A mercê régia nas Ordenações Afonsinas (séc.XV): entre a palavra e o conceito

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A mercê régia nas Ordenações Afonsinas (séc.XV): entre a palavra e o
conceito


A presente comunicação pretende dar conta de um trabalho de pesquisa
ainda em andamento, e que se encontra atualmente em seus estágios
intermediários. Assim sendo, os resultados podem se modificar, e do mesmo
modo qualquer conclusão que possa ser apresentada aqui.
Esta pesquisa se insere dentro de um grupo maior, formado por alunos
de graduação da Universidade de Brasília sob a orientação da professora
Dra. Maria Filomena Coelho. O objetivo do grupo é abordar as Ordenações
Afonsinas sob diversos aspectos, para que, ao final, possa-se reunir um
conjunto de trabalhos que permitam analisar esse corpus documental em sua
totalidade e de forma a ser compreendido em si mesmo, como fonte importante
para a análise das práticas sociais e políticas luso-medievais.
A trabalho aqui exposto pretende analisar o discurso monárquico
dentro das Ordenações Afonsinas, como forma de entender os modelos
utilizados para sustentar e dar legitmidade, no campo das idéias, à coroa.

As Ordenações Afonsinas constituem um grande esforço de compilação e
reorganização das leis do reino de Portugal concluído na primeira metade do
século XV, durante o período de regência do reinado de D. Afonso V. Cinco
livros formam as Ordenações, sendo que o primeiro – o meu objeto de estudo
– foi o último a ser redigido. Seus títulos tratam dos oficiais régios, e
foram escritos em estilo diferente daquele dos demais livros. De fato, sua
linguagem possui um tom legislatório, o que torna esse livro muito rico
para o historiador que procura compreender os usos que os homens daquela
época faziam de seus modelos teóricos.
Por enquanto a ênfase maior foi dada a um termo – "mercê"- encontrado
de maneira repetida ao longo do texto do documento, o qual se acredita que
constitua uma das chaves para a compreensão do papel régio conforme visto
pela sociedade que produziu a fonte. É desse tema que será extraída uma
dissertação de final de curso.
Parte-se da premissa que o termo "mercê" é um conceito, na forma
elaborada por Reinhardt Koselleck. Segundo ele, alguns vocábulos adquirem
importância histórica, a qual consiste naquilo que os tornou passíveis de
serem entendidos como conceitos, ao passo que o mesmo não ocorreu a outros.
No caso, os conceitos seriam aquelas palavras para as quais: "seria
necessário um certo nível de teorização e cujo entendimento é também
reflexivo"[1]. São termos que adquirem importância para além de uma
situação concreta, e remetem a imagens e idéias compartilhadas. São
fenômenos lingüísticos que sofrem alterações de sentido (palavras que não
eram conceitos em um língua em determinado momento tornaram-se um;
conceitos que mudaram de significado com o desenrolar de acontecimentos
históricos, etc...) e assim sinalizam as transformações das próprias
sociedades. As diferentes acepções que um conceito pode adquirir em cada
época e lugar são significativas das mentalidades atuantes naquele momento,
e, portanto, das diferentes visões de mundo que existiram e existem. Assim:
"todo conceito é não apenas efetivo enquanto fenômeno lingüístico; ele é
também imediatamente indicativo de algo que se situa para além da
língua"[2]. Isso seria, de maneira mais pura, a propriedade semântica
assumida por um conceito[3].
É muito importante notar a característica de sincronicidade e ao
mesmo tempo diacronicidade que os conceitos assumem. De fato, todo conceito
seria diacrônico, pois, ao ser formulado, aquele que o utilizou pensava
apenas na situação concreta e única a ser expressa:

O que é decisivo é que o uso pragmático da língua é sempre único. Eu
falo uma única vez aqui e agora, procurando convence-los do que penso;
a vocês e não àqueles que não me ouvem. Trata-se de uma situação
característica do uso pragmático da língua: é uma situação única, e
neste sentido também irrepetível[4].

