximos na unidade de combate – e não a nação, o regimento, ou o general. Essa dinâmica de grupo é outro dos elementos centrais da cultura da guerra – ou de uma cultura militar – e fundamentais à identidade dos soldados; e é daí que surge uma disciplina específica dos tempos de guerra – mais frouxa, mais eficiente e aceita – que tanto era prezada pelos comandos americano e inglês desde guerras anteriores – bem como pelos ex-combatentes até hoje quando comparam o Exército da FEB e o de Caxias. Em situações de perigo, os soldados não se viam como subordinados a uma instituição, mas sim ao pequeno grupo a qual estão vinculados – seja por uma questão de sobrevivência pessoal – pois a vida de cada um dependia do outro, seja por medo, ou ‘vergonha’, de cair no desprezo, ridículo ou na lista negra dos colegas. Nesse trecho do

117

KEEGAN. “A face da batalha”, p.39-40.

95

depoimento de M. Couto, fica claro de onde vem essa tão polêmica virtude da coragem de que tanto se fala: “Você tem que pedir muito a Deus... não é cor agem, ter cor agem é mais na hor a... eu acr edito mais na ver gonha... todos nós temos ver gonha... agor a, o que manda é a ver gonha... a cor agem nossa pode ir embor a, a ver gonha fica... se cr iar ver gonha, você vir a homem... você vai passando e leva um tapa no r osto, no meio de cinco ou dez pessoas conhecidas... vai sentar no chão e começar a chor ar ? A não ser que você leve mais vinte, aí não dá, não é? Mas, se você pode r eagir , simplesmente, a ver gonha aí, põe você lá par a fr ente... eu acho assim...” 118

Vê-se que a relação entre o que se convencionou chamar de “coragem” é estritamente ligada à dinâmica dos grupos – sobretudo no âmbito da cultura militar – onde ela não é, nada mais, do que a manifestação de várias formas de coerção, horizontal ou vertical, que vão sendo interiorizada por cada combatente. Ou seja, “coragem” e “vergonha” não passam de faces da mesma moeda. A relação que se criava entre os integrantes dos pelotões e grupos de combate era tão forte que não é difícil ler ou ouvir casos de soldados feridos que faziam de tudo para melhorar e voltar para o front junto dos colegas, ocorrendo até casos de fugas de hospitais e enfermarias com vistas a encontrar os amigos – e isso de fato ocorreu na Segunda Guerra, por mais ‘oficialesco’ que tais casos possam parecer. O que, obviamente, não significa a negação do que, de fato, acontecia na maioria das vezes em caso de ferimentos: uma alegria esfuziante por ver a possibilidade de voltar vivo para casa. De qualquer forma, situações como a descrita por Leonércio Soares eram comuns – sobre um soldado que pede baixa em função de início de tuberculose e, vendo os médicos ocupados, sente-se humilhado: “Avaliando a difer ença de situação entr e ele e o fer ido, exper imentou, mais uma vez, um cer to mal estar , incomodamente ali sentado, r ecor r endo aos médicos sem nenhum fer imento à bala. Estava doente, sim, mas aquela doença começava a enver gonhá-lo, diminuindo-o, como uma simulação par a a fuga.” 119

118 119

Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002. SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.132.

96

Mas, de qualquer forma, ele não deixaria de ver na doença a esperança do fim da guerra. Outro caso exemplar dessa relação de camaradagem se daria com o ex-combatente J. Lopes (cozinheiro – I/11oRI), que trabalhava na cozinha de campanha de uma Cia. J. Lopes recebeu uma promoção para cabo do Capitão da Cia., mas negou, pois, caso contrário, o colega de cozinha que era o atual cabo teria que ir para o front, o que seria algo ruim, já que o sujeito em questão não teve treinamento nem instrução alguma sobre combate120. Outro caso é do ex-combatente N. Silva, afirma ter fugido do hospital se escondendo num caminhão que distribuía pão e se apresentou na sua unidade, não queria ir para o depósito de pessoal por causa dos companheiros e da cia. – coloca que já tinha a vantagem de estar “ambientado e não queria perder os companheiros”121. Em meio ao monstruoso evento em que consiste uma guerra moderna, a valorização e o apego aos pequenos grupos aos quais se está vinculado é a única forma de sobrevivência possível e de manutenção da saúde mental. Tropas se movimentando, manobras, estradas e pontes sendo construídas, limpeza de terrenos, deslocamentos das divisões blindadas e das imensas peças de artilharia, navios chegando com víveres e munição, substituição entre batalhões e regimentos inteiros, a aviação sobrevoando as cabeças, comboios e mais comboios de caminhões, a correria dos serviços de saúde, os sons ensurdecedores das artilharias, a polícia militar tentando ordenar tudo, a dispersão da população civil, os horários de alimentação das topas etc. Em suma, vê-se que no ‘caos burocrático’ da guerra moderna, essa verdadeira indústria, manter o bom-senso era coisa das mais difíceis – tanto que, depois da guerra, em todos os exércitos, surgiriam os milhões de soldados neuróticos como resultado final.

120

Entrevista com J. Lopes, Juiz de Fora, dezembro/2004.

97

As condições a que foram submetidos os exércitos que lutaram na Península Itálica fez com que, muitas vezes, a guerra se assemelhasse mais a um front de 1914-18 do que às móveis e dinâmicas linhas da Segunda Guerra Mundial. Em decorrência do terreno acidentado, sobretudo nos Apeninos, e do rígido inverno daqueles anos de 1944 e 45, as batalhas na Itália se caracterizaram pela proximidade das linhas, pelo pouco uso de blindados e aviação e por freqüentes escaramuças em pequenas vilas rurais que, não raro, acabavam em lutas corpo-a-corpo. Em geral as missões envolviam pequenas unidades – de batalhões para baixo – o que acabava ajudando no fortalecimento dos laços de camaradagem entre os que estavam próximos, já que as batalhas nesses termos faziam com que a dependência entre os soldados aumentasse, bem como ficasse mais clara. Na verdade, muito mais numerosas do que batalhas propriamente dita, eram as patrulhas que procuravam fazer o reconhecimento da linha inimiga, bem como os chamados “golpes de mão”, visando a captura de prisioneiros para posterior interrogatório. Não é difícil encontrar ex-combatentes que fizeram dezenas e até centenas de patrulhas – muitas vezes organizadas apenas com soldados voluntários e por meio do revezamento. Tudo isso acabava reforçando a tendência dos pequenos grupos em direção ao ‘autocentramento’, afirmação proferida por um dos mais famosos correspondentes da Segunda Guerra, o norte-americano Ernie Pyle122. Essa era uma forma de manter o moral, dar algum sentido e um senso de identidade dentro do tumultuoso processo desagregador em que consiste uma guerra, bem como reforçar laços de solidariedade a fim de melhor se preparar para tudo isso.

121

Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003. Cf.: SOUZA, Túlio. “Instantâneos de um tenente em campanha ” In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.204 e 221. 122

98

Manter uma posição no front não é apenas ficar lá parado com as armas nas mãos, é necessário cavar os fox-holes, spider-holes e as trincheiras, suportar a tensão constante, manter o comando informado, prever os ângulos de tiros e posicionar as armas de todos os calibres, passar as coordenadas das alças de tiro da artilharia, se abrigar do frio – que nos Apeninos, em 1944, bateu recordes históricos – se alimentar e proteger, construir armadilhas, fazer patrulhas ofensivas de reconhecimento, entre outras missões vindas do comando. Cotidiano que, como estamos vendo, ia construindo um sentido específico da guerra entre as praças. Nesse meio, tornava-se explícita a separação entre a guerra dos praças e a guerra das altas patentes que, sobretudo no caso da FEB, onde foi muito comum uma série de problemas no alto-escalão, pois existiram muitas contra-ordens devido a conflitos de autoridade, bem como ‘cabeças batendo’ devido à falta de experiência. Exemplo paradigmático se deu com o III Batalhão do 6o RI, quando ordenado a fazer longo deslocamento a pé na Itália, para se posicionar na reserva dos I e II Batalhões que, por terem missão definida ganharam transporte. No entanto, chegando lá não ficaram na reserva, mas foram substituir tropas americanas do 334o RI, entrando em ação. Acontece que, devido à longa marcha, estavam exaustos e com bolhas no pé, então coloca Souza: “... seja quem fôr o dono daquela decisão genial, as suas orelhas devem ter ardido naquele dia, pois os comentários e pragas a êle dirigidos não podem ser postos em letra de fôrma.”123. Havia também insistente preocupação do comando em manter o moral em alta, bem como um espírito ofensivo entre as tropas, lançando mão, para tal, de condecorações e citações de

123

Ibidem. p. 207.

99

combate – hoje valorizada pela memória dos ex-combatentes, mas relegada a planos inferiores durante a guerra: “Até onde posso lembr ar , o soldado do 6o RI [o autor lutou no referido regimento, mas é algo extensível a todos os exércitos] não se pr eocupava com citações, elogios, consider ações e outr as coisas assim. Dur ante tôda a viagem mar ítima e dur ante os pr imeir os meses de campanha aquêle assunto jamais entr ou nas nossas cogitações. A r azão – assim me par ece – é que o infante estava, a pr incípio, muito inter essando em conhecer os lugar es novos a que chegava bem como os seus habitantes e, mais tar de, já em campanha, as suas pr eocupações er am as seguintes, por or dem de impor tância, sobr eviver , ter o que comer , encontr ar um lugar segur o e sêco onde dor mir , não impor tando se fôsse uma casa, uma estr ebar ia, ou um monte de palha.” 124

Quando não desprezada e convertida em alvo de críticas ao alto-escalão: “Na guerra não há covardes nem heróis. Existem uns mais outros menos instruídos. Os heróis são feitos, acidentalmente; depois os comandos se encarregam de empolgá-los, empurrando-os sempre e cada vez mais para novas missões, até acabar com eles.”125. Mais do que não se preocupar com as categorias que planavam nas cabeças do altoescalão, além das principais preocupações dos soldados no front – conforme a citação – era nos momentos de folga que muitos dos combatentes procuravam esquecer todos os problemas e tirar algum proveito da situação. É claro que esses momentos dificilmente são considerados pelos discursos oficiais – quando não silenciados –, o que explica a dificuldade em se encontrar ex-combatentes que falem desses aspectos. No entanto, ora ou outra, ouve-se passagens que, ao contrário do que se pensa, são muito freqüentes e comuns em guerras. Dessa forma, acabei sendo surpreendido por um depoente que, creio eu, se encontrava inquieto com tantas perguntas sobre a “guerra”: Már cio: E o que vocês conver savam sobr e o fr ont... o que esper avam dos alemães...? M. Couto: Eu não lembr o de conver sa não. Não me lembr o nada disso, eu me lembr o que eu e um soldado de nome Reis, a gente estava a fim é de pegar mulher ... [r isos]... que tinha guer r a nós não sabíamos, nós quer íamos é

124 125

Ibidem. p. 208. SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.240.

100

saber de mulher ...ele não bebia e eu bebia...eu quer ia tomar um vinho, mas não tinha dinheir o, tinha que me vir ar e pr ocur ar ...também, mulher sem dinheir o...dinheir o escasso, não é? E vinho... tinha que se vir ar ...mas mulher ...” 126

Depois de certo tempo no front, os praças ganhavam o direito de tirar alguns dias de folga na retaguarda – que variavam de acordo com as condições de cada unidades. Era algo muito apreciado, pois poderiam conhecer cidades e pessoas, bem como ter diversões das quais, certamente, nunca teriam a oportunidade de desfrutar se não fossem combatentes: “... teve um per íodo lá, não sei se foi fever eir o ou mar ço de 1945... eu fiquei meio estr essado... a gente fica meio... ouvindo tir o e tal e a gente fica com um tipo de neur ose que er a... e esse comandante meu, Major Manuel Campos de Assunção, falou assim: “L. J unqueir a (93 anos, Serviço de Guerra Química/11RI), vou te dar aí cinco dias par a você ir par a a r etaguar da par a você descansar um pouquinho.” (...) “... tinha muitos car r os cir culando da fr ente par a a r etaguar da... aí fiquei na beir a da estr ada... assim passou um car r o lá... (...)... nós estávamos no hotel de tr ânsito... (...)... isso ficava bem na r etaguar da... não escutava tir o nenhum... então nosso hotel de tr ânsito er a lá em Flor ença, que o italiano chama de Fir enze, não é? E lá tinha o hotel dos br asileir os, o hotel dos amer icanos, vár ios países tinham lá... nós fomos par a o hotel br asileir o... e quem dir igia lá o hotel er am oficiais br asileir os... (...)... Pr imeir a coisa que a gente via lá na sala er a coisa assim: ‘Esqueça a guer r a, viva os dias...divir tase...esqueça que você está guer r a’... então naquele hotel tem de tudo, per mitido fazer tudo: levar bebida par a dentr o do hotel, vinho, o pessoal saía e ia par a os bar es, enchiam a car a de... e iam dor mir ... tudo valia, não é?’ (...)... Acho que só não podia levar mulher lá par a dentr o...mas isso aí você ar r umava lá for a...então tinha mesa de bilhar , tinha jogo de dama, jogo de bar alho, tinha piano...o que o sujeito quisesse fazer ... desse na telha fazer ... aquele soldado mocor ongo, acostumado no cabo de enxada, chegava lá, sentava no piano e ficava bum, bum, viu? Eu vi, por exemplo, um pr etinho, não é? Que foi pegar no taco...e as bolas estava lá na mesa de bilhar , não é? fez isso assim e pá!... meteu o taco naquele pano ver de... r asgou o pano de uma ponta à outr a na mesa... me mar cou esse fato, não é? Por que, coitado, nunca tinha visto aquilo...aquilo er a bilhar , ele pegou e pá, r asgou... ele ficou todo ner voso: ‘Nossa eu vou ter que pagar isso aqui?’ [r iso]... o sar gento chegou e falou: ‘Não ô pr acinha, não se pr eocupe não, daqui à pouco a gente manda mudar isso aí. Tr ocar , viu?... divir ta-se à vontade... (...)... lembr ando daquelas músicas lá do Br asil... no hotel er a isso... par a esquecer da guer r a, estava escr ito lá: ‘Esqueça que você está na guer r a’... chegava na hor a do almoço e na hor a do jantar ... tinha do bom e do melhor ... tomava vinho... então a gente passava bem, passava cinco ou seis dias que a gente ficava lá, mas que er a bem tr atado er a, viu?...” 127

126 127

Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002. Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005.

101

Nessas ocasiões os combatentes procuravam aproveitar ao máximo, tanto que não era raro ver soldados – de todos os exércitos – sendo presos pela polícia militar devido a arruaças, bebedeiras, confusão com mulheres e em bares etc. No entanto, esse tema das folgas, hoje já foi ‘filtrado’ pela memória, pois, como já se disse, durante uma guerra, há certa flexibilização da moral, o que acaba levando as pessoas a se liberarem para as mais variadas atividades – seja entre os soldados ou civis. Era muito comum as jovens arrumarem ‘namorados de campanha’ – mesmo entre as sociedades mais conservadoras –, e a própria prostituição era mais tolerada. Muitas dessas ‘estripulias’ de guerra, mais tarde, seriam criticadas e condenadas pelos ex-combatentes, seja por concordarem com tal visão retrospectiva, seja pelo fato de que, após a volta, era impossível trazer isso para um público que não viveu a guerra em seu território. No entanto, muito raramente, é possível ouvir nas entrevistas, de modo rápido e geralmente velado, uma naturalização do sexo que, indiscutivelmente, era muito adiantada para a época: W. Soler: O car a, par a ir numa tr epada tinha que ir passar lá e pegar uma camisa de vênus...se tr epasse, então, tinha que ir lá par a fazer lavagem de per manganato...[r isos]...e eles botam seta par a todos os lados...qualquer cidade eles botavam a setinha lá, não é? G. Taitson (81 anos, I/11oRI):...quando você entr ava na fila par a pegar comida, o último homem tinha que levar uma camisinha de vênus...é ou não é? Aquilo fazia par te da ... [r isos]”

Estas falas saíram de forma descontextualizada numa entrevista com dois ex-combatentes que, sem que fosse perguntado algo em específico, conversaram rapidamente sobre isso entre si. Ainda nesse momento falariam de outras ‘situações impossíveis’ para a memória oficial, e raras nos depoimentos individuais: G. Taitson: “Tocha! Er a o seguinte: mesmo no fr ont, se você tir ava tr ês dias, quatr o dias ou cinco dias de folga... ele tinha... mas se ele tivesse seis hor as, dez hor as de folga, eles faziam tocha... ar r umavam uma car ona qualquer , par a um lugar qualquer e se mandavam... cada um se vir ava... um fiscalizava o outr o, não ir ia saber não... chamavam-se as tochas. E tanto que

102

er a o seguinte: tinha mais baixa de gente fer ida em acidente do que em combate... [r isos]... tinha muito mais fer ido em acidente do que em combate... quer dizer , pr opor cionalmente... lógico... W. Soler: ...louco de ver tanta gr anada caindo... tendo uma folguinha, punha duas latas de r ação [as scatolletas] no car r o e caía for a...” 128

No entanto, vale lembrar que, posteriormente, a tônica geral era a crítica à desmoralização trazida pela guerra: “Ah! Nossa senhora... mulher era fácil. A guerra traz a decadência da moral... a fome é má conselheira... na Itália... cai muito a moral... muito (...) Elas gostavam muito dos brasileiros...”129. Discurso muito presente, também, nas memórias escritas ou obras de ex-combatentes sobre o tema – juntamente com a miséria que traz a guerra bem como da sua estupidez. Todas essas atividades, no final das contas, acabavam fortalecendo as relações entre os combatentes: as folgas, a dura manutenção do front e, sobretudo, durante as batalhas e patrulhas noturnas, estas as maiores provas à união de um grupo, estabeleciam os círculos de confiança como numa ‘família’ – termo, inclusive, muito corrente para se descrever essa condição. Apenas na Itália é que os pelotões ficariam com os contigentes completos e estabilizados, de forma que, com o tempo, o formalismo da relação entre comandantes e comandados e a rejeição iam se dissolvendo, sendo substituída pelo humor, pela intimidade, pelo voluntarismo e pela flexibilização da hierarquia – até porque os mais graduados preferiam tirar suas divisas das fardas em virtude dos snipers130. Devido ao frio era comum que dormissem juntos, pois assim poderiam somar os cobertores, temas como saudade de casa e as cartas acabam sendo objetos de debates – coletivizava-se a intimidade. Nesse contexto, voltando à noção de identidade de resistência, tal como os empregados

128

Entrevista com W. Soler e G. Taitson, Belo Horizonte, fevereiro/2002. Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004. 130 Snipers eram atiradores de elite sempre presentes no front. Visavam especialmente os suboficiais ou oficiais, a fim de desestruturar o comando e, por extensão, todo um grupo de combate do qual este era dependente. 129

103

sempre se queixam dos patrões – quase como um ritual –, o mesmo faziam os praças: “... também critiquei e ‘meti o pau’ (desculpem o calão) nos responsáveis mais altamente colocados na hierarquia da FEB [faz críticas relativas ao frio, ao terreno e aos suprimentos] (...) Não há dúvida, praticávamos a democracia.”. Ainda segundo Souza, isso era visto até como um fator de avaliação do estado de cada soldado, pois coloca que criticar os oficiais não era sinônimo de indisciplina, mas funcionava como uma válvula de escape “... par a um amálgama de emoções – tédio, mêdo, saudades do lar e da família, incer teza total sobr e a vida dur ante a hor a ou o minuto seguintes, falta de car tas da família... [o serviço de correspondência – sagrado no Exército Americano – contou com muitos percalços na FEB] (...) De qualquer maneir a, o soldado não pode deixar de fazer cr íticas aos seus super ior es. Se não fizesse, isso ser ia um sinal infalível de que o infante está muito infeliz ou doente.” 131

Muitas das críticas recaíam sobre missões ou ordens ‘sem sentido’, dado que, no front, não tinham uma visão geral da guerra. Isso não significa, é claro, que o comando nunca errava – sobretudo nos Exércitos Aliados isso era muito comum dado que – diferentemente da Wehrmacht, que tinha uma doutrina mais flexível – o comando fazia muitas interferências de ordem tática, ao invés de se preocupar unicamente com os objetivos gerais e a logística, o que daria mais liberdade aos grupos de combate e aos comandos próximos do front. De qualquer forma, isso tem ligação com a percepção da guerra de um soldado – ainda hoje, entre os ex-combatentes que seguem uma linha de memória distante da visão oficial e grandiosa, se prendendo às experiências pessoais, é muito difícil para leigos compreenderem a imagem de uma batalha. Citando a história que um ex-combatente fez da primeira batalha do Somme, Keegan afirmou que “... as informações obtidas por

SOUZA, Túlio. “Instantâneos de um tenente em campanha ” In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento...”, p.220. 131

104

Middlebrook provinham imediatamente, apenas dos oficiais subalternos e dos praças, cuja visão era bastante restrita e que, coletivamente, pintam um caos quase indecifrável.”132. Enfim, viu-se que, em função das duras condições as quais estavam submetidos, os convocados foram se estabelecendo como um grupo unido, transformando-se em combatentes e, depois, em febianos. Nessa altura, enfrentavam as maiores reviravoltas de suas vidas – era a ‘experiência fundadora’ –, eventos esses que marcariam irrevogavelmente suas identidades e permaneceria eternamente em suas memórias. No entanto, se tudo que foi dito até aqui é aplicável à experiência da guerra em geral, dediquemo-nos, agora, ao que consistiu em elementos específicos do caso brasileiro. v A convivência entre os convocados para o Corpo Expedicionário solidificou os primeiros elementos que faziam deles um grupo de ‘iguais’, aspecto indispensável ao estabelecimento de uma identidade – qualquer que ela seja. Como já se viu, até aquele momento pouca coisa os unia, a não ser o que, na maioria das vezes, une soldados de um exército qualquer que vai a uma guerra: uma certa resistência – mais ou menos intensa – à convocação e aos treinamentos e, em segundo lugar, o fato de, em questão de meses, serem lançados num mundo completamente estranho às suas realidades e com poucas justificativas dignas de consideração. Além do fato de, no caso dos exércitos modernos, a maioria ser proveniente das classes médias e pobres da sociedade: os desempregados, ‘vagabundos’ e ‘malandros’, por exemplo, são os alvos preferenciais dos alistadores. A partir desse quadro, é interessante notar como os combatentes – e os ex-combatentes hoje – iam aos poucos definindo o perfil do ‘febiano’, criando uma identidade, suas origens,

132

KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.243.

105

gostos, valores, sentimentos e, é claro, tudo isso em constante interação com outros sujeitos. Dessa forma, seriam os periódicos de campanha elementos indispensáveis para o historiador que pretende analisar tal processo – como já foi colocado anteriormente. Um periódico de campanha, pelo menos os não oficiais, contava com uma infraestrutura e formato bastante tosco, era redigido em máquina de escrever, quando não à mão, e algumas poucas cópias eram mimeografadas – de modo que os soldados o passassem de mão em mão, para que o maior número possível pudesse lê-lo. Eram impresso em formato A4 e contavam desde uma até quatro ou mais páginas. Encabeçavam a produção, geralmente, tenentes, podendo ou não haver apoio de oficiais americanos – a colaboração, com textos, informes etc., era bastante diversa, vindo sobretudo das bases. Os redatores do jornal “ O Chicote” , cujo primeiro número circulou em 18 de fevereiro de 1945, tinham uma intenção clara em produzir tal periódico. Estreitamente ligado à realidade e aos dilemas dos soldados em guerra, ao mesmo tempo em que reproduzia muito da cultura e dos valores dos praças, procurava, igualmente, estabelecer um quadro mais amplos de pertencimento. Ou seja, se o jornal procurava fornecer entretenimento às tropas, discutindo temas como a saudade da noiva que ficou em casa, contanto piadas e situações sobre integrantes dos pelotões e batalhões etc, aproveitava o ensejo para discutir ali, nas mesmas páginas, fatores que, claramente, se ligavam às preocupações com o moral da tropa, a justificação da guerra e a manutenção de um espírito combativo. Devido ao caráter amador desses periódicos, é impossível saber a autoria de cada um dos textos ou seções, mas, pelos menos aos olhos atuais, é possível perceber uma montagem de elementos oriundos do mundo dos praças e outros que, certamente, contam com o peso da mão da censura que, como se sabe, foi muito presente na FEB – seja no que toca aos periódicos de campanha ou no caso das cartas enviadas e recebidas de casa.

106

Percebe-se uma tensão entre esse dois discursos, que – e isso varia de jornal para jornal – contam com intensidades diferentes em cada número. Vale lembrar que havia pelo menos três tipos de periódicos na Força Expedicionária Brasileira: os “oficiais” – ligados a órgãos do comando e filiados ao DIP –, os “oficiosos” – ligados a órgãos que não do comando, dirigidos por suboficiais, mas com o consentimento das altas hierarquias – o caso de “ O

Chicote” e, por fim, os “livres” – os mais artesanais, feitos, muitas vezes, à mão ou mimeografados, tendo origem entre as tropas com a preocupação fundamental de criticar e divertir os soldados – por sinal, os mais difíceis de serem encontrados hoje, não por acaso, é claro133. Os “oficiosos” eram maioria, pelo menos em número de títulos, mas não em tiragem e circulação. Entretanto, contavam com mais consideração entre os soldados do que jornais como o “ Cruzeiro do Sul” ou “ Globo Expedicionário” , que tratavam da realidade nacional em termos enfadonhos ainda para os dias atuais. São, portanto, um dos campos mais ricos para se perceber essa tensão sempre presente no estabelecimento das identidades. Costuma-se dizer que a censura é burra, e muitas vezes isso é verdade, como veremos, mas freqüentemente realizavam jogadas inteligentes para ligar o mundo dos praças à realidade pretendida pelos comandos. O jornal “ O Chicote” criaria um personagem, “Calixto”, uma espécie de ‘tipo médio’ do febiano que, sem dúvida, condizia com a realidade de muitos deles – sabiamente, a despeito do autoritarismo e dos desmandos correntes quando da convocação, que seguia a lógica do castigo e da punição, o autor de “Calixto” se apropriava dos dilemas dos combatentes brasileiros para depois dar um passo à frente. Então diz o texto “Calixto”:

133

Cf.: NEVES. “A Força Expedicionária Brasileira; uma perspectiva histórica”, p.50-52.

107 “Um dia bater am à por ta da sua casinha humilde e lhe puser am nas mãos um envelope fechado. – Que ser á isto? – ficou ele pensando antes de abr ir – Quem poder ia ter enviado aquilo? (...) Havia, ali dentr o, um papel escr ito; que er am letr as não havia dúvida: r estava, por ém, saber o que diziam... Mais tar de, o filho do patr ão, lendo o ‘biiete’, infor mou-o de que havia sido sor teado par a o ser viço do Exér cito... (...) A notícia caiu-lhe em casa como um r aio. Ficar am todos ater r ados. (...) For am dias de ânsias aqueles que pr eceder am a sua par tida par a a Capital; dias angustiosos, que êle passava der r eado, com uma vontade doida de fugir , de fugir par a qualquer lugar desconhecido, onde o Exér cito jamais pudesse encontr á-lo. (...) [já no Exército]... pouco a pouco, as dificuldades começar am a diminuir , e, um dia, descobr iu, alegr emente, que já er a capaz de distinguir a per na dir eita da esquer da (...) Depois disso uma infinidade de coisas de outr as coisas ele apr endeu...E hoje... ...Hoje êsse nêgr o Calixto é um gr ande soldado, um soldado de valor e de muita fibr a. Um soldado que ainda não sabe ler muito bem, mas que, apesar disso, vem escr evendo, a bala e baioneta, admir ável página de her oísmo, abnegação e, cor agem. Gato Pr eto em campo de neve, esse negr inho, que tão ativamente vem, cooper ando par a a VITÓRIA que há de tr azer a confr ater nização do mundo de amanhã, tem em si o valor de um símbolo!... Calixto: o Br asil acr edita no seu esfor ço e na sua cor agem! Mostr e aos ger manos que o pr oblema das r aças é um pr oblema apodr ecido... L.F.M.” 134

Como nos famosos sambas da época do Estado Novo que falam do malandro ‘regenerado’, que desceu o morro e arrumou trabalho, esse trecho coloca as coisas nos mesmos termos – se inicialmente a rejeição à convocação era total, com o tempo Calixto ia percebendo que só ganhou entrando no Exército, além de ter o reconhecimento da nação – apesar de não compreender muito bem o que isso significava. No entanto, é muito difícil saber se, de fato, isso fazia algum sentido para o soldado que lutava no front ou estava de passeio na retaguarda. Até que ponto ele se identificava com isso? Por outro lado, é certeza que essa imagem do ‘convocado regenerado’, ou do ‘pobre coitado’ que conseguiu dar a volta por cima é muito corrente nas memórias dos ex-combatentes, como já ficou claro em citação anterior, já que, depois de ter ido à guerra, sobrava essa percepção das coisas, apenas, que possibilitava o mínimo de reconhecimento das experiências individuais em

108

face da grandiloqüência da memória público-oficial. Lembrando que, pelo menos parte da memória oficial, mais ligada às Associações e não às Forças Armadas, incorpora a questão da origem humilde dos combatentes. Em outros momentos, é possível ver certos exageros por parte dos oficiais S/2 da FEB, preocupados demais, talvez, em função das correntes críticas que o oficialato norteamericano fazia à combatividade e ofensividade dos brasileiros – sobretudo até fins de fevereiro, quando o impasse do Monte Castello, pelo menos até o dia 21 e em pequenas escaramuças até o dia 25, terminasse. Em texto veiculado, depois de algumas piadas na página anterior e com mais delas nas posteriores, pelo jornal “ O Chicote” em 25 de fevereiro de 1945, pode-se ver a que ponto chegou-se na tentativa de elevar o moral das tropas – nesse caso, foi reproduzida a extensa carta de uma “mãe brasileira” do ano de 1917 quando do rompimento das relações do Brasil com os países da Tríplice Aliança, e aqui está um trecho dela, depois de muita patriotada: “... Uma pátr ia honr ada pr ecisa de que a honr a dos seus soldados seja inatacável, e antes eu quizer a ver -te mor to do que manchar es com uma ação indigna, que tivesse de cor ar a tua far da de soldado. Ela deve r evestir a tua honr a imaculada como o vestido de noiva de tua mãe, r evestia a honr a de sua castidade. ...” 135

Certamente essa carta foi escrita por uma mãe, se é que o foi de fato, que não tinha um filho na guerra – a julgar pela linguagem, pode ter sido feita por alguma figurona esposa de ministro, secretário ou até presidente da República. No periódico da LBA – a Legião Brasileira de Assistência – dirigida por D. Darcy Vargas, o que não faltam são textos e cartas de mães postiças desse gênero. Fica-se a imaginar a reação de um soldado ao ler tal carta, de fato chega a ser ofensivo, além de reforçar a sensação de que nada além dos seus

134 135

“ O Chicote” , n.1, Stáfolli, Itália, 18/02/1945, p.4. “ O Chicote” , n.2, s. l. , Itália, 25/02/1945, p.2-3.

109

colegas mais próximos compreenderiam pelo que estava passando. Disso, conclui-se que, seja por concordância – quando os periódicos abordavam a guerra dos praças – seja por negação – quando se lia o ridículo nesses jornais – os laços de camaradagem só se reforçavam, e a identidade dos combatentes se solidificava, ao mesmo tempo em que se fechava mais, o que é verdade, geraria problemas a longo prazo. A despeito disso tudo, esse periódico em específico, “ O Chicote” , apesar de aprovado pelo comando, como ele mesmo faz questão de colocar, dava um espaço considerável, ocasionalmente até maior, à experiência e à guerra dos praças, como se pode ver em seções – que eram mais ou menos permanentes – como a “Caixa de Correspondência”, que fazia brincadeiras e cômicas com vários soldados, sargentos e cabos – nominalmente – como essa: “Sgt. Milton: Sentimos informá-lo de que êste jornal não pode ser guarida a ‘lamentos amorosos’. Isto ficaria melhor entre você e ela. Não acha?”. Ou esta, sobre uma espécie de rito de passagem para se tornar, de fato, um homem/combatente – e não estava falando do batismo de fogo: “Reflexão de um bêbado (Ver so pr edileto de um cer to Sgt. já muito ‘Chicoteado’) Quem passou pela Itália em br anca nuvem E nunca em ‘far r a’ alguma se meteu, Quem nunca sentiu o gosto do bom vinho Quem passou pela Itália e não bebeu, Foi ‘pr ojeto de homem’ e não homem, Não foi ‘tr oço’ na vida como eu!” 136

E ainda havia “achados e perdidos”, muito sarcástico, anúncios de venda de “muambas”, “Chicotadas às cegas” etc.. Novamente, contudo, a identidade dos combatentes ia se forjando, sobretudo na perspectiva da resistência, seja contra os rigores do front, nos momentos de diversão ou em contraposição ao discurso do comando. Na prática, as estratégias e mecanismos de tais atitudes apareciam na recorrência ao alcoolismo e ao fumo

110

– para um soldado no front, por exemplo, quarenta cigarros por dia era o mínimo necessário –, na prostituição, nos jogos e brincadeiras – futebol e boxe –, na religião e na adoção de uma atitude fatalista que se manifestava na linguagem tragicômica do front e, sobretudo, no apoio dos companheiros. Juntos, elaboravam variadas formas para fugir de situações perigosas ou de ordens suicidas vindas do alto comando, e, independente da nacionalidade dos exércitos, práticas como essas são tão antigas quanto as guerras. Leonércio Soares cita caso interessante sobre uma patrulha, realizada em abril de 1945, que, segundo os infantes, era muito arriscada, dada as intensas movimentações de tropas alemãs na região em função dos preparativos para o que seria mais uma ofensiva de primavera. Sabendo da periculosidade da missão, o sargento que comandava o grupo se negou a nomear os que iriam junto dele na tal patrulha, se reservando aos voluntários que não tardaram a aparecer. O cabo, preocupado com a situação, pensou na possibilidade de enganar o comando, realizando uma patrulha só para constar nos registros – pois caso contrário, uma negação seria vista como quebra de disciplina e descumprimento de uma ordem – o que traria sérios problemas para o grupo. Então diz o cabo – que não poderia fazer parte da patrulha, pois assumiria o comando do restante do grupo na ausência do sargento: “Pois bem: vocês ir ão somente até aí [se referindo a um local já bastante conhecido por eles no front e que, portanto, não oferecia maiores perigos]. Não avancem mais e tr atem de se abr igar e façam alguns dispar os... é o que basta. O alemão estar á per to e vai r esponder com seus tir os e r ajadas de metr alhador as, gr anadas de mor teir os e very-light... o diabo! A noite pega fogo e vocês não ter ão condições de pr osseguir . Quem vai saber o que se passou lá naqueles bar r ocões escur os? Na volta você inventa a sua histór ia, conta br avatas que ir á pr essionar o comando: chocou-se com uma patr ulha inimiga, tr ocar am tir os e eles for am der r otados, mas como a fr ente foi aler tada, não houve outr a solução que r etor nar . Não há como duvidar : os

136

“ O Chicote” , n.3, s.l., Itália, 25/02/1945, p.3.

111

tir os for am ouvidos, as bombas explodir am e os very-lights iluminar am a noite. E você, com a sua patr ulha, estava lá combatendo...” 137

Comum também, seja como forma de fugir da convocação, ou mesmo das batalhas e do próprio front, era a prática da automutilação – Keegan coloca que durante as fases mais críticas das batalhas do Somme e Ypres, vários soldados atiravam nas próprias mãos a fim de ficarem impossibilitados de seguir em frente138. No caso da resistência à convocação, o ex-combatente O. Lopes, que já era sargento comandante de grupo de combate antes do embarque, cita o caso de um dos seus comandados, Almeida, que, desejando fugir dos treinamentos, cortou o próprio pé: “Chegou per to de mim, com uma car a: ‘Sar gento, eu machuquei o pé e não posso fazer o tr einamento’... ‘Não pode? Deixa eu ver ...isso aí? Tenha paciência...’... ele se chamava Almeida...‘...tenha paciência Almeida, tenha juízo... quer dizer que com isso aí você não pode? E lá na guer r a, como é que vai ser Almeida? Você vai dar um cagaço lá?’ Ele falou: ‘Olha sar gento, par a mostr ar par a o senhor que eu não sou o que o senhor está pensando...’... ele limpou o sangue do pé, calçou a bota e: ‘Lá na linha de fr ente, onde o senhor tir ar o pé eu coloco o meu.’... “Olha Almeida... o que você está falando aí, está todo mundo de testemunha”. E de fato foi, todas as patr ulhas que eu fazia ele er a o pr imeir o a se apr esentar ... eu chamava também...” 139

É claro que essas práticas de resistência eram uma arma de dois gumes, pois se realizadas isoladamente, ou de modo que comprometesse, de alguma forma, a segurança e as condições do grupo a qual se estava vinculado, facilmente um soldado poderia cair em desgraça entre os seus companheiros o que, certamente, era a última coisa que desejava. Nesse contexto, um soldado seria visto como covarde, podendo até mesmo perder o respeito do grupo – caso sua ação criasse problemas com o alto comando ou deixasse o superior direto em situação difícil. Por outro lado, se as formas de resistência ao regulamento contribuíssem com os grupos, pelotões e cias., o sujeito em questão caía nas

SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.264. KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.254. 139 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002. 137 138

112

graças dos colegas, mesmo se cumprisse uma função considerada menor, como se deu com o cozinheiro J. Lopes, aquele que negou a promoção para cabo a fim de evitar que o colega fosse para o front. Uma cozinha avançada de cia. era composta por três cozinheiros, três auxiliares, um cabo e um sargento – tudo isso de acordo com o regimento do exército norteamericano, que também dava os cursos e prescrevia todas as normas de preparação e distribuição dos alimentos. Uma das mais correntes reclamações dos febianos recaía sobre o fato da comida americana ser adocicada e, de fato, os cozinheiros eram instruídos a colocar açúcar até no feijão, pois assim teriam algo bastante calórico para enfrentar o rígido inverno – no entanto, quando os fiscais das cozinhas “Viravam as costas, a gente começava a botar sal (...) Eu não sei se foi bom ou se foi ruim, mas brasileiro gosta de sal, não é? Feijão com açúcar é gostoso, mas o pessoal não adaptava”140. A despeito das tensões, até hoje presentes, entre os companheiros de front, há vários temas que, independente da condição de cada um durante e depois da guerra, unificam os sentimentos de identidade e de pertencimento quando o grupo é/era julgado por outros sujeitos que não fazem parte daquela realidade. Como já foi dito, na configuração da identidade dos febianos, não apenas eles, mas uma série de outros sujeitos fazia parte do processo Nesse ínterim, vale citar caso muito interessante em que se vêem claramente as disputas estabelecidas entre os combatentes e os grupos externos. A LBA – Legião Brasileira de Assistência – era uma instituição presidida por D. Darcy Vargas, criada durante o Estado Novo, e no período da guerra esteve completamente afinada ao esforço de guerra e à mobilização da sociedade. Estava sempre fazendo campanhas como as de atendimento às famílias dos expedicionários mais necessitados,

140

Entrevista com J. Lopes, Juiz de Fora, dezembro/2004.

