A memória recriada e a história provocada em Sans Soleil (1982), de Chris Marker. in Cristina Costa Vieira, Paulo Osório e José Henrique Manso (coord.) Portugal-Brasil-África. Relações históricas, literárias e cinematográficas. Universidade da Beira Interior. Covilhã - Portugal, 2014

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A MEMÓRIA RECRIADA E A HISTÓRIA PROVOCADA EM “SANS SOLEIL” (1982) DE CHRIS MARKER1 Tainah Negreiros Oliveira de Souza Mestranda em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP) Resumo Este trabalho visa analisar a relação entre História e Memória no filme Sans Soleil, do cineasta francês Chris Marker, principalmente quando a obra se volta aos registros sobre a revolução por independência em Guiné Bissau e Cabo Verde, a vida cotidiana após aquela experiência, seus rumos, as continuidades, rupturas, construindo uma relação tensa e provocadora entre as memórias desse período e a forma como a História lidou com elas. Palavras-Chave – Chris Marker – História – Memória – Guiné Bissau – Cabo Verde

Este trabalho é dedicado a analisar a relação tensionada entre História e Memória no filme Sans Soleil, de 1982, do diretor francês Chris Marker. Ele, o cineasta, fotógrafo, militante, viajante, multiartista, concebeu essa obra emblemática que reflete não só sobre esses temas, mas que busca, através deles, discutir seu próprio cinema, sobre como ele se situa em um trabalho de reescritura, de construção de discurso sobre experiências de luta e violência da segunda metade do século XX, e das possibilidades da imagem diante dessas questões. Trata-se de um documentário ensaístico em que vemos registros de um viajante pelo mundo, em um conjunto composto de imagens cotidianas, imagens de arquivo, registros filmados por Chris Marker e filmados por outros, costurados por uma carta lida e comentada por uma mulher, que conta das impressões do viajante. Esses registros que vão do Japão à Islândia e à Guiné Bissau, compõe uma reflexão sobre a nossa relação contemporânea com a memória, analisando principalmente a representação disso diante das experiências extremas como as da Segunda Guerra Mundial e dos processos de independência africanos. O filme se volta para entender as memórias construídas dessas experiências e como a imagem é recurso de uma contra-escrita 1 Trabalho apresentado no 1o Congresso Internacional Portugal-Brasil-África: Relações Históricas, Literárias e Cinematográficas realizado na Universidade de Beira Interior em Covilhã, Portugal, 2012.

contemporânea ou de uma escrita da história à contrapelo, como defendeu Walter Benjamin2. O que temos é um filme que se lança sobre questões do presente mas em um constante retorno a imagens da década de 1960, aos ecos e assombros das experiências de luta do período para as décadas seguintes. Le fond de l`air est rouge (1977) já demonstrava esse peso do tempo, quando o Chris Marker se voltou às imagens dos movimentos sociais da década de 1960, lhe dando o sentido da leitura da década seguinte, com seu método de ressignificação, atribuindo-lhe novos sentidos. Na época do lançamento, boa parte da crítica interpretou Sans Soleil como parte de um projeto de maturação desse desejo que já aparecia em filmes como o de 1977, ressaltando esse caráter de balanço na obra que passa por essa relação do diretor com os grandes temas da sua geração, como a Segunda Guerra e os processos de descolonização africanos, na impossibilidade de abandonar essas questões, em um momento de reflexão sobre o modo de abordagem delas. Ou como escreveu o crítico Yann Lardeau para a Cahiers du Cinéma na ocasião do lançamento do filme, em 1983, sobre Sans Soleil como sendo “o último suspiro da década de 60”3. Sans Soleil se dedica a esse percurso geográfico e temporal pelas memórias do viajante passando pelos países citados em busca dos ecos, das permanências e dos assombros do passado no presente nesse constante contato entre imagens recentes, imagens de arquivo que o autor modifica, interfere, reinventa. Aqui nos concentramos nessa passagem por Guiné Bissau e Cabo Verde, quando o filme se dedica ao período do processo de independência e a vida cotidiana pós-revolução, seus rumos, o que fica destas experiências, como a História lida com elas, como as contou, ou não contou, as diversas possibilidades de se voltar a elas e os registros do que foi vivido nesses países. Com esse filme, Chris Marker busca também lidar com a passagem do tempo, as rupturas e permanências das experiências de luta, como esta passagem do tempo se revela através das imagens e deve ser revelada pelo trabalho de montagem e modificação feito pelo diretor entre seus registros e os de outros.