No entanto, seria também sincrônico, afinal, sem uma semântica prévia, sem
um acordo anterior a respeito do(s) significado(s) daquele termo
compartilhado(s) por todos, o mesmo seria incompreensível para aqueles para
os quais foi destinado. Desse modo cada conceito seria também sincrônico,
pois sua utilização pressupõe um conhecimento do que seja aquela palavra,
ainda que sua utilização num momento específico traga-lhe uma novidade de
significado, que, ao longo do tempo e da freqüência de utilização desse
novo sentido, vai alterando a acepção daquele vocábulo até ela se tornar a
semântica pressuposta[5].

Contudo, tudo que eu disser só será compreensível na medida em que os
senhores conhecerem minha semântica, pois sem o conhecimento prévio do
significado das palavras que utilizo, nada será compreendido. A
semântica é assim imprescindível para a comunicação lingüística
(Sprachhandlung) e para o uso pragmático da língua. [...] Portanto, o
que a semântica indica é que ela é repetível. Trata-se de estruturas
lingüísticas que se repetem e cuja repetição é necessária para que o
conteúdo seja compreensível, ainda que uma única vez. Eu só posso ser
compreendido se um mínimo de repetição da semântica estiver
pressuposto. E assim os senhores têm uma outra possibilidade da
história, a ser pensada não apenas de forma linear sucessiva. Devemos
partir teoricamente da possibilidade de que em cada uso pragmático da
linguagem ( Sprachpragmatik), que é sempre sincrônico, e relativo a
uma situação específica, esteja contida também uma diacronia. Toda
sincronia contém sempre uma diacronia presente na semântica, indicando
temporalidades diversas[6].

Considera-se que a mercê deve ser entendida como um conceito, da forma
como Kosselleck os descreve. Assim, percebe-se a importância que esse
conceito assumiu nas sociedades medievais, o quanto ele transmite, através
de suas diferenças e modificações de acepção, formulações modelares
políticas e sociais daqueles tempos. Sua análise é assim claramente útil ao
historiador preocupado em entender as lógicas medievais, e o legado que
muitas deixaram para épocas posteriores.
Até o presente momento, procedeu-se à leitura da fonte primária e à
separação e comentário de trechos da mesma considerados importantes para a
análise do tema em questão. Feito isso, passou-se para a leitura de
bibliografia secundária sobre o Portugal medieval e moderno, para a qual se
escolheu os autores estudados com base na influência que os mesmos
possuíram e ainda possuem para a historiografia do Portugal medieval.
Procurou-se considerações feitas pelos mesmos acerca da mercê, da graça e
do dom, e analisou-se tanto o conteúdo dessas considerações quanto – como
ocorreu mais do que se imaginava – a falta delas.
Um dos autores consultados é Alexandre Herculano e sua História
de Portugal[7]. Conhecido historiador e romancista português, Herculano é
ainda hoje uma das grandes referências quando se fala em Idade Média
portuguesa.
Ao todo, foram consultados quatro volumes[8] (a obra completa possui
oito volumes), aqueles onde se considerou que haveria mais chances do tema
da mercê ser abordado. Ao longo do texto narrativo corrido e um pouco
romanceado de Herculano, não se encontrou muitas referências ao assunto. No
entanto, elas existem. Se, em boa parte das vezes em que há menção às
mercês essa é feita de maneira despretensiosa, sem deixar entrever nada que
não uma simples citação de um fato histórico, em outras pode-se ter uma
idéia da concepção que Herculano fez delas. Percebe-se em várias passagens
que a mercê possui importância política, e parece ser um dos instrumentos
utilizados nos jogos de aliança e legitimação do poder. Lê-se:


Reconhecido rei, Sancho fora conduzido a Lisboa, e um dos
primeiros cuidados dos ministros consistira em buscar com mercês
o favor da ordem do Templo[9].