113

visitas aos feridos já retornados, convocando “madrinhas de guerra” para que mantivessem contato com combatentes, ou apoiando outras iniciativas como as campanhas de recolhimento de metal. O “ Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” procurava fazer uma ponte entre as realidades nacionais relativas à mobilização para a guerra e os que combatiam na Europa . Com o tempo, foram criadas atividades de recolhimento de material junto à população, depois remetido aos soldados, bem como se instituiu uma seção onde parentes deixavam rápidas mensagens para os seus filhos e maridos no front. A LBA se dizia apolítica, mas sempre estava criticando os adversários do regime que, com o afrouxamento da censura, faziam fortes críticas ao governo. A LBA afirma que era absurda a fragmentação da unidade nacional, uma vez que um contexto como aquele exigia a união e abnegação de todos. Era comum, também, noticiar entrevistas e declarações do presidente Getúlio Vargas sobre a FEB e a situação política nacional – chegou até a veicular mensagem de Prestes aos expedicionários, falando da importância da unidade nacional naquele momento, como forma de combater o nazi-fascismo. Davam-se notícias de várias capitais e estados do país, curiosidades, piadas que valorizavam tipos nacionais como o ‘caipira’ e o ‘sertanejo’, dados sobre o potencial energético e geográfico do Brasil etc. Apesar de todo esse esforço, a relação entre a LBA e os expedicionários não foi das melhores – a partir da leitura do “ Boletim...” podem-se notar as indisposições que se estabeleceram. Vêem-se duas reações por parte dos expedicionários: ora o desinteresse por certas iniciativas da instituição, ora o repúdio a iniciativas que exigiam uma boa receptividade dos soldados. Então escreve Leonércio Soares: “Em meados de dezembr o, começar am a apar ecer os pacotes de pr esentes da LBA. De início, ignor ando-se o que neles se continham, er am r ecebidos, alegr emente. Algum tempo depois, nem aber tos er am: jogava-se for a do jeito que se r ecebia Er a comum encontr ar em-se nesses pacotes de por car ias: - pulôver es usados, catingando suor ;

114

- car teir as de cigar r os or dinár ios, aber tas, e consumida par te deles; - pedaços de chocolates mor didos; e - outr as imundices mais Esses infames e sór didos pr esentes haviam sido obtidos atr avés de campanhas deplor áveis, pelas cidades br asileir as, nas quais moças, senhor as e até cr ianças, pediam ajuda par a o soldado que combatia na Itália. E os indivíduos abor dados, muitas vezes assediados, entr egavam o que tinham em mãos, mesmo que fossem os r estos do que estavam comendo. Sobr as ou r estos que fossem, er am embr ulhados, empacotados e mandados par a os campos de batalha, como pr esentes da LBA. Só esses imundos e tor pes pacotes lá chegavam. As coisas boas, pr eciosas e úteis, que, efetivamente, for am ar r ecadadas nas campanhas, não. Nunca chegar am à Itália.” 141

No entanto, ao contrário do que diz Leonércio em suas memórias, bem como muitas das reclamações de ex-combatentes sobre as coisas enviadas por suas famílias – doces, roupas e cigarros – que não chegavam a suas mãos, os presentes, de fato, iam para a Itália, mas com um porém: a LBA abria todos esses pacotes – com coisas ‘ruins’ ou ‘boas’ – e, juntamente com o material recolhido nas tais campanhas, fazia pacotes padronizados que, no geral, eram tidos como de péssima qualidade. Além de tudo, violavam correspondência particular – o que gerava a ira dos combatentes. As reclamações destes, contudo, não se prendem ao período posterior à guerra, mas durante o próprio conflito, a ponto das críticas serem tão incisivas que, em mais de uma oportunidade, foi necessária a intervenção do editor do “ Boletim...” , Lobivar Matos, pedindo mais “fineza” aos expedicionários: “Soubemos pela leitur a de uma nota estampada no jor nal “... E A COBRA F UMOU” que os pr esente enviados pela L.B.A., por ocasião do Natal, não for am devidamente apr eciados pelos nossos br avos expedicionár ios. Lamentável. As legionár ias ficar am muito tr istes, justamente por que foi com car inho, esfor ço e amizade, que tr abalhar am dur ante seis dias par a que vocês r ecebessem uma modesta, mas sincer a lembr ança do Br asil, na maior festa cr istã da humanidade. Apesar de tudo, par a mostr ar que a intenção da L.B.A. continua ser a de colabor ar com vocês, pedimos a fineza de nos mandar dizer o que deseja da instituição e das populações da r etaguar da, uma vez que, entr e as lembr anças da L.B.A., a instituição encaminha a vocês os pr esentes que o povo lhe confia.” 142

141 142

SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.140-141. “ Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.3, 15/03/1945, p.3.

115

No número posterior143 Lobivar voltaria a atacar o jornal “ E a cobra fumou” , em decorrências de mais críticas à LBA – que por sua vez veicularia em seu “ Boletim...” cartas de expedicionários agradecendo os presentes enviados pela instituição, numa tentativa de isolar o periódico. Mas tal fato era batalha perdida, pois os periódicos de campanha se não eram ‘a expressão sincera’ dos febianos, estavam muito mais ligados à realidade pelo qual passavam, ao contrário das patriotadas do “ Boletim...” . Interessante que, no tocante aos informes políticos da LBA, extremamente parciais, nenhuma polêmica foi aberta por parte dos expedicionários, mas quando se tentou interferir na realidade destes, aí sim a guerra foi declarada. Em outros termos, o contexto político pouco importava aos expedicionários, tanto que a maior contenda com a LBA se deteve em algo imediatamente palpável para eles: os presentes de baixa qualidade, a demora no envio das cartas e encomendas e a péssima qualidade dos cigarros vindos do Brasil e distribuídos às tropas. O ex-combatente N. Silva coloca que até a população italiana tinha “pavor” dos cigarros brasileiros: Iolanda 500, Miss Tigre e Libertine, sendo muito valorizados, por outro lado, os norte-americanos Chesterfield, Luck Strike e Cammel144. Uma segunda polêmica ainda – menos fervorosa, é verdade – se deu entre a LBA e os expedicionários. A LBA incentivava “madrinhas de guerra” a ‘adotar’ soldados, de modo que as primeiras ficavam responsáveis por enviar cartas de modo a estabelecer um diálogo com os ‘bravos soldados distantes do lar’. No entanto, como se deu com o caso das críticas aos presentes, diversas vezes foi necessário chamar a atenção dos expedicionários no “ Boletim...” para que não fossem “preguiçosos” e “ Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.4, 31/03/1945, p.2. Bem como nos “ Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.8, 31/05/1945, p.2. e “ Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.9, 15/06/1945, p.2. As críticas, posteriormente, não eram mais veiculadas apenas pelo “ E a cobra fumou” , havendo cartas de combatentes, individualmente, criticando ao tais presentes – caberia às madrinhas responder as cartas tentando convencelos das boas intenções da Legião. 143

116

cumprissem com suas obrigações de afilhados: “... tanto as madrinhas como os afilhados têm obrigações recíprocas. Não é justo, pois, que vocês deixem de responder às cartas das madrinhas.”145. Algumas cartas eram impressas nos jornais e, até nessas, começaram a aparecer mensagens do tipo: “... espero que não seja preguiçoso...”146 – ou seja, parece que, de fato, tal iniciativa, vista, talvez, com desinteresse e como uma espécie de caridade grotesca, não conseguiu ter a atenção dos que lutavam na Europa. Numa outra frente, a LBA procurava fortalecer e dar ares de seriedade à situação pelo qual o país passava, de modo que acaba evidenciando algo hoje silenciado pela memória oficial e que, até hoje, muitos ex-combatentes não gostam de recordar – já que atinge pontos mal resolvidos e polêmicos. O boato de que a FEB estaria fazendo turismo na Europa, ao contrário do que muitos acham, tem origem ainda quando da FEB na Itália – e tinha ligação com a recusa da população em endossar as medidas mobilizatórias do governo147. Desse modo, havia uma preocupação por parte do Estado Novo – e por extensão da LBA – em abafar tal versão. Na coluna de Lobivar Matos no “ Boletim...” de 15 de abril, está escrito: “Cor r espondentes de guer r a de jor nais br asileir os r efer ir am-se a infor mes pr ovenientes do Br asil, segundo os quais julgamos [trecho danificado no original] que o pessoal da FEB está levando uma boa vida num esplendido passeio. Deve haver engano. Engano ou incompr eensão dos infor mantes. É clar o que numa coletividade há elementos que sentem e há elementos que nada sentem. E em matér ia de solidar iedade humana, muito menos... Isso, por ém, não quer dizer que o nosso povo não sabe avaliar em seus justos ter mos os sacr ifícios daqueles que saír am daqui par a combater , conscientemente, os soldados de Hitler .” 148

144

Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003. “ Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.5, 15/04/1945, p.2. 146 Idem. 147 Cf.: CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”. 148 “ Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.5, 15/04/1945, p.2. 145

117

Em suma, vê-se que o projeto estadonovista estava indo por água abaixo, tendo o seu discurso esvaziado e achincalhado por todos os lados. Dessa forma, sendo a FEB uma extensão desse projeto, os expedicionários, que pessoalmente estavam desinteressados em tais questões políticas, teriam de enfrentar a rejeição e o descaso por parte dos opositores de Vargas, que fantasiavam em suas mentes uma possível tentativa de golpe por parte da Força Expedicionária Brasileira – tudo isso acabaria afetando suas trajetórias de vida permanentemente. Por fim, foi nesse contexto conturbado, da ‘experiência fundadora’ que a identidade dos combatentes ia se formando. v A despeito da pluralidade de versões existentes, percebe-se que, ocasionalmente, alguns elementos ganham significado universal, de modo que acabam ajudando na congregação do grupo e na definição de uma memória da FEB. Tal fato se dá, mais uma vez, quando da configuração de uma nova cultura militar entre os expedicionários – leia-se praças e suboficiais –, por oposição a uma variante que, sobretudo em decorrência das influências da doutrina norte-americana e da vivência da guerra, começou a ser vista como antiquada, autoritária e ultrapassada. É nesse âmbito que nasceria, ainda na Itália, a separação entre o tradicional ‘Exército de Caxias’ e o moderno ‘Exército da FEB’. No livro “ Depoimentos de oficiais da reserva sobre a FEB” , cuja primeira edição data de 1949, um dos autores coloca que na época da guerra os expedicionários já estabeleciam a diferença entre o “novo exército” e o que ficara no país: as comparações se faziam, sobretudo, no âmbito dos “costumes”, dos “métodos” e dos “princípios”. A imagem de Caxias, então patrono do Exército Brasileiro, era vista com desdenho entre os expedicionários, segundo Celso Castro

118 “A r azão estar ia na exaltação extr ema, quase mística, de que ele for a vítima, elevando-o à condição de modelo inatingível e inimitável. Com isso, o símbolo per der a a sua humanidade e, com ela, qualquer possibilidade de identificação emocional com os soldados, ser es falíveis e cheios de fr aquezas demasiado humanas. O r esultado acabou sendo o oposto ao que se desejava obter com a exaltação do patr ono: ‘caxias’ passou a designar um indivíduo exager adamente r igor oso em disciplina – acepção que difundiu-se também entr e os civis.” 149

No entanto, estejam ou não corretos os autores do “ Depoimentos...” , o fato é que a sensação de rompimento com a rigidez disciplinar, bem como as mudanças nos relacionamentos entre os praças e seus superiores imediatos, tomou posição central nas recordações de qualquer ex-combatente. Durante as batalhas os soldados foram tomando consciência da camaradagem e da condição de dependência que suboficiais e soldados possuíam uns dos outros – de modo que se viam, agora, como amigos, valorizando a personalidade do próximo e dando novos significados a termos como responsabilidade, obrigação e voluntarismo, em lugar dos sentimentos até então monopolizadores naquele momento: autoritarismo gratuito e intolerância. Tais características eram provenientes do tradicional Exército Imperial que, segundo F. McCann, não era composto por “soldados-cidadãos” dispostos nas diversas patentes, mas sim por duas “castas”: o oficialato e as praças, “o conceito básico de dever era simples: o superior dá ordens e o subordinado as cumpre. Não havia diálogo nem debate e dava-se pouca atenção ao moral”150, vindo daí, talvez, o descaso em relação às várias situações que vimos quando da época da formação do Corpo Expedicionário. Em lugar de certa mentalidade de corte então reinante nas Forças Armadas, os expedicionários experimentariam a disciplina pragmática e ‘democrática’ da guerra real, sem abusos de hierarquia e voltada única e exclusivamente para o ‘fazer’ da guerra, e não como um

149 150

CASTRO, Celso. “A invenção do Exército”, p.34. McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945”, p.321.

119

modelo de organização social. Tais valores, que correspondem à doutrina do chamado ‘exército democrático’, chamariam a atenção dos febianos, a ponto de convencer muitos de que deveriam ser aplicados ao país como um todo – como uma espécie de projeto nacional, mas isso ainda será discutido no capítulo seguinte. Na verdade, já no Brasil era possível notar diferenças gritantes nas relações dos soldados com os oficiais e suboficiais, como se pode notar nas conversas com os ex-combatentes. Isso se dava em decorrência da entrada em massa de oficiais do CPOR nas fileiras da FEB que, já que não tinham forte inserção no mundo militar da época, eram sempre mais flexíveis e liberais se comparados aos seus colegas da ativa. É a partir dessa experiência que muitos ex-combatentes dão significado à palavra ‘democracia’ – questão que deve ser analisada com muito cuidado nos depoimentos. As interpretações mais clássicas acerca do fim do Estado Novo, bem como certa memória oficial da época – inclusive nos meios militares – atribuem à FEB o fato do restabelecimento da democracia no país, deixando de lado, muitas vezes, vários elementos polêmicos sobre esse período. Na maioria das vezes, quando um ex-combatente se refere à democracia trazida pela FEB, ele está se referindo à ‘democratização’ das Forças Armadas, definitivamente levada à frente com o triunfo da influência da doutrina norte-americana, coroada pela criação da ESG – Escola Superior de Guerra – em 1948. Na verdade, trata-se de níveis diferentes, mas que não exclui a existência de uma ‘ponte’ entre eles – sobretudo num contexto pós-guerra onde tudo passou a se encaixar no termo ‘democracia’: do anticomunismo das direitas até as concepções totalitárias do modelo soviético e da maioria dos partidos comunistas mundo afora. De fato, vale salientar, o sentido do termo ‘democracia’, e de vários dos seus dependentes – como liberdade e igualdade, por exemplo – são avaliados de formas variadas nos depoimentos: entre ex-combatentes de uma

120

linhagem mais ‘militaresca’ tende-se a estabelecer a tal ‘ponte’, mas muitos que se prendem à versão civil da memória da FEB, tendem a permanecer no significado mais palpável do termo, ou seja, democracia nesse caso seria a flexibilização disciplinar do ‘Exército da FEB’. Por fim, de qualquer maneira, percebe-se que em muitos casos os níveis tendem a se confundir e se inter-relacionarem: “... Aqui existia muita disciplina (...) o soldado falava com o soldado mais antigo e tinha que pedir licença, o soldado que falava com o cabo tinha que fazer continência, o cabo par a falar com o sar gento tinha que fazer continência e assim por diante... aquela disciplina r ígida de antigamente, não é? Agor a, já lá na Itália, er a um bloco coeso, amizade, sem mar ca. Todo mundo é amigo, não tem esse negócio de tomar continência daqui, tomar continência de lá... todo mundo é amigo, todo mundo tr abalha em pr ol da comunidade... existia a disciplina, a disciplina sér ia e tudo, mas com inteir a liber dade... na Itália todo mundo er a amigo, desde os oficiais até o simples soldado... par a você ver a mudança... por que lá havia a necessidade da coesão, não é? Então, aquela disciplina r ígida que existia aqui nas For ças Ar madas, lá não inteir ou... e uma vantagem, a For ça Expedicionár ia Br asileir a tr ouxe par a o Br asil o sentimento de liber dade que plantou nas For ças Ar madas a democr acia plena... plena liber dade... tem a disciplina, mas com plena liber dade... mudou completamente o sistema...” 151

Essa mescla entre os níveis, na memória de alguns veteranos, caracteriza-se por uma certa romantização do discurso e, freqüentemente, por um otimismo que beira a ingenuidade. A doutrina norte-americana penetraria em praticamente todos os poros da FEB – sendo recebida de formas diferentes, é claro – uma vez que a FEB foi incluída num corpo de exércitos americanos. Dessa forma, todos os detalhes burocráticos e práticos foram reavaliados em novos termos: desde a alimentação, passando pela organização das unidades, a distribuição de órgãos especiais, a doutrina de guerra, a organização do serviço de saúde etc., bem como todo comportamento na retaguarda seria fortemente influenciado pelos norte-americanos – por exemplo, o simples fato dos oficiais norte-americanos respeitarem a formação de filas únicas é até hoje lembrado pelos ex-combatentes. Tudo isso impressionaria muito os expedicionários, que se vêem até então, recordando o tempo da

121

guerra, igualmente extasiados com a monumentalidade do esforço de guerra norteamericano. Em praticamente todos os depoimentos, mesmo entre os que criticam de alguma forma os EUA, existe um respeito e admiração pela potência norte-americana, seja na forma como tratava os seus soldados, ou na disponibilidade excessiva de tudo o que uma guerra como aquela podia exigir. Chamava a atenção dos febianos as montanhas de materiais, alimentos, combustíveis, blindados e automóveis de vários tipos e para diversos fins, munições, peças de artilharia – tudo novo – estacionados nas margens das rodovias prontos a serem usados. Ressaltam, ainda, a logística impecável com que tudo isso era administrado – não deixando de evidenciar o princípio básico que guiava tudo isso entre os americanos, segundo frase que se tornou corrente na memória da FEB, tanto no suporte escrito: “Um homem só se consegue em vinte anos. Uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens.”152; quanto no oral: “Então nós víamos aquilo, nós mesmos notamos a difer ença... aqui no Br asil, quando você ia fazer os exer cícios de tir o, você tinha que r ecolher os estojos e devolver ... lá, nós fomos fazer isso e o amer icano [dizia]: ‘No! No! No! J oga for a! J oga for a!’... o amer icano chegou a dizer : ‘Gasta-se o mater ial e poupe o homem. O homem leva dezessete anos par a ser pr epar ado, e o mater ial se faz em questão de segundos.’” 153

Com isso os expedicionários contrapunham o ‘fundo humanitário’ de um ‘exército democrático’ aos desmandos, à miséria e ao descaso do ‘Exército de Caxias’ para com seus combatentes. Por outro lado, não deixa de ser verdade que, ainda hoje, junto da admiração que expressam pelos EUA – com exceções, é claro – vem uma sensação de pequenez e de

151

Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003. ANDRADE, Góes de. “Espírito da FEB e espírito de ‘Caxias’. In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.321. 153 Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003. 152

122

dependência, e até certo complexo de inferioridade. Quanto a isso, muitos ex-combatentes fazem questão de afirmar “... que o Br asil não ficou devendo um tostão ao amer icano, apesar dele ter ofer ecido tudo isso, o Br asil pagou até o último tostão, o último feijão que ele comeu, o último per u que ele comeu, o último tir o que ele deu, a última ar ma que ele usou... pagou tudo... pagou o hospital, pagou tudo... pagou o r emédio, pagou tudo.” 154

Outros como J.J. Silva (enfermeiro – 11oRI) preferem valorizar a experiência dos febianos contrariando os norte-americanos, como forma de estabelecer algo que fosse próprio do soldado brasileiro e que, ao mesmo tempo, diminuísse um pouco o papel dos EUA na manutenção da FEB: “... O br asileir o, vai, luta, pega de sur pr esa, ar r isca a vida... o amer icano não... eu vi o 5o exér cito [americano]... Ih! Está muito cr u par a ser soldado, entendeu? Enquanto tiver um tijolo em pé ele não entr a [criticando o costume, comumente atribuído aos americanos, de martelar excessivamente uma posição com tiros de artilharia antes da entrada da infantaria]... é muita malandr agem... mas cor r e muito dinheir o, não é? É o país do dólar ...” 155

Nesse caso, o depoente contraria o famoso ditado sobre os homens e as máquinas, desprezando tais princípios em prol de um ‘tipo’ do soldado brasileiro que valoriza a sua coragem e desprendimento – ao contrário dos americanos, que se esconderiam atrás dos seus dólares. Por fim, apesar das variações de caso para caso, é possível perceber o estabelecimento de uma nova cultura militar, fundamental ao chamado novo ‘Exército da FEB’. Se durante a formação do Corpo lutar numa guerra era coisa impensável e digna de desprezo, com o tempo, e, sobretudo após a volta, certo ‘orgulho de soldado’ vai surgindo e, junto dele, a solidificação da nova identidade de combatente e febiano. Mas outros elementos ainda contribuiriam com esse processo, reforçando a polarização entre o discurso e a memória oficiais e as experiências e recordações dos que estavam/estiveram no

154 155

Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001. Entrevista com J.J. Silva, Juiz de Fora, dezembro/2004.

123

front.Caso paradigmático desse processo pode ser notado na percepção que os diferentes sujeitos faziam dos inimigos, ou seja, do Exército Alemão. Se os serviços de informação, contra-informação e propaganda davam asas à imaginação, criando um quadro maniqueísta, hediondo e desumano dos inimigos, a experiência dos expedicionários, em geral, passava a centenas de quilômetros distantes desse turbilhão de embates entre raças e nações. Como já foi dito anteriormente, muitas vezes respeitava-se mais os inimigos do que os oficiais de alto-escalão. Alistair Thomson, analisando essa questão dos inimigos, faz análise interessante acerca das experiências de outro de seus depoentes, Bill Langham, na Primeira Guerra Mundial. Bill afirma que após seus primeiros contatos com prisioneiros alemães, teve seu ponto de vista sobre a guerra completamente alterado – percebeu que tal como os Anzac, eles não queriam lutar e se sentiam péssimos naquelas trincheiras. De fato, houve uma identificação entre ele e seu ‘inimigo’, que passava por cima das nacionalidades de ambos para recair sobre a tragédia humana que estava acontecendo e as injustiças pelos quais passavam: “Um encontr o com alguns pr isioneir os alemães, que ele descr eveu com base em suas exper iências na Fr ente Ocidental, ‘meio que alter ou minha atitude como um todo’. E fê-lo per ceber que não dever íamos lutar contr a colegas que não quer iam lutar ’. Na época, e em suas lembr anças, ele culpou os manda-chuvas, sentados em suas confor táveis cadeir as de escr itór io em seu país de or igem, por enviar homens comuns par a lutar a guer r a deles.” 156

Os febianos também experimentariam mais essa ruptura de valores, de forma que ainda hoje, longe das comemorações oficiais e das formalidades, os ex-combatentes encaram honrosamente os alemães contra os quais lutaram. À pergunta: “Existia ódio THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.84. No original: “A meeting with some Germans prisioners, which he described in an account of his experiences on Western Fornt, ‘sort of altered my attitude altogether’. And made him realise that ‘we shouldn’t be fighting fellows that didnt´t want to fight’. At the time and in his 156

124

contra o inimigo?”, invariavelmente a resposta, se não era uma negativa peremptória, ia aos poucos tentando mostrar que a experiência da guerra é muito diferente do que sugere o senso-comum. S. Ribeiro, tal como Langham, insiste nos desmandos do alto-escalão, colocando que não existia raiva pelos inimigos, primeiro porque eram soldados, e depois porque foram “mandados” para a guerra, como eles157. No entanto, é W. Soler quem melhor define como se vêem soldados que estão nos lados opostos de um front de batalha: “Márcio: Até em r elação ao ódio contr a o inimigo, não existia? W. Soler: Não... eu acho o seguinte: o car a é inimigo enquanto atir a, não é Taitson? É igual ao boxeador que luta, não é? O que dá o punch , o que dá o nocaute... você não vê que ele vai e abr aça depois? É o instinto humano... par ece que enquanto ele está ar mado e combatendo é seu inimigo... no momento em que ele se desar mou, não vou dizer que é amigo, mas não é mais inimigo não, não é?” 158

É claro que existiam divergências entre os próprios soldados quanto à dispensa de um tratamento ‘humano’ ao inimigo – na verdade, segundo os depoimentos, os poucos momentos em que um ódio real contra o ‘alemão’ surgia era em decorrência de ferimentos ou da morte de um companheiro de unidade. Aí sim, como diz G. Taitson (80 anos, I/11oRI), o ‘sangue fervia’: “Márcio: E nas tr opas br asileir as... você notou... qual er a o sentimento em r elação ao alemão? Tinha aquela r elação de ódio, mesmo...? G. Taitson: Olha, isso depende de cada um (...) eu tive colegas lá que for am estr açalhados por gr anada alemã... nesta hor a o que se deseja é sair sozinho, ir lá e enfor car o alemão. Márcio: E no seu caso...? G. Taitson: Não, eu não... eu sou mais moder ado [r iso] (...) o meu comandante... ele foi fer ido no pr imeir o dia que pisou no fr ont... caiu uma gr anada, ele estava lá em Guanela, (...) e a gr anada caiu no oitão da casa e veio um estilhaço que ar r ancou um pedaço da per na... que eles chamam de tr amela do joelho... (...) O ímpeto dele é ir lá... ele pegou a metr alhador a e tentou subir sozinho Monte Castello par a vingar ...por que ele tinha per dido uma per na...se ar r astando... nós tivemos que amar r ar esse homem, senão ele ir ia mesmo.” 159

remembering he blamed the ‘big nobs’, sitting in their confortable office chairs back home, for sending ordinary men to fight their war for them.”. 157 Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005. 158 Entrevista com W. Soler e G. Taitson, Belo Horizonte, fevereiro/2002. 159 Entrevista com G. Taitson, Belo Horizonte, outubro/2001.

125

De qualquer modo, tais explosões de raiva surgiam, igualmente, quando colegas eram feridos ou mortos em decorrência de uma ordem suicida vinda de um oficial de gabinete. Esse caso, da relação dos soldados com os inimigos, pode ser tido como paradigmático das reviravoltas e dos embates que circundam a configuração da memória – sobretudo ao analisá-lo no contexto das fontes orais. Como já se falou, os sujeitos, ao longo do tempo, elaboram suas recordações de acordo com as circunstâncias e as necessidades de auto-reconhecimento e aceitação pública de suas identidades – de modo que, inevitavelmente, se dá uma sobreposição de camadas temporais e argumentos de diferentes períodos, sujeitos e naturezas. Desse modo, voltando à questão da justificação da guerra na sua relação com a necessidade de se criar um clima de medo e de ódio para com o inimigo, em grande parte dos depoimentos, vê-se uma contradição que, aos olhos dos excombatentes, surge imperceptível. Quando perguntamos algo sobre os sentimentos nutridos pelos que estão do outro lado do front, a resposta, em geral, se prende à ética do ‘lutadores de boxe’ – no entanto, em outros momentos, quando preocupados em justificar o porquê da entrada do Brasil na guerra, surge o desacordo. Para grande parte dos ex-combatentes foram os afundamentos dos navios brasileiros pelos ‘sórdidos’ e ‘traiçoeiros’ alemães que levaram a população às ruas e, por extensão, o país à guerra. Frente a isso, percebe-se que o depoente não está lidando com uma memória que seja ‘sua’ – no sentido estrito. Na verdade, e é por aí que eles respondem às necessidades de suas próprias existências como sujeitos, os excombatentes se apropriariam de argumentos de outro nível que não aquele da experiência palpável pelo qual passaram, já que a única justificativa, mesmo que frágil, para dar um sentido mais amplo àquilo tudo é por meio da macropolítica e da fogueira de vaidades em que consiste o ‘mundo’ das nações em guerra. Em suma, nota-se um contraponto

126

interessante nos depoimentos, em que ora sente-se um ‘ódio postiço’ pelos que feriram os brios da nação, ora solidariedade pelo fato dos alemães estarem lá a contragosto – como se deu com eles também. Por outro lado, tais imbróglios da memória não têm apenas um sentido, realizando também o caminho contrário, ou seja, é possível perceber o trânsito de elementos entre níveis diversos o tempo todo, com constantes alterações de significado, é claro. Desse modo, coloca L. Junqueira sobre a relação com os alemães: “Olha... a guer r a foi uma guer r a até muito leal, sabe? Entr e as tr opas br asileir a e alemã. Não há dúvida que se estava lá par a combater e vencer o adver sár io, não é? Mas houve gestos lá de muita solidar iedade ao soldado alemão... gestos até nobr es. Por exemplo, houve um caso lá de tr ês pr acinhas br asileir os, que ser iam os tais soldados desconhecidos, não é? Eles mor r er am assim mais pr óximos da ter r a do alemão, onde o alemão estava oper ando... se chama ter r a de ninguém... mor r er am ali... e os alemães, eles mesmos cavar am tr ês sepultur as, sepultar am, cobr ir am com ter r a, fizer am tr ês cr uzes de madeir a... (...) amar r ar am lá com qualquer coisa e botar am em cima da ter r a... pegar am as ar mas deles, o capacete e botar am em ciam da cr uz... e numa tábua escr ever am em alemão: “Hier star ben dr ei br asilianische helden”, em por tuguês: “Aqui jazem tr ês her óis br asileir os”. Eles não botar am tr ês soldados, mas sim tr ês her óis... ” 160

Tal caso se tornou famoso na FEB e, segundo muitos, serviu de prova definitiva do valor combativo e da bravura do soldado brasileiro. No entanto, é difícil que para os combatentes, alemães e brasileiros, envolvidos nos combates, essa passagem tenha adotado tal significado. Intérpretes mais críticos colocam que tal passagem teria se dado como decorrência de ordens irresponsáveis de um oficial superior – exigindo muito dos soldados sob condições precárias. Isso teria levado os alemães a darem um enterro especial a soldados que avançavam ‘sem dó’ sob fogo cerrado – pensando, certamente, que seguiam as ordens do tal oficial. Depois dos impasses do Monte Castello – que levou os brasileiros a quatro reveses que, juntamente com a cobertura da mídia da época, das críticas do comando

160

Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005.

127

americano e posteriormente com o apoio do Exército, tornou-se um mito – as coisas ficariam um pouco melhores, apesar do fato de Montese, a batalha que mais baixas impôs à FEB, ainda estava por vir. De qualquer forma, a essa altura, os expedicionários já tinham se tornado ‘combatentes de verdade’, a fase mais dura de inverno passara e a ofensiva de primavera estava sendo organizada. Com o tempo o comando também foi aprendendo um pouco mais sobre a guerra moderna, melhorando suas relações com as tropas e com o comando dos outros exércitos. A FEB ainda apreenderia, durante a fase final da ofensiva, toda uma divisão de infantaria alemã, a 148o, numa das poucas vezes em que houve nesse TO atividades envolvendo regimentos inteiros – motivo de grande orgulho entre os excombatentes. Por fim, a FEB permaneceria 239 dias contínuos em ação, sendo que apenas doze, das 44 divisões aliadas que lutaram na Europa – excetuando os soviéticos –, permaneceram mais tempo em atividade. Parece pouco, mas nesse curto espaço de tempo as vidas de milhares de expedicionários foram drasticamente alteradas, pois a permanência, por pouco menos de um ano num front da Segunda Guerra Mundial, era capaz de levar qualquer pessoa à exaustão física e psicológica, caso não fosse morto ou ferido. Agora como tropa de ocupação, os expedicionários aproveitariam o tempo para conhecer a Itália, e até países vizinhos, por meio das suas ‘tochas’ – tudo isso enquanto não viesse a ordem para o embarque. Nesse curto período de aventuras, os laços de camaradagem se transformariam em sólidas amizades, o que levaria os expedicionários a um hesitado lamento de que algo valoroso ficaria para trás: “Os soldados começar am a galgar a r ampa de embar que do naviotr anspor te. Alguns dos homens vir ar am par a tr ás, par a apr eciar uma der r adeir a vista da Itália. Repentinamente for am ar r ebatados por uma sensação que os deixou per plexos. Er a estr anho, mas par ecia, desde aquele momento, que sentiam saudade do país onde haviam combatido. A par tida

128

significava o fim da guer r a e o r eencontr o com a família, mas também o r ompimento da intensa amizade for jada no decor r er da luta.” 161

v I.4

O ‘salto identitár io’ A guerra terminara e, com o fim das batalhas, a tendência do auto-centramento típica

entre soldados no front foi se dissolvendo – no entanto, não voltariam à mesma situação de antes da guerra, de modo que aos poucos uma nova identidade surgiria, ligada a níveis antes ignorados, valorizando aspectos antes inexistentes, enfrentando dramas até então inimagináveis. Os expedicionários aguardavam o comando para o embarque na viagem de volta, que desta vez não seria feita exclusivamente por navios norte-americanos – já que muitos haviam sido requisitados para o realocamento de tropas no Pacífico, o que demandou, também, o envio de navios brasileiros para realizar tal serviço. As tropas, depois de ordens do V Exército, concentraram-se na cidade de Francolise, visando a preparação para o embarque. O 1o escalão partiu no início de julho e chegou ao Rio de Janeiro no dia 18, e até setembro todos os outros escalões, com o grosso das tropas, atracariam no Brasil. A bordo do USS General M.C. Meigs, navio de transporte de tropas norte-americano, todo o 11RI de São João Del Rei faria a sua viagem de volta. O G Meigs partiu de Nápoles no dia 4 de setembro e chegou ao Rio no dia 19 do mesmo mês – durante esses 15 dias os expedicionários foram entretidos pela tripulação e por oficiais da FEB. Juntos criaram o periódico “ A Tocha”

– como se fazia tradicionalmente com qualquer tropa que fosse

transportada –, tal jornal, hoje, serve para nos mostrar como foram abordados e sentidos alguns dos elementos característicos da identidade dos febianos, bem como visualizar os

161

MAXIMIANO, César Campiani & GONÇALVES, José. “Irmãos de armas...”, p.217.

129

contrastes que daí surgiria como conseqüência do choque com os que ficaram. Àquela altura eram combatentes veteranos, portanto portadores de um orgulho que só essa condição possibilita. A negação dos tempos da convocação, foi substituída pela vaidade de um expedicionário que passou por muitas dificuldades: perdendo amigos em batalhas ou sofrendo alguma mutilação, para não falar de todo impacto psicológico. Nesse contexto é comum surgir entre os combatentes um sentimento de superioridade moral, pois ele passou por uma complicada provação enquanto todos continuavam com as suas vidas normalmente. Com isso, os agora ex-combatentes, esperariam do ‘lar’ apenas compreensão e acolhimento, mas tendo essas expectativas rompidas, sérios impasses surgiriam. Antes, porém, de tratar desses impasses, vale pensar a forma como se estabeleceu a ponte entre uma realidade e outra – nesse sentido a viagem de volta serve como uma metáfora para a idéia do ‘salto identitário’, na medida em que o navio os levava, como no caso da ida para a Itália, não de um local para outro apenas, mas de um mundo para outro. Como as expectativas que criaram dos alemães na ida, que se mostrariam equivocadas, como já se viu, as expectativas criadas sobre a volta para o idealizado ‘lar’ e a recepção contariam com o mesmo ‘erro’ – mas, por incrível que pareça, tal conflito se mostraria muito mais traumático para os febianos do que a própria guerra, conforme se vê nas palavras de um ex-combatente: “A verdadeira guerra dos brasileiros não foi na Itália, mas aqui no Brasil...”162. O “ A Tocha” estava sempre celebrando a relação que se estabelecera entre as tropas dos dois diferentes países, pois “Lutando ombro a cibro, brasileiros e americanos, fizeram mais que derrotam (sic!) o inimigo comum; lançaram mais uma pedra no alicerce da

162

Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

130

amizade entre os vós do Brasil e os Estado Unidos.”163. Falava-se também dos amigos mortos que ficaram na Itália, chamando a atenção para que não fossem esquecidos. Esse discurso colaborava na configuração de uma nova comunidade, que era formada pelos países e ex-combatentes de todo mundo que lutaram contra o nazi-fascismo – certo é que naquele momento tudo passava um pouco desapercebido, pois a ânsia em retornar para o lar sobrepujava qualquer outra coisa. De qualquer forma, esse pequeno periódico estabelecia uma ponte entre a realidade dos ex-combatentes e o contexto pelo qual passavam, alçando as referências identitárias dos soldados para além dos seus círculos imediatos da época da guerra. Era como se naquele momento um elo final viria consolidar, ampliando para outras esferas, é certo, uma espécie de ‘consciência de grupo’ entre os ex-combatentes. Convivendo com os americanos isso se tornava ainda mais forte, pois esses já tinham uma tradição de comunidades de veteranos de guerra de larga atuação, tanto no que tange à manutenção da memória das respectivas guerras ou no âmbito da política nacional e dos direitos dos ex-combatentes. Sabe-se, por exemplo, que um dos processos que estiveram na base da criação do Estado de Bem Estar Social foi a reincorporação de veteranos de guerra, tanto na Inglaterra como na França e EUA. Havia sempre colunas que tratavam da relação entre brasileiros e americanos, bem como de datas importantes como a independência do Brasil, onde os americanos, não os chefes de estado que só se conhecia de jornais e pelo rádio, mas os com que se cruzava nos corredores do navio, faziam congratulações e votos de progresso – há ainda texto de autoria brasileira criticando a “democracia” brasileira ao compará-la com a americana164. O jornal também pregava a necessidade do aproveitamento da FEB na renovação de todo Exército

163

“ A Tocha” , USS Gen. Meigs, 04/09/1945, p.1.

131

Nacional, plataforma defendida tanto pelo governo americano quanto pelos oficiais que foram à guerra como soldados de Caxias e retornaram como soldados da FEB. Ou seja, agora sim questões ‘macro’, não para todos, é claro, começavam a fazer algum sentido, pois se pode ver pelo discurso de “ A Tocha” a maneira inteligente e leve, ao contrário dos periódicos oficiais de campanha, como se estabelecia uma ponte entre a realidade dos soldados e discussões de âmbito nacional. Por outro lado, vale salientar que o momento para isso era mais adequado, pois ser alvo de patriotadas ao mesmo tempo em que se é alvo de tiros de artilharia chegava a ser no mínimo desinteressante, quando não ofensivo. Periódicos como o “ A Tocha” , vale lembrar, geraram incômodo em autoridades brasileiras que estavam no navio ou que aguardavam a chegada das tropas no Rio de Janeiro165. Junto de todas essas discussões, os editores do jornal, sobretudo tenentes americanos que contavam com o apoio técnico de sargentos brasileiros – o que facilitava a aceitação do periódico entre as tropas – faziam concursos de boxe, de fotos femininas, de damas e de desenhos e pinturas. Os prêmios? Não poderiam ser mais típicos do mundo dos soldados, na verdade uma espécie de moeda entre eles: 1o, 2o e 3o lugares ganhavam pacotes de cigarros e sacos com utilidades. Havia também piadas e charadas, traduções de músicas italianas que tinham caído no gosto da soldadesca, causos, informações sobre o

“ A Tocha” , USS Gen. Meigs, 07/09/1945, p.1. “Depois dos primeiros números publicados, porém, o general Zenóbio da Costa ordenou que os seguintes deveriam ser submetidos à censura prévia. O “ Senta a Pua!” [periódico da FAB, também criado no navio] publicava seu segundo e derradeiro número, informando que, devido à existência de ‘sucursal do DIP’ no navio, a publicação seria interrompida.” Como forma de burlar tal atitude, foi inventada uma música, muito cantada a bordo do navio, que ridicularizava Zenóbio - este, por sua vez, chegou a ameaçar com apreensão quem cantasse a música. “As provocações ao general Zenóbio (...) de forma alguma sinalizam que estava chegando ao Brasil um exército de indisciplinados. Sugerem, isto sim, que estavam regressando homens que vivenciaram outra forma de vida militar. (...) Eram outros, estavam mudados. Suas concepções de autoridade e patriotismo mostravam diferenças em relação àquelas que professavam antes da guerra. Alguns desses homens começavam a se mostrar impacientes com as ‘caxiagens’ de alguns superiores, pois viveram na guerra outras formas de hierarquia, como as da bravura, do exemplo e do bom senso.” FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.140-141. 164 165

132

regulamento e a rotina do navio, achados e perdidos mais ou menos sérios, charges etc. Crucial à identidade e solidificação dos laços entre os expedicionários era, como já foi dito, desde a época da convocação, as tochas, tanto que levaria o “ A Tocha” a publicar, em mais de um número, o divertidíssimo “Regulamento do Tocheiro”, organizado “... por um abalizado conhecedor do assunto...”166, cujo nome não foi identificado, e ainda colocam: “É pena que só agora que ‘a sopa acabou’, aparecesse uma autoridade para regulamentar a matéria.”167. O ‘regulamento’ ensinava a conseguir informações, se esquivar da Polícia – essa eterna ‘inimiga’ dos soldados –, como conseguir carona, comida e dicas extras para as “tochas internacionais” etc. Nos últimos números de “ A Tocha” , mais elementos característicos dos excombatentes apareceriam. O periódico estava sempre enfatizando a necessidade de valorização da experiência e da memória da guerra, cultivando a democracia e o papel determinante que eles teriam nesse projeto. Tudo isso funcionava de forma a incutir no febianos a noção tão cara hoje a eles que é a auto-percepção de que eram sujeitos da história, numa época em que esse papel era visto como monopólio do Estado e de seus líderes. E nesse ínterim já começava a despontar entre eles a idéia de que uma comunidade como aquela deveria ter uma memória e uma identidade, sendo ambas produtos de cuidadosos trabalhos de seleção. Da experiência da guerra, até para que a imagem dos febianos fosse aceita como os que trariam o progresso para o país, apenas algumas coisas deveriam ser trazidas para o âmbito público, pois sabiam que a moralidade da guerra era mais frouxa, e que determinadas coisas dificilmente seriam vistas com ares de naturalidade entre os civis que

166

“ A Tocha” , USS Gen. Meigs, 09/09/1945, p.1. e 10/09/1945, p.1-2.