2 Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense, 1985. p. 225. 3 Yann Lardeau. "L'empire des mots." Cahiers du Cinéma. 345 (1983): 60-1. Review article on Sans

Soleil, in French.

Guiné Bissau, Cabo Verde e as mil memórias Sans Soleil é um filme em formato epistolar. O que temos é um conjunto heterogêneo de imagens de viagem pelo mundo que vão da Islândia, passando pelo Japão à Guiné Bissau, registros de uma viajante interessado pelos “extremos de sobrevivência”4 e que tem sua impressões postas nessa carta, lida e comentada por uma mulher em que acompanhamos essas tentativas de captar uma relação contemporânea com o espaço e com o tempo. Esse percurso passa por uma reflexão sobre as experiências de luta da década de 1960 e das continuidade e permanências delas naquele depois, entre elas, os processos de independências africanos que nos dedicamos aqui. No filme, junto às imagens de Guiné Bissau, ouvimos canções de Cabo Verde. A montagem deseja dar sentido a união sonhada pelo líder Amílcar Cabral no processo de independência desses dois países, em que foi vista a inédita conquista através de um partido binacional, o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde)5 Sabemos que o que se deu nos dois países foi um processo revolucionário vindo em sequência de outros processos de descolonização africanos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. No caso de Bissau e Cabo Verde, se tratava

de uma busca de

libertação do colonizador comum, Portugal, que uniu os dois países na luta e também como parte desse desejo de libertação, havia um projeto de futuro para esses países independentes, unidos, que esse processo implicava e, claro, expectativas e esperanças. Mas quando Sans Soleil se dedica a essa experiência, o que vemos não remete a euforia revolucionária. As imagens seguem incertas enquanto acompanham os movimentos das pessoas, do abandono, imagens dessa “África difícil de reconhecer nessa névoa de chumbo”, como diz a carta. Nessa passagem por Bissau, o viajante se interessa em captar registros improváveis, os olhares das pessoas para a câmera, numa tentativa de construir um equilíbrio frágil entre aquele que filma e quem é filmado (imgs. 1,2,3). Vemos as mulheres e sua “indestrutibilidade”, como diz a carta, enquanto trabalham, caminham, esperam em meio a esse depois pouco romântico. Marker procura o que costuma ser menos visto do que veio depois daquele processo, esses registros que dificilmente seriam ligados a glória da independência que 4 Como diz a carta no filme. 5Cf. Roselma Évora. Cabo Verde: A abertura política e a transição para a democracia. Cidade de Praia. Spleen. 2004. p. 56.

explicitam essa história não contada, parte desse balanço que ele deseja fazer em Sans Soleil. Disse Fernando Mourão:

(imgs. 1,2,3)

Se, do ponto de vista da historiografia portuguesa, a história colonial pode ser entendida como um longo processo de “ pacificação” e de progresso rumo a assimilação, que aliás variou de colônia para colônia – este último processo não foi nítido, por exemplo, no caso da Guiné – do ponto de vista africana a história de seus respectivos países, aliás em boa parte criados pelo processo colonial, assenta num suceder de movimentos de resistência” 6

