A merda do mundo

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Descrição do Produto

Arcângelo Ferreira - Thiago Roney

Manaus – AM 2015

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Publicações editadas pelo editor autor, na Agência Brasileira do ISBN, Thiago Roney Lira Borges. Contato: [email protected] https://thysanuraedicoesderua.wordpress.com/ CAPA - Renata Braga REVISÃO - Klauber Renan e João Bezerra DIAGRAMAÇÃO - Thiago Roney

A merda do mundo FERREIRA, Arcângelo. RONEY, Thiago. 1ª Edição Janeiro de 2015 ISBN 978-85-914087-1-9 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor.

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à memória de Enoque Barbosa, poeta insone.

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SUMÁRIO Nota dos autores, 06 Pausa, 08 Os minotauros de Pancrácio, 11 Está feito, 14 O cano duplo da anarcossindicalista, 16 O Velázquez de Danúbia, 19 As transfigurações de um tempo imóvel, 22 A merda do mundo, 24 O baile das carnes, 29 A fenda e as pedras, 33 Quando o teu olhar cortou minha memória, 37 Apiemieke?, 40 Sobre os autores, 45

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Nota dos autores Os contos que compõem este livro começaram a surgir, em 2013, a partir de dois acontecimentos provenientes de nossa amizade. Primeiro, quando um, em tom de brincadeira, fez uma intervenção no escrito literário do outro. Segundo, quando, numa mesa de bar, despretensiosamente, discorremos sobre a possibilidade estética de ler/escrever um conto como uma fotografia (aquelas dos álbuns de família, por exemplo) ou um quadro (como Miséria, de Hahnemann Bacelar). Começamos, então, a levar a sério as duas propostas. Um iniciava um conto, construindo o primeiro parágrafo ou uma frase; o outro seguia e depois devolvia, ou vice-versa. No final, discutíamos o resultado e reorganizávamos as construções até chegar a um eixo. Daí desencadeavam os enredos, às vezes, como um mosaico de imagens inscritas na temporalidade intangível que aos poucos foi se delineando. Tempo que o leitor atento decifrará através das alegorias aqui construídas. Não decidíamos antes, portanto, qual temática seria abordada em cada conto, apenas verificávamos depois o que emergia das ideias entrelaçadas. Com o processo, à medida que fomos deixando, de forma subsumida, mas não abandonada, a ideia do conto como fotografia-quadro, percebemos uma temática forte compondo e rondando os contos gradativamente construídos. Então, decidimos seguir a temática. Elaboramos todas as narrativas nessa perspectiva, com pontos de contato entre si. O curioso é que nunca lemos, antes de escrever este livro, obra literária de composição conjunta. Apenas fomos informados, através de resenhas literárias, ou dialogando com pessoas ligadas à Literatura, sobre experiências do tipo, como a de Jorge Luiz Borges e Bioy Casares. Enfim, todos os contos foram escritos a quadro mãos, exceto Pausa e As transfigurações de um tempo imóvel, de Arcângelo Ferreira, e O cano duplo da anarcossindicalista e Apiemieke?, de Thiago Roney. Este último contém algumas frases retiradas na íntegra do 1º Relatório do Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas enviado à Comissão Nacional da Verdade, o qual virou livro em agosto de 2014 pela editora Curt Nimuendajú. A.F e T.R

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¿El hombre es carne que cubre a una metáfora, o una metáfora que recubre la carne? Manuel Scorza 7

Pausa

Era como se um labirinto descesse do meu nariz. Horas. Olhares. Escaravelhos. Libélula. Aracnídeos. O Tempo também pode torturar o tempo. No final, saí dessa reunião com tonturas. O lenço que segurava em minha mão tinha uma minúscula poça de sangue. Na rua os meus passos enfraqueceram, e eu percebi que estava indo embora de minha vida. Jamais seria o mesmo. Antes, o fundo da sala estava oculto. Lugar que preferi pra fingir meus olhos fechados. Mas, logo fiquei decepcionado com o impulso repentino. Acho que fiz a escolha no afã da hora. Sem pensar. Era tarde. Teria que enfrentar o medo unânime. Iriam abrir cofres. Ver as folhas. Úmidas apesar do Tempo. As frestas acenderam vozes. Vieram mudas depois de tanto tempo na surdez ansiosa de chaves. Surgiram no suor dos passos contínuos. Será que todos estavam preparados pra auscultar esses corações batendo silenciosamente? Será que o Tempo estaria preparado? Eles entraram. Todos ficaram de pé. Lembrando missa e turíbulos. O odor de incenso. Veio o dia em que você surpreendentemente gritou, Não, não façam isto, eu falo tudo que vocês quiserem. Imediatamente eu pensei, a passos de caranguejo, Cagão, filho de uma puta! Eu era ainda um jovem indeciso. Vi aquele vulto dizendo ao final da fala, Meu coração está coberto de neve. Todos aplaudiram e emanaram outras palavras do teu logro. O encanto foi imediato. Os gestos suaves num discurso feroz como um vaga-lume no breu da noite, veloz. Agora esta cena horripilante. Mas usei a tática do silêncio. Esperei as folhas se acalmarem. Meus passos eram invisíveis, após horas me vi deitado no chão. Fito os olhos naquela fotografia pós-moderna: um vulto num plano primeiro, segundo, as cores vivas do fim do dia. Logo o homem cai de joelhos. Seu gesto sinaliza pavor. Medo da ausência da vida. Prefere fazer uma opção, nunca mais existir. Não façam isto! Abri meus olhos. Era preciso depois de tantos anos. Seria covardia fingir fechados. Sair daquele canto da sala. Estender o brilho aludido de meus óculos. Alguém puxou palavras escritas e iniciou a leitura de um manuscrito de 1969. Dragão de três cabeças. À frente, lança pontiaguda. Mas o silêncio que vinha 8