133

ficaram. Quanto a isso, o “ A Tocha” de 15 de setembro de 1945 veicula uma engraçada charge onde aparece, no primeiro quadro, uma cruenta cena de guerra com explosões, blindados e bombardeio aéreo com a seguinte legenda: “O que êles contarão”; num segundo quadro há dois expedicionários flertando com garotas italianas, e os dizeres abaixo afirmam “O que eles não contarão...”168. No último número de “ A Tocha” , há um histórico de seis páginas sobre a guerra da FEB do ponto de vista do que se poderia chamar de história militar clássica – num jornal que tinha apenas duas páginas por edição. No artigo dá-se a justificação da guerra por meio da revolta popular ás ofensivas alemãs em nossas águas territoriais. Estabelece as batalhas que consistiriam nos marcos da FEB: Monte Castello, Montese, Castelnuovo e Sopressasso, Camaiore entre outras – numa guerra em que batalhas de grande vulto foram exceções, mas que, caso contrário, não teriam o respeito tanto do Exército quanto da população, que nutriam uma visão heróica e romântica da guerra. A intenção do artigo era fornecer uma leitura específica da experiência da FEB, pronta a ser divulgada após a chegada ao Brasil. O autor do artigo era o então tenente Cássio Abranches Viotti, que mais tarde ficaria conhecido por suas crônicas e textos sobre a guerra da FEB, Viotti ainda publicaria um livro, que chegou, inclusive, a ganhar prêmios da Academia Mineira de Letras. No adeus, os editores do jornal congratulam os homens que cumpriram com o seu dever defendendo a democracia, esperando que os oficiais e praças tivessem orgulho e contassem para os filhos, netos, amigos e parentes os acontecimentos passados e a camaradagem que tiveram com os soldados americanos durante a guerra169. O clima era de

“ A Tocha” , USS Gen. Meigs, 09/09/1945, p.1. “ A Tocha” , USS Gen. Meigs, 15/09/1945, p.2. 169 “ A Tocha” , USS Gen. Meigs, 16/09/1945, p.7. 167 168

134

alegria, euforia, expectativas positivas e orgulho esfuziante, os expedicionários traziam dentro de si um novo mundo, pois nada poderia ser pior do que acabaram de viver, e além do mais a ‘democracia’ reinante no Exército Americano seria difundida no Brasil. Começaria aí o ‘segundo tempo da memória da FEB’, o tempo da “verdadeira guerra dos brasileiros”.

135

Capítulo II A VOLTA

136

II.1

De volta ao “Lar ” “Nós compomos nossas memórias para dar sentido às nossas vidas passada e

presente”170; tal máxima, de autoria de Alistair Thomson, sintetiza muito bem a importância e a função prática da memória social. Thomson ainda lembra que usamos as linguagens e significados de nossa cultura para forjar nossas lembranças, de forma a nos sentirmos bem com elas. Nesse contexto, surgiria um complexo terreno aberto às negociações e embates pelo sentido a ser atribuído ao passado e, por extensão, às disputas e demandas do presente. Dessa forma, os indivíduos e grupos sociais organizariam suas lembranças de modo a se sentirem seguros, bem atendidos em suas necessidades e orgulhosos de suas experiências passadas e identidades. No âmbito da teoria tudo isso parece ser muito funcional e não contar com maiores problemas, por outro lado, já se tornaram lugar comum os estudos sobre a memória coletiva e individual, de forma que se sabe quantas polêmicas, reviravoltas e pontos cegos esse tema comporta. Apesar de usarmos categorias públicas na produção e conformação de nossas memórias, não necessariamente estas são condizentes com os critérios e o sentido público mais amplo – este percebido aqui seja no âmbito dos grupos sociais ou da sociedade como um todo. Incoerências, elementos incompatíveis, lembranças não compreendidas ou reconhecidas protelam-se nas memórias dos indivíduos, procurando outros tempos e espaços, ou mesmo válvulas de escape momentâneas, para encontrarem articulações que possibilitem às pessoas permanecerem em paz frente às suas experiências passadas e às suas necessidades presentes171. Em suma, a partir dessas observações, pode-se perceber o

THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.8. No original: “We compose our memories o make sense of our past and present lives.”. 171 Ibidem. p.9. 170

137

estabelecimento de relações tensas entre os indivíduos, grupos sociais, e as sociedades a que pertencem, no que a memória consiste num dos principais capitais simbólicos a serem duramente disputados – embate sem o qual as sociedades humanas não existiriam como conhecemos, dado ser a identidade elemento central ao reconhecimento e até mesmo saúde mental dos indivíduos. Não seria diferente com os agora, depois da volta para casa, ex-combatentes da Força Expedicionária Brasileira. Como veremos nesse capítulo, abordando as memórias e os embates pela identidade e por uma série de demandas dessas pessoas que voltavam da guerra, entre outros grupos que entrariam no páreo, as reviravoltas e desencontros da memória evidenciarão toda a dinâmica e complexidade de um processo que, apenas por um descaso, pode parecer algo simples. v Como já se viu, o estado de ânimo dos expedicionários que retornavam para o Brasil era muito bom. Já sabendo da festa que os esperava e do reconhecimento certo das dificuldades pelas quais haviam passado, os expedicionários tinham provado o pior de todas as experiências, foram ao inferno e retornaram, o que os alçava a uma condição moral superior e os colocava numa posição de, agora, apenas esperar pela boa recepção dos seus conterrâneos, dispostos a promover o ‘descanso dos heróis’. No entanto, apesar de todas essas expectativas, ainda na Itália os expedicionários já poderiam vê-las frustradas, não fosse pelo fato de que estavam cegos à qualquer coisa que não tivesse a ver com a volta para casa e o reencontro com os familiares e amigos – ou com o ‘lar’ que haviam idealizado em suas mentes. Isso porque, de acordo com decreto do então ministro da guerra Eurico Gaspar Dutra, a FEB era dissolvida ainda antes de ser embarcada para o retorno ao Brasil, o que significava equipara-la a qualquer unidade do Exército Nacional de modo que, quando

138

aqui atracasse, já estivesse subordinada ao comando da 1o Região Militar, agilizando o processo de desmobilização dos praças172. A dissolução e a posterior desmobilização da FEB, a médio prazo, consistiriam em sérios problemas para os expedicionários, sobretudo para os que não continuaram nas fileiras do Exército após a volta para o Brasil, ou seja, a esmagadora maioria. Ainda hoje é unânime entre os ex-combatentes, inclusive entre os que permaneceram no Exército – solidários com o sofrimento dos seus pares civis – a condenação dessa apressada dissolução. Todos os entrevistados, uns mais outros menos, avaliam tal atitude como algo extremamente desrespeitoso, indigno e covarde para com os que acabavam de arriscar a pele pelo país. Tal fato representa muito para a memória da FEB, haja visto que ele é dotado do mesmo caráter dramático tanto nas narrativas de ex-combatentes voltados para a memória institucional das Associações, quanto para os que cultivam uma visão mais ‘rebelde’ da questão, ou seja, consiste num forte elemento congregador da memórias desses sujeitos. O. Lopes, ao ser questionado sobre essa questão, mostra como que a desmobilização, na verdade, “... foi uma desmor alização... o Gover no Br asileir o e o comando do exér cito não quer iam ter muitas complicações depois da guer r a; emitir am lá na gr áfica de Milão os diplomas de dispensa... lá mesmo pr eencher am e entr egar am aos pr aças... quando desembar camos aqui no Rio ninguém per tencia mais à FEB... por que não tinha mais a FEB. A desmobilização foi feita no navio...” 173

A despeito de análises mais profundas acerca da conjuntura política do país naquele contexto, o fato é que, tirando Vargas e o Partido Comunista, todas as forças políticas

172

Vale lembrar que dissolução e desmobilização são coisas diferentes que, na maioria das vezes, são confundidas pelos próprios veteranos em suas memórias. A primeira consiste numa das etapas da segunda, de modo que a FEB deixaria de existir já na Itália, mas os expedicionários ainda se encontravam mobilizados pelo estado, ou seja, estavam à disposição deste, bem como sob as suas responsabilidades no que toca ao atendimento de todos direitos, como alimentação, vestuário, saúde etc. 173 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002.

139

desejavam reduzir ao máximo o impacto político que a volta da FEB proporcionaria, de modo que a dissolução e desmobilização apressadas seriam uma forma satisfatória de realizar tais objetivos174. Como já deve ter ficado claro, tais embates políticos pouco sentido fazem para os ex-combatentes, mesmo sessenta anos depois do ocorrido, dado que experimentaram esse processo no nível de suas realidade individuais que, quando muito, extravasam o meio familiar e dos companheiros de guerra. Daí, talvez, viria a explicação do porquê de sempre confundirem e/ou sobreporem os eventos da dissolução e da desmobilização. Em suas narrativas, independente do termo que usam, tais fatos sempre vêm vinculados aos problemas oriundos da volta dos expedicionários para a vida civil – ou para o serviço da ativa do Exército para os que nele continuaram. Em suma, o que vale enfatizar aqui é que, deixando sutilezas burocráticas de lado, as lembranças dos sujeitos se organizam visando atribuir sentido a uma realidade que seja, para eles, o mais palpável e inteligível possíveis – de modo que, nesse contexto, pouca importância guarda o fato de usarem corretamente os termos dissolução ou desmobilização, mas sim como empregam um ou outro, e qual o peso que isso comporta. Desse modo, se entre a dissolução da FEB na Itália e o surgimento dos primeiros problemas referentes à reincorporação dos excombatentes passaram-se meses ou mesmo um ano, hoje os febianos articulam instantaneamente uma coisa a outra – aparecendo em poucos a vinculação das atitudes do governo com questões políticas, e não sociais. Isso pode ser notado na forma como D. Medrado responde a seguinte pergunta: Márcio: “Bom Medr ado, e o fim da guer r a? Que per spectiva que vocês tinham quando acabou a guer r a... depois que foi... que per spectiva que vocês Para uma análise da conjuntura política brasileira às vésperas do fim do Estado Novo frente ao impacto do fim da Segunda Guerra e da volta da Força Expedicionária Brasileira, Cf.: FERRAZ, Francisco César Alves. “A guerra que não acabou: a reintegração social dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira (19452000)”. 174

140 tinham em r elação à ditadur a br asileir a: ‘Pô a democr acia ganhou e a ditadur a agor a?’ O que vocês pensar am? O que você pensou?’ D. Medrado: Essa foi uma catástr ofe... uma coisa desastr osa par a os br asileir os... par a o pr acinha. O pr acinha sofr eu a maior decepção da sua vida no tér mino da guer r a... por que o pr acinha quando foi par a a guer r a, ele foi submetido a toda espécie de exame... o pr esidente da República foi se despedir de nós e disse, em seu discur so, que nada nos faltar ia: ‘No r egr esso nada vos faltar á, nem a vocês nem às suas famílias... o Br asil está pr epar ado par a r eceber vos’. A FEB foi desmobilizada... ainda na Itália... quando nós chegamos... quando a FEB chegou no Br asil ela estava desmobilizada. Hoje eu tenho consciência disso... que eles tiver am medo da FEB r eunida...a FEB chegou, foi uma r ecepção pr imor osa do povo, não é? Foi uma coisa r ealmente fantástica... uma beleza de r ecepção. Mas ficou nisso...sujeito r ecebeu aquele dinheir o que estava lá e foi embor a par a sua casa, não é?” 175

Quanto à recepção, de fato ela foi muito calorosa por parte da população, seja no Rio de Janeiro onde a 1o DIE desembarcou, seja nas outras capitais e cidades do interior conforme chegavam os ex-combatentes. O próprio historiador Roney Cytrynowicz, que questiona duramente a idéia, até hoje hegemônica, de que a FEB e a decisão do país entrar na guerra, bem como todo processo de mobilização do Estado Novo, contou com larga adesão da sociedade, assume que a volta da FEB consistiu numa festa que chegou a levar mais de um milhão de cariocas às ruas – voluntariamente176. As festas da volta marcaram profundamente a memória dos ex-combatentes, tanto a oral quanto escrita – conforme mostra Boris Schnaiderman em seu diário-ficção sobre a FEB: “Er a impossível desfilar em for mação. A multidão cer cava os soldados, abr açava-os, beijava-os, ar r ancava-lhes os distintivos metálicos. (...) A infantar ia não conseguiu desfilar em for mação. Os soldados er am car r egados nos br aços, em meio a vivas, buzinas de automóveis tocando os compassos mar ciais. Depois da infantar ia, entr ou na avenida uma compr ida coluna motor izada. Os jipes e caminhões er am igualmente assaltados. Ficava-se com o br aço dolor ido de tantos puxões.” 177

L. Junqueira, que também escreveu um livro de memórias sobre a participação brasileira na guerra, evidencia “...que a r ecepção nossa foi calor osa...no meu livr o eu falo dessa r ecepção...eu não me esqueço disso nunca, nunca na minha vida...eu já vou

175

Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001. Cf.: CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”, p.351e seguintes. 177 SCHNAIDERMAN, Boris. “Guerra em Surdina...”, p.210-211. 176

141

fazer noventa anos e isso eu continuo lembr ando como se fosse hoje. Quando nós desembar camos no Rio de J aneir o, foi uma r ecepção tão gr ande, tão calor osa, que é difícil até acr editar nesse boatos [se refere aqui aos boatos de que a FEB só foi à Itália fazer turismo – ponto a ser discutido a seguir]. As fábr icas que tinham lá no centr o do Rio de J aneir o, aqueles navios ficar am no por to, todos com as sir enes aber tas. Os aviões nossos que não for am na guer r a, da FAB, na nossa chegada faziam aqueles vôos r asantes em cima dos nossos navios...nós chegamos no Rio, entr amos na Baía de Guanabar a, os aviões fazendo vôos r asantes assim, não é? Par a homenagear .” 178

Tais lembranças consistem em um dos poucos momentos em que tiveram suas experiências reconhecidas por um público amplo, apesar do fato de que esse mesmo público, momentos depois, já dirigiria contra os ex-combatentes a pecha de ‘criadores de caso’, além de darem corda ao boato de que a FEB teria ido à guerra apenas a passeio. É claro que isso não passa despercebido entre os ex-combatentes, de forma que, quando preferem não abordar diretamente a questão, por julgarem por demais dolorosa, vinculam automaticamente a recepção festiva da FEB ao descaso e esquecimento reinantes meses após a chegada ao Brasil – essa era apenas mais uma das tensões com os quais teriam que lidar. Nas cidades do interior as festas de recepção também se fizeram presentes, aí os expedicionários eram bem recebidos, convidados para eventos e jantares nas casas de autoridades e conhecidos, parados nas ruas para falarem sobre a guerra e – como ficou atestado – muitos foram agraciados com monumentos comemorativos erigidos em centenas de municípios interior afora179. Por fim, tais festejos não continuariam por muito mais tempo, a ansiedade pelo desembarque e pela chegada em casa passaria rapidamente, então teriam que voltar à vida ‘normal’: trabalho, família, o dia-a-dia. No entanto, as coisas não se dariam dessa forma e, sem que esperassem, a maioria dos veteranos – militares ou civis

178

Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005. Segundo Ana Maria Mauad, até 1960 cerca de 110 monumentos em homenagem aos ex-combatentes e/ou aos mortos da Segunda Guerra Mundial foram erigidos em cidades que enviaram soldados para a FEB. Cf.: MAUAD, Ana Maria & NUNES, Daniela Ferreira. “Discurso sobre a morte consumada: monumento aos pracinhas”. In: KNAUSS, Paulo (org.). “Cidade Vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro”, p.73-92. 179

142

– veria um abismo se abrir entre a realidade deles e a situação daqueles que não foram à guerra. Transpor esse abismo era, agora, a nova missão dos ex-combatentes, missão que, se foi realizada, não se concretizou de modo completo, bem como contou com muitas baixas durante o caminho: era essa “a verdadeira guerra da FEB”. Na verdade, o ‘fosso’ entre a realidade dos que ficaram e dos que foram não era coisa nova, lembre-se o leitor de que não só era bastante presente como existiam sujeitos do ‘outro lado’ que, a todo o momento, procuravam qualificar e justificar situações muito além do que vivenciavam – como já se observou tanto nos discursos oficiais quando da convocação ou do período da campanha na Itália, tendo, sobretudo, os periódicos de campanha como palco de tais contendas. De qualquer maneira, o impacto de duas realidades tão diferentes ainda não tinha efeitos mais que marginais entre os combatentes, pois pouca coisa, entre elas as cartas de casa, além de seus círculos imediatos de convivência na guerra eram levadas a sério – de acordo com o que já foi falado sobre o auto-centramento dos grupos na guerra. De qualquer forma, alguns combatentes mais atentos já percebiam o que os esperava na volta para casa, tendo em mente a situação deixada para trás após o embarque para a Europa e a situação pelo qual passavam em contraste com os que ficaram no Brasil: “No Rio, neste momento, devem ser 18 hor as, fer iado, cinemas cheios e a Cinelândia fer vilhando de gente. Muitos daqueles que se r euniam em comícios pedindo a entr ada do Br asil na guer r a, nem sempr e se lembr am mais disso... Mas nós expedicionár ios, que abandonamos tudo par a vir aqui lutar , sofr er e quiçá mor r er , é que lhes gar antimos o dir eito de bater per nas ou ir ao Metr o, ao Plaza, ao Vitór ia ou ao São Luiz. E por incr ível que par eça eu sou um destes... otár io ou her ói, só a histór ia dir á!” 180

Durante a viagem de volta os expedicionários teriam muito tempo para refletir por tudo que haviam passado bem como o que os esperava na volta. Certo é que não tinham em

143

mente, ainda, o surgimento do abismo entre eles e o restante da sociedade que ficou, mas inconscientemente já percebiam isso, vindo à tona, vez ou outra, pela ridicularização dos discursos vindos de fora do grupo, bem como por uma linguagem irônica, muitas vezes ingênua por achar que o estranhamento entre a identidade dos que ficaram e dos que foram não iria além de alguns contratempos, como fica atestado nessa piada veiculada no jornal

“ A Tocha” : “Telegr ama: Dir igindo-se a uma estação de r ádio, um pr acinha dir igiu a seguinte mensagem: Devo r etor nar ao Br asil no Gen. Meigs. Aguar de minha chegada com chocolates e... E dias depois r ecebeu a r esposta dizendo o seguinte: ‘Meu filho!... tão gr ande te fizeste p/ voltar como Gener al?...” (Damasio)” 181

As diferenças na percepção da guerra tornar-se-iam mais aparentes já durante o desfile na Avenida Rio Branco. Os ex-combatentes, hoje, evidenciam que a idéia que a população tinha do que era a vida num front de batalha passava anos luz da realidade que haviam experimentado. M. Couto faz uma contraposição interessante em sua narrativa, ao falar que a recepção no Rio “foi uma coisa espetacular”, mas logo depois afirma que “... o tratamento foi muito bom na nossa chegada... eu não notei nada, não é? mesmo no princípio, o pessoal parece que conhecia...[mas] não sabiam o que era uma guerra, não é?”182. Essas divergências ainda são evocadas por, praticamente, todos os ex-combatentes que falaram ou escreveram algo sobre a volta da FEB para o Brasil, exemplo que se tornou paradigmático foi o do já citado diário-ficção do professor da USP Boris Schnaiderman, que participou da guerra na Itália, que ao referir-se ao desfile da chegada diz: “As mocinhas da sacada de uma das casas puxam conver sa. - Você matou muito alemão?

Trecho do diário do – atual – Major Ruy de O. Fonseca em 1o de janeiro de 1945. Apud. RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória: Uma história da memória do Ex-combatentes brasileiros”, p.200. 181 “ A Tocha” , USS Gen. Meigs, 09/09/1945, p.2. 182 Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002. 180

144 Como se matar gente fosse um espor te muito inter essante.” 183 (...) “O soldadinho magr o e de bigode r alo, que é de um lugar ejo bem distante, que não está acostumado à efusão car ioca, que passou meses tr ansido de fr io e de medo (...) fica tonto, deslocado, os olhos mar ejados. Há uma difer ença pr ofunda entr e o conceito que ele tem de si e a imagem que dele fazem os homens do povo. Afinal, o que foi que eu fiz? Estive em ter r a estr anha, quando me diziam par a atir ar , atir ei, quando me or denavam r ecuar , obedeci também, senti fr io, medo, solidão, e foi só. O homem sente-se pequeno e mesquinho, e os compatr iotas fazem dele um her ói, quase uma figur a de lenda.” 184

Leonércio Soares também aborda essa questão da incompreensão da população civil sobre a guerra, colocando que, ainda durante o desfile, era comum ouvir coisas como “‘Hei, morenão, quantos alemães você matou na guerra? Você é daqueles que prefere matar à faca?...’”185. A sensação de deslocamento era sem precedentes, e os expedicionários começavam a perceber que o abismo era muito maior do que aquele contratempo do “Telegrama” de o “ A Tocha” . Dias após do desfile, ainda antes de serem licenciados, os ex-combatentes procuravam não dar ouvidos a tudo isso, mas sim correr atrás do tempo perdido, bem como satisfazer tudo que alimentavam em suas mentes desde que estavam na Itália. Com o tempo iam se isolando, sentindo-se como corpos estranhos, apesar de serem vistos como heróis e todos quererem falar com eles e tocá-los. O mundo desmoronava completamente, e essas múltiplas rupturas e traumas dificultariam ainda mais o estabelecimento de uma identidade e um senso de continuidade e coerência de si mesmos: “A Segunda Guer r a você fica... pr imeir o você fica feliz de ter voltado vivo, e aí você fica um pouco desnor teado por que você quer apr oveitar , depois você entr a nos eixos... (...) Você vem esfuziante, alegr e, por que escapou de mor r er ...então tem um per íodo em que você desequilibr a um pouco, e depois que você volta ao natur al...” 186 (grifos meus)

Lembrando que esse “depois” variou de ex-combatente para ex-combatente, além de nem sempre comportar um final feliz, como se deu com A. Neto que, de fato, se enquadra na

183 184

SCHNAIDERMAN. “Guerra em Surdina”, p.208. Ibidem., p.210.

145

minoria dos febianos que contaram com uma reincorporação rápida, tranqüila e sem maiores percalços. Aos poucos, e em ritmos diferentes, o ‘fosso’ ia se revelando, foram percebendo que a realidade que deixaram para trás só existia agora em suas memórias, de forma idealizada. O mesmo se dava com os que ficaram, a idéia que faziam dos seus filhos ou dos concidadãos que foram à guerra lutar pela liberdade – como insistia o discurso oficial – era pulverizada na medida em que a presença dos ex-combatentes deixava de ser motivo de festas para se converter em problemas, desencontros e impasses constrangedores. Em outros termos, a partir do momento em que deixavam de estampar as capas dos jornais para serem vistos nos cadernos policiais envolvidos em arruaças, brigas, denúncias ou dados como mortos indigentes, como se pôde atestar numerosas vezes no correr das décadas de quarenta e cinqüenta em vários jornais. Outro fato que ganhou grande repercussão antes mesmo da volta dos soldados, e que também consiste em elemento crucial para se entender a reincorporação dos excombatentes e o esquecimento generalizado que há sobre a guerra do Brasil, é o que podemos chamar de ‘mito do passeio’. De fato é um mito, mas nem por isso deixou de ser extremamente influente em dois momentos diferentes: um deles, já abordado, seria a desconsideração e ridicularização da FEB ainda quando esta estava na Itália, tendo, nesse caso, íntima relação com a resistência de grande parte da população ao discurso e às atitudes mobilizatórias do Estado Novo. Viu-se como o discurso oficial estadonovista estava sempre procurando combater e controlar tais impasses. Num segundo momento, tal mito contaria novamente com ampla repercussão entre a sociedade, sobretudo após ficarem

185

SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas...”, p.16.

146

claras as ‘chateações’ que a reincorporação dos ex-combatentes geraria. Para estes que, ainda hoje, combatem inutilmente tal versão, o ‘mito do passeio’ consiste em forte elemento denegridor de suas memórias – se em algum dia do passado muitos colaboraram inconscientemente com a sua construção, tentando a todo custo evitar a convocação, todos eles, depois, passaram a vítimas desses boatos. Como já se viu anteriormente, era corrente a idéia de que a FEB estava fazendo turismo na Europa, era difícil acreditar, até para os dias atuais, que o Brasil declarara guerra contra a Alemanha Nazista, por vontade própria, e estava lutando lado a lado de tropas vindas da potência norte-americana. Falava-se que os brasileiros não passavam de bucha de canhão dos americanos, que os navios teriam sido afundados por navios dessa mesma nação – boatos que marcam, ainda hoje, o pouco que se sabe sobre a FEB no senso-comum. Pode-se, facilmente, elencar outras fontes da época, além do discurso oficial, que evidenciam como o mito do passeio já existia desde o período da campanha: “Não somos tropas de ocupação e nem estamos excursionando com a finalidade de conhecer e passear, como julgam alguns no Brasil...”187. O. Lopes, ainda antes de voltar para sua casa em Belo Horizonte, pegaria um taxi no Rio de Janeiro para ir ao hotel onde seu pai o aguardava – no caminho, o taxista, que reclamava muito do gasogênio o qual fora obrigado a usar em decorrência da escassez de gasolina, teria dito: “‘Vocês vão lá para a guerra... isso aí é conversa de... gasta gasolina lá do jeito que gasta, e a gente aqui, passando essa porcaria aqui... ’”188 (os grifos indicam ênfase do depoente). Correntemente, durante um depoimento, vários ex-combatentes se

186

Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004. RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha”, p.61. 188 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002. 187

147

viam na necessidade de contestar versões que colocavam em risco, durante toda a sua vida pós-guerra, o reconhecimento de suas experiência e de suas memórias – caso que se deu, de forma espantosa, na narrativa de L. Junqueira. Primeiro sobre a entrada do Brasil na guerra nega a validade de boatos que atribuíam aos americanos o torpedeamento dos navios brasileiros, em seguida critica os boatos que existiam ainda durante a campanha, lamentando que muitos ainda pensem assim e, por fim, valoriza o ‘tipo brasileiro’ em contraposição às mentiras sobre a FEB: “Mas não foi não... quem foi lá sabe que não foi passear não... e o soldado br asileir o... olha, nós tivemos soldados lavr ador es, mocor ongos, do mato, lá do Rio Gr ande do Sul... lavr ador es que só estavam acostumados a lidar com plantação de uva, ou fazer vinho, tr igo e que se por tar am muito bem...” 189

Em seguida, visando diminuir a peso desses boatos, Junqueira os contrapõe diretamente à bela recepção que tiveram no Rio de Janeiro e que ele, pessoalmente, teve na sua cidade, São Lourenço. No entanto, sessenta anos depois, ou mesmo meses após a volta, a noção reinante voltava a ser a do ‘mito do passeio’. Para quem continuou no Exército, problemas dessa natureza também foram comuns. Como já se viu, os soldados brasileiros começaram a ser mais bem tratados após a incorporação da FEB ao V Exército Americano, de forma que isso contou para que recebessem melhor alimentação, auxílio médico, equipamentos etc. Voltando ao Brasil, não era incomum que contassem com um aspecto e saúde melhores do que quando da ida, o que também levava os que ficaram a pensar mal dos expedicionários: “‘Porra, você foi para lá e voltou mais gordo, voltou melhor, pô, você só passeou lá...’ (...) [Fala, então, da boa alimentação e das rações fornecidas pelos americanos] A crítica dos que não vão é sempre

189

Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005.

148

pejorativa...”190. Outros procuram contestar o mito frente á narração de momentos difíceis pelo qual passavam no front italiano, depois de fazer longa descrição sobre como montavam bob traps – espécie de armadilha com granadas – em volta de suas posições, F. Albino (11oRI) afirma: “E o elemento acha que a gente foi lá passear, não é? Mas vai ficar naquele escuro, naquelas montanhas... a gente não tinha luz não tinha nada... (...) frio, neve, gelo... porque a neve quando cai é igual paina, depois congela e vira gelo...”191. Questionase o mito, também, realçando a sua dimensão desrespeitosa para com os companheiros que não voltaram para o Brasil, segundo narra J. Vieira (80 anos, III/6oRI): “... nós sabíamos que ir íamos par a a guer r a... que não ir íamos lá par a passear ... como muita gente pensava que fosse... muita gente ainda hoje: ‘Não, o Br asil foi lá passear ... que a guer r a estava acabando... ‘... per uada... se fosse passeio não havia mor r ido quatr ocentos e tantos... quase 500 elementos nossos e quase 3000 fer idos em combate...” 192

Apesar de todo esforço levado a cabo por parte dos ex-combatentes para contestar o chamado ‘mito do passeio’, a verdade é que, sobretudo após a volta para o Brasil, uma imagem pejorativa nunca deixou de ser a versão dominante com o qual a sociedade civil via a FEB e os ex-combatentes. Nos “ Depoimentos de oficiais da reserva sobre a FEB” , de 1949, já se pode ver como tais versões estão presentes – versões essas que acabavam complicando tanto a luta pela obtenção dos direitos quanto a situação dos que ainda prestavam serviço no Exército – que, pouco a pouco, eram enviados para servir em unidades longínquas: “Na ida, muitos se alegraram de não ter ido, depois, o que volta, está orgulhoso pelas provações pelo qual passou, e vai enfrentar a inveja do que não foi: ‘A

190

Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004. Entrevista com F. Albino, Juiz de Fora, dezembro/2004. 192 Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001. 191

149

FEB foi a turismo!’”193. A animação da maioria dos ex-combatentes após a chegada no Rio só acabava por reforçar os estereótipos “As tr opas r ecém chegadas da FEB desfr utam de ótima apar ência, seja na for ma física seja na vestimenta. Refor çando a empolgação, no momento do licenciamento havia ainda o pagamento dos soldos devidos e do ter ço de campanha, o que fazia qualquer pr acinha sentir -se no melhor dos mundos: vitor ioso, cober to de glór ias e bem abonado.” 194

Freqüentavam festas e cassinos, procuravam por mulheres como se ainda estivessem imersos naquela moralidade da guerra o que, certamente, acabaria gerando problemas como brigas e críticas nos jornais – pois era estranho que os heróis nacionais se comportassem dessa maneira: “Angústias e privações, aflições sem conta, desapareceriam num turbilhão feito de embriaguez alcóolica e satisfação sexual”195. Os boatos e ironias só cresciam, chegando a surgir versões dizendo que os expedicionários não teriam ido lutar na Itália, e que os mortos enterrados no cemitério de Pistóia eram todos oriundos de acidentes com jipes, quando iam fazer as tochas atrás de contato com os ‘inimigos’ da região: “prostitutas italianas miseráveis”196. Por fim, nesse primeiro momento pouca coisa pôde ser feita, o ressentimento que muitos ex-combatentes nutrem em relação a esse período e ao descaso, hoje, foi sendo adquirido nos anos vindouros, quando, já sofrendo os impactos da volta, perceberam o significado daquela apressada dissolução e desmobilização da FEB. Se o discurso feito por Getúlio Vargas na despedida dos escalões entrou por um ouvido e saiu por outro, posteriormente ele se mostraria presente nas memórias de praticamente todos os veteranos,

ANDRADE, Góes de. “Espírito da FEB e espírito de ‘Caxias’”. In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.378. 194 FERRAZ. “A guerra que não acabou: a reintegração social dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira (1945-2000)”, p.158. 195 SCHNAIDERMAN. “Guerra em Surdina”, p.215. 196 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.162. 193

150

pois seria resgatado e visto como o símbolo máximo do descaso para com os que voltaram da guerra. Afirmou Vargas na ocasião da despedida: “Tr anqüilizai-vos quanto ao futur o. Todas as pr ovidências for am tomadas par a que nada vos falte. Os vossos entes quer idos – esposas, mães, noivas, filhos – aguar dar ão confiantes o vosso r etôr no e estar ão ampar ados pelo Gover no – pelo Br asil que cumpr e lealmente o seu dever e ao lado de poder ósos aliados ir á ganhar , com o esfor ço e a intr epidez da sua juventude, lugar condigno na comunidade das nações civilizadas.” 197

O ex-combatente J. Vieira afirma que o desmembramento precoce da FEB foi um “ato violento”, pois na mobilização fizeram-se todos os exames de saúde, além de terem prometido “mundos e fundos e depois...” só o que se viu foi a desastrosa reincorporação, onde o febiano era visto não mais do que um “criador de caso”, sendo rejeitado nos Hospitais do Exército e nas repartições públicas198. Outro ex-combatente, presidente da Associação Regional da Bahia, explicitou essa condição em versos: “A chegada ao Rio de J aneir o, Muita festa esper ar am; Lembr emo-nos dos companheir os, Que em Pistóia ficar am. Logo, a guer r a ter minou, Foi falado em r ecompensas; O pr acinha tudo imaginou, Menos as r ápidas dispensas. Começou o sofr imento, Com a falta de r eadaptação; Pr omessas caír am no esquecimento, Imper ando a ingr atidão. Antes de ir par a a guer r a Onze inspeções teve que fazer ; Quando voltou à sua ter r a, Nenhuma antes da dispensa ocor r er . Entenda bem nossa gente, Depois com o gelo se envolver ; Par a quem é de clima quente, A maldade não pode esquecer . (...) Os her óis estão esquecidos, Às vezes até humilhados; País com políticos falidos,

197 198

Discurso de despedida do 1o Escalão da FEB, CPDOC – Arquivo Getúlio Vargas. Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001.

151 Esquecem feitos passados.” 199

As origens desses ressentimentos, portanto, podem ser encontradas no complicado processo de reincorporação social dos ex-combatentes que, mais tarde, buscariam no passado as causas de todo esse imbróglio – reavaliando experiências e passagens até então esquecidas ou classificadas como de pouca importância. Isso explicita, mais uma vez, o caráter fluido e mutável do passado que, no decorrer do texto, tornar-se-á mais claro, na medida em que forem apresentados variados casos de reincorporação. Essa variedade, obviamente, acabava dando múltiplas cores às memórias da FEB – tornando ainda mais complexa a sua história. v II.2

A r eintegr ação social dos ex-combatentes O “ Boletim da L.B.A. ...” de 31 de maio de 1945 anunciava aos febianos, que então

cumpriam a missão de tropa de ocupação, a criação da “Comissão Especial de Readaptação dos Incapazes”, que tinha como objetivo principal assistir às “vítimas da guerra”. Detalhava, ainda, a deliberação de que: “... os fer idos, depois de convenientemente tr atados, ter ão após a alta dada pelo HCE [o Hospital Central do Exército], examinada suas aptidões, caso por caso, de modo que nenhum deles deixe de ser encaminhado a uma pr ofissão onde poder ão sentir -se bem útil aos seus e à coletividade (...) As r epar tições do govêr no dever ão acolher a maior ia dos r eadaptados, possuindo a Comissão, a faculdade de encaminhar à indústr ia ou a qualquer outr a atividade pr ivada, aqueles que possam ser mais úteis aí.” 200

Ao que parece, tal comissão teria sido criada em janeiro do mesmo ano pelo decreto-lei no 7.270, tendo a sua organização aprovada apenas em julho, ou seja, às vésperas do embarque dos expedicionários em Nápoles. Vale lembrar que países como os Estado Unidos e

COSTA, Didier de Souza. “2o Guerra Mundial: desprezo – Ouve lá, oh! Zé! Deixa-me dizer-te uma coisa!”, p. 53-55. (O autor publicou a obra imprimindo apenas nas páginas ímpares). 200 “ Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.8, 31/05/1945, p.1-2. 199

152

Inglaterra já vinham desenvolvendo projetos e criando uma estrutura de recepção anos antes do retorno de seus combatentes para casa – sem esquecer que contavam, também, com larga experiência adquirida em virtude do problemático processo de reincorporação dos veteranos da Primeira Guerra Mundial. Oficialmente, tal comissão foi nomeada como CRIFA – Comissão de Readaptação dos Incapazes das Forças Armadas –, localizava-se no Rio de Janeiro e esteve diretamente ligada à presidência da República201. Tal atitude, de parte do governo federal, consistiu numa das poucas medidas oficiais voltadas para a reincorporação dos ex-combatentes nessa primeira fase do retorno – e como veremos, seria essa a tônica de grande parte dos governos dos anos e décadas vindouros. Segundo Francisco Ferraz, que pesquisou a fundo o processo de reincorporação dos ex-combatentes brasileiros, o que se sabe sobre a CRIFA é pouca coisa e, na maioria das vezes, tudo que se acha sobre ela ou são críticas, ou são pessoas tentando defendê-la. De qualquer forma, irrevogavelmente, sabe-se que a CRIFA consistiu num imenso fracasso, pois, a despeito dos argumentos que tentam encontrar algo de virtuoso nessa instituição, o fato é que pouquíssimos ex-combatentes a conheceram, já que se encontrava isolada na Capital, inviabilizando qualquer contato ou conhecimento por parte da imensa maioria dos ex-combatentes que residiam no interior do país. Além disso, freqüentemente a CRIFA era acusada de envolvimento com práticas corruptas, tendo sua existência ameaçada em mais de uma ocasião, até ser fechada nos anos setenta. Por outro lado, longe do mundo palaciano, cada ex-combatente, no final das contas, tinha que se virar por conta própria. Certo é, entretanto, que os mutilados e os que eram dados por incapazes – com muito custo –, a despeito da demora, ganhariam uma pensão do

201

FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.187.

153

governo. Mas no geral, a lógica da reincorporação seguiu o seguinte princípio: recebidos os vencimentos, o Estado nada mais tinha com os ex-combatentes. Aparentemente estavam saudáveis, e até para grande parte deles mesmos, num primeiro momento, isso poderia ter passado por verdadeiro, no entanto, como já foi dito, apenas a médio prazo é que os problemas começariam a surgir, justamente após baixar a poeira das festas de recepção e do alvoroço pelo reencontro com suas famílias e vidas de antes da convocação. O ex-combatente O. Lopes, que teve a perna duramente ferida, indo direto da Itália para hospital nos Estado Unidos, retornou ao Brasil separado do grosso da FEB, já com o aparelho ortopédico que usaria por toda a vida. Morava em Belo Horizonte, e no primeiro dia após a volta se viu envolvido num típico ‘choque’ entre os que foram e os que ficaram. Primeiro o encontro com o seu pai: “O homem me deixou lá no hospital... o meu pai não estava lá... fiquei lá dentr o do quar to... a minha per na inchava, ficava enor me, empapuçava... aí papai entr ou no quar to, cumpr imentou assim meio... fr io... ele não sabia demonstr ar sentimento, mas eu achei que ele estava fr io. Ele falou assim: ‘Levanta e anda’... aí eu levantei usando a bengala... ele ficou fur ioso: ‘Pois é, a gente cr ia o filho, filho vai par a a guer r a e volta aleijado’...eu me lembr o, as lágr imas só pingavam assim...ele per cebeu que tinha feito mal em falar essa bobagem...aí falou: ‘Vamos andar um pouco’...mas eu não esqueci...ficou mar cado” 202

Certamente, a família que ficou em casa alimentava outras expectativas do filho que estava na guerra. Baseando-se nas cartas – censuradas – e nos discursos oficiais sobre a FEB e a guerra, não eram raros que os pais esperassem pelo retorno de um herói. Ver o filho nessas condições, sendo que o mesmo havia saído de casa sem nenhum problema, era algo que gerava a ira e a incompreensão dos pais e, por extensão, a frustração dos que

202

Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002.