Em Sans Soleil há um interesse por essas linhas não contadas na história oficial, desde a resistência, ao momento posterior a luta por independência, ao cotidiano que muitas vezes não é mostrado nem discutido. No filme, vemos os rostos das pessoas, homens e mulheres em filas, entre promessas e expectativas. Quando essas expectativas e sonhos foram tratados? Em que linhas da História estiveram? O fazer histórico é a todo instante provocado, sobre o que ele tem se voltado, e como se relaciona com as 6 Fernando Mourão. Seminário Sobre Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, pág., 49 Apud. Antero da Conceição Monteiro Fernandes. Guiné Bissau e Cabo Verde: Da unidade à separação. Dissertação de mestrado em Estudos Africanos. Porto. 2007

múltiplas memórias desses eventos. Ou como diz a carta no filme:

Ele me escreveu dizendo que “ sobre as imagens de Guiné Bissau deveria se colocar uma musica de Cabo Verde, como contribuição à unidade sonhada por Amílcar Cabral. Por que um país tão pobre e tão pequeno interessaria ao resto do mundo? Eles fizeram o que foi possível, eles se libertaram, expulsaram os portugueses, traumatizaram o exército português a ponto de esse iniciar o movimento que derrubou a ditadura e fazer crer em uma nova revolução européia. Quem se lembra de tudo isso? A História joga pela janela suas garrafas vazias.

Para não cair nas armadilhas da História que muitas vezes ignora a multiplicidade dos relatos sobre um evento, o movimento que Marker faz é de se voltar aos vários registros sobre o que foi vivido e aos lugares que façam parte do processo, como o cais de Pidijiguiti, onde em 1959 a luta por independência começou. E com isso, através de um trabalho feito sobre essas imagens, através da montagem e de um re-trabalhar sobre esse material, demonstrar essas linhas que a história não lidou, do modo como uma experiência revolucionária tão comovente descamba para uma situação tão complexa, triste e imprevista.

Mas os problemas continuaram e continuaram. São pouco excitantes para o romantismo revolucionário: trabalhar, produzir, distribuir, vencer o esgotamento sobre a Guerra, as tentações do poder e do privilégio. Mas a história só é amarga para os que a querem doce.

A forma como Marker lida com essas imagens, e com os relatos de Bissau, nos questiona sobre as linhas da história, de que não há um modo que as coisas devam acontecer. Ela não só não é previsível, mas pelo contrário, penaliza os que lutam para melhorá-la. Resta ao viajante explorar esse percurso e investigar, através dos registros feitos delas junto aos outros, esse trabalho do tempo. A construção de Marker coloca em contato as imagens recentes do viajante sobre aquela região e os arquivos do período das lutas por independência, sempre buscando um entendimento através das imagens desse modo como a passagem do tempo recai sobre elas e possibilita a construção de uma outra história que não “jogue pela janela suas garrafas vazias”. Convivência entre imagens recentes e arquivos encontrados, ou arquivos de found footage, o comentário reflexivo, a montagem, são todos recursos para Chris Marker recriar aquilo que foi vivido de modo a explicitar outras linhas que ajudam a entender essa experiência.

O rio mostrado em cores indica o caminho a seguir. Vemos em seguida uma imagem de arquivo em preto e branco que mostra o mesmo rio onde Amílcar Cabral se despedira pouco antes de ser morto em 1973, devido às divergências dentro do próprio grupo revolucionário sobre esta unidade desejada entre Bissau e Cabo Verde. Vemos Cabral dar adeus ao rio na imagem de arquivo (img.4), seguida da volta da imagem colorida, em que seu irmão, Luiz Cabral, faz o mesmo gesto naquela ocasião em que era presidente (img.5). “Marker vai perseguir o enigma da repetição da história, do mundo, do documentário como uma história verdadeira (sempre renovada e reinventada) e uma geografia imaginária (mas possível) ”78 9 O diretor usa imagens de arquivo de guerrilha em que Luiz Cabral também aparece, para ligá-las aos registros contemporâneos daquela região, e dessa forma constituir o seu movimento do encontro com as imagens e do sentido desta leitura dado na sua construção, do tempo dado a elas. É através desses arquivos que Marker trabalha estas linhas de ruptura e continuidade que envolvem expectativas, decepções e uma não-teleologia.