Fazendo pouco a pouco intervir o consentimento das infantas nas
concessões de mercês, ía habituando os espíritos a considerá-las
como suas herdeiras, até que, excluindo o filho, francamente as
chamou á sucessão da coroa, uma após a outra, nas disposições
testamentárias com que veio a fallecer.[10]


Até 1233 o sacerdócio nas suas violentas invectivas contra o
poder civil reduz constantemente o debate á expressão mais
exacta delle: são os cânones offendidos; são as imunidades
ecclesiasticas calcadas aos pés; são as mercês e privilégios
concedidos pelo principe que passou violados pelo que lhe
succedeu; são as concordatas, as promessas e os juramentos
quebrados.[11]

Nos trechos acima, as situações descritas demonstram um caráter de
autentificação monárquica na concessão das mercês. Um rei é senhor, o maior
de todos, e, portanto, deve saber agir corretamente como senhor, sabendo
fazer doações que geram débitos (ou vice-versa), e, portanto, alianças.
Assim obtém bases de apoio que o mantenham no trono.
Outro autor consultado é José Mattoso, cujas obras analisadas para
esse trabalho são: História de Portugal (segundo volume) e Identificação de
um país (segundo volume). Para ambos os livro, não há muito o que dizer no
que diz respeito ao tema da mercê. Não existe nenhuma menção a ele, é como
se não possuísse importância. Mesmo quando Mattoso cita uma série de
documentos onde – em cada um – a palavra "mercê" é escrita pelo menos duas
vezes, não há qualquer referência às mesmas[12]. O silêncio é total.
É com Antônio Manuel Hespanha que vemos melhor as relações
estabelecidas entre a prática da mercê e a concepção corporativa de
sociedade então vigente.
A "Teoria da Sociedade Corporativa" é o nome dado atualmente a uma
concepção da organização social e política dos homens surgida ao longo da
Idade Média, e que se estendeu de diversas formas pela Idade Moderna. Essa
idéia tomava como base o corpo humano – sua anatomia e seu funcionamento –
como paradigma societal a abranger praticamente todas as esferas das
relações humanas, desde as de pequena dimensão tais como o casamento e a
família, como as de grande, tal como a organização eclesiástica e a própria
monarquia. Particularmente, era referência para o modelo da sociedade
tripartite, no qual a mesma seria dividida em três ordens – ou estados –
sendo elas a nobreza, o clero e o terceiro estado; ou, como queria a
linguagem da época, bellatores, oradores e laboratores (guerreiros,
oradores e trabalhadores). Cada uma das ordens corresponderia a uma parte
específica do organismo social. Assim como o corpo humano é formado por
cabeça, tronco e membros, do mesmo modo estariam organizados os estados dos
homens. No corpo o todo é formado por partes que possuem independência de
ação umas com relação às outras, cada qual atua dentro de sua
especificidade e todas são regidas – organizadas – pela cabeça. Um
organismo cujo um dos membros fosse cortado seria deficiente, do mesmo modo
que o seria caso alguma parte pretendesse realizar o trabalho de outra. Por
exemplo, as pernas e os pés atuam perfeitamente quando em seu lugar, mas,
caso se colocassem no local na cabeça, o corpo não poderia funcionar
corretamente. Principalmente, se a cabeça fosse decepada, então o corpo
morreria e se desintegraria. Do mesmo modo funcionaria a sociedade de
ordens. Cada indivíduo estaria inserido em um lugar muito específico, e ali
deveria exercer corretamente a sua atribuição para a boa constituição do
todo. É dotado de independência de ação, mas não lhe é recomendado exercer
a função de outros, sob risco do colapso do corpo. Esse pensamento é
dominado pela idéia de um kosmos, uma ordem natural que se confunde com o
divino e é aquela capaz de orientar os indivíduos em direção ao criador.
Hespanha, ao se referir à questão das dignidades maiores ou menores,
cita um trecho do próprio documento que serve de fonte para esta pesquisa,
as Ordenações Afonsinas, e diz ao fazê-lo:

Nas Ordenações Afonsinas portuguesas (1446), esta memória da
Criação/Ordenação aparece a justificar que o rei, ao dispensar
graças, e, com isso, ao atribuir hierarquias políticas sociais
entre os súbditos, não tenha que ser igual para todos.[13]