154

voltavam. Com O. Lopes, uma outra situação semelhante se daria, pois dias após a chegada foi visitar a noiva que tinha deixado no Brasil: “... a minha casa ficou cheia... todo dia havia gente quer endo saber quantos que eu havia matado, como é que foi o fer imento, se o alemão er a muito valente, se mor r er am muitos br asileir os, foi uma coisa assim sabe? Em dez dias não estava agüentado mais ver ninguém... fui embor a lá par a o ter r eir o (...) e fiquei escondido lá... quem batia na por ta e per guntasse por mim... dava vontade sair gr itando. Aí esteve um médico da família lá e me disse assim: ‘Ele tem que sair daqui r ápido, senão vai ficar doido’... foi quando eu saí e fui lá par a per to da minha noiva... lá em Dor es de Campos... foi quando melhor ei um pouco... mas mesmo assim... quando eu fui lá, tive com ela uma conver sa muito sér ia. Eu cheguei de bengala, não podia andar dir eito... todo mundo me car r egava par a lá e par a cá... o povo soube que eu ir ia chegar e ficou todo aglomer ado lá na por ta da casa da noiva... er a o soldado que chegou quase mor to da guer r a e ir ia se encontr ar coma noiva, ir ia beijar a noiva... ser ia uma cena de filme, sabe?”

Na conversa com a sua noiva, O. Lopes teria perguntado se aceitaria casar com um aleijado e, no seu caso, teve sorte, pois a resposta foi positiva e até o dia em que realizei essa entrevista tudo estava bem entre eles – de qualquer forma, o interessante nessa passagem é justamente a imagem que se faz dos soldados que vão à guerra. Tal ‘cena’, descrita por ele – e provavelmente esperada por todos que lá estavam –, poderia muito bem ter vindo diretamente das telas de um filme hollywoodiano sobre a Segunda Guerra, dentre muitos realizados àquela época, preocupado com a mobilização e o moral da sociedade. Apesar de tudo, O. Lopes pode ser considerado como um ex-combatente que contou com uma reincorporação relativamente tranqüila, pois, por mais trágico que isso possa parecer, o seu ferimento lhe possibilitou uma pensão, o que significaria uma estabilidade financeira mínima para se manter. Frente a isso, o que esperar daqueles que nem noiva e nem pensão os aguardava na volta? Indiscutivelmente, os que ficaram em pior situação foram os expedicionários que não permaneceram no Exército. Tal questão, nas fontes, sempre se mostrou confusa – ao que parece, os expedicionários tiveram sim a chance de escolher se continuariam ou não como

155

militares, mas isso raramente aparece de forma clara nos depoimentos. Como já foi dito, o processo de desmobilização foi tão rápido que, na época, grande parte dos expedicionários mal tomou ciência de que poderiam pedir a permanência nas Forças Armadas, ou se desligaram ansiosos para voltar para casa, não sabendo das conseqüências daquele ato apressado: “Antes de deslocar em-se par a casa, por ém, os expedicionár ios de or igem civil tiver am de optar , entr e pedir o r eengajamento ou desmobilizar -se. Como a maior ia dos expedicionár ios er a for mada por pr aças do inter ior , ansiosos por r ever familiar es e amigos, e esgotados pela vida de soldado numa guer r a, poucos optar am pelo r eengajamento. Alguns, inclusive, não aguar dar am a expedição de seus documentos, e abandonar am os quar téis do Rio de J aneir o, par a fazer a ‘tocha’ definitiva.” 203

A maioria dos entrevistados afirma que apenas expedicionários que ocupavam a patente de tenente para cima – portanto oficiais – poderiam optar por ficar no Exército, e que ao resto coube a desmobilização. Na verdade, os expedicionários, sobretudo quando da volta para o Brasil, foram tratados como o gado que vai para o matadouro, ou seja, só há um caminho a seguir, de modo que, se havia a opção de continuar como militar, muito pouco se soube sobre isso, o que explica a indecisão e desinformação reinantes, até hoje, entre os excombatentes no que toca a esse ponto. J. Lopes, que foi à guerra como cozinheiro, coloca que: “Às vezes até podia conseguir, mas eu não olhei isso não (...) eu queria até participar do Exército, mas todo mundo estava de baixa...”204. Dessa forma, se não é o desconhecimento sobre a possibilidade do reengajamento, talvez seja certo constrangimento que leve a maioria a negar a existência de tal possibilidade. Primeiro porque, hoje, para a maioria deles, criticar a vida militar e o Exército é um contrasenso, e segundo, podem achar que por causa de uma decisão apressada deles próprios, e não por um equívoco do Estado, é que passaram por todos esses problemas e impasses da reincorporação. Nesse contexto,

156

vale atentar para a complexidade da memória na sua íntima relação com a identidade dos sujeitos, de forma que ‘recordar’ pode ser, também, algo doloroso e até perigoso para grupos e indivíduos. Algum tempo após a chegada ao Brasil, grande parte dos expedicionários se encontrava psicologicamente arruinada, bem como os cerca de 3000 que ainda sofriam com ferimentos das mais variadas naturezas. Décadas mais tarde, esse quadro foi amenizado pelas memórias dos ex-combatentes, por razões óbvias, mas tal como se deu com a questão da resistência à convocação, onde os entrevistados raramente pensavam em fazer algo desse tipo, mas conheciam vários que o faziam, os problemas oriundos da reincorporação são conhecidos pela maioria deles – apesar de não se sentirem muito à vontade para relatar suas experiências pessoais. Vale lembrar, também, que os ex-combatentes entrevistados são, de certa forma, os sobreviventes da “verdadeira guerra da FEB”, pois no decorrer de 60 anos, muitos morreriam, perderiam a faculdade de falar ou lembrar de suas experiências, se calariam, isolariam ou ‘esqueceriam’ dos fatos. Esse quadro dos depoentes, não por acaso, foi o mesmo encontrado por Alistair Thomson em sua pesquisa com os ANZAC: “Os homens que entr evistei sobr eviver am aos tr aumas emocionais da guer r a e ao r etor no à vida civil, mas todos têm histór ias vívidas sobr e soldados amigos que não tiver am tanta sor te, que ficar am loucos, tor nar am-se bêbados abandonados ou se matar am” 205.

Se durante a guerra uma parte dos expedicionários conseguiu permanecer distante dos distúrbios psicológicos, certamente muitos deles acabariam encontrando problemas durante o processo de reajuste e reincorporação à vida civil. O choque dos diferentes hábitos e valores entre os ex-combatentes, suas famílias e as pessoas que os cercavam contribuiu

203 204

FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.158. Entrevista com J. Lopes, Juiz de Fora, dezembro/2004.

157

fortemente para isso: se no Exército acostumaram-se a ter todos os meios necessários para a sobrevivência fornecidos pelo Estado, na vida civil teriam que se virar para se alimentarem, se vestirem e se cuidarem, lembrando que grande parte deles foi convocada quando estava entrando no mundo do trabalho, ou se formando para o exercício futuro de algum ofício. Na medida em que foram arrancados dessa realidade e acostumados à da guerra, era difícil para eles retomarem as coisas num campo que ainda há pouco começavam apenas a criar as primeiras raízes. Alguns ex-combatentes mais lúcidos, hoje compreendem esse choque da volta, e explicam as razões que os levaram a gastar rapidamente todo o dinheiro recebido após a desmobilização e tornarem-se pessoas sem referências a seguir, conforme narra D. Medrado, da Associação de Belo Horizonte: “Eu fui par a a minha ter r a (...) é lógico que foi uma r ecepção muito boa, minha família, todos satisfeitos e. qual a família não r ecebeu o seu pr acinha assim, não é? Não fui só eu... todos nós fomos r ecepcionados pela família e muitos se contr olar am... mas a gr ande maior ia estava com sede er a de passeio, de alegr ia, e gastou esse dinheir o todo por que achou que o pr esidente da r epública tinha pr ometido que nada lhes faltar ia, não é? Quando ele sentiu em si (...) que er a um cidadão comum como outr o qualquer e tinha que tr abalhar ... ele não sentiu aonde pisar , se sentiu for a da ter r a, voltou à cidade gr ande par a pr ocur ar apoio e não teve... nós tivemos que nos r eunir , for mar em associação e aqueles, como eu, que havia sido r efor mado... continuei r ecebendo do Exér cito... que tinham uma situação financeir a melhor , e que conseguir am alguma coisa, par a ajudar essa gente que estava aí... ao léu da sor te....” 206

Ainda nesse sentido, a própria adaptação durante a guerra, à doutrina militar norteamericana, segundo alguns, contribuiria para esse ‘desenraizamento’ dos expedicionários brasileiros após a volta para casa e no próprio processo de reincorporação. Já que, uma vez sendo bem tratados, sobretudo no que toca à alimentação, cuidados médicos e até nos momentos de folga e diversão, voltariam com uma nova percepção de quais eram as suas

THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.109. No original: “The men I interviewed survived the emotional traumas of war and the return to civilian life, yet they all have vivid stories about soldier friends who were not so lucky, who went crazy, became derelict drunk’s or killed themselves.”. 206 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001. 205

158

necessidades básicas, bem como quais eram os seus direitos como soldados-cidadãos mobilizados pela máquina do Estado207. Outros problemas ainda surgiriam nesse contexto de desordem psicológica e social. A dificuldade em conseguir um emprego estável, por exemplo, foi dilema que acompanhou vários dos depoentes entrevistados: não se adaptavam à nova realidade, eram perseguidos, a escassa legislação que obrigava as repartições públicas a aceitá-los era ignorada, sem contar a proliferação dos boatos que viam os ex-combatentes como neuróticos loucos de guerra, o que os tornava ainda mais ‘repelentes’ aos olhos da sociedade. Desse quadro para o envolvimento em brigas e com o alcoolismo era apenas um passo, e a despeito disso tudo, viam as portas do Exército fechadas seja quando procuravam os hospitais, ou ao entrarem com ações visando conseguir a reforma. Para tal, deveriam ser considerados “incapacitados” para o trabalho, o que raramente acontecia: “os pedidos de reforma dos incapacitados encalhavam nas repartições militares ano após ano. Na maioria das vezes a reforma era negada: consideravam-no capaz de prover sua própria subsistência.”208. Por outro lado, quando conseguiam, eram igualmente estigmatizados, pois a pensão a que tinham acesso era vulgarmente conhecida por “pensão de louco de guerra”209. Com o tempo as coisas tornar-se-iam mais dramáticas, podendo-se atestar em jornais dos anos cinqüenta notícias sobre suicídio de ex-combatentes o que, pelo menos momentaneamente, trazia de

207

Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001. SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas...”, p.338. 209 A “pensão do louco de guerra” foi estabelecida pela lei no 2.579, de 23 de agosto de 1955, e correspondia a garantia de auxílio médico bem como a concessão de pensões a ex-combatentes que fossem considerados incapazes de se manterem em função de doenças graves como “tuberculose ativa, alienação mental, neoplasia maligna, cegueira, lepra, paralisia...”, tais direitos ficaram conhecidos também por “lei do pé na cova”. Cf.: FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.221. 208

159

volta à tona os problemas que tal parcela da população vinha sofrendo – de qualquer forma, rapidamente tudo voltava ao esquecimento210. Dessa forma, as coisas continuavam da mesma maneira, apesar do fato de, em decorrência de uma série de leis que vinham sendo criadas, alguns ex-combatentes que dispunham de conhecimento sobre elas bem como meios para fazer com que valessem, conseguissem algo com que se amparar. S. Ribeiro, da cidade de Cristina, depois de trabalhar na fazenda de um amigo alguns anos após a volta para o Brasil, se beneficiou de uma lei que dava prioridade para ex-combatentes em concursos públicos, tornando-se, então, oficial de justiça – trabalharia por 25 anos, até se aposentar de acordo com outra lei que diminuía o tempo de serviço para a aposentadoria dos ex-combatentes. Por outro lado, um colega, da mesma cidade, não conseguiu ser beneficiado e morreu na miséria: “Muita gente virou andante... no começo foi uma calamidade, não é? Não tinha direito nenhum... e foi sim... muita gente ficou louca, não é? (...) O Wilson até morreu na miséria... mas hoje a viúva recebe... [Se referindo à pensão definitiva de 1988]”211. Com H. Medeiros, as coisas também não se sairiam tão bem, de modo que é perceptível o período em que se encontrava perdido e sem referências: “O governo deu baixa para os solados: ‘Agora vocês que se virem.’” – os valores que recebeu após a volta não durariam quase nada, porque “Eu meti o pau nele”. Afirma ainda que não lhe foi dado nenhum emprego, e que só no governo Juscelino é que conseguiu ir trabalhar nos Correios. Antes disso trabalhava na Mannessmman, onde diz ter sido perseguido pelo seu superior que era alemão e que, durante a ocupação francesa, teve cargo na prefeitura de Lion. Quanto à opção de permanecer no Exército, não pensou na possibilidade, pois como já se

210

FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.198.

160

viu, Medeiros foi um dos depoentes que mais aversão explicitou pela vida e valores militares: “Na época eu até poder ia ter ficado no Exér cito... apesar de eu não gostar do Exér cito... nunca gostei desse negócio de se submeter à or dem... eu gosto de ser um camar ada livr e... não gosto de... negócio de cabr esto... eu nunca fui... negócio de cabr esto não.” 212

Por fim, é o General Raul de Cruz Lima Júnior que sintetiza bem o destino de grande parte dos ex-combatentes que tiveram a má sorte de contarem com uma reincorporação problemática: “A gr ande maior ia, no entanto, teve pr oblemas ao r eintegr ar -se na vida da paz. As neur oses de guer r a tiver am as manifestações mais extr avagantes em gr au, maior ou menor naqueles or ganismos que sofr er am, dir etamente, os hor r or es da guer r a. Com o passar do tempo, todavia, as mar cas for am desapar ecendo e a vida se nor malizando. Uma pequena par cela foi par a os hospitais neur opsiquiátr icos. Alguns ficar am confinados per manentemente, mor r endo e desapar ecendo aos poucos. Ir r ecuper áveis, o seu destino foi o mais cr uel. Outr os, após uma tempor ada em hospitais, for am devolvidos à vida comum, por ém, em estado pr ecár io. O tr atamento, incompleto, pouco adiantou. Voltar am par a as r uas; or a empr egados, or a desempr egados; tr ansfor mando-se em mulambos humanos, desmemor iados e per didos, maltr apilhos, passando as noites ao r elento e vivendo na mais negr a misér ia.” 213

v É certo que a maioria dos ex-combatentes contou com uma reincorporação atribulada, e isso pode ser atestado nas narrativas de todos eles – inclusive entre os que não passaram por tais problemas. Passagens tratando dos descasos do governo bem como do Exército – esse de forma mais velada, é verdade – pululam nas entrevistas com os ex-combatentes, onde se vê também, pela maneira como articulam suas falas e argumentação, o caráter sofrido, lento e angustiante de todo o processo. Passados cerca de sessenta anos, a memória

211

Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005. Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002. 213 LIMA JÚNIOR, Gal. Raul da Cruz. “Quebra-Canela. A Engenharia brasileira na Campanha da Itália”2 ed. Rio de Janeiro: 1982, p.203. 212

161

arrefeceu um pouco os ânimos, como era de se esperar, de qualquer forma, ainda são bastante visíveis as marcas dessas “batalhas”, pois sabemos que se todos esses problemas não tivessem sido enfrentados, a memória dos ex-combatentes, de longe, seria muito diferente do que vimos atestando até aqui. Mas como se sabe, a pluralidade é algo característico na história da FEB, de forma que heterogêneas também são as maneiras como cada ex-combatente se saiu no processo de reincorporação. Ex-combatentes como A. Neto e L. Junqueira são exemplos paradigmáticos desses casos – para eles a guerra, hoje, consistiu em experiência primorosa, apesar de todos os problemas oriundos da volta que, é verdade, não os acertou em cheio. Se em suas narrativas está explícita a crítica em relação ao descaso do Estado para com os expedicionários, é fato, também, que tais dificuldades detêm um espaço marginal em suas memórias – e experiências – como fica atestado em diversas passagens de Neto: “... ir par a lá foi uma aventur a mar avilhosa, por que me abr iu, clar eou muito a minha vida... depois eu ter minei o cur so de ar quitetur a e fui tr abalhar no ministér io da saúde como ar quiteto. E aí começar am as vantagens da FEB, eu tinha que tr abalhar 35 anos e só tr abalhei 25 anos... ganhei dez anos... aposentei mais cedo (...) Par a mim foi muito bom... abr iu os hor izontes... eu vi novos países, novas línguas... e me deu confiança...e eu vi a or ganização dos exér citos amer icano e como ele é muito bem estr utur ado...” 214

Poucos ex-combatentes analisam a guerra nessa chave, dizendo que a FEB foi essencial em vários aspectos – não que a maioria deles despreze algo que marcou as suas vidas para sempre, mas quase sempre há um ar de que expectativas foram roubadas e de que a vida poderia ter sido diferente. Neto é um ex-combatente que não teve maiores problemas em lidar com a experiência da guerra, tanto que ele se lembra dela por meio dos lugares bonitos na Itália, como uma “aventura maravilhosa”, de como o transformou numa pessoa cosmopolita e das vantagens da FEB – se referindo ás primeiras leis em prol dos

162

febianos que, certamente, pouquíssimos podiam desfrutar. De fato, a guerra não consistiu em traumas na vida de A. Neto – inclusive no que toca às misérias que dela advém. Foi à guerra como tenente, depois que voltou para o Brasil, desligou-se do exército e pediu uma reforma que demoraria a chegar, enquanto isso usou o dinheiro que ganhara na FEB – aquele que foi ‘mal gasto’ pelos ex-combatentes – para terminar a faculdade de arquitetura. O que é específico desses ex-combatentes, também, é o entusiasmo pela memória oficial da FEB que contraria em muitos poucos pontos as suas versões – atendendo, portanto, satisfatoriamente as suas demandas pessoais. Não é raro, em suas narrativas, ouvirmos falar das homenagens oficiais, das altas patentes e dos regimentos ao invés dos grupos e cias., e da guerra dos praças. Fazendo um paralelo com o trabalho de Alistair Thomson, poderia dizer que a memória desses ex-combatentes se aproxima das lembranças de outro de seus depoentes, Percy Bird, cuja reincorporação foi bastante tranqüila. Anos depois, a memória da guerra não era um peso a ser suportado, apesar dos sofrimentos, dos amigos mortos e mutilados e tudo mais – a experiência da guerra portava uma função de entretenimento, bastante próxima do mito público e das patriotadas, bem como evitava tratar de certos temas polêmicos e dolorosos por eles não ‘trabalhados’, falava-se destes, mas de modo superficial e por pura obrigação, quando não por minha insistência215. Sobretudo entre os oficiais que continuaram no Exército, pelo menos os que não se envolveram com a formação das Associações, a despeito das perseguições e outras coisas do gênero, a memória tende a se apresentar dessa forma: mais tranqüila e mais coerente, sem ressentimentos – mas nem por isso é mais verdadeira ou mais falsa, ela simplesmente é. Configurando-se dessa forma, ela exprime as desigualdades, as tensões entre os ex-

214

Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.

163

combatentes e as instituições envolvidas e, se vista frente às memórias mais ‘sofridas’, em que medida a memória oficial consiste/consistiu num apoio ou num incômodo para cada um deles. Ou seja, em que medida certas práticas públicas reforçavam ou destoavam de suas percepções pessoais sobre a guerra. Por outro lado, vale lembrar que apesar de todas as divergências, certos elementos tendem a unificar os ex-combatentes em geral, como, por exemplo, a degradação das populações submetidas à guerra – os chamados sfollati –, os colegas feridos ou mortos, as falsas promessas do discurso de despedida de Vargas, a rejeição ao ‘mito do passeio’, entre outros pontos – tudo isso, obviamente, em intensidades e formatos diferentes. Tais elementos acabavam por promover a congregação dos ex-combatentes em associações, primeiro porque “os efeitos desestruturantes da experiência da guerra eram responsáveis pela sensação de desligamento e distanciamento de uma identidade ‘passada’ na qual não mais se reconheciam”, de forma que “O contato com os companheiros da FEB amenizava a situação de exceção que vivenciavam.”216. Fora isso, havia ainda a questão da ajuda mútua, pois, no final das contas, a maior parte da assistência era fornecida pela recém criada AECB – a Associação dos Ex-Combatentes do Brasil – que cresceu rapidamente, tendo numerosas filiais espalhadas pelo interior do país. Por fim, existia também a necessidade de uma delimitação identitária, em virtude dos vários grupos que concorriam com os ex-combatentes pela conquistas dos direitos e benefícios – sobretudo militares que não haviam embarcado para a Itália, por razões várias, e que ansiavam pelos direitos que os febianos vinham conquistando – pelo menos no âmbito da legislação.

215 216

Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”. & Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004. RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória...”, p.178.

164

A legislação que trata dos benefícios e direitos dos ex-combatentes é extensa e, como não poderia deixar de ser em se tratando de Brasil, foi, na mesma proporção, dada como letra morta, vista com péssima vontade política e, na maioria das vezes, solenemente ignorada ou usada de forma abusiva por alguns sujeitos217. Exemplo disso pode ser visto na concessão de medalhas após a volta para o Brasil: “Muitas medalhas for am concedidas a militar es [que permaneceram no Brasil] e civis [considerados apoiadores do esforço de guerra] que pouco ou nada fizer am pela FEB, ou até mesmo àqueles cujos ser viços for am pr ejudiciais aos expedicionár ios, como, por exemplo, o for necedor dos unifor mes da FEB, cuja péssima qualidade obr igou os aliados amer icanos a vestir toda a divisão br asileir a com o mater ial pr oveniente da Intendência do V Exér cito. Poucos pr aças for am condecor ados (...) quando voltar am ao Br asil, não entendiam que ocor r er a uma injustiça, vendo tantos oficiais e civis condecor ados e tão poucos pr aças com as mesmas honr ar ias. Muitos pr efer ir am acr editar que os pr aças não for am condecor ados por que não mer ecer am, por que fizer am ‘tur ismo’ ao invés de combater .” 218

Ainda nesse sentido, era muito comum entre os militares ‘pegarem carona’ nos poucos benefícios que eram concedidos aos que haviam lutado no TO da Itália e que tinham optado por continuar no Exército. Dessa forma, quando uma lei era promulgada em favor dos febianos, uma avalanche de reclamações surgia entre os militares que permaneceram no país – só parando depois que os direitos eram estendidos aos oficiais que tivessem servido no litoral brasileiro durante o conflito219. Tal fato marcou a memória e identidade dos excombatentes até hoje, pois se há um ressentimento uníssono entre eles, é com relação aos “praianos”, “praieiros” ou “patos d’água” que se aproveitaram dos benefícios dos outros para se promoverem – a crítica a esses sujeitos e a desvalorização de suas atitudes são

Quanto à legislação feita em prol dos ex-combatentes, “... foram promulgadas 81 leis, 56 decretos-lei e 62 decretos, no âmbito federal, e 89 leis no âmbito estadual, totalizando o impressionante número de 288 diplomas legais. Dentro da ótica de que leis e decretos tudo resolvem, não faltam leis de amparo aos excombatentes, é a conclusão que se pode tirar. Mas é um ledo engano, pois faltou, na realidade, uma estrutura flexível e prática para amparar os ex-combatente necessitado, e para administrar e aplicar essa enxurrada de leis, regulamentos e portarias publicadas”. SILVEIRA, Joaquim Xavier da. “A FEB por um soldado”, p.239. 218 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.170. 219 Ibidem. p.175. 217

165

onipresentes nos depoimentos. Mais tarde, já no governo Dutra, os benefícios seriam ainda estendidos aos militares que serviram no interior do país – era a mutilação da identidade dos febianos. No que tange à legislação criada visando os que retornaram à vida civil, tais despautérios também foram comuns – segundo o decreto-lei no 4.548 de agosto de 1942, todos os convocados teriam o direito de ter os seus antigos empregos restituídos, bem como pagos 50% de seus salários correspondentes ao período de serviço militar. Antes mesmo da partida da FEB, no entanto, já se desrespeitava a lei, de modo que os empregadores demitiam seus empregados e, muitos menos, os readmitiam após a volta. Outros grupos específicos de ex-combatentes contaram com algum apoio, como por exemplo, os estudantes, pois um decreto de 29 de setembro de 1945 lhes garantia a retomada e continuidade dos estudos – com concessão de bolsas, se necessário220. Em períodos eleitorais, era bastante comum os candidatos correrem às Associações buscando apoio para suas chapas, prometiam empregos e vantagens para os ex-combatentes que, além de freqüentemente não serem cumpridas, serviam para estigmatizar ainda mais esse grupo, na medida em que começaram a ser vistos como uma casta de privilegiados. De qualquer forma, “A existências dessas e de outr as leis não gar antia, entr etanto, a solução dos pr oblemas dos veter anos. O desconhecimento dos dir eitos expr essos nessas leis (...) er a gr ande. Muitos viviam no inter ior , nas zonas r ur ais, e ignor avam que tinham dir eito a tais benefícios (...) E mesmo os que sabiam de seus dir eitos poucas gar antias tinham de tr ansfor má-los em r ealidade, pois a bur ocr acia e r epar tições impunham-lhes muitos obstáculos. (...) Aos poucos deixam de ser per cebidos como ‘her óis da pátr ia’, voltando a ser cidadãos comuns, que disputavam os mesmos empr egos e vantagens com os não-expedicionár ios ” 221

220 221

Ibidem. p.200. Ibidem. p.200-201.

166

Entre as décadas de cinqüenta e oitenta poucas alterações significativas foram levadas a cabo para viabilizar o processo de reincorporação dos ex-combatentes – junto disso, continuavam as ‘caronas’, o que dificultava ainda mais a luta por direitos, já que para os cofres públicos, cada benefício teria de ser pago a um número muito grande de pessoas. Apenas nos anos sessenta é que a política de pensões e aposentadorias começaria a andar, abordando todos os ex-combatentes apenas na constituição de 1988 – de forma que, até então, cada febiano requerente deveria entrar com processo individual. Obviamente tudo isso foi bastante dificultado pelas ‘leis da praia’ que, nada mais nada menos, elevaram o número de ex-combatentes de 25.000 para pouco mais de 150.000. Tais leis, criadas em 1948 e 49 seriam atualizadas e ampliadas para mais alguns grupos militares e mesmo da marinha mercante pela lei no 5.315 de 12 de dezembro de 1967222. Obviamente que isso gerou uma série de problemas entre os ex-combatentes, ‘praianos’ ou não, as Associações, os militares e o Estado – como não poderia deixar de ser. Nesse contexto, vê-se uma verdadeira guerra pela memória e pela identidade, na sua íntima relação com a política. Milhares de militares correriam às AECBs – até então composta por veteranos da Campanha da Itália – a fim de terem acesso aos direitos recém conquistados, depois de muita luta, pelos febianos. Estes conseguiram formalizar a concessão de uma pensão de dois salários mínimos para ex-combatentes que não pudessem se manter que, entretanto, não poderia ser acumulada com os proventos do INPS – o que gerou muitos protestos. Igualmente, a pensão definitiva e extensível a todos os excombatentes nos termos da lei no 5.315, a ‘segunda lei da praia’, conquistada com a constituição de 1988 e proporcional ao vencimento de um segundo-tenente, não poderia ser

222

Ibidem. p.224.

167

acumulável com quaisquer outros rendimentos, o que também gerou protestos. Polêmicas também surgiram quando se soube de numerosos militares que acumulavam vários rendimentos e ainda os repassavam, após a morte, aos dependentes – militares esses que não tinham ido à Itália e que, por conhecer os meandros burocráticos e legais, conseguiam ter acesso a tais benefícios. Apenas em julho de 2000, o Superior Tribunal de Justiça vetou a pensão dos dependentes de militares, sendo esta, agora, apenas direito dos excombatentes que, de fato, participaram da Campanha italiana223. Paralelamente a essas lutas pela reincorporação, os ex-combatentes e as AECBs iam “enquadrando” suas memórias e definindo suas identidades – a conquista dos direitos significavam combates, negociações, cisões e aproximações frente aos variados sujeitos com os quais interagiam. Dessa forma, a todo o momento o passado era reavaliado à luz das situações presentes, e a memória dos ex-combatentes, bem como a versão institucional, dava as suas reviravoltas. É essa outra dimensão do segundo tempo da memória da FEB que será analisada agora. v II.3

Os ex-combatentes, as Associações e o Exér cito: entr e r esistência e negociação Como na história, onde se vê a ocorrência de inúmeros eventos simultâneos no

decorrer do tempo, a memória também comporta essa dimensão de tempos e fatos sobrepostos. São diferentes esferas de sentidos, espécie de níveis, de forma que cada narrador articula-os de modos diferentes – atribuindo, dessa forma, periodizações, valores e ênfases específicas às suas memórias. Geralmente, um dos níveis é tomado como dominante no corpo do depoimento, o que ajuda a explicar a variação de pontos de vista

223

Ibidem. p.232.

168

entre sujeitos que abordem um mesmo período ou evento, bem como o estilo da narrativa adotada: mais pessoal e palpável – “eu” –, ou mais impessoal e distante – “nós”, “eles” – isso, obviamente, está em íntima relação com as referências identitárias dos depoentes e, por extensão, à configuração das memórias dos grupos e indivíduos. Em suma, uma espécie de “eixo filosófico” é adotado na conformação das memórias. Tal como a história pode ser marxista, liberal, cultural, anarquista etc., a memória, na forma materializada da narrativa, pode também se organizar a partir de critérios e princípios que fazem sentido para o sujeito que narra, estando o processo de rememoração, portanto, ligado a essa lógica224. Segundo Alessandro Portelli, nós comportaríamos, mais ou menos, três níveis ou “estratos”, entre os quais a memória ‘escolheria’ se fundamentar: o institucional, o coletivo ou comunitário e o pessoal. Esses níveis não devem ser encarados ou procurados nas narrativas de maneira completamente separada, já que não se apresentam assim – ao contrário, as lembranças dos sujeitos e a maneira como aquelas são relatadas evidenciam o entrelaçamento e a constante comunicação entre os diferentes níveis. Portelli lembra também que “A colocação de um evento em um nível não é intr ínseco ao pr ópr io evento, mas à per spectiva do nar r ador . Uma guer r a pode ser nar r ada como a conseqüência inevitável do capitalismo imper ialista, como uma catástr ofe que causou a destr uição de uma cidade natal, ou como a exper iência pessoal de luta e tr agédia da per da de par entes e amigos.” 225

A título de exemplo, cita entrevista com um ordenança da Marinha que só lhe relatava como conseguia enganar os oficiais para poder beber – enquanto isso uma guerra acontecia, evento que só foi referido pelo tal depoente nos últimos cinco minutos da entrevista. Passagens como estas são comuníssimas em depoimentos, e evidenciam a multiplicidade da

224 225

KHOURY, Yara Aun. “Muitas memórias, outras histórias: a cultura e o sujeito na história”, p.128-134. PORTELLI, Alessandro. “Os momentos da minha vida: funções do tempo na história oral”, p.307.

169

memória e da vivência da história. No âmbito dessa dissertação, ver-se-á como as lembranças ora privilegiam um enfoque ora outro: o institucional, o militaresco, o pessoal, o “subterrâneo” – lembrando que, tal como mostra Portelli, a ‘forma pura’ sempre permanecerá nos textos teóricos, já que, na maior parte dos discursos, o que se percebe é a mescla de várias tendências. Agora, analisar-se-á o surgimento das AECBs e de que forma essas se apresentam na configuração da(s) memória(s) da FEB. As Associações nasceram e portaram, durante a sua existência, numerosas funções que variaram de acordo com as demandas dos excombatentes, bem como as flutuações das várias esferas que as influenciaram: políticas, culturais, sociais e econômicas. Após a volta para o Brasil, as Associações, até hoje, consistiram em referência indispensável aos ex-combatentes – obviamente com intensidades diferentes – de forma que, sem elas, dificilmente a comunidade dos febianos permaneceria unida, sobretudo frente à dispersão daqueles pelo território nacional. Assim, nesses sessenta anos de existência das Associações, vários objetivos foram estipulados – uma pequena parte atingida –, a luta pelos direitos teve o seu auge – e hoje se encontra arrefecida –, mas ainda tais entidades continuam sendo o referencial de encontro dos excombatentes e de suas famílias, bem como a instituição mais representativa dos febianos e que, durante todo esse tempo, preocupou-se com a manutenção e (re)construção da memória e a realização de comemorações. Joaquim Xavier da Silveira, ex-combatente da FEB, diz em suas memórias que ainda na Itália já se aventava a criação de uma associação que congregasse todos os expedicionários brasileiros que participaram da guerra na Itália226. Tais associações já eram

226

SILVEIRA, Joaquim Xavier da. “A FEB por um soldado”, p.247.

170

tradição em países como Estados Unidos, França e Inglaterra, sendo bastante provável que, do contato entre os expedicionários brasileiros e os aliados, viesse essa iniciativa. Esse caráter associativista típico dos círculos militares, seria mais uma das influências que recairia sobre os expedicionários – junto disso, a distância de casa e as condições peculiares a que foram submetidos ajudava na comunhão dos sentimentos e, por extensão, na consolidação de uma identidade que, sendo vista como algo caro aos que estavam na guerra, deveria ser mantida após a volta para casa. A idéia não morreu na Itália, ela cruzou o Atlântico com os expedicionários, e já em outubro de 1945 se formava a primeira Associação dos Ex-Combatentes do Brasil – com sede no prédio do Antigo Silogeu Brasileiro, na Avenida Augusto Severo, n.4, no Rio de Janeiro. As intenções iniciais da AECB já se voltavam para os impasses da reincorporação, haja vista a maneira descuidada com que o Ministério da Guerra fez a desmobilização dos praças – preocupado unicamente com questões políticas, e não com o bem-estar dos desmobilizados ou com o aproveitamento do contingente recém-chegado para a atualização do Exército Nacional. Em pouco tempo a Associação cresceria, seja em número de sócios, seja na quantidade de sedes espalhadas pelo país – já no ano seguinte, 1946, várias AECBs foram criadas: em Belo Horizonte, São Paulo, Paraná etc., depois, ainda se espalhariam por dezenas de cidades do interior. Inicialmente eram aceitos como sócios nas Associações apenas os expedicionários que participaram da Campanha da Itália. Depois da realização do primeiro Congresso Nacional das Associações em 1946, foram incluídos no primeiro estatuto, também deste ano, os integrantes da Marinha de Guerra que tivessem participado de operações de patrulhamento litorâneo durante o conflito, bem como da Marinha Mercante – esta, alvo dos torpedeamentos por submarinos alemães. Com o tempo, e as chamadas “leis da praia”,

171

ampliou-se demasiadamente a definição de quem eram os ex-combatentes o que, a médio prazo, levou as os febianos à condição de minorias nas suas próprias Associações. Ainda de acordo com o primeiro estatuto, eram objetivos das AECBs: “... pr omover a integr ação social entr e os veter anos de guer r a, r epr esentar seus inter esses coletivos com as autor idades, pr eser var e pr omover a memór ia dos feitos br asileir os na Segunda Guer r a Mundial, ofer ecer , dentr o de suas possibilidades, assistência social e jur ídica àqueles companheir os em dificuldades e lutar pela valor ização da paz nas r elações sociais nacionais e inter nacionais.” 227

Ainda nessa primeira fase, as Associações dispunham de um caráter eminentemente civil, não dispunham de nenhum tipo de “fidelidade regimental”228, ou seja, foram surgindo, em sua maioria, não nas cidades-sedes dos Regimentos que compuseram a FEB – 1o, 6o e 11o R.I. –, mas sim nas cidades de onde saíram os expedicionários. Apesar dessa dimensão civil e destinada à luta pela assistência e apoio aos ex-combatentes, o estatuto proibia a adoção de práticas políticas de cunho partidário. A AECB reformaria seu estatuto em diversas ocasiões: 1954, 1960 e 1972, mas tais princípios impedindo a vinculação da Associação com partidos políticos nunca seriam alteradas – e isso não tardaria em causar conflitos. As AECBs se estruturaram de forma que todos os integrantes dispusessem de igualdade de poderes e de condições de ocupar qualquer secretaria, dessa forma, os sócios se organizavam em chapas que, se eleitas, converter-se-iam nas diretorias cujo período de mandato era predefinido pelo estatuto. Assembléias Gerais poderiam ser convocadas em situações especiais, seja para as eleições da diretoria, seja para discutir questões que exigissem a opinião de uma parcela maior dos associados. Há ainda o órgão máximo das AECBs, sediado na sede nacional no Rio de Janeiro e composto por delegados de todas as Associações do país, que é o Conselho Nacional das AECBs – em cujas convenções se

227

Estatuto da AECB, 1946. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.244.

172

definiam as políticas a serem seguidas pelo menos até a troca de cadeiras, que se dava a cada dois anos. Nesses primeiros anos de existência da AECB, as diretorias eram compostas, sobretudo, por praças e/ou oficiais subalternos da reserva que, vendo a situação em que se encontravam seus colegas de trincheira, procuraram dar algum apoio. As primeiras diretorias, sobretudo nas regionais de São Paulo e Rio de Janeiro, tinham em sua composição vários ‘elementos comunistas’, o que geraria uma série de embates e disputas que culminariam com a expulsão destes e a tomada das rédeas das Associações por indivíduos ligados às Forças Armadas em 1949 – já sugerindo a ‘guinada’ política, dos anos cinqüenta, que privilegiaria não a confrontação, mas a negociação e colaboração na busca pelos direitos229. Ex-combatentes como Pedro Paulo Sampaio de Lacerda – futuro candidato à vereança pelo PCB – o Partido Comunista do Brasil –, Salomão Malina – que chegaria a vice-presidência da AECB/DF – então no Rio –, Jacob Gorender, entre outros “Afeitos aos trabalhos de organização sindical e associativa (...) ocupavam posições nas diretorias das seções e, posteriormente, no Conselho Nacional.”230. Com a legalização do PCB em 1945, tornou-se impossível que as disputas de cunho político partidário ficassem distantes das Associações e “A par disso, a dir eção da Associação começou a tomar mediadas de car áter político [leia-se “de esquerda”], par ticipando ostensivamente de alguns movimentos político-par tidár ios da época, sobr etudo os de nítida or ientação esquer dista. Não er a a intenção, nem os desejos dos que inicialmente levar am a cabo a idéia de sua cr iação. Começou então a fase de nãocompar ecimento à sede da Associação.” 231

FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.243. A criação da AECB/SP partiu da iniciativa do ex-sargento Gervásio Gomes de Azevedo e dos soldados Abrahão Abait, Raimundo Paschoal Barbosa, Dionísio de Vechi e Antônio Sá Rodrigues – sendo os três primeiros ligados ao PCB. Cf.: FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.256. 230 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.257. 231 SILVEIRA, Joaquim Xavier da. “A FEB por um soldado”, p.248. 228 229

173

Ainda nesse âmbito, vale lembrar que as Associações de Ex-combatentes francesas, inglesas e norte-americanas, tanto da Primeira quanto da Segunda Guerras Mundiais, eram extremamente atuantes e não hesitavam em opinar e criticar posições e/ou decisões da política nacional dos seus respectivos países. De fato, vê-se, desde o início desse processo em que os comunistas se envolviam com as Associações, uma política de distanciamento, por parte dos associados, e outra de embate para que os ‘vermelhos’ saíssem de lá, esta levada em frente pelas lideranças conservadoras e por setores das Forças Armadas. Certo é que as causas de uns e de outros na tomada de tal atitude não tinham proximidade de sentido, mas as práticas de ambos acabavam por influenciar, de alguma forma, a política da Associação o que, no final das contas, pesaria muito na vida de grande parte dos filiados – sobretudo em virtude da importância crescente que as Associações foram tomando na vida desses indivíduos. Por parte dos dirigentes e no âmbito dos embates de gabinete houve uma política deliberada de afastamento das chapas e dos ex-combatentes com ‘tendências políticas’, e tais ações não ficaram apenas às voltas da sede nacional das AECBs, mas acabou envolvendo também numerosas de suas filiais pelo país. Em reunião no Clube Militar, sob presidência do Coronel Humberto de Alencar Castelo Branco, também febiano, conjecturou-se a criação de outra Associação, mas a hipótese foi logo descartada, optando-se, ao invés disso, pela criação de uma chapa única nas próximas eleições. A eleição se daria em outubro de 1947, tudo estava já acertado para que esta ocorresse ‘tranqüilamente’ mas, como coloca Xavier, que também parece ser avesso à ‘politização’ da AECB, no dia “... J acob Gor ender , do Par tido Comunista, e ex-integr ante da FEB, no Regimento Sampaio, junto com o pr ópr io deputado Henr ique Oeste [também do PCB], começou a tr abalhar par a outr a chapa, tumultuando os tr abalhos. A r eunião foi agitada, com momentos desagr adáveis, quando par te do plenár io, insuflada pelos ar ticulador es da outr a chapa, vaiou oficiais que comandar am a FEB (...) O ambiente ficou tenso, por que o gr upo da ‘Chapa

174 Única’ foi apanhado inteir amente de sur pr esa, mas, apesar de tudo, ganhou por estr ita mar gem de votos.” 232

A presença de comunistas nas cabeças das AECBs do Rio e de São Paulo não demorou a incentivar o protesto das outras sedes regionais, inclusive das autoridades de outros estados temerosas por um provável ‘contágio’ dos ex-combatentes ali residentes. Em junho 1946, o Comitê Estadual do PCB em Minas Gerais recebeu carta de Luis Carlos Prestes – do Rio – incentivando a fundação de filiais da AECB, pois via nesses agrupamentos um grande potencial na mobilização de “amplos setores da população”. Desejava também a criação de redes entre os ex-combatentes – nas Associações – para apoiar os carentes na busca por empregos e por uma melhor readaptação, e falava ainda na organização de festas e na necessidade de propagandear as Associações233. Tal carta foi endereçada a Jacinto Augusto de Carvalho do PCB/MG, que escreveu outra carta, em termos semelhantes, para o Comitê Municipal do mesmo Partido, em Belo Horizonte234. Cientes do envolvimento de comunistas com as iniciativas da AECB/DF, bem como na própria sede – de forma mais tímida, é verdade –, alguns líderes da Associação de Belo Horizonte demonstraram publicamente repúdio à intromissão político-partidária na sede nacional, bem como a candidatura de um ex-combatente pelo PCB no Rio235. Por sua vez, na AECB/PR, o “ Diário Carioca” noticiava protesto contra a candidatura de Pedro Paulo Sampaio de Lacerda pelo PCB, criticando o “caráter político” pelo qual a sede nacional estava se encaminhando236. Essas movimentações eram divulgadas em vários jornais pelo país, de forma que as iniciativas dos comunistas em meio as Associações de Excombatentes, no Rio e São Paulo, acabavam por levar o estigma a todos, o que,

232

Ibidem. p.249.