(imgs.4 e 5)

Cinema do found footage, também conhecido como colagem, montagem, ou prática do filme de arquivo, é uma estética das ruínas. Sua intertextualidade é também uma alegoria da história, uma montagem de rastros da memória que o cineasta une com o passado através da lembrança, recuperação e

7 Cf. François Niney. L’éloignement des voix répare en quelque sorte la trop grande proximité des plans. in: Théorème 6.: Recherches sur Chris Marker. Presses Sorbonne Nouvelle, 2002. p.103 8 Tradução livre do trecho: « Marker va poursuivre l’énigme de la reprise du cote de l’histoire, du monde, du documentaire comme histoire vraie (toujours à reprendre et réinventer) et géographique imaginaire (mais possible) » 9 François Niney aborda esse aspecto em análise de La jetée (1962).

reciclagem.

10 11

Marker lida com esses documentos encontrados não como monumentos, mas como pontos de contato com o contemporâneo, para tratar da passagem do tempo, e afastar os registros dos redutos de verdade. Mais do que mostrar, para ele é preciso expôr a relação desenvolvida com o que se mostra, quebrando a ilusão que o passado como imagem costuma provocar. Aqui é possível aproximar Marker do debate que propõe Jacques Le Goff em sua obra História e Memória sobre a questão documento/ monumento: “O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado”12 É isso que Marker quer evitar, é sobre o que acompanha o registro por ser passado. O seu trabalho de intervenção sobre as imagens é uma possibilidade de mostrar esse trabalho do tempo, de evitar que as imagens assumam esse lugar dado. Ele busca o oposto de uma legitimidade nesta comum confusão entre imagem do passado e imagem de verdade. Em Sans Soleil o diretor se recusa a somente expor, como já fazia na maioria de seus filmes anteriores como, por exemplo, em Le fond de l'air est rouge, no qual a montagem é um tipo de colagem, ou de bricolagem entre imagens de arquivo e imagens filmadas por ele dos movimentos sociais da décadas de 1950 e 1960, em que o comentário não assume um lugar de verdade, mas de tensão sobre esse conjunto. Algo que nos leva também a Lettre de Sibérie (1956), em que mais uma vez o formato epistolar é usado por Marker e traz para a cena aquele que se desloca, que “escreve de um país distante”, como diz a carta no início desse filme, e comenta, relata suas percepções e interfere no que é visto. Em Sans Soleil, como nesses outros filmes, o diretor promove os deslocamentos e estranhamentos necessários à sua construção ensaística no qual busca expor os caminhos, não só as escolhas. Um operador de câmera interroga-se (como todos os operadores de câmera, pelo menos aqueles que vemos no cinema) sobre o significado desta representação do mundo de que é perpetuamente o instrumento e o papel, desta memória que ele ajuda a construir. 13 10 Tradução livre da citação:

Found footage filmmaking, otherwise known as collage, montage, or archival film practice, is an aesthetics of ruins. Its intertextuality is always also an allegory of history, a montage of memory traces, by which the filmmaker engages with the past through recall, retrieving and recycling. 11 Catherine Russel. Experimental Ethnography – The work of film in the age of vídeo. Durham and London: Duke University Press, 1999. p.238. 12 Jacques Le Goff. História e Memória. Editora da Unicamp. 1990. p.545 13 Chris Marker. Sans Soleil. In: Robert Grélier. O bestiário de Chris Marker. Lisboa. Horizonte, 1986.