O trecho que ele então cita é este:

Quando Nosso Senhor Deus fez as criaturas assi razoáveis, como
aquelas que carecem da razão, não quis que dois fossem iguais,
mas estabeleceu e ordenou cada um em sua virtude e poderio
departidos, segundo o grau em que as pôs. Bem assim os Reis, que
em lugar de Deus na terra são postos para reger e governar o
povo nas obras que hão-de fazer – assim de justiça, como de
graça e mercê – devem seguir o exemplo daquilo que ele fez.[14]

Em seguida, trata da questão da repartição do poder na concepção
corporativa da sociedade. Cada membro detém uma parte desse poder, o mesmo
não pode se concentrar todo na cabeça. Um corpo formado apenas por cabeça
seria também monstruoso, e, assim, o poder deve ser partilhado. Ao
contrário daquilo que vulgarmente se imagina, a tirania era altamente
condenável e, caso se concordasse que ela estivesse sendo exercida, o
correto seria interrompê-la. Assim, um rei tirânico – ou qualquer outra
pessoa que assim exercesse uma função de cabeça – deveria ser derrubado. No
entanto, e de acordo com a noção dos estados e das dignidades, isso somente
seria legítimo se feito por quem tinha o valor necessário para tal, por
quem saberia. Esses eram os membros das classes mais favorecidas.
Assim, a boa governança seria aquela onde a cabeça política
representasse a unidade do corpo sabendo ao mesmo tempo manter a boa
concórdia entre seus membros através da garantia do estatuto próprio de
cada um, dando a cada qual aquilo que lhe seria devido. Em suma, fazendo
justiça[15]. Dessa maneira, Hespanha conclui que a realização da justiça
seria "o primeiro ou até o único fim do poder político"[16], e sua noção
acabava por se embaralhar com a conservação da ordem vigente.[17] Isso não
significa que as sociedade medievais não sofressem transformações, apenas o
modelo era o da pouca mutabilidade.
Hespanha faz ainda outras observações a respeito da natureza da ordem.
Diz que um de seus aspectos era a criação de vínculos tais que os mesmos,
com o tempo, tornavam-se "comportamentos devidos em virtude da própria
"natureza das coisas"[18]. É aí que ele entra na questão do débito, e da
importância que o mesmo possuía nas sociedades medievais. A ordem cria
dívidas mútuas entre os seres humanos, o que as torna então deveres e
direitos. Sendo essa ordem natural, esses seriam direitos naturais. Por
fim:


Como a soma dos deveres das criaturas entre si é também devida à
ordem, ou seja, a Deus, o cumprimento dos deveres recíprocos é,
em certa medida, um dever para com Deus, e, logo, o tal direito
natural acaba por ser um direito divino: "É devido a Deus que se
realize nas coisas aquilo que a sua sapiência e vontade
estabeleceu e que sua bondade manifesta... É devido a cada coisa
criada que se lhe atribua o que lhe foi ordenado [...] e, assim,
Deus faz justiça quando dá a cada um o que lhe é devido segundo
a razão de sua natureza e condição" (cf., também, Summ.
Theol.,Ia-Iae, q.111, 1 ad 2).[19]