175

instantaneamente, bloqueava e dificultava o já parco acesso dos ex-combatentes às autoridades e empresários visando a conquista de direitos e benefícios. Em julho de 1946, o “ Estado de Minas” noticiava a negativa do chefe de polícia do Rio ao requerimento da AECB para a arrecadação de fundos, aquele alegava que o presidente da tal agremiação era “anti-social” e “anti-brasileiro”, e que não poderia separar a pessoa jurídica da Associação da pessoa física de Pedro Paulo Sampaio de Lacerda237. Obviamente que no Rio, também, tal notícia ganhou as páginas dos jornais, ao que a polícia dos outros estados estavam atentas e coletavam esse material de modo a ter ciência sobre a posição dos comunistas nas Associações de Ex-combatente, conforme prova outro recorte de jornal dos arquivos do DOPS/MG: “O chefe de polícia diz que o Presidente [da AEBC/DF] não pode merecer a confiança das autoridades”238. Enfim, já estávamos em tempos de Guerra Fria, uma nova onda anticomunista surgia, e o já velho discurso da ‘caça as bruxas’, mais uma vez, colocava as pretensões do governo, entre outros vários setores da sociedade e grupos políticos, na dianteira. A jornada anticomunista dentro das AECBs terminaria já em 1949 quando se conseguiu afastar das direções e conselhos todos os indivíduos que tivessem alguma ligação com o Partido Comunista. Dessa forma, pelo menos no âmbito dos dirigentes e do posicionamento institucional, já no início dos anos cinqüenta, pode-se ver a reviravolta

Carta de Luis Carlos Prestes a Jacinto Augusto de Carvalho – Arquivo Público Mineiro – Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”. 234 Carta de Jacinto Augusto de Carvalho ao Comitê Municipal do PCB/BH – Arquivo Público Mineiro (APM) – Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”. 235 “ O Radical” , Rio de Janeiro, 19/11/1946, p.7. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”. 236 “ Diário Carioca” , Rio de Janeiro, 19/11/1946. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”. 237 “ Estado de Minas” , Belo Horizonte, 05/07/1946. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”. 238 “ O Radical” , Rio de Janeiro, 09/07/1946, p.7. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”. 233

176

ideológica das Associações, bem como a valorização do discurso anticomunista e da não politização da AECB, em defesa da “democracia e da liberdade”: “(...) Mas, o motivo de eu escr ever essa pequena nota, e o de chamar a atenção aqui par a os companheir os daqui e de todo o Br asil que não temos a pr aga que dificulta o bom funcionamento em gr ande par te das Seções do país: o comunismo! Não car os companheir os, nunca tivemos anter ior mente, não ter emos agor a e nem nunca pr etendemos ter idéias totalitár ias aqui! Par a felicidade dos ex-combatentes, as Seções de for a que lutavam com esse pr oblema estão agor a com dir eções segur as e temos a cer teza que essa pr aga foi exter minada par a sempr e. Vamos ter sômente a ‘nossa camar adagem febiana’ que é a mais pur a DEMOCRACIA! Essa pr aga de comunistas já nos pr ejudicou muito a sobr evivência da Associação. Somo hoje 33 seções pelo Br asil afor a [atualmente são 41] e temos um Conselho Nacional, também felizmente livr e ‘dêles’. Vamos cada vez nos unir mais e mostr ar aos nossos patr ícios e ao mundo que os ex-expedicionár ios br asileir os, os veter anos da II Gr ande Guer r a, os ‘pr acinhas’ que mostr ar am que ‘somos dur o de r oer ’, são DEMOCRATAS e r enega tôda e qualquer for ma de totalitar ismo! HGV” 239 (todos os grifos são do autor)

Dessa forma, convertiam a luta da FEB contra o totalitarismo nazista, durante a guerra, na luta contra “qualquer forma de totalitarismo”, na paz, procurando ‘exterminar’ esse novo inimigo da segurança nacional: o comunismo infiltrado – e que, se se pensar de forma pragmática – atrapalhava mesmo a existência da Associação. Desse modo, juntamente do mito afirmando que a FEB trouxera a democracia da Itália, era fundada uma espécie de tradição em que os febianos seriam os defensores das ‘liberdades democráticas’ – seja lá o que isso significava naquele contexto. Era, enfim, o alinhamento definitivo com a política governista da época e, mais tarde, com as próprias Forças Armadas, o que definiria em larga escala os caminhos da memória institucional/oficial da FEB. Tal como se dá com a memória dos ANZAC na Austrália, não, obviamente, com o mesmo peso, a guerra da FEB foi usada como um dos elementos que compuseram o “baluarte” de toda política conservadora de um período específico da segunda metade do século XX, que culminou

239

“ A Cobra Fumando” , Belo Horizonte, março/1951, p.6. Hemeroteca Municipal de Belo Horizonte.

177

com o fatídico Golpe de 1964240. Pelo lado da grande parte dos desmobilizados, na verdade, não eram as questões de cunho ideológico que os levava a se distanciar das associações ou optar por não se tornarem sócios – apesar de se saber que cerca de 40% dos integrantes da AECB/SP se associaram já entre os anos de 1946 e 1951241 –, mas sim questões mais ‘pragmáticas’ como a busca por assistência, distância das sedes ou mesmo a falta de informação. A despeito de intrigas políticas do mundo palaciano, a esmagadora maioria dos excombatentes passava por situações dramáticas como as que já foram colocadas anteriormente, de forma que, num primeiro momento, a corrida às Associações deveu-se à necessidade de atendimento dos problemas básicos ou, à medida que as “leis da praia” foram ampliando o conceito de ex-combatente, de interessados em assistência jurídica para a aquisição dos direitos até então reconhecidos242. A partir de entrevista concedida pelo excombatente João Viana de Oliveira, Patrícia Ribeiro mostra como a candidatura de Pedro

Cf.: THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e as memórias”, p.54-55. 241 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.251. 242 Sobre a corrida às Associações, entre os anos de 1946 e 1951, Francisco Ferraz coloca que: “Não é possível, pelos dados de que dispomos, saber se o entusiasmo inicial de formar uma agremiação social de veteranos deveu-se, neste momento, a uma vontade de manter a chama da fraternidade dos fox-holes ou à de se recorrer a um órgão de assistência social e encaminhamento de empregos a veteranos necessitados.”, p.251. Por outro lado, a partir de fontes qualitativas, creio ser possível afirmar que a preocupação primeira desses excombatentes, nessa fase, era estritamente assistencial – o que não significa que a “chama da fraternidade dos fox-holes” tenha apagado, esta permaneceria reservada na memória, para surgir numa outra oportunidade, já quando do ‘terceiro tempo da memória da FEB’. Por meio de entrevistas, foi possível verificar que para vários ex-combatentes era difícil conciliar o trabalho com a participação nas atividades das Associações, tanto que a presença mais marcante, nessa fase, era de oficiais e praças da reserva ou ativa. bem como de ex-combatentes que, por algum meio, já haviam conquistado uma pensão. Por fim, de fato, é difícil averiguar, por meio de métodos quantitativos, o porquê da filiação em uma Associação desse tipo, não seria incomum constatar que recém filiados, não tendo as suas demandas atendidas, se dispersassem. Exemplo disso, pode ser visto no onipresente problema com a inadimplência que todas as sedes da AECB tinham, no que toca às contribuições mensais dos filiados – o próprio Ferraz coloca que em 1948 a Associação do Paraná, que contava com 2688 sócios, contava apenas 478 deles pagando periodicamente as mensalidades (p.259). Enfim, tais colocações apontam para uma categórica diferença entre os métodos de cunho quantitativo, que visualizam o “o que”, e os qualitativos, que trazem à tona o “porquê”. 240

178

Paulo Sampaio de Lacerda, bem como a ‘politização’ das Associações, poderia ter ajudado na dispersão dos associados – e os motivos não são, diretamente, ideológicos: “(...) todo mundo ficou acr editando que a associação er a um antr o de comunista. Quando mandava uma car ta par a conseguir um empr ego par a o ex-combatente [prática comum adotada por Associações de todo o país], ele não er a bem r ecebido. Não ganhava empr ego. Não er a bem quisto (...)” 243

Ou seja, a partir disso, a primeira atitude a se tomar não seria outra senão o afastamento da AECB, que seria revertida anos depois, apenas quando as ‘coisas já tivessem se acertado’ e a saudade dos laços que uniam as ‘comunidades das trincheiras’ tivesse espaço e condições de reassumir a primazia das suas lembranças – para muitos, por períodos tempo diferentes, a FEB teria que ser ‘esquecida’. Caso contrário corriam o risco de se converterem em estigmas ambulantes, de modo que a imagem que faziam de si mesmos não encontraria nenhuma ressonância entre a sociedade, o que consistia tanto num impasse para a saúde mental, quanto para a sobrevivência material244. Apesar destes percalços entre as Associações, os comunistas e os outros excombatentes, no final das contas, a maior parte da assistência, nesse primeiro momento, pelo menos até as relações entre os ex-combatentes e as Forças Armadas mudarem de cor, acabaria mesmo sendo fornecida pelas AECBs. Dessa forma, para grande parte dos excombatentes, hoje, o que se mostra de forma mais consolidada é o período do ‘corre-corre’ assistencial: “... aqui em Belo Hor izonte eu pr esidi a Associação dos Ex-Combatentes... você pr ecisava ver r apaz... o mundo de ex-combatente desempr egado... a quantidade de viúvas na misér ia... r apaz, eu quase fiquei louco... tir ava dinheir o do bolso, fazia listas e mais listas com os meus colegas, par a socor r er aqui... socor r er um enter r o, socor r er uma viúva doente, ar r umar

RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória...”, p.186. Cf.: em THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, a dramática situação em que se viu o ex-combatente Fred Farrall, que teve todas as suas lembranças pessoais negadas pelo mito público dos ANZAC, e suas misérias ignoradas pelo governo que alimentava tal versão dos fatos. 243 244

179

mater ial didático par a os filhos da viúva... colega desempr egado, ar r umar passagem etc...” 245

É claro que isso não significa que os embates ideológicos tenham sumido das lembranças, mas sim que, seja pelo fato da ‘poeira ter baixado’, ou em virtude das polêmicas da Ditadura Militar alguns perceberem esse tema como um tabu, atualmente são menos consideradas. Para a maioria dos entrevistados, o descaso do governo e das próprias Forças Armadas, bem como os momentos pelos quais passaram, acabou por sobrepujar os embates ideológicos do passado – e isso mesmo entre as lideranças das Associações. Vale colocar, entretanto, que isso diz respeito aos depoentes que adotaram como identidade central de suas personalidades a personagem de ex-combatentes. Alguns dos depoentes entrevistados por Francisco Ferraz, como Jacob Gorender e o General Plínio Pitaluga, por exemplo, mantêm na linha de frente de suas recordações os embates políticos, as vitórias e derrotas dos comunistas e por aí vai246. Ou seja, são memórias de homens públicos, cuja trajetória na política foi muito além do embate pela direção das Associações. Eles possuem uma percepção da realidade que privilegia pontos de vista menos localizados e/ou individuais, em prol de níveis mais amplos, como a concorrência das nações e os embates de idéias político-filosóficas. Enfim, o que está em questão, é a diferença dos caminhos e escolhas feitas pela memória entre os vários ‘estratos’ existentes na realidade. Em suma, é a partir das categorias mais palpáveis, de acordo com os julgamentos de cada sujeito, que a memória se estrutura: “Olha, isso aí é uma tr agédia [a reincorporação dos ex-combatentes]... nós, que estávamos com a cabeça no lugar , nos congr egamos e fundamos a... eu fiz par te do cor po r edator da Associação dos Ex-combatentes de Minas Ger ais... não tínhamos sede não. Reuníamos debaixo de ár vor es (...) Não tinha sede... tinha um livr o de ata... nos r euníamos debaixo de ár vor e aqui na [Avenida] Afonso Pena... ver ificava quem estava pr ecisando de ajuda, cada um dava

245 246

Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002. Cf.: FERRAZ. “A guerra que não acabou...”.

180

um pouco de dinheir o, compr ava alimentos par a e ele e par a a família, r emédios, inter nava. O Exér cito? Não tomou par te. Depois é que começou a sur gir , pela necessidade que... sur gir am as entidades de saúde (...) as associações tomavam conta do pessoal da cidade, os ex-combatentes que estavam aqui... a gente r ecolheu esses veter anos de guer r a, que de desgosto começou a beber , beber , beber ... r ecolhia na sar jeta...” 247

Outro ex-combatente, que também se envolveu desde o início com a formação da AECB/BH, e apoiou, segundo fontes de outra natureza averiguadas no arquivo do DOPS/MG248, a luta contra os comunistas nas seções do Rio e de São Paulo, hoje parece ter diminuído a importância de tais fatos valorizando, por outro lado, as péssimas situações a que foram submetidos após a volta para casa: “Belo Hor izonte foi uma das vítimas pr incipais, por que a tuber culose só er a tr atada, pr aticamente, em Belo Hor izonte, não é? Então... er a um acúmulo de companheir os que vier am de outr os estados par a tr atar de tuber culose aqui; sem dinheir o e sem r ecur sos, e que nós tivemos que tir ar dois de um, dois de outr o, dois de outr o... constituir mos um fundo par a poder ajudar essa gente e. então foi um sofr imento muito gr ande: muita gente se suicidou, muita gente mor r eu de neur ose, muita gente se matou... nós tivemos companheir os aí que mor r eu em br iga, de faca na mão, sangr ando, um caía mor to par a lá, outr o caia mor to par a cá...” 249

Durante a entrevista, falando sobre o surgimento e as funções cobertas pelas AECBs, as contendas com os comunistas nem de longe foram abordadas. Por outro lado, um elemento não deixaria de se mostrar claramente: a crescente aproximação entre os ex-combatentes e o Exército, fruto tanto de uma política repressiva por parte desses às divergências internas das Associações, quanto, apesar de tudo, de terem sido um dos únicos setores a lhes fornecer algum tipo de apoio e não relegar suas experiências ao completo esquecimento. v Apesar do fato das muitas funções que a AECB cumpriu variar em intensidade e prioridade no decorrer da sua história, pode-se afirmar que a imensa maioria dos ex-

247

Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002. “ O Radical” , Rio de Janeiro, 19/11/1946, p.7. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”. 249 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001. 248

181

combatentes tornaram-se sócios por um número determinado de razões. Durante todo esse tempo as Associações nunca deixaram de ser um local de atividades heterogêneas: representavam os ex-combatentes em questões políticas, faziam campanhas para melhorar a vida dos seus associados – chegando até a proferir cursos técnicos ou de educação básica –, organizavam eventos, consistiam num local para encontros e conversas e entretenimento em geral, conseguiam apoio médico e atuavam em atividades assistencialistas em geral. As Associações serviam também como um espaço para a fuga da incompreensão civil sobre a experiência da guerra e suas conseqüências. Lá, os ex-combatentes poderiam tratar de seus assuntos sem autocensura, usar a ‘linguagem do front’, lembrar os colegas mortos, as situações cômicas, as tochas etc. – enquanto isso, memórias e identidades estavam sendo reformuladas a todo tempo. Mas como se deu esse processo no contexto da ‘guinada ideológica’ da AECB? Quais foram as principais mudanças? Como já se viu, inicialmente as Associações contavam com forte caráter civil, mesmo sendo dirigida por oficiais militares subalternos – freqüentemente dos CPORs – ou soldados. Isso aconteceu porque, num primeiro momento, tudo o que o Exército queria era distância dos ex-combatentes, temendo algum tipo de envolvimento político destes com a derrocada do Estado Novo. Por outro lado os dirigentes ligados ao PCB visavam transformar as demandas dos febianos numa espécie de movimento social, de forma que seria por meio de passeatas, firmes reivindicações e com largo número de pessoas que isso aconteceria. Objetivava-se, ainda, o envolvimento das Associações com questões como a reforma agrária e as manifestações pelo petróleo – temas que ficavam expressos nos periódicos da AECB/DF250. Mas foi um evento ocorrido em 1947 que serve para evidenciar o caráter civil com que a AECB

250

FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.267.

182

contava até então: foi o chamado “Desfile do Silêncio de 23 de junho”, no Rio de Janeiro. Juntamente com uma série de organizações civis – estudantes, imprensa, políticos e partidos etc. – cerca de 3.500 ex-combatentes, acrescidos, depois, de populares, saíram às ruas a fim de entregar um memorial251 à Câmara dos vereadores e dos deputados com uma série de reclamações e demandas do grupo em questão: “Às 13 hor as do dia 23, já a sede da Associação se encontr ava r epleta de pr acinhas. Logo depois, o desfile começou, silenciosamente, dentr o da mais per feita or dem, sem necessidade de vozes de comando. Abr ir am a manifestação os emblemas, em gr ande for mato, da “Cobr a Fumando” e da Associação de Ex-Combatentes, tr ês gr andes painéis apr esentavam quadr os pintados de maneir a impr essionante: uma cena de combate sobr e a neve, o cemitér io de Pistóia, desolado e solene e o r egr esso tr iunfal da tr opa. Em jipes e automóveis desfilar am os mutilados. A sér ie de faixas er a iniciada por um dístico com estes dizer es: – ‘Sêde Bem vindos, Ir mãos quer idos – Isso foi quando r egr essamos...’. Logo depois, um car taz per guntava: – ‘E agor a?’. A r esposta vinha mais adiante: – ‘Pr acinhas Tuber culosos’, – ‘Pr acinhas dor mindo ao r elento’, – ‘Pr acinhas se suicidam’.” 252

Suspendeu-se a sessão da Câmara dos vereadores, houve uma série de discursos de excombatentes e da diretoria da AECB, políticos também aproveitaram a ocasião e o memorial foi entregue. Nas semanas seguintes, algumas medidas foram tomadas, mas alguns meses depois tudo já havia sido esquecido e a situação continuou da mesma maneira. Em outras ocasiões, a AECB participou de comícios públicos que chegaram até a acabar em quebra-quebra. Em fevereiro de 1948 uma nova chapa assumiu a direção da Associação carioca; ela era composta por não comunistas e as estratégias adotadas até então não seriam mais consideradas. Criticou-se duramente o formato dado ao “Desfile do Silêncio”, argumentado que se movimentou muita coisa, expuseram-se os ex-combatentes mutilados ao ridículo e de maneira demagógica, para que os resultados obtidos não dessem em nada. Nesse movimento, juntamente com a posterior militarização da AECB, “... os exOs ‘memoriais’ eram documentos preparados pelas AECBs e destinado aos políticos e autoridades em geral – neles estavam contidas as reclamações, demandas e requisições dos ex-combatentes. 251

183

combatentes das associações transitaram da mobilização contestadora das autoridades e instituições para um padrão cerimonial conservador e eminentemente laudatório às instituições militares.”253. A primeira atitude tomada pela nova chapa, como já se viu, foi procurar afastar os comunistas dos cargos decisórios bem como dos quadros em geral – na verdade, a declaração da temporada de ‘caça as bruxas’ envolvia círculos bem mais amplos. Com a tomada da presidência do Clube Militar pelos ‘internacionalistas’ da ESG, os integrantes da corrente ‘nacionalista’ começaram a ser perseguidos, entre eles os comunistas – civis ou militares – datando dessa época, também, a perseguição aos ex-combatentes que permaneceram nas linhas do Exército, mas que eram considerados, todos, nacionalistas e afeitos à participação das massas na política – segundo prescrevia o modelo estadonovista. Tais eventos apontam mais uma vez em que medida a FEB era vista como um apêndice do Estado Novo o que não impediria, mais tarde, de que fosse vista, pelas próprias Forças Armadas, como a paladina da ‘democracia’. Começava aí a formatação da memória oficial da FEB que contou, de fato, com o apoio ou endosso de grande parte dos ex-combatentes – para muitos, era a única instituição que os respaldaria. Nas primeiras fases dessa reviravolta, é possível ver os comportamentos e manifestações as mais híbridas possíveis por parte dos indivíduos. Caso interessante é relatado por Leonércio Soares sobre um ex-combatente que, mesmo morando num barracão abandonado e tendo que vender iscas de pesca para sobreviver, ainda conseguia arrumar

LEAL, José. “O outro lado da glória; III – A primeira decepção dos heróis”. “ O Globo” Rio de Janeiro: 12 setembro 1957, p.13. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.269. 253 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.271. 252

184

tempo e ânimo para participar dos desfiles de 7 de setembro – quando, então, as AECBs passaram a participar desses eventos oficiais: “...Está per to, o gr ande dia! O mais bonito de todos. O nosso pr esidente da Associação está pedindo pr á todo mundo compar ecer ; não é pr á ninguém faltar (...) Eu não per co um desfile de 7 de setembr o! Hei Br asil, quer ido! A gente fica impor tante, fica gr ande. É festejado. O povo bate palmas, gr ita e aplaude quando os pr acinhas passam. Beleza de dia! Tantas bandeir inhas balançando na mão de todos. É linda a festa do gr ande dia!” 254

Caso semelhante foi averiguado por Alistair Thomson entre alguns de seus depoentes excombatentes dos ANZAC – ele mostra que não era incomum veteranos que, mesmo discordando do mito oficial, e encontrando sérios problemas para a reincorporação, participavam das paradas anuais do Anzac Day – e isso por mais de sessenta anos. Num estágio mais avançado, fala de ex-combatentes que contavam casos, anedotas e experiências que vinham dos mitos e das histórias oficiais, como se fossem passagens experimentadas por eles próprios255 – é o chamado “vivido por tabela”, do qual fala Michel Pollak256, elemento comum quando da convergência entre as memórias individual e coletiva. Apesar disso, o processo de militarização da memória institucional tornara-se inexorável, ao passo que as Associações começaram a copiar a própria estrutura e lógica das Forças Armadas, elegendo para as diretorias e conselhos os ex-combatentes que fossem das mais altas hierarquias257. É claro que nisso continha, também, uma dimensão prática; quem melhor do que o alto oficialato para negociar com ele mesmo? Nesse contexto, o discurso da AECB tornava-se mais contido, de modo que “Os Pronunciamentos públicos dos dirigentes evitavam as considerações mais críticas, limitando-se a criticar

SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas...”, p.25. THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.7-8. 256 Cf.: POLLAK, Michael. “Memória e Identidade Social”. 257 FERRAZ, Francisco César Alves. “Os veteranos da FEB e a sociedade brasileira” In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (orgs.) “Nova História Militar Brasileira” Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p.384-385. 254 255

185

eventualmente o não-cumprimento da assistência legal aos ex-combatentes.”258. Essa seria a tônicas das décadas posteriores. Foi, entretanto, no correr dos anos cinqüenta e sessenta que tal tendência ‘militarizante’ se consolidaria – e um fato em especial pode ser interpretado como a coroação de tais princípios, pelo menos no contexto da memória institucional: a construção do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, em 1960, no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro. Convertido em lei por decreto presidencial em 1952, o MMSGM foi idealizado justamente no período em que se dava a guinada ideológica dentro das Forças Armadas, que seria, a partir de então, encabeçada pelos ‘esguianos’. Segundo as pesquisas de Ana Maria Mauad259, a construção do monumento passaria por três fases: 1952/55, do decreto presidencial até o lançamento do edital público; 55/56, o processo de escolha do projeto a ser executado; e 56/60, que corresponde no período da liberação dos créditos até a conclusão da obra. A comissão que dirigiu todo o processo era formada exclusivamente por militares e, “De fato, o monumento, como foi proposto pela equipe ganhadora do concurso, sintonizava-se plenamente com o projeto das Forças Armadas para a construção de um lugar de memória da guerra, caracterizado por atributos de grandiosidade e distanciamento.”260. A escolha do projeto vencedor ficou restrita aos círculos militares e aos meios acadêmico e arquitetônico, paradoxalmente as Associações, ex-combatentes ou a sociedade em nenhum momento foram consultados. O conceito adotado para a ereção da obra tem estrita consonância com o modernismo proferido pelo Estado na época, valorizou-

258

Ibidem. 385p. Cf.: MAUAD, Ana Maria & NUNES, Daniela Ferreira. “Discurso sobre a morte consumada: monumento aos pracinhas”. 260 Ibidem. p.80. 259

186

se intensamente os caracteres militares e a glorificação da morte e da bravura como um ato cívico – nesse meio, a origem civil da massa dos expedicionários já tinha sido ‘esquecido’. Era objetivo, ainda, do MMSGM, servir de túmulo aos restos mortais dos expedicionários então enterrados no cemitério de Pistóia, na Itália – de forma que um dos mortos ficaria com um túmulo em destaque na plataforma do monumento. Qual foi o expedicionário selecionado para tal? Um dos não identificados. Era o túmulo do soldado desconhecido, de forma que a história e o sofrimento privados sucumbissem à história nacional, pois “O soldado desconhecido é o exemplo máximo [dessa idéia]: sem um nome, pode ser todos; sem uma família, pertence à Pátria; sem um tempo, escreve a ‘História da Nação’.”261. Tal monumento, ainda segundo a autora, guarda semelhanças com os monumentos europeus da década de 1930 que eram, antes de tudo, a representação cívica da morte e do sacrifício – num contexto de ampla valorização de um discurso revanchista – pelo menos no lado alemão. Dentro do Museu, situado abaixo da plataforma onde descansa o soldado desconhecido, encontra-se um painel que conta a história da participação brasileira na guerra de forma pictórica. Da esquerda para a direita, a história é contada cronologicamente por meio de etapas bem definidas – pelos projetistas, é claro: “- um gr upo de figur as, que er guem suas vozes contr a o afundamento dos navios br asileir os; - cinco gr upos de combatentes, simbolizando as cinco ações pr incipais em Camaior e, Monte Castelo, Castelnuovo, Montese, For novo, que concentr ar am o fogo das suas ar mas sobr e o monstr o destr uidor – nazifascismo – ameaçador , apocalíptico; - gr upo e figur a em homenagem às enfer meir as da FEB (...); - o r egr esso tr iunfal apoteótico e tr iunfal, quando os expedicionár ios são r ecebidos pela família e pela mãe Pátr ia (...);

261

Ibidem. p.92.

187

- o r etor no ao tr abalho dos ex-combatentes que, em suas labutas diár ias, constr óem o futur o da Pátr ia, velados por uma figur a que simboliza a Paz, a Far tur a e o Pr ogr esso; (...)” 262

Apesar dos ex-combatentes afirmarem gostar do Monumento, percebe-se que poucos compreendem os seus significados e, tal como ele se apresenta no espaço da cidade e para os civis cariocas, se mostra também para os ex-combatentes: distante, impalpável, esmagador. A última etapa do painel, aqui referida, diz respeito à reincorporação dos excombatentes e, mesmo numa análise superficial, é incontestável a afirmação de que para muitos tal trecho do painel deveria beirar a puro sarcasmo, de forma que uma minoria de ex-combatentes procurou responder à ‘brincadeira de mau gosto’ nos mesmos termos: “A pátria engrandecida está levantado um monumento para guardar os ossos dos que estão em Pistóia. Milhões gastos em flôres. Milhões em estátuas. Dizem que na placa de bronze escreverão apenas: ‘– Êsses ao menos não chateiam mais’.”263. E de forma mais abrangente, coloca Leonércio: “Tudo que se r efer e aos veter anos da 2o Guer r a Mundial, no Br asil, assume velada e maliciosamente uma significação depr eciativa; sofr e detur pações. A começar por essa denominação idiota, inventada par a designá-los: ‘Pr acinha’. Haver á tr atamento mais estúpido e cr etino que esse?! Um diminutivo infame, como se os veter anos de guer r a fossem uns coitadinhos: – É uma expr essão car inhosa pr ópr ia dos sentimentos do povo br asileir o! – pr ocur ou ar gumentar uma ingênua e bondosa senhor a do Tr ibunal de Contas da União, em Br asília. Manifestação car inhosa par a os tr ouxas. É um diminutivo e, como todo diminutivo, estabelece uma situação de dependência e de infer ior idade do designado. É uma designação tor pe e canalha que, alguém, mal intencionado, inventou e os simplór ios, sem se dar em conta, aceitar am. A par tir daí o deboche vem pr evalecendo até o ponto de consider á-los loucos de guer r a. O pr ópr io Monumento aos Mor tos da 2o Guer r a Mundial (...) assume uma imagem depr eciativa. Longe de ser o monumento que r epr esentar ia a gr andeza e o ar r ojo do ato dos que tombar am, em campo de batalha, em nome da Pátr ia!” 264

262

Guia de visita do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, p.9. NASSER, David. “Os vencidos da grande vitória”, p.346. 264 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas...”, p.347. 263

188

As cerimonias realizadas, ainda hoje, no MMSGM detêm igualmente forte caráter militaresco: autoridades e alto oficialato das Forças Armadas em palanque acima do nível dos ex-combatentes, desfiles marciais, revistas de tropas, entrega de medalhas e condecorações, discursos patrióticos e tratando a guerra em termos grandiloqüentes aonde o único sujeito é o “Soldado Brasileiro” e por aí vai. A divulgação dos eventos só permanece no âmbito militar e familiar dos ex-combatentes, como se tudo aquilo não tivesse a ver com a sociedade civil brasileira. O decreto presidencial no 3.645 de 15/10/1959, encerraria qualquer possibilidade de se reverter os sentidos até então atribuídos ao Monumento – pois ele o transferia para o patrimônio das Forças Armadas, ficando a sua administração e cuidados sob sua responsabilidade265. Outro aspecto que o painel no museu do MMSGM evidencia, são “as cinco ações principais em Camaiore, Monte Castelo, Castelnuovo, Montese, Fornovo” – atitude, na verdade, que já vinha sendo imposta pelo staff da FEB, pelo próprio discurso estadonovista e pela imprensa da época. Como já se viu, a guerra no TO italiano se caracterizou por ações de pequena e média escala, de forma que a maioria dos ex-combatentes participou da guerra por meio de patrulhas, pequenas escaramuças e na manutenção do front, e não lutando em ‘batalhas grandiosas’. Era uma tentativa da memória oficial em ditar a experiência dos sujeitos, atrelando-a ao discurso patriótico e de integração e importância de todos os estados da Nação – pois cada uma dessas vitórias era atribuída ao regimento de um estado: Minas, Rio e São Paulo. Muitos ex-combatentes, hoje, percebem a história da FEB nesses termos, o que não significa que esqueceram de suas experiências pessoais, mas, questionados sobre a guerra,

265

MAUAD & NUNES. “Discurso sobre a morte consumada...”, p.81.

189

se põem a falar sobre generais, divisões e as grandes batalhas da FEB. De qualquer forma, basta um pouco mais de intimidade, para que eles tratem da guerra que viveram, das neuroses, das tochas, do medo, das infindáveis patrulhas, do vino e das signorinas etc. Ou seja, se no âmbito público a memória oficial atende às suas demandas, porque, quer queiram ou não, é uma forma de aceitação e reconhecimento que as Forças Armadas têm para com eles, mas no âmbito da memória individual, sabem que suas experiências pessoais extravasaram em muito o que os militares ‘lembram’. Questionado sobre o ‘regimentalismo’ que existe nas histórias sobre a FEB, M. Couto coloca: “... é um caso que eu venho falando sempr e. Már cio, eu acho uma boçalidade quem diz e quem escr eveu tudo isso... o 11 RI ganhou Montese, 1o ganhou Monte Castello e o 6o Castelnuovo... a maior ignor ância do mundo quem fala isso (...) Eu acho ignor ância pelo seguinte: por que, quantos mineir os mor r er am aqui? Quantos paulistas mor r er am aqui? Er a o Br asil que estava lutando... no máximo, quando havia separ ação... quer dizer , dentr o do estado de Minas, você mor a numa cidade lá do inter ior e não sei o que... ‘Não, quem ganhou foi fulano de tal... e cidade de tal ganhou... ‘... cidade não, Minas Ger ais ganhou... nós todos que estamos aqui (...). O elemento do 6 o RI, conta gar ganta por que entr ou no front pr imeir o...o 1o RI por que ganhou em Monte Castello... agor a, onde é que eu estava? Quando o 1o ganhou o Monte Castello? Eu estava aonde? Estava aqui ó, junto ao lado aqui...bebendo água com o 6 o RI aqui, com o 1 o RI aqui ó...quando nós ganhamos Montese, e o 11 entr ou, onde é que estava o 6 o ? Estava aqui, conosco...o Sampaio estava aqui, conosco...agor a, pelo menos eu tenho uns colegas, que falam que vem aqui em Belo Hor izonte por minha causa...mor am no Rio...vem desfilar aqui, e dizem que é por minha causa...(...). Amizade...um é baiano e outr o é car ioca...mas ser viam no meu pelotão...par a que tem que haver separ ação?” 266

Por aí, percebe-se como alguns pontos ganham destaque, enquanto outros são ‘esquecidos’ ou reprimidos. Até hoje, a polêmica reincorporação dos ex-combatentes, por exemplo, é solenemente ignorada nos eventos oficiais realizados nas unidades do Exército. Dessa forma, em vista da variedade de rumos que os ex-combatentes tomaram após a volta, alguns, como se viu, apenas ganharam em participar da FEB, é possível averiguar como

266

Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.

190

que algumas memória individuais ganham significado público e outras não. Deve-se atentar para o fato de que os discursos oficiais não são, simplesmente, uma espécie de conspiração de cima para baixo – eles são difundidos pelo poder público, mas as pessoas não só podem vir a acreditar em tais versões, como faz sentido junto às suas experiências, indo ao encontro, também, de seus valores e opiniões políticas e pessoais, sem contar o fato de que essa convergência possibilita um relativo ‘conforto’ em suas vidas, muitas vezes depois de anos de sofrimento e amargura267. O próprio caso da justificação da guerra, do qual já se falou anteriormente, é um exemplo disso: os discursos que falavam da mobilização de imensas massas humanas favoráveis à entrada do país na guerra, ganhou eco entre os ex-combatentes, haja vista a falta de razões para explicar a maneira violenta e brusca como foram arrancados de suas realidades quando da convocação, e tiveram as suas expectativas da juventude arrasadas pela guerra. A tendência militarizante da memória institucional da FEB continuou e, de maneira geral, é essa a percepção que se faz dos ex-combatentes. Por outro lado, podemos afirmar que mesmo a memória oficial não é única e homogênea, pois não seria errôneo afirmar que existem duas versões dessa memória: a das Forças Armadas e a das Associações. A primeira, de fato, é mais rígida, laudatória e impessoal; ao passo que a segunda, apesar de em muitos pontos concordar com a primeira, bem como ser amistosa com as homenagens por ela prestada, não deixa de, sempre que possível, longe das comemorações oficiais, lembrar dos problemas da reincorporação, como se pode notar nas entrevistas com os

267

THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.5

191

dirigentes da AECB – bem como do desprezo com que o Exército os tratou logo após a volta para casa, aspecto abordado na maioria dos depoimentos. A título de exemplo: “Hoje o exér cito é muito difer ente do que foi há tr inta anos atr ás... melhor ou muito (...) havia muito ciúmes... os que ficar am aqui desmor alizavam os que tinham ido, mesmo entr e os militar es entr e si... havia aquela ciumeir a, sempr e desvalor izando: ‘Ah, vocês for am passear lá na Itália!’ Tinha muito disso...” 268

Em outro depoimento: “Por que quando a gente estava voltando da guer r a... isso aí é bom você saber ... quando chegamos no Br asil... as nossas insígnias er am de pano... de quem não foi à guer r a er a de... as estr elas er am de metal... latão. As nossas er am emblemas de pano... então quando nós voltamos da guer r a, a maior ia dos militar es que ficar am aqui, que não for am à guer r a... muitos por covar dia, que eu sei de uns quatr o ou cinco que der am par a tr ás antes de ir par a a guer r a... ficar am doente... tomar am compr imido... enchiam tr ês, quatr o, cinco compr imidos de aspir ina... eu conheci, sujeito tomava aspir ina, a pr essão subia, entendeu? Par a não passar nos teste... conheci vár ios. Então, quando nós voltamos da guer r a, eles não gostavam da gente não...nós viemos com o nome um pouco avantajado, quer dizer ... lógico, nós vencemos a guer r a... eu par ticipei, inclusive, da pr isão de 19.000 e tantos, quando vier am mais 1.000 eu não vi, mas até 19.000 pr isioneir os alemães eu par ticipei a ajudar a pr endê-los, botar eles nos caminhões e no campo de concentr ação [se referindo ao campo de prisioneiros]” 269

De qualquer forma, hoje, são poucos os ex-combatentes que não são simpáticos aos militares em geral e que procuram, dentro do possível, estarem presentes nos eventos e datas comemorativas. Caso interessante, entretanto, se vê com o ex-combatente W. Soler, mesmo sendo um dos que mais elogiou as instituições militares durante a entrevista – “é um cerne a ser conservado”, “é o guardião do civismo e da Pátria” etc. –, evidenciou a diferença entre a FEB e o Exército Nacional quando da guerra, falou muito de sua guerra pessoal e, ainda, criou para si uma forma particular de lidar com suas memórias, rejeitando

268 269

Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004. Entrevista com J.J. Silva, Juiz de Fora, dezembro/2004.