Para Chris Marker, essa relação com as imagens do passado deve ser sempre inquieta, provocadora, o seu lugar como cineasta em contato com esses registros é fazer com que eles não virem ilusões de verdade mas documentos a serem questionados, provocados e que possibilitem novas construções em cima deles a partir da intervenção do artista. “Cineastas do found footage jogam com as margens, seja com a obscuridade do arquivo efêmero ou com os significados da contracultura escavados” 14. Assim vemos as imagens de arquivo da ocasião da guerrilha por independência, imagens que tremem, acompanham a luta de perto e proporcionam um contato radical com aquela experiência (imgs.6, 7 e 8). Essas imagens de perto da uta são justapostas, intercaladas entre imagens recentes dos remanescentes da batalha, mantendo essa composição que carregue esse sentido da passagem do tempo e possibilite uma reflexão sobre o que costuma ser menos discutido sobre essas experiências.

p. 120. 14 Cf. Michael Zryd. Found Footage: Film as a discursive Metahistory. In: The Moving Image, Volume 3, No 2, 2003. p.41-42

(img.6)

Há tanto no trabalho de montagem, nesse uso dos “materias escavados”, tanto no comentário que interfere no que é visto, esse tensionamento do que vemos, essa tentativa constante de construir, através desse inquietar de saberes, provocações sobre o que foi vivido e sobre a história contada do que se viveu. Amílcar Cabral foi o único que conduziu à vitória e não apenas quanto ao serviço militar. Ele conhecia seu povo, estudara-o por muito tempo. Ele queria que a região fosse uma sociedade diferente. Os países socialistas enviam armas a combatentes, os social-democratas artigos para lojas populares. E que a extrema-esquerda perdoe a História mas se a guerrilha é como veneno na água é um pouco graças à Suécia.15

Esse trecho da carta que vem junto a imagens de arquivo de reunião dos rebeldes exemplifica bem isso se referindo a Amílcar Cabral e a esse aspecto pouco comentado do processo revolucionário que é a ajuda dos países social democratas. O apoio soviético é sempre mais comentado. Algo que faz parte também desse aspecto de balanço do filme que por uma reflexão sobre o debate de esquerda, que Marker faz parte e que faz questão de colocar nos filmes, de trazer em Sans Soleil aspectos caros dessa discussão. Marker aqui se reinventa, ao se lançar nesse debate, usando elementos e questões dele e subvertendo-as, algo que se revela principalmente na relação que estabelece com o tempo. Apesar da diversidade da obra de Chris Marker, as experiências com o tempo e de viagem se mantiveram como cerne do seu cinema. Desde o primeiro até os últimos dos seus filmes são ensaios cinematográficos sobre a passagem do tempo e a natureza mutável da memória histórica . É esta exploração do tempo e espaço que se liga a gama das suas investigações. Em muitos aspectos, Marker tem procurado desenvolver uma linguagem fílmica que se assemelhe e dê forma visual a essa preocupação. Ele tem usado o cinema como modo de compilação histórias pessoais e coletivas, retornando de tempos em tempos às memórias do passado que estabelecem um repertório imagético altamente personalizado do nosso tempo. 16(KEAR, 2005: 49)

É possível notar mais uma vez esse trabalho da imagem que revela essa 15 Trecho da carta do viajante. 16 Tradução livre do fragmento: “Despite the diversity of Chris Marker’s œuvre, the experience of time and travel has remained at the heart of his filmmaking. From first to last his films are cinematic essays on the passage of time and the mutable nature of historical memory. It is this exploration of time and space that binds the range of his inquiries together. In many respects Marker has sought to develop a filmic language that parallels and gives visual form to this preoccupation. He has used filmmaking as away of compiling personal and collective histories, returning time and time again to memories of the past, that establish in sum a highly personalized image repertory of our time.”

preocupação em dar forma a essa passagem do tempo, em representá-la. E faz isso principalmente através da interferência através da montagem. Nessa passagem por Guiné Bissau, esse trabalho era visto primeiro na montagem do rio, em que era visto colorido, através de registros mais recentes e em um corte somos levados até o rio das imagens de arquivo.