O que se pode extrair das idéias e informações apresentadas por
Hespanha com relação à mercê é que, em primeiro lugar, é possível dizer que
ela faz parte dos instrumentos utilizados pelo poder a fim de se praticar e
também se legitimar. Ela pertence ao exercício da justiça, pois se trata de
uma doação: um dom que seja concedido a quem o deve de receber. Da mesma
forma, é uma maneira de criar relações de débito nos moldes descritos acima
– através da dinâmica serviço/gratificação (e vice-versa) - e termina, em
última instância, por se configurar como um débito para com Deus e parte
integrante da manifestação da justiça divina. Sendo o poder do monarca
devido à Vontade suprema, cabe ao mesmo, enquanto seu vigário[20],
resguardar essas justiça e ordem naturais/sagradas no exercício de sua
potestas. Torna-se, assim "o portador de um poder normativo de origem
divina"[21]. A mercê, portanto, pode ser entendida como um elemento
necessário na engrenagem da ordenação do mundo (inclusive no que isso
abrange de político, social e teológico) e, quando bem aplicada, permite
que se administre justiça e se ordene corretamente.
De forma geral, encontrou-se pouquíssimos escritos a tratarem da
mercê, e nunca de maneira específica. A razão para isso é difícil de
compreender, uma vez que essa era uma palavra amplamente utilizada, e é
encontrada com enorme freqüência em diferentes tipos de fontes. Quanto ao
corpus documental pesquisado esse foi um dos vocábulos que mais atraíram a
atenção, tanto pela abundância de seu uso, como pela variedade de formas e
situações em que é empregado. Ao longo de sua leitura, foram-me apontados
os diferentes significados que ali a palavra "mercê" parece possuir. Eles
variam de acordo com a circunstância em que o vocábulo é utilizado, mas
algo que todos possuem em comum é a forte conotação política no discurso
que justifica o monarca. Essas variadas intenções no uso do termo "mercê",
não são óbvias. Mas com um pouco de atenção são perceptíveis a olho nu, e
quando as colocamos em lentes de aumento, revelam um terreno bastante
frutífero.
Até o presente momento, no Livro I, a mercês parecem ser
majoritariamente o equivalente de "benefício". É algo que o monarca dá em
troca de um serviço, já prestado ou não. É interessante notar a
multiplicidade de formas em que um benefício pode se manifestar. Ele pode
se materializar em bens, em posições respeitadas – é o caso dos oficiais
régios - em direitos, privilégios, e até mesmo no perdão ou alívio de penas
criminais. De fato, no título IV, que trata dos Desembargadores do Paço, a
palavra "mercê" aparece associada aos perdões reais de penas, de forma que
esses mesmos perdões são então entendidos como benefícios. No sentido
feudal, decerto. O que nos leva a crer que eles implicassem então em algum
tipo de serviço que deveria ser prestado em retorno, estimulado pelo
esperado sentimento de gratidão.
A mercê, e sua sábia utilização, são requisitos essenciais para bem
governar. Ela está relacionada à justiça, mais especificamente àquela que o
rei deve fazer. Não está desvinculada da noção de direitos e de costumes,
uma vez que a justiça é entendida relacionando-se com esses. A mercê então
é recebida por direito e por justiça, é dada a quem a deve de assim
receber. Mas quem julga e determina quem a deve de receber, é o monarca, e
por, em teoria, ser sua a palavra final, a mercê recebida, embora seja de
direito, é um benefício que ao ser dado ratifica o poder do rei, pois se
considera que dependeu de sua vontade, mediada pelo seu "siso" e senso de
justiça. Ser justo é uma das virtudes essenciais da cabeça política.
Como não poderia deixar de ser, a mercê está associada à religião. O
rei feudal é um rei senhor, e ele deve ser o suzerano dos outros senhores.
Mas deve ser um vassalo de Deus. Como vassalo de Deus, ele lhe deve de
prestar serviços. A mercê, então, é também entendida como um serviço a
Deus. Prestar serviço a Deus é um elemento essencial para a preservação do
poder de um rei. Se ele não o fizer, se ele não se reconhecer como um
vassalo também, pode ter sua posição questionada, e corre o risco de ser
acusado de tirania. A tirania é o maior crime que pode cometer um rei, pelo
qual ele pode ser justamente deposto.
A correta distribuição de mercês é um dever do monarca, mas deve
aparentar depender de sua vontade e decisão, pois é assim que ele se coloca
como soberano. Isso, além de reforçar a sua posição de mando em si, é o que
faz alusão às virtudes que um rei deve ter - como as de ser justo,
benevolente e pio - e é o que todo rei enquanto corpo político tem mesmo
que o corpo natural não possua, e isso não é questionável. A cabeça deve
parecer autoritária quando se pronuncia, pois está enfatizando seu comando.
Porém deve saber se articular com o conjunto, caso contrário é incapaz de
sustentar sua posição. As mercês entram nessa lógica.
Apenas pela análise da forma como as mercês são empregadas através da
palavra real no livro I das Ordenações Afonsinas, já podemos ter uma idéia
de como os modelos teóricos eram utilizados para dar legitimidade ao rei em
exercício, e até justificar a própria monarquia. É através do jogo entre a
autoridade e a concessão, entre a vontade e o dever, que se constrói a
imagem do monarca ideal para as condições circunstanciais. É assim que se
define a dinâmica que apóia a cabeça política, e é assim que se convence. O
rei construído nas Ordenações Afonsinas não é o ser humano real, mas uma
idéia de rei. Porém, nem por isso ele é menos verdadeiro. Ele é um rei
político diante de um rei natural que ainda estava na sua menoridade. Mas
esse rei político é o rei da mesma forma, e o rei natural, distinto do
primeiro mas por influência dele, é igualmente o rei ideal.