192

a grandiloqüência da versão oficial: até hoje Soler não participa de quaisquer eventos das Associações ou das Forças Armadas em respeito aos sfollati. v Nos anos sessenta uma crise surgiria dentro nas AECBs espalhadas por todo o país, levando à cisão de grande parte delas. As “leis da praia” colocaram os ex-combatentes que participaram da campanha da Itália em condição constrangedora dentro de suas próprias agremiações: eram minoria e, acima de tudo, a grande quantidade de militares em situação jurídica semelhante às suas, dificultava ainda mais a conquista dos direitos. Isso porque a conquista da pensão por esse último grupo, significaria a extensão desse direito para mais de 100.000 ‘ex-combatentes. Seja materialmente ou simbolicamente, os ex-combatentes febianos se sentiam, e muitos ainda se sentem, ridicularizados por tais medidas que ampliavam o números de ex-combatentes – mas naquela época, em que dividiam as sedes com os não-febianos e viviam ainda os problemas da reincorporação, uma guerra pela memória e pela identidade foi declarada. Em 1963 era criado, no Rio de Janeiro, o “Clube dos Veteranos da Campanha da Itália” que passou, em 1969, a se chamar AVFEB, ou “Associação dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira” – a nova sede foi estabelecida na Rua as Marrecas, na Lapa, e até hoje continua lá. Em numerosas cidades houve a separação. Em Belo Horizonte os veteranos, como agora se denominavam os ex-combatentes que lutaram na Itália, passaram por várias sedes e, atualmente, ainda têm problemas para a manutenção do prédio que foi cedido pela prefeitura municipal. Em Juiz de Fora, Minas Gerais, a nova sede foi construída, literalmente, pelos próprios veteranos que tinham condições de dar algum material, procurar por doações, bem como tempo disponível para fazer o serviço de pedreiros. Em cidades como São Paulo, Curitiba entre outras, as Associações não chegaram

193

a se cindir, mas tal fato se deu com a maioria das sedes. Em 1972 o nome seria mudado para o definitivo ANVFEB – Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira. Em todas essas fases, apesar das mudanças de nome, um princípio foi levado à risca: “praieiros” ou “patos d’água” não são aceitos como sócios. Hoje ainda é muito forte certo ressentimento contra essa desvalorização da memória que se processou, e em praticamente todos os depoimentos o assunto foi visto como uma injustiça e descaso: “... já a Associação dos pr aianos... constr uír am a sede lá que é uma coisa louca...” (...) “fizer am lá e tem dor mitór io até par a os... (...) nós só os chamamos de patos d’água... ficar am só na água vigiando... ficar am nadando na pr aia (...) ‘Lá não tem nada o que falar , ué? Falar o que?... que ficar am tomando banho na pr aia, dor mindo na cama...e nós lá na Eur opa.” 270

Mas, mesmo assim, não deixa de afirmar que também freqüenta a AECB e que tem amigos lá. Outros, como A. Neto, dizem que o simples fato da viagem já os diferencia dos excombatentes, em virtude das possibilidades de ataque, da escuridão do navio, dos exercícios e das crises de vômito etc. Houve até um veterano que, mesclando diferentes elementos e outras polêmicas históricas, atribui a extensão dos direitos aos “praianos” a autoridades que não tiveram ligação com esse processo – já adiantando o próximo assunto a ser discutido: “Agor a, quem foi à pr aia ganha igual a mim... isso é um absur do... isso é um absur do. Depois cr iar am a Associação dos Ex-Combatentes... combater am o que? Nada! Entendeu? Por quê? Oficiais sujos, esses que não for am à guer r a, havia gener ais e cor onéis no meio deles, ar r anjar am a lei par a eles... na época foi o J oão Goular t... J oão Goular t tinha inter esses junto à classe média baixa, entendeu? Então deu dir eitos a eles. Mas que é um absur do é? Que é um absur do é? Quem foi à guer r a é quem foi à guer r a, pô!” 271

O período em que se deu o racha das Associações, como se sabe, foi bastante atribulado. Em 1964 viria o Golpe e, pelo menos institucionalmente, as Associações apoiaram tais eventos272. De fato, agora com os militares no poder, os ex-combatentes viam

270

Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005. Entrevista com J.J. Silva, Juiz de Fora, dezembro/2004. 272 Na AECB/SP, 64 sócios redigiram manifesto apoiando a “Revolução” – entre os autores, estavam Eurípedes Simões de Paula – professor da USP – e vários veteranos que escreveram os “Depoimento de 271

194

a possibilidade de, enfim, terem as suas já históricas reivindicações atendidas. Quando Castelo Branco assumiu a presidência, então, as Associações foram ao júbilo, pois era um febiano que tomava o lugar mais alto do poder executivo no país – dessa vez, tinha tudo para dar certo. Em discurso proferido durante o Dia da Vitória de 1964, Castelo Branco, já presidente, falando para ex-combatentes em São Paulo, estabelecia uma ponte entre a guerra da FEB e a Revolução de 1964: “A vitór ia da FEB na Eur opa teve uma finalidade não só militar como também de or dem pública. Fomos lá com a missão de der r otar o nazismo, o exér cito alemão que se nos antepunha, levando em nossa ar r ancada, juntamente com os aliados, também a vitór ia dos ideais que pontificavam na bandeir a dos povos democr áticos. (...) a Revolução pr ocessada no Br asil, a pouco, nada mais er a e r ealmente nada mais é do que a continuação da luta pelos ideais de campanha expedicionár ia na Itália. Na ver dade, o Br asil está combatendo a ideologia comunista como a FEB soube combater a ideologia nazista nos campos de batalha. Na ver dade, o povo br asileir o, ao se levantar em ar mas, pr ocur ou r estabelecer a auto-deter minação e o ambiente de liber dades fundamentais que vinham sendo massacr ados pelos comunistas infiltr ados em todas as par tes do Gover no Br asileir o. (...) Não r esta a menor dúvida, meus amigos, de que o or ador deste jantar , foi muito feliz ao dizer que o que houve foi a r epetição, no inter ior do Br asil, de tudo quanto pr opugnávamos na campanha da Itália...” 273

Por todo o período da Ditadura Militar, o discurso oficial das Associações convergiria com a ideologia proferida pelo governo. Um periódico ligado à sede nacional da Associação, no Rio de Janeiro, e de circulação nacional, tratava do cotidiano nos círculos militares brasileiros, fazia a cobertura dos eventos comemorativos da “Revolução de 64”. E transcrevia palestras e longos textos sobre a DSN – Doutrina de Segurança Nacional. Obviamente que tudo isso influenciaria o “enquadramento” da própria memória da FEB, de

oficiais da reserva sobre a FEB”, em 1949, que fazia ode ao autoritário discurso desenvolvimentista típico daquele período, e também ‘àquela democracia’ de que tanto se falava no contexto da Guerra Fria. Cf.: FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.316. 273 CASTELO BRANCO, Humberto de Alencar. “Discursos: 1964” Brasília: Secretaria de Imprensa da Presidência da República, 1964. P.101-102. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.318-319.

195

forma que é muito elucidativo desse movimento um artigo da seção “A FEB, fatos e números”, sobre os jornais de campanha da FEB, que diz o seguinte: “O Ser viço Especial da FEB editava dois jor nais: ‘O Cr uzeir o do Sul’ e mais tar de o ‘Zé Car ioca’. Er am infor mativos e até bem r azoáveis. Mas logo sur gir am os espír itos de por co, jor nais clandestinos que cor r iam por toda a tr opa sem que ‘ninguém’ soubesse onde er am editados. Er am constituídos de uma ou duas páginas mimeogr afadas e havia um por unidade. A tônica dos ar tigos (anônimos, é clar o) er am cr íticas à pr ópr ia FEB, a alguns e mesmo à situação política vigente no Br asil. Os de cima jamais conseguir am identificar os autor es dos ar tigos. Aliás, par a evitar maior es atr itos, os jor nais er am toler ados ou ignor ados pelo comando. Um dos mais famosos er a o ‘E a cobr a fumou’, do 1o bat. Do 6o R.I.. Não escondia a ver dade e atacava a ditadur a existente no Br asil...dizia que não er a contr olado pelo DIP.” 274

Sabe-se que havia, também, jornais de tendência comunista, o que alimentava ainda mais argumentos nessa linha. Evidenciam ainda que os jornais estavam constantemente mudando de nome, para continuar criticando a Ditadura Varguista e, por fim, afirma que eles acabaram por contribuir com o restabelecimento da Democracia no país – regime de governo esse que, muitos, agora, julgavam-se defensores pois, segundo eles próprios, tinham-no trazido para o Brasil. Por outro lado, o discurso oficial da Associação não deixava de criticar a falta de atendimento aos ex-combatentes e o esquecimento generalizado da guerra da FEB. No no 11 de “ O Expedicionário: a voz dos que não ficaram

em Pistóia” de 1974, vê-se reclamações sobre essa questão, bem como acerca do descaso após a volta, sendo vistos apenas como “problemas”, “ostracizados”, “deslocados” e vivendo na “miséria”. “Deixaram de ser Ex-Combatentes e voltaram a constituir, simplesmente, nos neuróticos, nos loucos, nos doentes, e naquela classe que só deseja uma

274

SEM AUTOR. “O Expedicionário: a voz dos que não ficaram em Pistóia”, ano II, n.16 – 1975.

196

vida privilegiada. Já ninguém se lembra das promessas da festa da vitória, do retorno frenético, das palmas e nos gritos de vivam os heróis.”275. Apesar de tudo, o fato é que a imagem da FEB ficou atrelada à Ditadura Militar, como não poderia deixar de ser. Pelo lado das Forças Armadas, era interessante ter no ‘currículo’ a participação na Segunda Guerra Mundial, bem como ver ‘pacificado’ seu relacionamento com os ex-combatentes. Pelo lado destes, já vinha de longe uma identificação dos setores dirigentes de suas Associações pelo discurso do anticomunismo, somando isso às esperanças pelo atendimento das demandas básicas, já históricas, o apoio aos militares em 64 era, praticamente, algo natural. Na verdade, poucos ex-combatentes estavam envolvidos, diretamente, seja com o próprio golpe – apenas ex-integrantes do altooficialato de FEB – seja apoiando explicitamente tais eventos, de forma que passagens como a do ex-combatente N. Cheab (81 anos, I/11o R.I.), são raras em depoimentos de praças e suboficiais, falando da ligação da FEB com a “Revolução de 64”: “... é que muita gente da guer r a estava na r evolução de 64. Inclusive eu estava lá naquela época, não é? Nós, que estávamos nas For ças Ar madas, apr ovamos plenamente aquela questão da r evolução de 64. Vimos que havia necessidade... por que as For ças Ar madas é justamente par a defender o povo, e o povo quer ia mudança, o povo exigia mudança. Então teve que haver mudança...”

Vale colocar que, durante o governo militar o então tenente N. Cheab, que continuou no Exército após a volta para o Brasil, foi professor do Colégio Estadual Central, em Belo Horizonte, onde lecionava educação moral, cívica e organização social. A sua narrativa sobre a experiência de guerra se dá, fundamentalmente, no âmbito dos grandes fatos, falando pouco da sua realidade individual. Dessa forma, vê-se que a sua carreira de professor, depois de reformado, marcou decisivamente a sua memória, como fica evidente

275

COSTA, Alkindar. “Silêncio – Os Ex-Combatentes estão morrendo” In: “O expedicionário”, ano I/ n.11 –

197

em vários momentos da entrevista. Por exemplo, neste, quando perguntado sobre o treinamento da FEB: “... A instr ução er a a nor mal do militar , pr epar ando o militar par a a defesa do país em qualquer situação: defesa inter na e exter na. Então pr epar ava o pessoal par a, em caso de necessidade, combater e defender o país, defender as leis, as autor idades, defender a histór ia, defender as nossas tr adições...” 276

Mas, no geral, estabelecer uma comunhão estrita de interesses entre ‘a FEB’, ‘os excombatentes’ e ‘o governo militar’, é incorrer em sério erro – na medida em que a esmagadora maioria dos veteranos manteve-se alheia a tais questões de ordem macropolítica, já que, em vista das dificuldades pelos quais passavam, nem tempo ou condições tinham para se preocupar com isso: “O alheiamento (sic!) da maior ia dos expedicionár ios com r elação às cr ises políticas de 1945 se r epetiu em 1964. Embor a as lider anças das associações manifestassem apoio ao novo r egime, não há r egistr o documentado de massas de ex-combatentes mar cando posição, favor ável ou não, ao novo gover no militar . No máximo, é possível ar r olar algumas manifestações de esper ança em uma atenção especial aos seus pr oblemas cotidianos, no gover no do ex-expedicionár io Castelo Br anco, por par te de algumas lider anças da AECB. A atenção especial, por ém, foi muito mais r etór ica que efetiva.” 277

Obviamente que essa posição assumida, ‘não assumida’, ou consentida, geraria resultados negativos no futuro, quando do fim do Regime Militar. No entanto, esses impasses, entre outros pontos, pertencem já a outro período: é o ‘terceiro tempo da memória da FEB’, que será analisado no próximo capítulo.

1974. ” Transcrito de “A Voz da Cidade” de 09/10/1974. 276 Entrevista com N. Cheab, Belo Horizonte, março/2002. 277 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.325-326.

198

Capítulo III ENCONTROS E DESENCONTROS DA MEMÓRIA DA FEB

199

III.1

As her anças de 64 Com a reabertura política e a nova Constituição de 1988 muitas coisas mudaram para

os veteranos. Para a grande maioria significava a chegada de novos tempos, pois já passavam dos sessenta anos e, enfim, tiveram sua situação regularizada com a conquista de uma pensão extensível a todos os ex-combatentes – que, é verdade, viria tarde demais para muitos. Dessa forma, para vários veteranos, apenas agora poderiam retomar as relações com as Associações e com os antigos camaradas de guerra, pois, nesses ‘novos tempos’, teriam condições e motivação para isso. À época do endosso oficial ao ‘Regime de 64’ e de uma relativa paz interna nas Associações, conquistada definitivamente em 1950/51 com a expulsão dos comunistas e a aproximação das Forças Armadas, se seguiria novo período turbulento. A afinidade das Associações com a Ditadura Militar, ora vista como uma jogada pragmática para o atendimento das demandas, ora como por afinidade político-ideológica, é certo, não sairia de graça em tempos de redemocratização. Do movediço terreno da Ditadura, os veteranos sairiam bastante sujos de lama, ou se não estivessem, teriam suas imagens manchadas pelo personagem que os perseguia: o ‘veterano da FEB’. Mais uma vez, transformavam-se em estigmas ambulantes: primeiro foi o ‘louco de guerra’, e agora o ‘servidor dos militares’. Como já se discutiu, atribuir a pecha de apoiadores da Ditadura à massa dos veteranos é algo complicado. É certo que durante essa fase a maioria manteve-se distante e alheia dessas questões, mas pode-se dizer: ‘Quem cala consente’. De qualquer forma, são condições diferentes – não se pode julgar, por exemplo, a população alemã pelos mesmos crimes que foram cometidos pelos SS, apesar da primeira ter se calado frente ao que acontecia. Da mesma forma, sabe-se hoje que a resistência à ditadura no Brasil se resumiu a alguns setores mais ou menos isolados, e que o silêncio da sociedade consistiu a regra. Isso

200

não significa que suas faltas devam ser julgadas nos mesmos termos dos torturadores ou dos líderes políticos que deram carta branca a estes, seria incorrer em grave equívoco moral, substituindo o julgamento de uma parte pelo de todos. Certo é que, se durante toda a trajetória dos que fizeram parte da FEB houve algo que permaneceu imutável nas relações com a sociedade e os governos que passaram, seria a falta de compreensão e de preparo para lidar com o complexo processo de reincorporação dos veteranos. No geral, “For a do plano familiar e da comunidade de veter anos, onde as r efer ências sobr e a guer r a [quando existem] evocam her oísmo e glor ificam as vitór ias, a exper iência dos combatentes não ecoou de for ma a fazer sentir e consolidar uma idéia bem fundamentada das pr eocupações que mais afligiam suas memór ias.” 278

Na verdade, como coloca Cytrynowicz, o próprio período em que a FEB estava na Itália, o tratamento dado ao conflito, pela imprensa e pelo governo, como já se falou, era fundamentado na ironia e no deboche não da FEB propriamente dita, mas do inimigo alemão. Isso ajudou a fragilizar a já parca mobilização social para a guerra, pois não se concentra os esforços e se faz respeitar a autoridade central através da difusão do riso, mas sim do medo. É claro que esse clima acabaria por atribuir a FEB a condição de ridículo, bem como aos que dela faziam parte – juntando a isso o ‘mito do passeio’, estaria completo o imaginário que acompanhou o Brasil na guerra e os veteranos na reincorporação. Tudo isso é verdade no que toca à imagem que a sociedade civil fez, e faz, da história da FEB. Já no caso dos militares, muitas vezes, fez-se uso do outro extremo, ou seja, dos discursos laudatórios, da glorificação da morte pela pátria, da luta contra os totalitarismos – primeiro o Nazismo, depois o Comunismo – e por aí vai. Enfim, o fato é que a memória dos veteranos quase sempre esteve situada entre dois extremos – ora o de turistas, ora o de

201

apoiadores do regime de 64 – e, nessa posição, eles teriam que resistir ou negociar, encontrar-se ou desencontrar-se de si próprios, satisfazer suas demandas. Enfim, a tomada de uma posição, ou mesmo a indecisão, gerariam conseqüências no futuro, restando à memória, com suas reviravoltas, ‘acertar as coisas’. v Dentre uma série de ‘incidentes’ ocorridos com as Associações e os veteranos após a reabertura, ganhou certo destaque, pela projeção que alcançou, a publicação do livro “As duas faces da glória”, do jornalista William Waack279, e a produção do filme “Rádio Auriverde”280, do cineasta Silvio Back. Ambos tecem duras críticas a certa memória oficial da FEB, que teria sido veiculada desde a volta desta para o Brasil. William Waack escreveu o livro que, certamente, mais mexeu com os brios dos veteranos da FEB. Em “As duas faces da glória”, o autor pretende colocar a história da FEB em ‘pratos limpos’, pois, segundo ele próprio, tudo, ou quase tudo, que havia sido escrito ou falado até agora a respeito da FEB estava equivocado – na medida em que não passava de glorificação e/ou uma hipervalorização do Estado brasileiro, do Exército nacional e dos veteranos de guerra. Para Waack, as façanhas militares perpetradas na Itália não tinham nada de extraordinário ou heróico, o Brasil havia entrado forçosamente na guerra – a mando dos EUA – contava com um Exército sem condições de participar de um conflito como a Segunda Guerra, teve um desempenho nada além de burocrático e, nem sequer, despertou a atenção dos inimigos que, quando muito, sabiam que o Brasil havia lhes declarado estado de beligerância. William Waack lança mão, como sendo o maior trunfo de

MAXIMIANO, César Campiani. “Neve, fogo e montanhas...”, p.362-363. WAACK, William. “As Duas Faces da Glória”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.250. 280 BACK, Silvio (dir.). “Rádio Auriverde: a FEB na Itália” Rio de Janeiro: Embrafilme, 35mm, preto e branco, 70 min., 1982 278 279

202

seu livro, de uma documentação até então pouco trabalhada a respeito das atividades e das condições da FEB durante o decorrer dos treinamentos, da guerra e do período de ocupação após o fim das hostilidades. São documentos norte-americanos que tratam do comportamento e das relações com as tropas brasileiras, e também do próprio Exército alemão, que pouco trata dos brasileiros. Waack lança mão, ainda, de depoimentos de alguns veteranos da Wehrmacht e mesmo alguns febianos. Tal como se mostra a memória dos veteranos, as respostas à tese de Waack foram variadas. Do lado mais ‘oficialesco’, o que se vê é uma repulsa total – como fica evidente nesse comentário de Lyra Tavares: “O livr o tem o pr opósito e opor -se à glor ificação da FEB, como fonte do civismo nacional, constr uindo e inovando ver sões capazes de cor r oer suas r aízes, pela for ça da r epetição e da publicidade financiada, par a atingir , pr incipalmente naquele Teatr o de Oper ações de ultr amar , a r epr esentação mais fidedigna da alma do povo br asileir o.” 281

A percepção de que os argumentos de Waack atingiam duramente as tradições do Exército Brasileiro, são ainda mais claras em texto escrito por Elber de Mello Henriques, que, pela crítica, vê o estabelecimento de um raciocínio que vincula a FEB a uma simples extensão do Exército nacional: “Na década de 40 os inimigos das nossas tradições tentaram comemorar o tricentenário das invasões holandesas. Na década de 70 os comunistas resolveram contestar a versão brasileira da Guerra do Paraguai; agora resolveram atacar a FEB.”282. Sem discutir aqui a validade ou não dos argumentos levantados por Waack, fato é que não se pode refutar integralmente as suas críticas – na verdade, creio eu, em termos de

TAVARES, Aurélio Lyra. “ Jornal do Commercio” 18 mai 1985. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.354. 282 HENRIQUES, Elber de Mello. “A FEB mal interpretada” Rio de Janeiro: Mimeo, agosto 1985, p.5. Arquivo Histórico do Exército/FEB, Seção B-14, pasta 03. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.355. 281

203

conteúdo, grande parte das análises são, no mínimo, bastante interessantes. O que se poderia dizer do livro, é certa ingenuidade no trabalho com as fontes – abordadas, correntemente, de forma descontextualizada – bem como certa preocupação em “vincular a ida dos pracinhas a Monte Castelo aos projetos norte-americanos que culminaram no movimento de março de 64...”283. Problema maior, ainda, foi a generalização feita a partir do termo FEB: quem era a FEB? Que FEB é essa que se converteu nos ‘algozes de 64’? Se foi a FEB um joguete dos EUA, quem eram os responsáveis por isso? Retomando a crítica que Keegan faz aos pesquisadores e estudiosos da guerra, é justamente essa uma das fraquezas do livro, ou seja, analisar a guerra da FEB apenas em seus aspectos “decisivos”. Os conflitos entre os comandos dos vários exércitos em ação, questões de âmbito macropolítico e macroeconômico, o andamentos das batalhas e por aí vai. Nesse contexto, os significados que os soldados, e hoje veteranos, dão à guerra, são colocados de lado. Foi isso que levou o livro a ser tão mal visto entre os febianos. Apesar de tudo, o livro levanta discussões interessantes, ao apresentar as tropas com os quais a FEB combateu, as impressões norte-americanas etc. Mas independente disso, o que interessa aqui é a repercussão do livro entre os veteranos. Em primeiro lugar, vê-se que, definitivamente, para o bem ou para o mal, a imagem da FEB estava atrelada às Forças Armadas, seja aos olhos dos não-veteranos ou mesmo para grande parte dos veteranos. Em segundo, tudo isso evidencia a formação de uma sólida comunidade de memória que, em vista do que já passaram até então, se mostra arredia a críticas que venham de fora. Isso porque, conversando com veteranos, vê-se que muitas das questões que Waack levanta são endossadas por eles próprios: o despreparo das tropas, o fato do TO italiano consistir num

283

SCHNAIDERMAN, Boris. “Quantas faces tem a glória?” In: Folhetim (suplemento do jornal Folha de São

204

front secundário, os usos políticos da FEB – coisa que os desagrada até hoje284 – etc. No entanto, citado o nome do autor que, além de boicotado nas bibliotecas das Associações, é considerado “ persona non grata” nos círculos dos veteranos, a conversa muda de orientação. Entre os veteranos houve também aqueles que fizeram críticas menos pesadas ao livro de William Waack, além de ter encontrado nele algumas virtudes, apesar de, mesmo assim, não ser o que mais sobressai no artigo por ele escrito: “Quantas faces tem a glória”, de Boris Schnaiderman, veterano da FEB e professor aposentado da USP. No artigo vemos o destaque: “O recente livro de William Waack vincula a ida dos pracinhas a Monte Castelo aos projetos norte-americanos que culminaram no movimento de março de 1964 – uma tese intrigante, mas tratada com excessiva generalização, como aliás vários outros tópicos”. Coloca que muitas das críticas são válidas, e que fez algo importante ao tratar de arquivos que até então intocados. Mas despreza um tom por demais ideologizado do autor do livro: “Sente-se muito no livr o a pr eocupação em defender uma tese: for am os nor te-amer icanos que for çar am a ida de nossas tr opas à Itália e, na r ealidade, os seus pr ojetos er am mais políticos que militar es; estar iam calculando a sujeição maior do Br asil, no futur o. Em mais de uma ocasião per cebe-se a intenção de ligar a par ticipação na guer r a aos acontecimentos de 1964.” 285

Schnaiderman ainda relativiza uma série de outras críticas – “generalizações” – que Waack teria colocado em seu livro. Por exemplo, as forças alemãs na Itália não eram da elite do Exército alemão, ou seja, não eram nenhuma SS, já que era formada por veteranos

Paulo), no 436, 2/6/1985, p. 4 . 284 Keegan enfatiza que a lógica do “vencer” X “perder” não aparece na percepção que os soldados fazem de suas guerras – de modo que quando assim a presenciam em outros meios, quase sempre surge um sentimento de rejeição e ressentimento para com aquela expressão. Cf.: KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.47. 285 SCHNAIDERMAN, Boris. Quantas faces tem a glória? In: Folhetim (suplemento do jornal Folha de São Paulo), no 436, 2/6/1985. p. 4 – 5.

205

de outros fronts e jovens com apenas seis semanas de treinamento, além de sofrer constantemente com a falta de provisões e munição – “mas evidentemente seis semanas de treinamento pela máquina de guerra alemã, com o grau de eficiência que ela havia atingido, era algo com que a nossa tropa não podia nem sonhar”. Essa informações foram retiradas, por Waack, provavelmente, do relatório de rendição do comandante da 232o entregue aos aliados, o que nos leva a pensar que o que faltou, nesse caso, para não ser derrubado por uma observação sagaz como a de Schnaiderman, foi apenas uma critica externa e uma melhor contextualização da fonte em questão. Para um discurso jornalístico, como é o caso, talvez o termo “seis semanas de treinamento”, em contraposição ao “um ano”, por parte do Exército Brasileiro, tenha um efeito discursivo melhor ao objetivo que ele se propõe segundo alguns veteranos: chocar, polemizar e denegrir gratuitamente a FEB. No entanto, Schnaiderman sabe que o objetivo do livro não é esse, ao tratar dos seus aspectos positivos, mas mesmo assim não deixa de fazer várias críticas à fragilidade argumentativa do livro – devido às generalizações – e à insistência em comprovar a referida tese. Por fim vale salientar que, se as críticas de Boris se particularizam por serem mais atenuadas, devemos nos lembrar que ele faz parte de duas instâncias que pesam bastante ao escrever sobre a guerra: por um lado é um “pracinha”, mas por outro, é um acadêmico. O trauma que se verifica entre os veteranos a partir desse evento é tão grande que, ainda hoje, qualquer pessoa que se dispõe a estudar a FEB é advertida nas Associações. Patrícia Ribeiro, em sua pesquisa de campo, contou com tais percalços – recebida no escritório da ANVFEB/RJ para explicar a sua pesquisa, informa que contou com algumas resistências e afastamentos de veteranos, apesar de ter sido aprovada. O problema era que,

206

justamente na época em que foi à Associação, uma reportagem publicada pela revista “Domingo do JB”, que contou com a ajuda de vários veteranos, “desagr adou a muitos associados, ocasionado alguns pr oblemas par a a dir eção da ANVFEB. Segundo o pr ópr io cor onel Sér gio [então presidente daquela seção], a situação chegou a tal ponto, que os associados que par ticipar am da r epor tagem, sentir am-se na obr igação de se apr esentar em a ele par a se r etr atar em. Por isso, ele estava inter essado em saber qual er a o teor e par a que ser iam utilizadas minhas entr evistas”.286

Vê-se aí os embates entre as memórias individuais e a memória coletiva/institucional pela definição do que deve ser público ou privado, lembrado ou ‘esquecido’ – num movimento típico do processo de “enquadramento da memória”, que nunca cessa. Essa separação é tão visível que, conversando por algumas horas com veteranos, facilmente vêm à tona os mesmos assuntos referidos na tal reportagem287 mas que, num evento oficial ou numa exposição pública, são deixados de lado. Entrariam aí as discussões éticas, sobre o que deve vir a público, o que deve permanecer em círculos menores ou no âmbito dos indivíduos somente, sem esquecer do como vir a público – aspectos que recaem, sobretudo, no discurso jornalístico de grande divulgação. Apesar de tudo, Patrícia diz que com o tempo foi bem aceita na Associação e entre os veteranos. Outros pesquisadores, também, presenciaram esse temor durante suas pesquisas de campo. Foi o caso de Alfredo Oscar Salum, alertado da necessidade de não incorrer em

RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória...”, p.98. “Na capa da revista veio a seguinte manchete: ‘Guerra, vinho e mulheres: as lembranças dos pracinhas brasileiros dariam um filme de Spilberg”. A reportagem falou da guerra, mas enfatizou o seu lado pitoresco [leia-se hollywodiano]: as tochas, a beleza das italianas, os amores que os brasileiros deixaram lá, as festas etc. Muitos dos que participaram das entrevistas, e dentre eles estão todos aqueles que também entrevistei, negaram que tenham dado aquelas declarações da forma como foram publicadas. A imagem que a reportagem registrou sobre a campanha da FEB desagradou a vários ex-combatentes que enviaram cartas para a direção da ANVFEB, também insatisfeita com o resultado da reportagem e registrando toda a sua indignação.” RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória...”, p.98. Se por um lado se vê a memória da FEB, perpetrada pelo Exército, como uma memória mutilada – versões como a que se lê nessa reportagem devem ser vistas, igualmente, como uma mutilação das memórias individuais e dos grupos. Mais uma vez a história da FEB era situada entre dois extremos – nesse meio, certamente, era o lado mais fraco que arcaria com as conseqüências: os veteranos e as Associações. 286 287

207

“erros” ao estudar a FEB288, e de Francisco Ferraz, questionado por veteranos que desejavam saber se sua pesquisa era contra ou a favor da FEB289. Por fim, tais considerações também foram presenciadas pelo autor dessa dissertação, ainda quando da primeira visita à ANVFEB/BH. Quando solicitei permissão para ter acesso aos arquivos da Associação, de modo a selecionar os veteranos que me interessariam para as entrevistas, a resposta foi negativa. A resistência a essa liberação foi justificada por razões políticas. Segundo esses veteranos, inclusive o presidente, a Associação teria atingido um grau digno de estabilidade e viabilidade de qualidade de vida aos veteranos, enquanto que essas informações poderiam cair em “mãos erradas” e prejudicar a ANVFEB. Segundo eles, ainda, alguns entrevistados, que fossem por mim escolhidos, poderiam dizer coisas que hoje não interessariam à FEB. Após a obstrução de meu acesso às informações dos associados, seguiu-se uma série de críticas ao governo da época, sobretudo à pessoa de Getúlio Vargas, bem como a respeito da recepção dos veteranos após o conflito – teriam ouvido muitas promessas antes de partir para a Europa, mas a maioria delas não seria cumprida. Foi nesse momento que me foram ditas duas frases que consistiram em pontos cruciais para o entendimento da memória da FEB: “A FEB tem muitos inimigos”, a outra, “A verdadeira guerra dos brasileiros não foi na Itália, mas aqui no Brasil.”. Mas como nos casos anteriores, com o tempo, contei com aceitação de numerosos veteranos desta e de outras Associações. O segundo ‘incidente’ de grande vulto que se deu com os veteranos, foi a produção do filme/documentário “Rádio Auriverde”, de Silvio Back. Segundo o diretor, o filme foi produzido com imagens que não passaram pelos órgãos de censura do Estado Novo, além

288

SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra”, p.12.

208

de uma série de imagens e sons inéditos de arquivos estrangeiros até então intocados. Com isso, ele tencionava produzir um material crítico e que não fosse “ideologizado”. Segundo Oscar Salum, “A idéia inspiradora do filme nascido em 1988, era implodir o último mito da história do Brasil: a campanha da FEB na Itália.” – de acordo com afirmação de Back em entrevista ao “ Jornal do Brasil” 290. No entanto, se muita coisa do livro de Waack pode ser analisada, discutida e vista com seriedade, o filme de Silvio Back atingiu a condição de uma péssima obra cinematográfica, pela forma autoritária, manipuladora e desrespeitosa que assumiu. “... o esfor ço por r idicular izar qualquer ato ou car acter ística da FEB faz deste filme-documentár io uma das mais ideologizadas obr as do cinema documental nacional. Desde o texto do r oteir o até a edição das imagens e sons, tudo foi feito e escolhido com um intuito bastante clar o: a FEB e a par ticipação br asileir a na Segunda Guer r a Mundial constituír am episódio r idículo da histór ia nacional, decor r er am do imper ialismo amer icano, somente podem ser explicadas por ele, e todos os que par ticipar am da FEB sucumbir am ao ‘espír ito da cor por ação’. (...) O cineasta afir ma mostr ar imagens que for am ‘escondidas’, ‘descar tadas por absoluta r azão de Estado’, e esper a, com isso, contr ibuir par a ‘abr ir a cabeça das pessoas, não par a fazê-las’.” 291

O filme conta com montagens descontextualizadas e completamente tendenciosas, endossa mitos como o de que o afundamento dos navios Brasileiros, em 1942, foi obra de submarinos norte-americanos. Por fim, faz uma generalização que consiste em pecado capital para qualquer pesquisador, artista ou pessoa que queira abrir cabeças. Ele não distinguiu os diferentes sujeitos que fizeram parte da FEB e suas respectivas responsabilidades e inserções no processo: suboficialato e os praças convocados, por um lado, e o alto oficialato que continuou na política institucional após o retorno. A FEB é vista apenas como uma grande teoria conspiratória muito bem delimitada e homogênea. Na

FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.358. SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra”, p.192. 291 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.360. 289 290

209

época do lançamento do filme a reação dos veteranos e Associações foi instantânea. Apesar da circulação do filme ter sido bastante restrita, foram feitos piquetes e manifestações nas portas dos cinemas de forma a impedir que as pessoas assistissem ao filme292. Em suma, definitivamente, a imagem da FEB permaneceria ligada às instituições militares; a posição das Associações antes, e, sobretudo durante, o Governo Militar deixou heranças que constituiriam em impasses para os veteranos em geral – fossem esses adeptos, opositores ou indiferentes em relação à Ditadura. Tal fato, a militarização dos veteranos, se caracterizou numa particularidade do caso brasileiro. Os veteranos europeus, por exemplo, sobretudo os ingleses, até hoje se vêem como “civis de uniforme” e não como militares. Keegan, nesse sentido, dá um exemplo dos exércitos da I Guerra Mundial: “...a batalha do Somme foi pr edominantemente de gr upos de r eser vistas tempor ár ios, sobr e os quais o Exér cito pr ofissional impr imir a tempor ar iamente a sua identidade, mas que, com a paz, desapar ecer a da memór ia coletiva quase tão r apidamente como for a incutido...” 293

No caso brasileiro essa separação existe, mas de modo muito menos perceptível. Isso tem relação, obviamente, com a amplitude que a guerra tomou aqui e com as diferenças dos processos de mobilização e reincorporação etc., pois, no caso da Europa, as guerras do século XX extravasaram, em muito, as Forças Armadas e os objetivos políticos dos Estados. No Brasil, como já se viu, a mobilização foi frágil e o esquecimento rápido294. Nesse ‘caos identitário’, é tarefa do pesquisador ter sensibilidade e bom senso na análise e no que toca à atribuição de responsabilidades aos agentes históricos, pois “Quando o indivíduo constr ói a sua identidade múltipla em for o íntimo e na esfer a pr ivada, o gr upo é somente assegur ado de sua intr odução nos espaços

Cf.: FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.358-360. KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.241-242. 294 SOKOLOFF, Sally. “Soldiers or civilians? The impact of army service in World War Two on Birmingham men” The Journal of The Oral History Society, vol. 25, n.2, “War and Peace” Essex: University of Essex, autumn 1997. 292 293

210 públicos. O er r o comum é não dissociar esses momentos identitár ios e tr atar em um mesmo movimento a identidade individual e a identidade gr upal.” 295

Dessa forma, quando os veteranos cultuam ou valorizam aspectos e/ou símbolos ligados à nação, desfilam no 7 de setembro, comparecem a eventos militares etc. – têm suas imagens, instantaneamente, vinculadas aos militares o que, no Brasil, significa um passo para a identificação com os princípios de março de 64. Por fazerem parte de um grupo minoritário, e a fim de se afirmarem e estabelecerem uma “identidade cultural”, os veteranos são forçados – inconscientemente, é claro – a “cristalizarem”, ou ‘esquecerem’, suas opiniões e lembranças pessoais, de modo que fiquem ligados ao grupo e, por extensão, à memória por este definida296. Apresentada essa possibilidade, resta ao sujeito duas opções: tolher a sua individualidade e se ‘fundir’ ao grupo, ou permanecer na marginalidade. Por outro lado, sabe-se que esse movimento é rígido assim apenas na teoria, pois na verdade, seja entre os menos considerados nas Associações, ou mesmo entre os veteranos ‘guardiões da memória’ do grupo, o fato é que, com um pouco de conversa e sensibilidade, pode-se vislumbrar suas lembranças de “foro íntimo”, que nunca se apagam completamente. Seriam elas ‘mais verdadeiras’? Certamente que não, apenas dizem respeito a uma das dimensões que compõem a memória e a identidade dos sujeitos – aspecto presente, com intensidades variadas, em todos os depoentes. v III.2

Tempo de r ememor ar Em geral a memória dos veteranos, já na casa dos 80 ou 90 anos, se mostrou clara e

vibrante – o que serviu para mostrar que os estereótipos existentes sobre a velhice estavam KOUBI, Geneviéve. “Entre sentimentos e ressentimento: as incertezas de um direito das minorias” In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (orgs.). “Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível” Campinas: Editora da Unicamp, 2001. p. 537-538. 295

211

equivocados. Os depoimentos, e, portanto, a configuração da memória no momento das entrevistas, são muito influenciados pela experiência social do idoso, ou seja, se ele se isola ou é isolado, não compartilhando as lembranças, certamente isso tem conseqüências, que reforçam a deterioração física e emocional. Mas, se por outro lado, ele participa de grupos, e reuniões, como se dá no caso dos veteranos – integrantes de uma comunidade sólida e fixa – as memórias variam em função, sobretudo, do contexto desses círculos. A memória na velhice se particulariza, dentre outros aspectos, pela preocupação em ‘justificar’ toda uma vida que se passou – algo comum nessa fase da vida, quando nos vemos em face de morte. Nesse meio, há a necessidade de dar um sentido à vida, deixar um testamento ou mesmo colocar as coisas em ‘pratos limpos’. Muitas vezes, a motivação para falar surge quando se sente que a história negligenciou algumas coisas que devem ser contadas. Ressentimentos, aflições e angústias costumam vir à tona nessas ocasiões: a dor pelo esquecimento, por exemplo, é muito presente entre os veteranos. Isso acontece porque, geralmente, para os adultos, do passado só são trazidas lembranças que interessam ao presente – de modo que, para os veteranos, pouca coisa da guerra ou da reincorporação interessava em vista da situação pela qual passavam297. Atingida a velhice, essas ‘más recordações’ começam a voltar – mas não sejamos ingênuos, a memória dos velhos tende a ser madura e equilibrada, ao passo que se trazem seus ressentimentos ao presente, também sabem valorizar outros aspectos e daí tirar lições para o futuro: dimensão pedagógica própria da memória. Mas esse equilíbrio é difícil de ser mantido, sobretudo num momento de recordação – como uma entrevista – o que os deixa, em alguns casos, emocionados, esfuziantes ou revoltados com algumas passagens de suas vidas.

296

Ibidem. p.539.

212

v Como já se viu, apenas décadas após a volta para casa foi possível, para grande parte dos veteranos, reencontrar antigos colegas de trincheiras e participar do cotidiano das Associações. Nesse movimento, as memórias individual e coletivo-institucional da FEB se convergiriam mais ainda, de forma que, durante todo o período que permaneceram afastados das lembranças da guerra, as Associações – juntamente com as Forças Armadas – não cessaram de, a todo momento, ‘trabalhar’ essa memória. De certa forma, as Associações e as Forças Armadas serviram para manter a ‘chama acesa’, servindo de anteparos à hibernação da memória da FEB. Essas instituições contariam com o respeito e aprovação certos de grande parte dos veteranos que, ao resgatarem lembranças de anos atrás, o faziam em função desse contexto. Dessa forma, não tardaram em surgir certos estereótipos na memória da FEB, que definiam a identidade do veterano, seu comportamento e valores, a versão de algumas passagens etc. – isso acontece porque “Quando um gr upo tr abalha intensamente em conjunto, há uma tendência em cr iar esquemas coer entes de nar r ação e de inter pr etação dos fatos, ver dadeir os ‘univer sos de discur so’, ‘univer sos de significado’, que dão ao mater ial de base uma for ma histór ica pr ópr ia, uma ver são consagr ada dos acontecimentos. O ponto de vista do gr upo constr ói e pr ocur a fixar a sua imagem par a a histór ia.” 298

Dentre os vários estereótipos do febiano, um dos mais presentes diz respeito ao caráter amistoso do soldado brasileiro. Aliás, tal mito não é monopólio dos veteranos brasileiros, de modo que é muito comum encontrar fotografias ou cenas de filmes e documentários que procuram dar uma imagem cordial e amigável das relações estabelecidas entre militares e civis durante a guerra. Tais histórias afirmam até que as mulheres italianas tinham maior atração por brasileiros do que por soldados de qualquer

297

BOSI, Ecléa. “Memória e sociedade, lembranças de velhos”, p.34.