O mesmo movimento é feito também com imagens dos

cumprimentos entre Luís Cabral e seus companheiros de luta na ocasião da revolução junto às imagens recentes do mesmo gesto. O que se vê exatamente é: Cumprimentos na ocasião da revolução (img.4). Corte. Cena recente da condecoração do Comandante Nino por Luís Cabral, em que os dois se abraçam, isso junto ao comentário que antecipa o que a imagem ainda não revela, em que saberemos que esse Nino, que chora, dará um golpe em Luís e tomará o poder (img.5). Portanto, a imagem que revelava uma emoção, revela agora um descompasso. O comentário acrescenta um futuro ao registro para lhe dar novos sentidos.

(imgs. 7 e 8)

O movimento que Marker faz nesse momento do filme entre palavras e imagens remete às considerações de André Bazin em uma das primeiras importantes análises sobre a relação entre palavras e imagens no cinema de Marker, ainda na ocasião de Lettre de Sibérie, em que o autor já defendia o modo como o diretor francês radicaliza na relação entre palavra e imagem, definindo a chamada “montagem horizontal” no seu cinema. Para Bazin, seria aquela apoiada não somente na sequência de planos, mas no que é mostrado e no que é dito, baseada principalmente na célebre cena em que Marker,

- nesse filme de 1956 - apresenta três vezes a mesma sequência, montada com diferentes locuções: uma primeira pró-soviética, a segunda contrária, e a terceira próxima de uma neutralidade. Bazin assim analisa as possibilidades da imagem modificar a coisa filmada radicalmente. O teórico francês defendia, ainda, como esse cinema deve ser tratado a partir da perspectiva ensaística, no ensaio a partir do que ele é “histórico e político, ainda que escrito por um poeta” 17 Temos então um trânsito importante no entendimento dessa obra de Marker e nessa passagem do viajante por Guiné Bissau e Cabo Verde. Em Sans Soleil, é esse movimento que vai do ensaio, do tateamento, da reflexão sobre o político à intervenção com a montagem e a poesia encontrada na banalidade, no cotidiano, no imprevisto, que o viajante busca. São os aspectos que caracterizam a mediação entre esse homem, as realidades com as quais se depara e o modo como representa essas experiências. O trabalho do tempo sob as imagens, para Marker, é importante para construir essa sua outra história e, dessa forma, expor a complexidade que é isso de se voltar ao passado, de se relacionar com imagens do passado diante da multiplicidade das memórias e das experiências com o vivido. Para Marker, esse caminho tem muito mais a oferecer como compreensão. Ou como diz o trecho da carta junto às imagens dos remanescentes revolucionários enquanto vemos seus rostos de perto no momento da condecoração: “e onde se gostaria que houvesse uma memória coletiva, havia mil memórias de homens que desfilam suas feridas pessoais na grande ferida da História ”. Essa busca pelo cotidiano em contato com documentos daquele passado recente é informado por esse interesse em expor essas mil memórias, ou essas versões, perspectivas variadas de experiências coletivas e do que pode se perder quando nos voltamos a tudo isso como um bloco.

Eu lhe escrevo isso de um outro mundo, de um mundo de aparências. De certo modo, os dois mundos se comunicam. A memória é para um, o que a história é para o outro: uma impossibilidade. As lendas nascem da necessidade de decifrar o indecifrável. As memórias devem contentar-se de seu delírio, de sua falta de rumo. Qualquer parada queimaria como uma imagem de filme bloqueada. A loucura protege, como a febre.