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[1] KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e
práticos. In: REVISTA ESTUDOS HISTÓRICOS, vol. 5, n. 10. Rio de Janeiro:
1992, pp. 135.
[2] Idem, pp. 136.
[3] Idem, pp. 141.
[4] Idem, pp. 140.
[5] Idem, pp. 140 -142.
[6] Idem, pp. 140-141.
[7] HERCULANO, Alexandre. História de Portugal: desde o começo da monarchia
até o fim do reinado de Afonso III. Paris/Lisboa/Rio de Janeiro/São
Paulo/Belo Horizonte: Aillaud & Bertrand/Francisco Alves, 1915/1916.
[8] Os tomos consultados são, respectivamente: 4º , 5º, 7º e 8º.
[9] HERCULANO, Alexandre. História de Portugal: desde o começo da monarchia
até o fim do reinado de Afonso III. Paris/Lisboa/Rio de Janeiro/São
Paulo/Belo Horizonte: Aillaud & Bertrand/Francisco Alves, 1915, 4 v, pp.
164.
[10] Idem, pp. 217.
[11] HERCULANO, Alexandre. História de Portugal: desde o começo da
monarchia até o fim do reinado de Afonso III. Paris/Lisboa/Rio de
Janeiro/São Paulo/Belo Horizonte: Aillaud & Bertrand/Francisco Alves, 1915,
5 v, pp. 249.
[12] MATTOSO, José. Identificação de um país: ensaio sobre as origens de
Portugal. Lisboa: Estampa, 1995, 2 v, pp. 169 – 171.
[13] HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um
milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, pp. 102.
[14] Ord. Af. I, 40, pr. In: HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica
européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005,
pp. 102.
[15] Ao se referir aos estatutos próprios de cada ordem, Hespanha coloca
entre parênteses, como pertencentes a esses estatutos, os foros, os
direitos e os privilégios. Dessa forma, pode-se subentender que os mesmos
são partes constituintes do exercício da justiça pela cabeça política.
[16] HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um
milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, pp. 115.
[17] Idem, pp. 114/115.
[18] Idem, pp. 115.
[19] Idem, pp. 116.
[20] No textode Nieto Soria há uma parte especial sobre a concepção do rei
como vigário de Deus. Isso significa que o rei é o representante de Deus
na terra, inclusive como a utilisadíssima fórmula "rei pela graça de
Deus"deixa entrever. O poder e lugar de monarca é devido à vontade divina,
e é ( ou deve ser) uma expressão dessa na terra. Essa noção geralmente
tinha um caráter duplo, servindo como instrumento de afirmação tanto do
poder ilimitado do monarca, como justamente da limitação desse poder.
Alguns entendiam que isso tornava incontestável o poder real, enquanto que
outros assumiam que isso o limitava, pois seu exercício era restrito pelos
padrões de comportamento que essa inspiração divina exigia. SORIA, José
Manuel Nieto. Fundamentos ideológicos del poder real em Castilla: siglos
XIII a XVI. EUDEMA, Madrid, 1988.
[21] HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um
milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, pp. 116.
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