213

outra nacionalidade. No caso da FEB, tais casos caíram como uma luva, pois são usados para contrapor a gentileza e o jogo de cintura, ‘inatos’ ao brasileiro, à frieza dos norteamericanos299: O amer icano tinha um compor tamento difer ente do br asileir o, o inglês tinha um compor tamento difer ente do br asileir o, o fr ancês tinha um compor tamento difer ente do br asileir o, não é? O br asileir o er a mais acessível, er a mais humilde... o amer icano dizia o seguinte: ‘Olha, pr imeir o vamos ganhar a guer r a...o pr imeir o objetivo é ganhar a guer r a. Nós não podemos estar cuidando do italiano, de família do italiano... nós temos que ganhar a guer r a pr imeir o’. O br asileir o, apesar de saber que ganhar a guer r a er a o objetivo pr incipal... mas ele dava uma atenção ao italiano, à família italiana... mas em compensação nós r ecebíamos o car inho dele...eles iam lá par a os nossos acampamentos quando nós estávamos lá na r etaguar da... e cantavam músicas bonitas par a nós e faziam festas, não é? Ofer eciam senhor inhas etc.etc...” 300

Esse estereótipos não devem ser vistos como uma pura e simples manipulação da memória individual pelos mitos oficiais. Na verdade, servem a variadas demandas dos veteranos, como lidar com lembranças de sofrimento e desespero de uma população submetida à miséria da guerra – como já se viu –, bem como transportar e transmitir suas memórias de guerra para um contexto moral mais rígido, ou seja, para os que ficaram longe das batalhas. Durante a guerra, contudo, essa certa simpatia e maleabilidade dos brasileiros significavam outras coisas, conforme coloca um veterano entrevistado por Salum: “Os br asileir os sempr e for am tr atados r azoavelmente bem pela população italiana [como acontecia com qualquer exército que por lá passasse e não a tratasse como inimigos – como se deu em diversas localidades com os próprios alemães]. Os soldados mais afoitos chegavam até a ar r umar namor adas (...). Às vezes r efer em-se ao bom cor ação dos br asileir os, que distr ibuíam alimentos aos civis. Não duvido que tenham ocor r idos tais fatos, mas na maior ia das vezes, a intenção er a outr a. Os soldados se ar mavam de uns ‘extr as’, como cigar r os, chocolates, doces, etc., e iam par a a cidade atr ás de umas ‘senhor inhas’. A gente então, com um pouco de comida, conseguia ar r umar muita coisa.” 301

298

Ibidem. p.27. Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001. 300 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001. 301 Entrevista com Daniel Lacerda. Apud. SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra”, p.98. 299

214

Outro de meus depoentes mostra que ‘coisas’ eram essas, bem com mostra a preocupação da memória em desviar tais fatos da memória dos grupos e indivíduos: “Como soldado eu vi coisa que nem pr a você eu conto... nunca contei pr a ninguém... eu pr esenciei gente nossa, com pr isioneir o alemão, entendeu? Eu não conto isso, por que eu vi... nenhum livr o fala... por que o sujeito escr eve, mas cer tas coisas que se passar am lá, ninguém escr eve (...) Tem muita mentir a... tem um caso de um [inaudível] da Cia.... tem uma coisa de que foi fer ido em ação, mas ele não foi fer ido em ação... quem atir ou nele foi um italiano, por que o italiano encontr ou ele com a mulher dele, entendeu? Então... tem cer tas coisas que... eu não sei, por que... nunca mais... como é que ele apar eceu fer ido? Mas foi um par tisan (... )Er am os que ajudavam a gente lá... o italiano atir ou nele... pegou ele com a mulher dele...são as coisas que acontecem (...) tem gente que foi condecor ado por ato de br avur a e foi outr o que fez... eu sei disso também, eu estava lá, eu estava pr esente... o sujeito foi condecor ado, foi tudo... mas eu estava pr esente... quem fez foi outr o...” 302

Obviamente que comportamentos como esses eram comuns em exércitos de todas as nacionalidades – aliás, desde que existem as guerras na humanidade. Outra variante de estereótipos bastante comuns entre os veteranos são os pequenos casos, histórias e peculiaridades da FEB. Tais elementos são próprios das memórias coletivas e aparecem em vários depoimentos, geralmente com pequenas alterações de conteúdo ou ênfase, não deixando de simbolizar, entretanto, o caráter unificador que a memória presta à identidade do grupo. Dentre vários casos, vale a pena citar dois bastante interessantes. O primeiro diz respeito ao armamento utilizado pela FEB que, como se sabe, era oriundo dos depósitos norte-americanos. Os modelos dos fuzis repassados aos expedicionários brasileiros era o “Springfield 1903”, de operação manual e com carregador para cinco tiros por cartucho. Já o Exército Americano usava um modelo mais recente, da década de trinta, o “M-1 Garand”, de operação semi-automática a gás, capaz de ser carregado com cartuchos de oito tiros. Sabendo disso, muitos expedicionários ambicionavam por um Garand e, dessa forma, tentavam obtê-lo por meios extralegais. Tais

302

Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002.

215

casos são, geralmente, atribuídos à esperteza dos soldados brasileiros e são contados com orgulho pelos depoentes. Mas as chamadas ‘requisições da meia-noite’, não eram só apreciadas pelos brasileiros, de forma que era uma expressão “...de largo uso na Segunda Guerra Mundial como referência ao roubo de equipamentos e viaturas de uma unidade por outra. Por extensão, a expressão significa, em sentido mais lato, a aquisição de materiais por canais extranormais.”303. Outro caso, comum nas narrativas de depoentes e sempre presente nas memórias escritas, trata da versatilidade do brasileiro simples e pobre que fez parte da FEB: segundo essa história, os brasileiros teriam descoberto que colocando palha no interior das botas de combate, a ocorrência de pé-de-trincheira, por ocasião do rígido inverno italiano, diminuía bastante. Tal descoberta, dessa forma, teria sido copiada pelos outros exércitos que lutavam naquela região. Por fim, independente de se saber se essas histórias são factualmente verdadeiras, elas mostram como a memória elenca e mesmo elabora histórias a fim de destacar certos valores caros a um grupo. Vários outros casos ainda poderiam ser tratados aqui, em comunidades sólidas e bastante apegadas ao passado bem como com uma trajetória ‘movimentada’, é comum o surgimento desses ‘tipos’, histórias padrão, valores e virtudes do grupo. Vejamos, por exemplo, a questão do racismo. A FEB consistiu na única tropa racialmente integrada que lutou no TO da Itália304, fato que, obviamente, não deixaria de chamar a atenção dos expedicionários – e isso pode ainda ser notado ainda hoje quando os veteranos se referem a 92o Divisão Búfalo norte-americana, que era composta apenas por

McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945”, p.336. Segundo César Campiani Maximiano e Dennison de Oliveira, a FEB teria sido, provavelmente, a única tropa racialmente integrada a lutar na Segunda Guerra Mundial. Cf.: MAXIMIANO, César Campiani & 303 304

216

negros, mas comandada por oficiais brancos. Como se sabe, depois da abolição da escravidão, não existiu nas constituições brasileiras nenhuma discriminação oficial no que toca ao relacionamento entre as ‘raças’ – o que, é óbvio, não significava que o racismo era inexistente. Tal como se dava na sociedade em geral, um certo racismo velado se reproduziu nas Forças Armadas e, de fato, para voltarmos ao tema aqui discutido, sabe-se de vários episódios de racismo na FEB, bem como pude ouvir casos de preconceito racial com alguns de meus depoentes. De qualquer forma, entretanto, e a própria condição em que a FEB se viu frente aos outros Exércitos Aliados reforça isso, a questão da raça não surge como algo importante para explicar os problemas e peculiaridades das tropas brasileiras na Itália – a não ser, é claro, para endossar o mito, já conhecido por todos, da “democracia racial” no Brasil. Nesse sentido, muitos veteranos, hoje, não deixam de se orgulhar quanto a essa questão, afirmando que na FEB o racismo era inexistente. Interessante que alguns colocam que, como se dava com vários outros conflitos e divergências, tais questões foram suplantadas pelo espírito de corpo que se criou entre os expedicionários, bem como pelas características da FEB em oposição ao Exército de Caxias que havia ficado para trás. Mesmo para os poucos que assumem a existência do racismo na FEB, tais valores mostram-se definitivos: “... você ouve dizer : ‘Ah! Esse negócio de r acismo não existe no Br asil”...tem sim...existe o r acismo como existia antigamente, como existia na FEB e como existe hoje ainda...se eu dizer que não existe, existe sim...tem aqueles elementos que se destacam...que esse não podem esconder mesmo...mas havia esse r acismo. Eu vou lhe contar um caso aqui, que dificilmente eu falo isso par a alguém...quando houve uma possibilidade de pr omover tr ês segundos-sar gentos a tenente, me indicar am...quando chegou lá no EstadoMaior : ‘Vem aqui, esse aqui não é aquele mor eninho, escur inho...nós vamos pr omover ele?’...aí um capitão que me conhecia muito bem falou: ‘Olha, nós não estamos discutindo cor não, estamos discutindo o valor do indivíduo...o valor que ele têm’...por aí você vê que r ealmente existe, e existia, o r acismo

OLIVEIRA, Dennison. “Raça e Forças Armadas: o caso da campanha da Itália” Estudos de História. Franca: v.8, n.1, 2001, p.155-182.

217

no Br asil...pr econceito r acial no Br asil. Daí que eles meter am o r abo entr e as per nas, e eu fui apr ovado...fui comissionado a tenente lá...mas houve essa passagem...e nem foi esse capitão que me falou depois, não...foi um outr o que falou: ‘Olha, fulano de tal te defendeu sobr e esse aspecto...’” Márcio: “E você sabe de outr as passagens?” J.Vieira: “Não, outr as não...no pelotão não havia isso, não é? Por que ali, o sujeito sendo br anco ou pr eto, mor r e tudo do mesmo jeito...” 305

Outro veterano da FEB, também negro, limita ainda mais a possibilidade da existência de racismo na FEB. Questionado sobre a presença do racismo na guerra responde: “Não...não...A guer r a é um fator de união...é um fator per manente de união...a gente ter mina se ir manando...nós hoje vivemos aqui como ir mãos...nós temos estima pelos companheir os como se fossem ir mãos. Agor a nesse fim de semana nós fomos sepultar um companheir o...é uma coisa fantástica o que nós sentimos...sábado, agor a, nós sepultamos um companheir o muito amigo nosso aqui, não é? Então a gente...é como se fosse um ir mão que estivesse per dendo...” 306

Em suma, apesar dos indícios que provam a existência do racismo na FEB, a tese da ‘democracia racial’ é muito forte e consiste em sólido mito no âmbito da memória da FEB. Não somente nas fontes orais casos de preconceito racial podem ser encontrados, mas também na propaganda estadonovista acerca da FEB – cujos cartazes mostravam, mais freqüentemente, homens brancos –, bem como em certo discurso eugenista próprio desse regime. Ainda é digno de nota o pequeno número de oficiais negros, bem como as tentativas de exclusão destes, por parte do General Zenóbio da Costa, das Guardas de Honra da FEB e dos desfiles oficiais – histórias muito bem conhecidas por todos, mas portadoras de uma importância bastante marginal nas memórias da FEB. Definitivamente, esse estereótipo consiste em sólido elemento congregador da identidade dos febianos e, mais uma vez, é interessante perceber como muitos tiveram que ‘esquecer’, reprimir ou

305 306

Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001. Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

218

adaptar experiências pessoais a fim de contarem com a aceitação pública de suas memórias307. Ainda no contexto dessa memória coletiva dos veteranos, várias outras definições são estabelecidas e hierarquias criadas – interessante, ainda, é como cada um dos sujeitos interiorizam esses valores. Dessa forma, como observou Thomson em seu estudo sobre os ANZAC, a fonte oral permitiu que se descobrisse que muitos veteranos não entraram em combate e que, em detrimento das outras armas, a infantaria é privilegiada nas memórias – sobretudo quem sofreu ferimentos ou mutilações. Várias outras atividades subsidiárias, fundamentais à manutenção do front são, na maior parte, colocadas em segundo plano. Dessa forma, na FEB, os mais considerados são os chamados “sacos A”, que participaram dos combates; depois os “sacos B”, pessoal do Depósito, cozinheiros, ocasionalmente a própria artilharia, guerra química, serviços especiais da retaguarda etc.; por fim, ainda há os “sacos C”, os “patos d’água”. O veterano J. Lopes, cozinheiro, coloca que não tem muito a falar em decorrência da atividade que exerceu – apesar de saber bastante sobre a outra face da guerra, pois o que não faltava nas cozinhas eram pessoas pedindo comida bem como o onipresente contrabando de alimentos e coisas do gênero, sem contar certas formas de resistência. Apesar de tudo isso afirma: “Sou saco B”308. Certo é, entretanto, que nessas definições de hierarquias estabelecidas pelas Associações, Forças Armadas e veteranos considerados ‘guardiões da memória da FEB’, uma série de conflitos e tensões surgiram e ainda surgem. O veterano M. Couto, em depoimento, se mostrou irritado com colegas que insistem em passar uma visão geral da

MAXIMIANO, César Campiani & OLIVEIRA, Dennison. “Raça e Forças Armadas: o caso da campanha da Itália” Estudos de História. Franca: v.8, n.1, 2001, p.155-182. 308 Entrevista com J. Lopes, Juiz de Fora, dezembro/2004. 307

219

guerra que, segundo ele, é uma visão deturpada da mesma. Ele criticou, em especial, um livro escrito pelo veterano Cássio Abranches Viotti, considerado historiador oficial da FEB que, já no jornal “ A Tocha” , escreveu texto resumindo a guerra na Itália para servir de base ao que os veteranos contariam em casa. Couto afirma que “Ele esteve em todo lugar ... eu par ei de ler o livr o dele... ele me deu o livr o, e falou comigo que o pr imeir o que ganhou o livr o fui eu... ele foi meu comandante por quinze dias... ele conta uma histór ia desses quinze dias que eu fico r evoltado... ele, comandando uma patr ulha, e essa patr ulha não existiu, no lugar em que está citando não existiu... ‘chegando em uma casa, meus soldados ficar am r eceosos e eu estufei o peito e entr ei na casa sozinho’ (...) Está no livr o... fechei o livr o e não abr i mais (...) Agor a, eu não vou falar com ele... nós gostamos muito dele, nós o r espeitamos muito... mas eu não gostei dessa, por que eu estava na patr ulha... eu estava na patr ulha, e esta patr ulha em que ele foi eu fui, não tinha casa, não teve nada (...) Eu par ei de ler o livr o... por que, se eu não estivesse lá: ‘Pó, é valente pr a daná esse tenente, hein?’ (...) É uma mentir a... ele, sozinho, não ir ia invadir casa nenhuma não, ainda mais com alemão... ninguém...nem eu, nem você, nem nada (...) Esse tr abalho seu que você está fazendo aí, é um tr abalho mar avilhoso... chega amanhã ou depois, um aluno vai lá e localiza eles... é bonito. Agor a, hoje... tem gente que não gosta que eu fale, por que eu fico ner voso e... eu não concor do com essas guer r as que os colegas estão pr omovendo...” 309

Durante a entrevista, Couto citou ainda outros colegas que “mentem muito”, outro que critica demais a FEB e os veteranos – esse, classificado como “gagá”310. Outro veterano já citado, até hoje bastante avesso aos valores e à vida militares, despreza certa visão militarizante da FEB e não se vê como um militar – fato que procura deixar sempre claro em seu depoimento. Ele possui dois históricos militares que resumem a sua trajetória de antes, durante e até o seu desligamento do Exército quando da desmobilização da FEB. Em um deles há todas as cadeias que pegou por indisciplina, no outro, as prisões foram retiradas, para os casos em que for necessária a apresentação do histórico para algo qualquer. Então ele afirma: “Nunca gostei da disciplina militar (...) eu fiquei, foi o único que ficou... eu não fui promovido, foi por causa do mau

309

Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.

220

comportamento... a gente não fala para os amigos, mas já peguei tanta cadeia...”311. Já outro veterano, tratando do mesmo assunto, a saída do Exército, mostra-se apegado aos valores militares, e afirma que é importante ter “boa conduta”, mas enfatiza, “... o que é coisa rara.”312. Em suma, ambos reconhecem os valores priorizados pela memória hegemônica, e lidam de formas diferentes com ela. As instituições ligadas à memória da FEB, tais como as Associações e Forças Armadas, como já vem sendo dito, mostram-se sempre presentes no que toca às preocupações com a manutenção, difusão e “enquadramento” das lembranças e identidades dos veteranos. Por meio das palavras de S. Ribeiro, por exemplo, pode-se ver como as Associações são vigilantes quanto a essa questão – respondendo a uma pergunta sobre a importância da Associação ele diz: “É muito impor tante, não é? Por que a gente fica conhecido... senão ninguém saber ia nada da Segunda Guer r a Mundial, não é? Nem na escola não fala nada...inclusive a Associação pede par a a gente usar sempr e a ‘cobr inha’ [Insígnia com o símbolo da FEB]...par a chamar a atenção dessa mocidade...que às vezes acham que a gente é médico, não é? Aí é que a gente fala o que é. É muito bom, não vamos deixar acabar , por que já está acabando mesmo...a maior ia está mor r endo tudo...nós estamos chegando no fim.” 313

Pelo lado das Forças Armadas, as iniciativas envolvendo a memória da FEB têm se tornado mais enfáticas com o tempo. Exemplo paradigmático disso é o ambicioso projeto “História Oral do Exército Brasileiro na Segunda Guerra Mundial” concluído no ano de 2001. Composto por mais de duzentas entrevistas, e organizado em oito grandes tomos, tal intento levou cerca de três anos para ser concluído, e conta com a colaboração de numerosos veteranos das mais variadas patentes e regiões do país, indivíduos ligados às

310

Infelizmente não tive contato com o veterano citado, portanto não sei ao certo ao que remete o qualificativo “gagá”. 311 Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002. 312 Entrevista com J.J. Silva, Juiz de Fora, dezembro/2004.

221

tarefas de patrulhamento do litoral, oficiais de outros exércitos aliados, alguns representantes da FAB entre outros. Quanto aos objetivos, “Dos pr incipais aspectos que ensejar am a r ealização desta impor tante atividade, sem dúvida, um foi pr imacial – a possível utilização de gr ande númer o de colabor ador es, ainda não explor ados, pelo muito que significam par a o contexto histór ico da pr esença decisiva do Exér cito no evento em questão. O Pr ojeto tenciona, ainda, tor nar mais conhecidos esses mar cantes episódios, a fim de que as pr óximas ger ações possam dispor de fontes fidedignas par a o estudo dos pr ocessos histór icos castr enses. Per mitir á a for mação de pr ecioso acer vo, aber to à consulta, ao estudo e à pesquisa...” 314

Interessante lembrar que iniciativa semelhante – “Projeto Memória Militar” – já havia sido iniciado três décadas atrás, mas que, por razões não detalhadas, acabou não sendo concluído. Por sua vez, os idealizadores da HOESGM afirmam ter retomado tais propostas de modo a concluí-las. Nessa primeira iniciativa durante a década de 1970, “Implementado no Clube Militar , seu for mato e concepção or iginais apoiavam se nos r elatos de vida e de car r eir a de ilustr es membr os da For ça Ter r estr e, cujas vivências situavam-se nos cenár ios de maior expr essão e significado da Histór ia do Exér cito. Conhecido como Pr ojeto Memór ia Militar , teve como ger ente o Cor onel de Engenhar ia e Estado-Maior Asdr úbal Esteves, ele pr ópr io veter ano da For ça Expedicionár ia Br asileir a. Sua dur ação foi efêmer a, mas os r esultados, devidamente pr eser vados pelo Instituto de Geogr afia e Histór ia Militar , continuam a ser vir aos ideais mais elevados de seus pr omotor es.” 315 (grifos meus)

Por sua vez, o projeto recém finalizado, visando compartilhar das novas perspectivas teórico-metodológicas da história, como evidenciam os organizadores, procurou dar novos ares à história da FEB. Tal dimensão fica explícita na preocupação em discutir, mesmo que brevemente, alguns aspectos ligados à metodologia da história oral e à concepção do projeto, bem como na valorização das versões conflitantes típicas da memória, além de elementos como as “emoções” e “vivências” da história. Tal abordagem, certamente, deve ser vista como um avanço, mesmo que tarde, na percepção que as Forças Armadas têm de ‘seu’ passado. O projeto, apesar de contar com um formato de realização das entrevistas um

313

Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.

222

pouco rígido e às vezes tendencioso, em minha opinião, não deixou de dar uma autonomia considerável aos depoentes que, em diversos momentos, não deixaram de fazer críticas à recepção dos veteranos feita pelo Governo e pelo próprio Exército, bem como, sobretudo entre os praças, falar da experiência de guerra das baixas patentes: fugas, mulheres, ‘tochas', autoritarismo, os boatos sobre turismo etc. Com isso, o projeto conseguiu colher uma rica gama de depoimentos, que perpassa vários dos níveis priorizados por diferentes sujeitos históricos. No que toca ao complicado processo de reincorporação social dos veteranos, vê-se que, pelo roteiro das perguntas feitas aos depoentes, em nenhum momento tais assuntos foram abordados. O objetivo do projeto foi conceber um acervo sobre a guerra propriamente dita, de forma que as críticas feitas, geralmente, surgiam no âmbito das últimas perguntas: “Na sua opinião, quais as conseqüências para o exército da participação do mesmo no conflito?” e “Quais as conseqüências na sua vida pessoal?” – ou seja, um espaço de liberdade dado aos depoentes e que, na versão final, foi veiculado316. Certo é, entretanto, que o momento em que tal projeto vem à tona não é, de forma alguma, uma coincidência. Não tenho dados para mostrar porque a iniciativa de trinta anos atrás não logrou êxito, mas, certamente, questões políticas estariam entre as explicações – Deve ser lembrado que, até então, os veteranos não contavam com a pensão definitiva que veio só em 1988, bem como não eram bem quistos, como hoje, entre os militares da ativa. Creio que um dos próprios veteranos entrevistados pelo projeto explica o porquê do fato de um trabalho como esse ter vindo à tona apenas 55 anos após o término dos conflitos:

314 315

“História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial”, Tomo Um, p. 2. “História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial”, Tomo Oito, p. 1.

223 “Agor a o ex-combatente está r enascendo por que não faz mais sombr a par a ninguém, todo mundo está cr istalizado. O pr ópr io convívio ficou melhor por que antes havia de um lado os abonados e do outr o os demais, os miser áveis. Er a assim.” 317

Em outros termos, fica claro que certas memórias, para vir a público e serem toleradas pelos “sujeitos guardiões do passado”, dependem de condições históricas específicas – ou seja, a partir do momento em que deixam de ser ‘perigosas’ para instituições e para indivíduos. Para esses últimos tais imbróglios são ainda mais dramáticos, pois se podem esperar anos, até mesmo décadas, para que nossas memórias encontrem alguma aceitação e ressonância entre a sociedade e os poderes públicos. Nesse ínterim, desde a volta da FEB, sabe-se que as coisas não de deram de forma tão harmônica, daí os impasses: “Dentr o da instituição militar , os oficiais que pr efer ir am per manecer no Br asil (...) temiam ser pr eter idos nas futur as pr omoções pelos oficiais e pr aças expedicionár ios, que podiam exibir exper iência em combate r ela, condecor ações e pr omoções conquistadas no front. A r ecepção dos militar es febianos r egular es nos quar téis foi fr ia e até mesmo hostil. Por seu tur no, a cúpula hier ar quia militar br asileir a contr ibui par a as dificuldades dos militar es febianos, destacando-os par a guar nições distantes e não desenvolvendo nenhuma for ma de apr oveitar a exper iência de combatentes ...” 318

Em suma, tal projeto do Exército faz parte de uma iniciativa ainda mais ampla de produção de acervos orais. Um outro trabalho, já concluído, trata da polêmica “Revolução de 64” e, certamente, aí há, igualmente, bastante roupa suja a ser lavada – resta saber até onde as Forças Armadas estão dispostas a ir319. Quanto ao caso da FEB, apesar do Exército ter dado esse passo digno de nota, no que toca às cerimônias e manifestações públicas, ainda há muito a ser revisado – como veremos a seguir. De qualquer maneira, tais iniciativas são bastante válidas e importantes, bem como exigem muito espaço e tempo

A versão final das entrevistas foi textualizada, o que levou à supressão das perguntas. Tive acesso a estas, por sua vez, junto a um dos meus entrevistados que participou como colaborador do tal projeto, e que gentilmente me cedeu uma cópia da primeira versão da entrevista que fez com os militares. 317 “História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial”, Tomo Sete, p. 16. Entrevista com o bacharel Oudinot Willadino. 316

224

para serem analisadas. Deixo aqui apenas algumas impressões a fim de cobrir esse importante evento no âmbito da história da memória da FEB e dos veteranos. Para alguns, a memória público-oficial ajudou/ajuda na reconciliação com o passado da guerra e da reincorporação, outros não têm a mesma sorte, restando o silêncio e a marginalização – isso demonstra a importância de se construírem leituras plurais e tolerantes do passado, que evitem um discurso homogeneizador em qualquer dimensão. Trabalhando com depoimentos de perfis diferentes, é possível ver como a memória dos veteranos se altera de acordo com as variações de sentido da memória coletiva definida pelas Associações e Forças Armadas, bem como em que medida, a despeito da pressão veiculada pelo mito, não se ‘esquecem’ de certos elementos centrais às suas identidades. Exemplo disso pode ser notado na forma como os veteranos lidam com suas memórias no espaço de suas casas. Visitando vários veteranos pude perceber como, em alguns casos, tudo nos cômodos lembra a guerra: fotos, diplomas, certificados de congressos, enfeites etc – ao passo que, em outras casas, dificilmente sabe-se que o morador lutou na Segunda Guerra Mundial. De acordo com Thomson, “A presença e proeminência físicas da memorabilia dos tempos da guerra indicou a continuidade do significado emocional das memórias da mesma, bem como das identidades evocadas e reiteradas por eles”320. Tudo isso, como não poderia deixar de ser, evidencia o que foi priorizado no complexo jogo pela identidade. Mas é claro que, nesse jogo, as forças em disputa e negociação não são iguais, o que torna o tão almejado equilíbrio difícil de ser atingido.

318 319

FERRAZ, “Os veteranos da FEB e a sociedade brasileira”, p.375. Quanto a esse segundo trabalho, não obtive acesso.

225

Tais dinâmicas portam um caráter fundamentalmente político – disputas pelo passado são equivalentes a disputas pelo poder – de modo que privilegiando uma ou outra versão dos fatos, ou, ainda pior, quando impera o esquecimento, como se dá no âmbito civil, e por muito tempo no militar, no caso da FEB, os ressentimentos tendem a se exasperarem, o que torna peculiar as lembranças e identidades de um dado grupo ou indivíduo. Uma das formas mais comuns de ação política oriunda dos ressentimentos – vale lembrar aqui, também, o caso dos “patos d’água” – e o fortalecimento da solidariedade grupal: “Se somos vítimas de indivíduos que nos pr ejudicam e fer em nossas liber dades, exper imentamos e estimamos que estes indivíduos sejam malévolos, enquanto nós ser íamos os bons. As for ças que me são hostis são nefastas e per ver sas, enquanto eu pr ópr io sou justo e inocente do mal que me é feito. Por tanto, os r essentimentos, os sentimentos compar tilhados de hostilidade, são um fator eminente de cumplicidade e solidar iedade no inter ior de um gr upo, e suas expr essões, as manifestações podem ser gr atificantes. O ódio r ecalcado e depois manifestado cr ia uma solidar iedade efetiva que, extr apolando as r ivalidades inter nas, per mite a r econstituição de uma coesão, de uma for te identificação de cada um com o seu gr upo.” 321

Por fim, é a partir das comemorações dos veteranos – a serem discutidas no próximo e último tópico – que se poderá vislumbrar a dimensão prática deste, e de outros, elementos característicos da memória da FEB. v III.3

Memór ia e comemor ação Em vista do que foi dito acima, vale perguntar: até que ponto o indivíduo é anulado

pela solidariedade grupal? E qual é o poder e a efetividade dos sujeitos ‘produtores’ de

THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.186. No original: “The physical presence and prominence of wartime memorabilia indicated the continuing emotional significance of memories of war, and of identities they recalled and reafirmed.” 321 ANSART, Pierre. “História e memória dos ressentimentos” In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (orgs.). “Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível” Campinas: Editora da Unicamp, 2001. p. 22. 320

226

elementos de convergência identitária e “enquadradores” dos discursos da memória coletiva? Fomos a campo responder. Entre 05 e 09 de setembro de 2004, realizou-se em Belo Horizonte o XVI Encontro Nacional dos Veteranos da FEB. Não por acaso essa data foi escolhida, o Encontro se daria durante a semana do 7 de setembro e, dessa forma, o desfile do dia da Independência faria parte das comemorações dos 59 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Nos últimos anos a freqüência dos Encontros vem crescendo, de bienal, passou a ser anual e, no ano de 2005, foi realizado outro grande Encontro em comemoração aos sessenta anos do fim dos conflitos. Os Encontros ocorrem estritamente no âmbito militar, são organizados pelas ANVFEBs, com apoio logístico e material das Forças Armadas – sobretudo do Exército –, e contam com a participação dos veteranos e seus familiares: esposas, viúvas, filhos, netos etc. Na programação dos eventos, constavam: uma missa e um culto evangélico, almoços diários em parques, clubes e unidades das Forças Armadas, visitas a locais turísticos, o “Desfile Cívico Militar” do 7 de setembro, concerto musical com a Orquestra da Polícia Militar de Minas Gerais, visita ao PAMA – Parque de Material da Aeronáutica de Lagoa Santa –, homenagens junto ao monumento da FEB na Praça Afonso Arinos. No último dia, formatura e entrega de medalhas no 12o Batalhão de Infantaria, a reunião dos presidentes das regionais, da direção central e do conselho deliberativo e, por fim, o encerramento do encontro com um jantar dançante no Clube Militar dos Oficiais de Belo Horizonte. Os eventos são coordenados pelo Exército, bem como as homenagens, discursos e entrega de medalhas são feitos por militares da ativa, no caso o General de Divisão Paulo César de Castro, então comandante da 4o Região Militar.

227

Tais eventos cumprem uma função muito importante no âmbito da memória da FEB e dos veteranos – apesar de não parecer, pois é realizado nos meios militares, restrito a estes e, contando com uma cobertura mínima/burocrática da imprensa civil, nada, ou quase nada, é acessível ao público em geral. Apesar dos veteranos sempre estarem reclamando da questão do esquecimento, é intrigante o fato da organização dos Encontros ser tão fechada – eu mesmo, como pesquisador, tive que explicar porque queria participar do Encontro e dependi da boa vontade dos organizadores, por sorte, alguns dos depoentes que já havia entrevistado. As cerimônias oficiais e homenagens portam um forte caráter formal e focado nas autoridades presentes no Encontro322; nas tribunas de honra, os únicos veteranos são os presidentes da ANVFEB/BH e da sede nacional. Os discursos fundam-se na sacralização da nação, dos soldados sacrificados em prol da pátria etc. Apesar de tudo, na aparência, os veteranos adotam trajes civis e não portam armas nos desfiles, ao contrário dos excombatentes da AECB, que usam uniformes militares nessas ocasiões. Nesse contexto, deve-se ficar atento para as funcionalidades políticas das festas, ou como diria Claude Riviére, às “liturgias políticas”: legitimação, hierarquização, moralização e exaltação323. “‘A cerimônia diferencia-se da festa’ [e ambas estão presentes nos Congressos], diz JeanJacques Wunemburger, ‘porque não implica uma participação ativa de todos os membros do grupo social. Ela supõe que o contato com o sagrado é regulado, limitado, na verdade delegado a um certo número de eleitos’”324. Os debates existentes sobre festas e comemorações são extensos, de forma que não é esse o momento para fazer longas exposições. De qualquer forma, tanto quanto extensos,

322

Durante a Ditadura Militar, nas datas comemorativas da FEB, como o Dia da Vitória, ou 8 de maio, compareciam várias autoridade políticas, dentre elas, freqüentemente, os próprios presidentes da República. 323 RIVIÉRE, Claude. “As liturgias políticas”, p.11. 324 Ibidem. p.13.

228

tais debates são complexos e tendem a estabelecer oposições que variam em função da abordagem ou princípios teóricos adotados e dos fatos em estudo. Para uns a festa “sintetiza a totalidade da vida da comunidade onde se realiza”, reproduzindo-a, portanto; outros colocam que “a sociedade sai de si mesma, escapa á sua própria definição.”325. Dessa forma, as análises ora afirmam que as festas consistem num momento de inversão, ora reforçam os valores hegemônicos e ‘naturais’ de um dado grupo. Entre o endosso e a ruptura com o cotidiano, na verdade, todas as festas não deixam de portar ambas as características, pois: “Ela não pode ser o local da subversão e da livre expressão igualitária, ou só consegue sê-lo de maneira fragmentada porque não é apenas um momento de unificação coletiva, as diferenças sociais e econômicas nela se repetem”326. Os sujeitos que participam desses eventos cumprem papéis variados. De acordo com Todorov, pode-se separá-los, grosso modo, em dois grupos: as testemunhas e os comemoradores. Quanto aos primeiros, “refiro-me ao indivíduo que convoca suas lembranças para dar uma forma, para dar um sentido, à sua vida, e constituir uma identidade (...) é o interesse do indivíduo que preside a construção...”327. Por sua vez, o comemorador é guiado pelo interesse, criando imagens piedosas do passado com vista ao atendimento de demandas presentes. O próprio Todorov, ainda, afirma que não é a comemoração a melhor forma de fazer o passado viver no presente, apesar de inevitável, até porque não é estranho que comemoradores e testemunhas se fundam nos mesmos indivíduos.

GUIMARÃES, Dulce. “Festa da produção: identidade, memória e reprodução social”, p.181. Ibidem. p.183. 327 TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”, p.151. 325 326

229

De acordo com Dulce Guimarães, é de difícil aceitação a idéia de que, numa festa ou comemoração, a sociedade fuja de si e torne-se inexplicável, de modo que as festas, dessa forma, sugerem sim uma reprodução das relações cotidianas, o que não quer dizer que não existe certo grau de descontinuidade nesses eventos – aspecto que vai variar, como se disse, de festa para festa. Igualmente, falar em total inversão dos valores é forçar o argumento, pois, geralmente, a própria organização das festas e comemorações é levada a cabo pelos sujeitos que dominam a cena ou, no mínimo, sofre forte influência destes. Por extensão, pensar-se-á as festas e comemorações aqui como momentos em que se reproduzem as relações sociais e de poder do grupo que a promovem328, mas evidenciando que tais momentos não contam com um caráter totalitário – de modo que, durante esses eventos, os ‘espaços de inversão ou contestação’, mesmo que temporários, são abertos. Isso não significa que tais espaços visem à destruição do discurso hegemônico, na verdade, tais mediações se explicam, já no caso da memória dos veteranos, pela necessidade de uma complexa negociação entre as experiências pessoais/individuais e o imperativo da aceitação pública. Por fim, conclui-se que há ‘festas’ e ‘festas’, de modo que analisar cada caso empiricamente, torna-se a maneira mais interessante de se propor uma interpretação precisa. Por outro lado, o mais importante, no caso dos veteranos, é a dimensão agregacionista e de renovação dos laços que os unem desde a época da convocação, das tochas e dos duros momentos no front – bem como mostrar que, respaldados pelo Exército – essa ‘instituição atemporal’ –, suas memórias e a guerra da FEB permanecerão sempre vivas. Essa preocupação com o esquecimento é onipresente na fase da velhice e, sobretudo entre

328

GUIMARÃES, Dulce. “Festa da produção...”, p.184.

230

veteranos de guerra, existe uma perspectiva de que seus sofrimentos, da guerra e da volta, não foram em vão – conforme se dá com os veteranos americanos no Memorial Day: “Os veter anos sobr eviventes das guer r as amer icanas são também honr ados nos cor tejos que, par tindo do centr o histór ico da cidade, dir igem-se par a cemitér ios impecavelmente pr epar ados par a a cir cunstância. No cemitér io, diver sas or ganizações pr omovem sua homenagem par ticular aos mor tos antes que se desenvolva um cer imonial com a comunidade inteir a. Ao mesmo tempo que lembr a a histór ia da coletividade local, o r ito deixa cada indivíduo diante de sua futur a mor te e a faz esper ar a mesma comemor ação em seu pr oveito, eliminando assim o medo de ser esquecido.” 329

Tal evento dos veteranos americanos não é monopolizado pelas Forças Armadas, como é o caso, também, dos festejos e comemorações do Anzac Day de meados dos anos noventa, conforme averiguados por Thomson: “O Anzac Day é um dia em que se relembra os colegas que não estão lá. Não é sobre glória, é sobre camaradagem.”330. No caso da FEB, tal dimensão existe, mas divide espaço com outros elementos, pois que os eventos são monopolizados pelos valores propagados pelas Forças Armadas. Tanto é assim que, em todos os eventos oficiais de que participei, em unidades do Exército, a questão do processo de reincorporação e da volta dos veteranos sempre foi ‘esquecida’, apesar de, nas Associações, tais lembranças estarem sempre na pauta das discussões – como se atestou nas abordagens, dos pesquisadores da FEB, acima colocadas. Se num primeiro nível estabelece-se uma situação de conflito e negociação entre veteranos e as Associações, a própria memória coletiva/oficial se mostra fragmentada, a partir do ponto em que tensões e negociações são, também, os princípios primordiais que regem a relação entre a ANVFEB e as Forças Armadas. Mas então onde estão os ‘espaços de inversão’? Vale lembrar que em um evento numerosos encontros se dão, há os momentos ‘entre’ as programações, existe o ‘por trás’

329

RIVIÉRE, Claude. “As liturgias políticas”, p.117.

231

das cerimônias, sem contar os boicotes, ou seja, há também os que não comparecem por motivos vários, bem como os que lá estão por motivos muito além do que os organizadores imaginam. Caso já citado foi o do veterano W. Soler que, após a volta para o Brasil, nunca participou de quaisquer comemorações e eventos em respeito ao sofrimento da população italiana durante a guerra. Outro veterano, J. M. N., integrante da regional de Juiz de Fora, reclamou da excessiva aceitação que o Exército tinha para com os praianos. Confidenciou ainda que, durante um outro Encontro de veteranos em São João Del Rei, um general que, segundo ele, acolhia demais os “patos d’água”, protagonizou todo o cerimonial: discursou, entregou medalhas etc. J. M. N. revoltou-se porque o presidente da ANVFEB naquela ocasião, de posto inferior ao tal general, nada fez, o que o levou a se retirar do quartel e não ouvir mais nada daquele encontro. Esse veterano nutre considerável ressentimento pelos excombatentes, sobretudo quando soube que, já nos anos 90, de praianos que obtiveram a pensão antes dele. Outros, ainda, não compactuam com o forte caráter militar das comemorações ou não têm ‘o veterano’ como o personagem central de suas identidades, e simplesmente ignoram as comemorações – sem contar fatores como saúde, distância etc. Há ainda os que nunca perdem tais Encontros por ser uma forma barata de viajar junto com os familiares, já que os maiores gastos ficam às expensas das Forças Armadas. Em suma, o fato é que se cada ‘festa’ é uma ‘festa’, dentro de uma mesma festa ainda há várias festas – os sentidos que os indivíduos dão a um evento percorre caminhos que o melhor planejador de eventos não pode, sequer, chegar próximo ou procurar controlar completamente. Enquanto os discursos eram feitos e as medalhas entregues, vários

330

THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.202. No original: “Anzac Day is a day to remember your

232

veteranos se arrumavam esperando pela hora de desfilar, momento que mais gostavam, pois eram aplaudidos pelo público, o que os fazia lembrar da chegada no Rio de Janeiro. Outros ‘reclamavam da vida’, reencontravam velhos amigos que moram longe e conheciam seus filhos e netos, algumas enfermeiras veteranas conversavam logo ali ao lado, ocupando um pequeno espaço no âmbito de uma memória essencialmente masculina. De repente, algo chama toda a atenção, um veterano passava mal com o calor e teve que ser retirado de lá – muitos teriam pensado: ‘O fim está próximo’. Depois, mesmo com o hino nacional tocando, uns continuavam a conversar com os colegas, mas a maioria parou em respeito àquele símbolo máximo da nacionalidade. Em seguida, já no ônibus em direção a outro evento: contavam piadas, falavam da convocação, dos medos da guerra, da volta, das ‘senhorinhas’, das dificuldades, das fofocas, dos praianos, do calor que estava naquele dia, do passado, do futuro. Por fim, durante um dos almoços no Clube Jaraguá em Belo Horizonte, quando todos já se dispersavam de volta aos ônibus, e as autoridades – das Associações e militares da ativa –, que dispuseram de um espaço separado, deixaram o microfone para trás, um veterano, fugindo do protocolo, assumiu a palavra. Então começou a cantar algumas músicas italianas da época da guerra e declamar poesias que falam da vida dos soldados, aos poucos o salão voltava a encher e vários arrumaram pares para dançar. Enquanto isso o tempo passava e o próximo evento – um passeio no Parque das Mangabeiras – atrasava, foi preciso que os organizadores insistissem na necessidade de ir embora. Mesmo sessenta anos depois do fim dos conflitos, a guerra do Exército da FEB ainda se chocava com a guerra do Exército de ‘Caxias’.

mates who are not there. It’s not about glory, it’s about mateship.”