Há em Sans Soleil um manifesto pela memória, e a imagem é seu recurso e sua 17 André Bazin. “Le nouveau cinéma français” in /Le cinéma français de la Liberátion à la Nouvelle Vague (1945-1958)/. Paris : Cahiers du cinema, 1998. p.258.

possibilidade de escrita da história à contrapelo. Chris Marker mistura suas imagens às suas lembranças, que ele faz questão de confundir com as primeiras, às mil memórias de homens que cruzam seu caminho nesse processo. E faz questão de misturá-las, pois afinal, como vai afirma em Level five (1997): “as imagens alheias me interessam muito mais que as minhas”. esse encontro das imagens filmadas por ele com as imagens filmadas por outros, através da experiências de outros, possibilitam construir outras memórias várias. Seu interesse por registros de outros é revelador do seu processo de produção e da concepção de memória partilhada (mais do que uma memória coletiva) e talvez, dessa forma, construir uma outra história desse tempo contemporâneo, que para Marker, é um tempo de memória rejeitada, mesmo com a impossibilidade do esquecimento de certos eventos. Essa relação que Marker estabelece com essas experiências de Bissau e Cabo Verde, e os modos deles terem sido ou não representados atestam esta sua crença na potência da memória em relação a “História que distribui amnésia”, como diz a certa altura do filme. Ou como defendeu Walter Benjamin:

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre grandes e pequenos, leva em conta a verdade que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para História. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente de seu passado.18

Os escritos sobre história de Benjamin informadas pelo materialismo histórico influenciam o cinema de Marker, apesar do diretor saber da impossibilidade de recobrir os eventos na sua totalidade, e apesar de que nesse revisitar está contido o sentimento do esperado que não se deu, da impossibilidade de uma teleologia. Mesmo assim o diretor se dedica nesse modo de se voltar ao passado, aos escombros, ao que não foi tratado, para construir uma outra história destas experiências que se relacione com as mil memórias. A memória e a partilha são seu recurso em contraponto a uma certa displicência desta História que “distribui amnésia”. Ou como afirmou Jacques Rancière, da memória em contraponto ao que a informação e sua carga de presente não carregam. A informação não é a memória. Ela não se acumula na memória, ele funciona apenas para seu próprio benefício. E seu benefício é que tudo seja esquecido para que se afirme a única verdade abstrata do presente e afirma seu poder como único adequado a essa verdade. Quanto mais os fatos são abundantes, mais se impõe o sentimento de sua igualdade indiferente. Mais também se desenvolve a capacidade de fazer sua justaposição 18 Walter Benjamin. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense, 1985.

p. 223.

interminável impossível de concluir, uma impossibilidade de ler um significado de uma história.19 20

A maneira como Chris Marker re-trabalha e ressignifica as imagens se conecta com esta fala de Rancière pois costuma proporcionar a dúvida e a provocação em relação ao passado negando a objetividade passageira a ser esquecida da informação. Ele trabalha de forma a embaralhar esta noção definitiva que carrega a informação e sua noção de presente contínuo. Esse presente contínuo é uma impossibilidade para Marker, e é da heterogeneidade de seus documentos, de suas imagens, que ele constrói esse sacudir necessário ao passado, essa volta ao passado através de memórias. A memória seria um antídoto a esse estabelecimento dessa verdade abstrata do presente. Variedade de documentos, montagem improvável deles, o texto provocativo sobre as imagens, modificações, justaposições, aspectos como esse que fazem não só dessa, mas da obra de Chris Marker, um conjunto voltado para a inquietação de saberes definidos sobre experiências contemporâneas. Marker lida com a variedade de materiais a que tem acesso e com seus próprios registros não construindo monumentos nem explorando preciosidades. Para ele é uma questão de explicitar uma relação entre os tempos verbais através das imagens de forma a provocar uma reflexão sobre o que foi, e o que poderia ter sido na história contemporânea. Essa é a política possível para Marker em Sans Soleil, é a busca de inscrever aquilo que não foi escrito e que não foi tomado na dimensão dessas rupturas e permanências do passado no presente, que ele trabalha a partir da ressignificação de imagens daquilo que tende a ser esquecido, daquilo que a História não tratou.

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