233

CONCLUSÃO Roney Cytrynowicz em seu livro “ Guerra sem Guerra” , título muito apropriado para se pensar não só como o evento da Guerra repercutiu no Brasil, mas também a memória desse evento, afirma que “A Segunda Guerra Mundial não é – até agora – um marco divisor da história contemporânea do Brasil nem um marco periodizador importante na memória coletiva dos seus habitantes...”331, exceto para os veteranos, é claro. As causas disso são numerosas: o contingente que foi à Itália era relativamente pequeno, não existiu uma mobilização real da população brasileira, na volta a FEB foi vista como inimiga política, sendo alvo de um projeto deliberado de esquecimento e marginalização, há ainda o complicado processo de reincorporação e a estigmatização dos veteranos e, por fim, a ‘guetificação’ junto às Forças Armadas – vista como a única forma de sobreviverem. Tal movimento dá mostra de que continuará após o fim dos veteranos, pois, com o fim das Associações, os únicos espaços que têm se prontificado a receber os acervos são unidades das Forças Armadas. Essa será a coroação de um processo que vem de longe, que é a militarização da memória da FEB. Como julgar isso? É bom ou ruim? É certo ou errado? Não cabe ao historiador responder tal questão, mas sim trazer à tona tais percursos que a memória faz – ficando ao critério de cada indivíduo as implicações que isso traz. Alguns veteranos tendem a ver isso de forma negativa, pois seria reforçar a ‘guetificação’ da memória da FEB. Mas ao mesmo tempo, por outro lado, sabem que essa é a única forma de mantê-la “acesa”. Para os veteranos, a consciência do esquecimento é muito presente e, se existe outro elemento perceptível em todos os depoimentos, seria esse. Em geral os veteranos gostam de

331

CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”, p.287.

234

dar entrevistas, de trabalhos e de pesquisadores da FEB, pois vêem isso como uma forma de manutenção de suas experiências – e isso, para a maioria do velhos, é uma verdade, pois a perspectiva do esquecimento gera medos, angústias e humilhações. Tais sentimentos são a porta de entrada para o surgimento de uma memória carregada de ressentimentos, que pode vir à tona de formas variadas. Interessante evidenciar que, entre os veteranos, existe certo ressentimento em relação às Forças Armadas – identificado, hoje, pelas histórias que falam da marginalização e da inveja de que foram alvos por parte de integrantes daquela instituição quando da volta. Por outro lado, ao longo do tempo, muito desse ressentimento arrefeceu-se, pois que foram sendo aceitos e incorporados à memória militar nacional, como já se viu. Dessa forma, o maior ressentimento que se vê hoje recai sobre o esquecimento generalizado existente sobre a FEB. Abundam exemplos disso nos depoimentos: “Essas coisas aqui no Brasil... o brasileiro esquece tudo, não tem história, não tem tradição, ele não tem nada... o brasileiro destrói tudo...”332; outros contam casos bastante amargurados: Mas ainda existe muita gente, e não é só gente humilde (...) pessoas for madas que continuam pensando que a gente foi à Itália passear (...) nós temos pr ofessor es (...) que não sabem que o Br asil par ticipou da Segunda Guer r a (...) olha, você vai encontr ar no meu livr o (...) um desabafo. 7 de setembr o de 1994 (...) eu saí da minha casa, em tr aje civil, fiquei na avenida ali onde tem o desfile de 7 de setembr o...assisti ao desfile assim ô...o povo todo assistindo o desfile das escolas...e eu pensei comigo: ‘Bom, com cer teza tem alguma escola aí que vai tr azer uma faixa: ‘Homenagem à For ça Expedicionár ia Br asileir a pelos seus cinqüenta anos de entr ada em ação’ (...) Aí comecei a ver as escolas passando...faixas assim: ‘Homenagem aos tetr acampeões do mundo’, ‘Homenagem aos campeões de basquete’, ‘Homenagem à família imper ial’, ‘Homenagem aos campeões de tênis’, ‘Homenagem aos campeões...’...vár ias faixas homenageando...e nada...‘Quem sabe mais no final assim vem’...Aí chegou a última faixa...passado o desfile, veio polícia, já tinha passado o tir o de guer r a, já tinha passado a banda de música...aí atr ás veio a polícia desfilando, e atr ás vier am os cavaleir os, os cavalos tr oteando ali e uma pessoas puxando uns cães...quinze minutos e fechou...[silêncio][emoção] (...) eu saí dali do meio do povo fui par a casa...tr iste, amar gur ado...não é por que não se lembr ar am de mim

332

Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.

235 não...ninguém ia lembr ar -se de mim, do expedicionár io L. J unqueir a...não é isso que eu quer ia (...) eu quer ia que se lembr assem da FEB...uma faixinha pequenininha com ‘Homenagem à For ça Expedicionár ia Br asileir a...cinqüenta anos de entr ada em ação’ (...) [tal fato o levou a escrever um livro] E sabe quem mais me compr ou esse livr o? Os pr ópr ios excombatentes (...) é mais lido pelo ex-combatente do que pelo leigo... ” 333

Algumas perguntas faziam com que se lembrassem desses pontos ‘mal resolvidos’, da desigualdade de memória, dos medos do esquecimento, da humilhação, das lembranças dolorosas e traumáticas etc.334 – e cada um deles lida de forma diferente com esse passado/presente problemático: por meio do ódio, do ‘esquecimento’, das neuroses, do desespero, da fuga, da valorização de certos discursos políticos, das ucronias335 etc. Esse estado das coisas é extremamente crítico, para não dizer perigoso. O exemplo maior disso, para ficar apenas entre veteranos de guerra – a despeito da larga diferença entre os casos brasileiro e europeu –, foi a adesão em massa da ‘comunidade das trincheiras’ de 1914-18 a

333

Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005. THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória...”, p.68. 335 Para Alessandro Portelli “ucronia” é um meio que a memória encontra para lidar com os inconformismos da história e da realidade, bem como se relacionar com as frustrações e desapontamentos de nossas vidas: ‘O que teria acontecido se...’. Nas ucronias, são os temas da “oportunidade perdida” e “do caminho errado tomado pela história” que estão em questão, além das derrotas, versões perdidas e subterrâneas da história e os desejos reprimidos. Tal estratégia da memória é muito comum em contextos pós-guerras e, sobretudo, em pessoas que vivenciaram de alguma forma os conflitos – militares ou civis –, pois aguarda-se o paraíso após ter passado pelo inferno, mas o que se encontra, no final das contas, é a realidade dos seres humanos. Então coloca um veterano, falando sobre as oportunidades trazidas pela FEB e que foram perdidas pelo Brasil: “... nós achamos que o pr acinha, com toda modéstia, é o gr ande r epr esentante desse país...a gr ande instituição br asileir a é a For ça Expedicionár ia Br asileir a...é a instituição mais nacional que já teve no Br asil...e nós temos muito or gulho disso...de saber mos que ér amos humildes, que fomos à guer r a e que cumpr imos uma tar efa difícil com um r esultado positivo...nós tínhamos apenas 15.000 homens na linha de fr ente, apr eendemos vinte e tantos mil inimigos...isso quer dizer que cada br asileir o, em média, apr eendeu um alemão e meio. Mas se nós levar mos em consider ação que o pr acinha tinha uma média de altur a de 1,65m, e o alemão de 1,80m...se nós consider ar mos essa difer ença, cada um pr endeu dois alemães, não é isso? (...) E isso é uma demonstr ação da gr ande par ticipação da FEB, e do gr ande r etor no que a FEB deu na Itália...mudou a figur a do Br asil...a FEB mudou o Br asil, mudou o Exér cito Nacional, mudou as For ças Ar madas, mudou o aspecto de tudo, mudou a política...o que nós não soubemos foi apr oveitar disso, nem apr oveitar da situação sócio-econômica que o Br asil tr ouxe, e nem social, da posição que o Br asil colocou fr ente ao mundo com a sua par ticipação na guer r a...não soubemos apr oveitar isso...o Br asil não soube apr oveitar isso...nós podíamos ter par tido par a par ticipar do pr imeir o mundo...mas a nossa política só deu par a tr ás...” Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001. Em última instância, a função do ucrônico é sustentar a esperança: “Se o passado serve para justificar o presente, uma vida de luta deve ser vista como um sucesso para dar sentido de auto-estima e identidade pessoal”. Em suma, é, sobretudo, por meio das fontes orais que podemos ter acesso a essas versões 334

236

uma das ideologias políticas que mais nutria ressentimentos em relação ao passado: o Nazismo. Setores inteiros da população vinham sofrendo com o ‘esquecimento’ e o descaso dos dirigentes políticos e pela ineficiência e vagareza da social-democracia do entreguerras – externamente, vinham sendo penalizados desde 1918 pelo Tratado de Versalhes e por uma política-econômica que parecia esquecer que existiam pessoas, sobretudo pessoas com necessidades. Esse quadro, atualmente, não nos é muito estranho – e, entre os próprios veteranos, as perspectivas sobre a política atual são estritamente pessimistas e desesperançosas, aliás, como na maior parte do mundo ocidental hoje. Junto da banalização da violência, da pobreza, das desigualdades, dos abusos do poder, da corrupção, vem o medo e, se hoje colocarmos na balança, veremos que o ‘o medo está vencendo a esperança’ – como atesta um veterano avaliando a situação presente à luz do passado: “... Revolução de 64 foi muito benéfica par a o país. Por que a pessoa, na época, tinha liber dade... você podia sair qualquer hor a do dia e da noite por que não tinha assalto, não tinha tr ombadinha, não tinha assalto a banco não tinha nada... não tinha desempr ego... a Revolução de 64 implantou a indústr ia no país... aquela questão do asfaltamento das estr adas... a r evolução tr ouxe muitas melhor ias par a o país. Agor a, hoje, infelizmente, os nossos políticos tr atam a Revolução de 64 com ver dadeir o desleixo... diz que o culpado dessa situação foi a Revolução de 64... or a, a Revolução de 64 mor alizou o país, for am os anos em que todo mundo tr abalhava, você não via mendigo na r ua, você não via essa questão, r epito, assalto, tr ombadinha, seqüestr o... não via nada disso... nesta gestão da democr acia, os maus políticos estão avacalhando o país... tinha que acabar com esses maus políticos, mas o povo vota mal...” 336

Lembrando que opiniões políticas desse tipo, não são encontradas apenas nos discursos conservadores das direitas, mas, igualmente, nos blá blá blás revolucionários das esquerdas autoritárias. Por fim, vale colocar que o objetivo deste trabalho não foi, de modo algum, construir uma “história piedosa” dos veteranos. Não era minha intenção ‘resgatar a memória’ da FEB marginalizadas pela história e pela memória coletiva. PORTELLI, Alessandro. “Sonhos Ucrônicos. Memórias e possíveis mundos dos trabalhadores” Projeto História, São Paulo, 10, dez 1993, p.41-58.

237

do esquecimento, até porque não é essa a função da boa história e, creio eu, a memória não precisa e não deve ser ‘resgatada’ como uma donzela em perigo. À pergunta: ‘É melhor esquecer ou lembrar?’, concordo com Todorov quando responde que isso é relativo ao contexto é às circunstâncias. Dessa forma, como humilde contribuição, ofereço uma análise histórica crítica da memória de certo grupo, num momento em que isso parece ser proveitoso. Os estudos sobre a memória devem existir não para sacralizá-la, mas para elaborá-la, depurá-la, incentivar o debate, a reavaliação e a tolerância, ou seja, como um instrumento para algo muito mais amplo e que foge aos domínios da história acadêmica, o “Trabalho de memória”, tarefa política, por excelência, que a sociedade civil, e mais ninguém, deve se ocupar e se mostrar responsável. Sem esquecer que o passado não deve pesar como uma obrigação que impeça o desenvolvimento do presente e o surgimento das expectativas futuras, conforme coloca Todorov: “Romain Gar y nunca desejou intimidar os seus contempor âneos com a idéia de um dever de memór ia gener alizado. Ninguém conseguir ia lembr ar -se de tudo nem, aliás, esquecer tudo: as r ecor dações dolor osas estão ali, embor a pr efer íssemos separ ar -nos dela. E o que, conscientemente, decidimos conser var é aquilo que nos dá pr azer : não há gr ande mér ito nisso. Contudo, o passado não deve ocultar o pr esente. ‘Tenho hor r or ao gêner o antigo combatente par a sempr e. A vida é feita par a r ecomeçar . Eu não me r eúno, não comemor o, não r eacendo’ [disse Gary]. Gar y tampouco gosta de imagens piedosas, ainda que sejam a dos gr andes homens. (...) isso não implica em absoluto que convenha r emover o passado: ‘Está em mim e sou eu’.” 337

336 337

Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003. TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”, p.267.

238

FONTES

TESTEMUNHOS/FONTES ORAIS E PESQUISA DE CAMPO

-

Veterano A. Neto – Rio de Janeiro, dezembro/2004.

Veterano Cap. Albino – Juiz de Fora, dezembro/2004.

Veterano Cap. Evaristo – Juiz de Fora, dezembro/2004. Veterano D. Medrado – Belo Horizonte, outubro/2001. Veterano G. Taitson – Belo Horizonte, outubro/2001.

Veterano H. Medeiros – Belo Horizonte, março/2003. Veterano J. Fonseca – Juiz de Fora, dezembro/2004. Veterano J. J. Silva – Juiz de Fora, dezembro/2004. Veterano J. Lopes – Juiz de Fora, dezembro/2004. Veterano J. M. N. – Juiz de Fora, dezembro/2004.

Veterano J. Vieira – Belo Horizonte, novembro/2001.

Veterano L. Junqueira – São Lourenço, fevereiro/2004. Veterano M. Couto – Belo Horizonte, outubro/2002. Veterano N. Silva – Belo Horizonte, março/2003.

Veterano O. Lopes – Belo Horizonte, agosto/2002. Veterano Pedreti – Juiz de Fora, dezembro/2004.

Veterano R. Monteiro – Juiz de Fora, dezembro/2004. Veterano S. Ribeiro – Cristina, fevereiro/2004.

-

Veterano W. Soler – Belo Horizonte, fevereiro/2002.

-

Pesquisa de campo junto ao XVI Encontro Nacional das ANVFEB’s em Belo Horizonte/MG, realizado de 4 a 9 de setembro de 2004.

-

Visita às ANVFEB’s de Belo Horizonte, Juiz de Fora e Rio de Janeiro

Visita ao Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial – Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro/RJ.

-

Eventos comemorativos e/ou formaturas no 12oB.I., sediado no bairro Barro Preto em Belo Horizonte/MG.

239

MEMÓRIAS, HISTÓRIAS OFICIAIS E OUTROS

-

ARRUDA, Demócrito Cavalcanti de et alii. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB” 3 ª ed. Porto Alegre: Cobraci Publicações, s/d.

-

BARROS, Dr. Aluízio de. “Expedicionários Sacrificados na Campanha da Itália (Mortos e desaparecidos)” Rio de Janeiro: Bruno Buccini editor, 1957.

-

COSTA, Didier Souza. “Ouve lá oh! Zé! Deixa-me dizer-te uma coisa? – 2a Guerra Mundial: desprezo” Salvador: Federação Baiana de Escritores, 1988(?).

-

ESTATUTO da Associação dos Ex-Combatentes do Brasil. Rio de Janeiro, s/ed., 2002. (Primeira versão de 30/11/1971)

-

“História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial”. Aricildes de Moraes Motta (org.) Rio de Janeiro: Bibliex, 2001. Oito tomos.

-

NASSER, David. “Os vencidos da grande vitória” In: “O velho capitão e outras histórias reais” 2a ed. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1961, 2o vol. p.343-346

-

RAMOS, Rudemar Marconi. “Diário de um paisano na Segunda Guerra Mundial” Rio de Janeiro: H.P. Comunicação Editora, 2003.

-

RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha” Belo Horizonte: Ed. do autor, 2002.

-

RIO DE JANEIRO. “Homenagem aos Ex-Combatentes do Brasil e dos países aliados da II Guerra Mundial”. Pronunciado no expediente inicial da 33o sessão ordinária da ALERJ em 4 de maio de 1978. Relator Deputado Estadual Darcy Rangel.

-

SCHNAIDERMAN, Boris. “Guerra Em Surdina”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira Editora, 1964.

-

SCHNAIDERMAN, Boris. “Minha guerra: lembranças de um soldado” In

COGGIOLA, Osvaldo (org.). “Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico”. p.283319. -

SILVEIRA, Joaquim Xavier da. “A FEB por um Soldado” Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. Capítulos selecionados.

-

SILVEIRA, Joaquim Xavier da. “Cruzes Brancas. Diário de um pracinha” Rio de Janeiro: Bibliex, 1997. Capítulos selecionados.

240

-

SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”. Curitiba: Edição do autor, 1985.

-

VIOTTI, Cássio Abranches. “Crônicas de Guerra. A Força Expedicionária Brasileira na Itália”. Belo Horizonte: edição do autor, 1998.

FILMOGRAFIA

-

BACK, Sylvio(dir.). “Rádio Auriverde: a FEB ma Itália” Rio de Janeiro: Embrafilme, 35mm, preto e branco, 70min., 1991.

-

CASTRO, Erik de(dir.). “Senta a pua!” Rio de Janeiro: BSB Cinema, colorido, 112min. 2000.

-

REIS, Vinícius(dir.). “A Cobra Fumou” Rio de Janeiro: BSB Cinema, colorido, 94min. 2002.

J ORNAIS E PERIÓDICOS DE CAMPANHA

-

A Cobra Fumando – Ano I, n.3. Belo Horizonte, março de 1951

-

A Tocha. Publicado a bordo do USS Gen. M.C. Meigs (navio de transporte de tropas Norte-americano) – exemplares dos dias 4,7, 8, 9, 15, 10, 16 de setembro de 1945.

-

ANVFEB informativo. Órgão informativo da ANVFEB/BH – Ano11, n.11, 2001; Ano12, n.144, 2002; Ano13, n.157, 2003; Ano14, n.169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 2004.

-

Boletim da LBA, especial para os expedicionários – Ano I n.3, RJ, 15/3/1945; n.4, RJ, 31/03/1945; n.5, RJ, 15/4/1945; n.6, RJ, 30/4/1945; n.7, RJ, 15/5/1945; n.8, RJ, 31/5/1945; n.9, RJ, 15/6/1945.

-

O Chicote – Ano I, n. 1, Stáffoli/Itália, 18/2/1945; n.2, Itália, 25/2/1945; n.3, Itália, 11/03/1945; n.6, Itália24/3/1945; n.9, Itália, 15/4/1945; n.10, Itália, 22/4/1945; n.12, Itália, 6/5/1945.

-

O Cruzeiro do Sul – 8/04/1945.

-

O Globo Expedicionário

241

-

SCHNAIDERMAN, Boris. “Quantas faces tem a glória?” In: Folhetim (suplemento do jornal Folha de São Paulo), no 436, 2/6/1985. p. 4 – 5.

-

Vem Rolando... Órgão informativo do 11o R.I. – Alessandria/Itália, 10/5/1945.

Zé Carioca. Publicação do Serviço Especial da FEB – n.87, 13/02/1945; n.106, 8/3/1945; n.144, 30/4/1945; n.145, 3/5/1945, n.146, 11/5/1945; n.156, 23/5/1945; n.158, 25/5/1945.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIVROS E CAPÍTULOS DE LIVROS

-

ALBERTI, Verena. “A experiência do CPDOC”. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990.

-

AMBROSE, Stephen. “Soldados-cidadãos. Do Desembarque do Exército Americano nas praias da Normandia à Batalha das Ardenas e à Rendição da Alemanha – 7 de junho de 1944 a 7 de maio de 1945” 2o ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

-

BENJAMIN, Walter. “O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:

“Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política”. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vol.1. -

BERSTEIN, Serge. “A Cultura política”. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, JeanFrançois (org.). “Para uma história cultural”. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, pp.349363

-

BOSI, Ecléa. “Memória e sociedade: lembranças de velhos”. São Paulo, Cia das letras : 1987.

-

BOURDIEU, Pierre. “Compreender” In: BOURDIEU, Pierre (coord.). “A miséria do mundo”. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 1997. p. 693-733.

-

BRAYNER, Floriano de Lima. “A verdade sobre a FEB” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Capítulos selecionados

-

BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia. “Memória e (Res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível” Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

242

-

BURKE, Peter. “A escrita da história: novas perspectivas”. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p.327-348.

-

CASTRO, Celso. “A invenção do Exército” Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vítor & KRAAY, Hendrik(org.). “Nova História Militar Brasileira” Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

-

CHAVEAU, Agnés & TÉTARD, Phillipe(org.). “Questões para a história do presente”. São Paulo: EDUSC, 1999.

-

COGGIOLA, Osvaldo. “Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico”. São Paulo: Xamã/Edusp, 1995.

-

COSTA, Otávio . “50 Anos Depois da Volta” Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1995.

-

CRUZ, Mario Ribeiro da. “Casos da Guerra; que Heroínas e Heróis da FEB contam”. Rio de Janeiro: Frente Editora, 2002.

-

CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial” São Paulo: Edusp, 2000.

-

DOSSE, François. “História e Ciências Sociais” Bauru: Edusc, 2004.

DUTRA, Eliana. “O Ardil Totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30” Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

-

EKSTEINS, Modris. “A Sagração da Primavera – a Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna” Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

-

ELIAS, Nobert & SCOTSON, John L. “Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade” Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2000. Capítulos selecionados.

-

FERREIRA, Lúcia M. A. & ORRICO, Evelyn G. D.(orgs.) “Linguagem, identidade e memória social: novas fronteiras, novas articulações” Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002.

-

FERREIRA, Marieta de Moraes; FERNANDES, Tania & ALBERTI, Verena. “História oral: desafios para o século XXI” Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000.

-

FERREIRA, Marieta de Morais. “História oral e multidisciplinariedade” Rio de Janeiro: Editora Diadorim, 1994.

243

-

FERREIRA, Marieta de Morais. “Usos e abusos da história oral”. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.

-

FERRO, Marc.” História da Primeira Guerra Mundial” Lisboa: Edições 70, 1992.

-

FLACH, Ângela & CARDOSO, Claudira. “A Segunda Guerra e sua repercussão nos meios integralistas” In: PADRÓS, Enrique Serra, RIBEIRO, Luiz Teixeira Ribeiro & GERTZ, René E.(orgs.) “Segunda Guerra Mundial. Da crise dos anos 30 ao Armagedón” Porto Alegre: Folha da História/CD-AIB/PRP/Livraria Palmarinca Editora, 2000. p.233-244.

-

GIRARDET, Raoul. “A sociedade militar; De 1815 até nossos dias” Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.

-

HALBWACHS, Maurice. “A Memória Coletiva”. São Paulo: Edições Vértice, 1990.

HOBSBAWN, E. & Ranger, T. (org.) “A Invenção das Tradições” São Paulo: Paz e Terra, 1997.

-

HOBSBAWN, E. “A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991”. 2o edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

-

HOBSBAWN, E. “Sobre História” São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

HUYSSEN, Andreas. “Seduzidos pela memória” Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. KEEGAN, John “A Face da Batalha” Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.

KEEGAN, John. “Uma História da Guerra” São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

KITCHEN, Martin. “Um mundo em chamas. Uma breve história da Segunda Guerra Mundial na Europa e na Ásia 1939-1945” Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

-

KOSELLECK, Reinhart. “‘Espacio de experiencia’ y ‘horizonte de expectativa’ dos categorías históricas” In: “Futuro passado. Para una semántica de los tiempos históricos” Barcelo: Ediciones Paidós Ibérica, 1979. 333-358p.

-

LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: 1984, vol.1 Memória – História, p.95-106.

-

LE VEN, Michel Marie. “História oral de vida: o instante da entrevista” In: SIMSON,

Olga Rodrigues de Moraes Von (org.) “Os Desafios Contemporâneos da História Oral.” Campinas: UNICAMP, 1997. p.213-221. -

LEINER, Piero de Camargo. “Meia volta volver”. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

244

-

MAUAD, Ana Maria & NUNES, Daniela Ferreira. “Discursos sobre a morte consumada: monumento aos pracinhas”. In: KNAUSS, Paulo(org.). “Cidade Vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro” Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. p.73-92.

-

MAVROGORDADO, Ralph S. “A decisão de Hitler sobre a defesa da Itália (1943 – 1944)” In: As grandes decisões estratégicas – II Guerra Mundial” Rio de Janeiro: Bibliex, 1977. Pp. 293-316.

-

MAXIMIANO, César Campiani & Gonçalves, José. “Irmãos de armas – um pelotão da FEB na Segunda Guerra Mundial” São Paulo: Codex, 2005.

-

MAXIMIANO, César Campiani. “Onde estão nossos heróis – uma breve história dos brasileiros na 2a Guerra” São Paulo: Edição do autor, 1995.

-

McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945.” Rio de Janeiro: Bibliex, 1995.

-

McCANN Jr., Frank D. “A nação armada. Ensaios sobre a história do Exército Brasileiro” Recife: Editora Guararapes, 1982.

-

MEIHY, José Carlos Sebe Bom (org.). “(Re)introduzindo a História Oral no Brasil” São Paulo: EDUSP, 1996.

-

MEIHY, José Carlos Sebe Bom “Manual de História Oral” São Paulo: Loyola, 1996

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. de. “A crise da memória, história e documento:

reflexões para um tempo de transformações” In: SILVA, Zélia Lopes da. “Arquivos, Patrimônio e Memória: trajetórias e perspectivas” São Paulo: Editora da Unesp. -

MILKE, Daniel Roberto. “A Força Expedicionária Brasileira: o Brasil na Guerra (19441945)” In: PADRÓS, Enrique Serra, RIBEIRO, Luiz Teixeira Ribeiro & GERTZ, René E.(orgs.) “Segunda Guerra Mundial. Da crise dos anos 30 ao Armagedón” Porto Alegre: Folha da História/CD-AIB/PRP/Livraria Palmarinca Editora, 2000. p.219-232

-

MORAES, J. B. Mascarenhas de. “A FEB pelo seu comandante”. Rio de Janeiro: Impressa no Estabelecimento General Gustavo Cordeiro de Farias, 1960, 2o edição.

-

MOURA, Gerson. “Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana”. São Paulo: Brasiliense, 1991.

-

O'CONNEL. “História da guerra, das armas e das guerra” . Lisboa : Teorema, 1995.

PROST, Antonie & VINCENT, Gérard.(org.). “História da vida privada 5: da Primeira Guerra aos nossos dias”. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

245

-

RÉMOND, René. “Uma história presente”. In: RÉMOND, René(org.). “Para uma história política” Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996, pp.13-36.

-

REVEL, Jacques (org.). “Jogos de Escala. A experiência da microanálise” Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998.

-

RICHARD, Lionel. “Berlim, 1919-1933. A encarnação extrema da modernidade” Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

-

RIVIÈRE, Claude. “As Liturgias Políticas” Rio de Janeiro: Imago, 1989.

SÁ MOTTA, Rodrigo. “Em guarda contra o perigo vermelho (1917-1964)” São Paulo: Perspectiva, 2002.

-

SCHUTZ, Alfred. “Aquele que retorna ao lar” In: WAGNER, Helmut R.(org.)

“Fenomenologia e Relações Sociais. Textos escolhidos de Alfred Schutz” Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979. 289-302p. -

SEITENFUS, R. “A Entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial.” Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000

-

SILVEIRA, J. & MITKE, Tassilo. “A Luta dos Pracinhas”. Rio de Janeiro: Record, 1984.

-

THOMPSON, Paul. “A Voz do Passado - História Oral”. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

THOMSON, Alistair. “Anzac memories. Living with the legend”. Melbourne: Oxford University Press, 1994.

-

TODOROV, Tzvetan. “Em Face do Extremo” Campinas: Papirus, 1995.

TODOROV, Tzvetan. “Memória do mal, Tentação do bem – indagações sobre o século XX”. São Paulo: ARX, 2002.

-

TODOROV, Tzvetan. “Uma tragédia francesa” Rio de janeiro: Record, 1997.

WAACK, William. “As Duas Faces da Glória”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

TESES, DISSERTAÇÕES E MONOGRAFIAS

-

BUSTAMANTE, Márcio. “Os pracinhas e a Segunda Guerra através da história oral” Belo Horizonte: 2004, monografia de graduação em História, FAFICH-UFMG.

-

CABRAL,

Francisco

Pinto.

“Um

batalhão

da

FEB

São Paulo, 1982, tese de doutorado em história, FFLCH-USP.

no

Monte

Castello”.

246

-

FERRAZ, Francisco César Alves. “A guerra que não acabou: a reintegração social dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira (1945-2000)” São Paulo: 2002, tese de doutorado em História, FFLCH – USP.

-

LINS, Maria de Lourdes Ferreira, “A Força Expedicionária Brasileira: uma tentativa de

interpretação”, São Paulo: 1972, dissertação de mestrado em História, FFLCH – USP. -

NEVES, Luís Felipe da Silva. “A Força Expedicionária Brasileira; uma perspectiva

histórica” Rio de Janeiro: 1992, dissertação de mestrado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – UFRJ. -

RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória: Uma história da memória do Ex-

combatentes brasileiros” Niterói: 1999, dissertação de mestrado em História, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – UFF. -

SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra” São Paulo: 1996, dissertação de

mestrado em história, Departamento de História – PUC-SP. -

TOLENTINO, Lúcio Luiz. “História Oral e interpretação” Belo Horizonte: 1999,

monografia de graduação em Ciências Sociais, FAFICH – UFMG. ARTIGOS

-

ALBERTI, Verena. “Narrativas na história oral” In: Simpósio nacional de história (22.: João Pessoa, PB). Anais eletrônicos. João Pessoa: ANPUH-PB, 2003.

-

ALBERTI, Verena. “Obras coletivas de história oral” Tempo - Revista do Depto. de História da UFF, Rio de

-

AMADO, Janaína. “O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral” História, São Paulo, n.14, 1995. 125-136p. Editora da Unesp.

-

CASTRO, Celso “Inventando tradições no Exército Brasileiro: José Pessoa e a reforma da Escola Militar” Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol. 7, n. 14, 1994, p. 231-240.

-

CASTRO, Celso. “Entre Caxias e Osório: a criação do culto ao Patrono do Exército Brasileiro” Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol.14, n.25, 2000. p.103-117.

-

CASTRO, Celso. “The young military: a study on the construction of social identify in the Brazilian Army”. International Oral History Conference (8/1993: Siena-Lucca,

247

Italy). Memory and multiculturism: anais. Siena-Lucca: Comitato Internazionale di Storia Orale, 1993. p.864-872. -

D’ALESSIO, Márcia Mansor. “Intervenções da memória na historiografia: identidades, subjetividades, fragmentos, poderes” Projeto História (17), novembro/1998. São Paulo: PUC, 269-280p.

-

D’ALESSIO, Márcia Mansor. “Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora” Revista Brasileira de História / Memória, história, historiografia – Dossiê ensino de História. são Paulo: v.13, n. 25/26, pp.97-103, set. 92/ago. 93.

-

DUTRA, Eliana de Freitas. “História e culturas políticas: definições, usos, genealogias” Varia História, Belo Horizonte: n.28, dezembro/2002.

-

DUTRA, Eliana de Freitas. “Para uma sociologia histórica dos testemunhos: considerações preliminares” Locus, Juiz de Fora: n.2, v.6, 2000, p.75-84.

-

FERRAZ, Francisco César Alves. “A política na caserna: a formação de uma ideologia intervencionista militar na crise do Império” História, São Paulo: n.9, 1990. p.95-106.

-

FERREIRA, Marieta de Moraes. “Desafios e dilemas da história oral nos anos 90: o caso do Brasil” Revista História Oral, São Paulo: n.1, jun. 1998, 19-30p.

-

FERREIRA, Marieta de Moraes. “História do tempo presente: desafios” Cultura Vozes, Petrópolis: v.94, n. 3, maio/jun. 2000. p.111-124.

-

FERREIRA, Marieta de Moraes. “História oral, comemorações e ética” Projeto

História. Ética e História oral, São Paulo: n. 15, abr. 1997. p.157-164. -

GUILLEN, Isabel Cristina Martins. “Cidadania e Exclusão Social: A história dos

soldados da borracha em questão” Trajetos – Revista de História UFC, Fortaleza: vol.1, n.2, 2002. p.69-83. -

História: Questões & Debates – “Os lugares da violência”. Curitiba: ano 18, n.35, jul./dez.2001.

-

IZECKSOHN, Vítor. “Resistência ao recrutamento para o Exército durante as guerras Civil e do Paraguai. Brasil e Estados Unidos na década de 1860” Estudos Históricos, Rio de Janeiro: n.27, 2001. Janeiro: v.2, n. 3, jun. 1997, p.206-219.

-

KOLLERITZ, Fernando. “Testemunho, juízo político e história” Rev. Bras. Hist. [online]. 2004, vol.24, no.48 [citado 26 Julho 2005], p.73-100. Disponível na World

248

WideWeb:. -

KUSCHINIR, Karina & CARNEIRO, Leandro Carneiro. “As Dimensões Subjetivas da Política: cultura política e antropologia da política” Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol. 13, n. 24, 1999, p.227-250.

-

LISBOA, João Luís. “Memória e identidade(s) – partindo de vários textos de Ricoeur” Cultura – Revista de História e Teoria das Idéias, Lisboa: vol.14 / 2002, II Série, 293299.

-

LOVISOLO, Hugo. "A memória e a formação dos homens" Estudos Históricos, 3: Memória. Rio de Janeiro, Associação de Pesquisa e Documentação Histórica, v. 2, n.º 3, 1986, p. 16-28.

-

MARTINS FILHO. “A guerra da memória: a ditadura militar nos depoimentos de militantes e militares” Varia História, Belo Horizonte: n.28, p.178-201, dez. 2002.

-

MAXIMIANO, César Campiani & OLIVEIRA, Dennison de. “Raça e Forças Armadas: o caso da campanha da Itália (1944/45)” Estudos de História, Franca: vol.8, n.1 / 2001. p.133-154. Editora da Unesp.

-

MENDES, Fábio Faria. “A ‘Lei da Cumbuca’: A Revolta contra o Sorteio Militar” Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol. 13, n. 24, 1999, p. 267-294.

-

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. de. “A História cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das ciências sociais” Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo), n.34, p.9-24, 1992. n. 3, maio/jun. 2000. p.111-124.

-

NEVES, Lucília de Almeida Neves. “História Oral e Narrativa: Tempo, Memória e Identidades” Texto de Conferência de abertura do VI Encontro Nacional de História Oral/maio de 2002.

-

NEVES, Lucília de Almeida Neves. “Memória, História e Sujeito: substratos da identidade”. Revista de História Oral da ABHO, Rio de Janeiro: no 3, junho de 2002, p.109-115.

-

NEVES, Lucília de Almeida. "História Oral: Memória e Política." Varia História, Belo Horizonte: n.12, 1993.

-

NORA, Pierre. “Entre a memória e história: a problemática dos lugares”. Revista Projeto História, São Paulo (10) dez. 1993, p.7-58.

249

-

PEREIRA, Lígia Maria Leite. “Relatos orais em ciências sociais: limites e potencial” Análise e Conjuntura, Belo horizonte: vol.6, n.3 set./dez., 1991. p.109-127.

-

PINTO, Júlio Pimentel. “Os muitos tempos da memória” In: Projeto História (17), novembro/1998. São Paulo: PUC, 203-212p.

-

POLLAK, Michael. “Memória e Identidade Social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, no 10, 1992, p.200-212.

-

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio” Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

-

PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais” Tempo. Rio de Janeiro: vol.1, n.2, 1996. p. 59-72

-

PORTELLI, Alessandro. “As fronteiras da memória. O massacre das Fossas Ardeatinas. História, mito, rituais e símbolos” In: História & Perspectivas, Uberlândia, (25 e 26), jul./dez.2001 jan/jul.2002. 9-54p.

-

PORTELLI, Alessandro. “Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um experimento em igualdade” Projeto História: São Paulo, 14, fev. 1997. p. 7-23.

-

PORTELLI, Alessandro. “O que faz a história oral diferente” Projeto História: São Paulo, 14, fev. 1997. p. 25-39.

-

PORTELLI, Alessandro. “Sonhos Ucrônicos: memórias e possíveis mundos dos trabalhadores” Projeto História, São Paulo: 10, dez. 1993. p.41-58.

-

PORTELLI, Alessandro. “Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral” Projeto História, São Paulo: 15, abril 1997. p.15-33.

-

Revista USP - Dossiê 50 anos de final de Segunda Guerra - 26. São Paulo: Coordenadoria de Comunicação Social, USP/CCS – n0 1(mar/mai. 1989).

-

SÁ MOTTA, Rodrigo Patto.“A História política e o conceito de cultura política”.

Revista de História – X Encontro Regional de História da ANPUH/MG. Juiz de Fora: UFJF, n.6, 1996, p.83-91. -

SCHNAIDERMAN, Boris. “Quantas faces tem a glória?” In: Folhetim (suplemento do jornal Folha de São Paulo), no 436, 2/6/1985. Pp. 4 – 5.

-

SCHWARCZ, Lilia & PUNTONI, Pedro. “História e Antropologia. Entrevista de Robert Darnton”. Boletim da ABA, no 26, setembro de 1996. p.7-11.

250

-

SEIXAS, Jacy Alves de. “Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica” História: Questões & Debates, Curitiba: n.32, p.75-95, jan/jun., 2000. Editora da UFPR

-

SEIXAS, Jacy Alves de. “Halbwachs e a memória-reconstrução do passado: memória coletiva e história” História, São Paulo: vol.20, p.93-108, 2001. Editora da Unesp

-

SILVA, Helenice Rodrigues da. "Rememoração"/comemoração: as utilizações sociais da memória. Rev. Bras. Hist., 2002, vol.22, n.44, p.425-438.

-

SMALLMAN, Shawn. “The official story: the violent censorship of Brazilian veterans, 1945-1954” Hispanic American Historical Review. vol.78, n.2, 1998. p.229-261.

-

SOKOLOFF, Sally. “Soldiers or Civilians; The impact of Army Service in World War Two on Birminghan men.” Oral History. Journal of the Oral History Society. Vol.25, n.2, autumn 1997.

-

THOMPSON, Paul. “História Oral e contemporaneidade” In: Revista da ABHO, n.o 5, junho de 2002, 9-28p.

-

THOMSON, Alistair. “Memórias de ANZAC: colocando em prática a teoria da memória popular na Austrália”. Revista de História Oral da ABHO, Rio de Janeiro: n. 4, junho de 2001, p.85-101.

-

THOMSON, Alistair. “Memory as a Battlefield: Personal and Political Investments in the National Military Past” The Oral History Review, New York: vol.22, n2, winter 1995. p.55-73.

-

THOMSON, Alistair. Histórias (co)movedoras: História oral e estudos de migração. Rev. Bras. Hist., 2002, vol.22, n.44, p.341-364.

*-*-*-*-*

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.