das palavras continuava enfiando o vão no buraco do mundo. Outro dia veio. Veio outra vez o dia em que, clandestinos, chegamos com sonhos eternos. Mas tínhamos que nos ancorar nos braços de grupos humanos raquíticos como os nossos para podermos dormir, e acordar, e dormir, e correr, e gritar, silenciar, furar, ferrar. Lembrei-me do amor que um dia deixei para trás: assovios sombrios, melódicos, um breu, o fogo de rajadas ferozes. Pensar, repensar, chorar. Parar de baixo da centenária, acender, viajar no fruto de um beijo. Os teus? Nunca mais! Meu primeiro bolero aos dezessete, odores de putas, a foda, 64. Sublime como uma loba e nunca mais eu serei aquilo que deixei de procurar. Serei esse Outro que consome minhas lembranças. Abriram mais uma pasta, após o ranger da gaveta. Um barulho de ferrugem arrastado pelo ferro na alma daquela gente sedenta, mas apavorada de tudo. Era preciso ter coragem para ouvir as portas se abrindo. Possível ver o suor desmoronando os dentes serrados, escondidos por lábios trêmulos. Gargantas engolindo bocas. 1970. Foice ceifando olhos juvenis, as tardes e praças abarrotadas de elmos. Santa gritava, gemendo de dor na imensidão das folhas policromas. O sol entrando por fissuras como uma claraboia natural. Às vezes tropeçávamos na luz ínfima. Com cuidado para não pisar em poças de líquidos densos e leitosos, amarelos como o rio que escondia monstros imaginários. A caixa se abria, e rezavam nomes que nasciam da violência subsumida no Tempo. Era como se pudéssemos ver a cara da morte. Meus passos se alargavam quando o dia era de reunião. Encontrava muitas meninas com cores nas mãos e olhos arregalados. Melhor tempo de uma de minhas personas. Não havia regra. Liberdade. Eu tinha muitos irmãos, não os podia contar. Saíamos do colégio. Depois cinema. Depois a praça. Goles de esperança. Poemas em prosa. Prosa poética. Dialogávamos com árvores, prédios. Chovia. Tirávamos as roupas. Corríamos nus. Balançando turíbulos. Odores de chuva batendo em paralelepípedos. Lambendo nossos desejos. Abri os olhos. Fumaça. Longos dedos. O labirinto saindo dos meus ouvidos. A surdez e a memória que vão longe. O sorriso de meu irmão mais velho. A gargalhada de meu pai à mesa. Minha mãe tão linda. Eu criança. Apague a luz. Mas não esqueça a salve-rainha.

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Uma letra quase ilegível me chamou a atenção. Finalmente eu havia encontrado? Mas estava difícil decifrar, mesmo para alguém que já havia feito vários cursos de paleografia. As palavras revelavam muita dor, latente em um discurso

cremado.

O

movimento

das

borboletas

ficou

dissimulado,

manipulado, transpassado de rasuras propositais. Saí da sala com o nariz sangrando. Escorria um labirinto de minha memória. Uma dúvida, aquela assinatura saturada de Tempo seria do decrépito coronel Pancrácio? O mesmo que havia puxado o gatilho com o cano mirado para aquela boca da qual eu não ouvi vaga-lume nenhum dizendo, a plenos pulmões, Vou partir a geleira azul da solidão. Tudo é pausa na dança das imagens que, incansável, me persegue. Qual seria o lugar das lembranças, onde se inscreve a Memória?

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Os minotauros de Pancrácio O espelho me partia em dois. O imprescindível é não parar de calçar os sapatos, meu caro, seja qual sejam os nós, dizia feito um minotauro com os pés quarenta e seis se arrumando sobre a cama. A silhueta no espelho denunciava a imaginação: uma criatura que calçava sapatos. Era, sobretudo, o Meu caro e o Nós que também confundiam minha cabeça, além da presteza do vestir a farda, o impiedoso trato com a mulher e a humanização de Alfrede, o bichano. O mundo ensinou a ele que sapatos dizem tudo sobre os pés que os calçam. Tinha inveja de Alfrede. Jamais ele teria que dizer impecavelmente as palavras certas, dar nós e calçar sapatos pretos, marrons, como se fossem espelhos sempre a refletir um sisudo olhar. Paradoxalmente, olhar-se nos espelhos da casa era o momento mais triste do dia. Duro era se ver trasvestido naquela farda bicolor.

O único modo de

manter o dia como um dia normal parecia ser sempre calçar os sapatos, mesmo com tantos nós. Eu odiava assistir à televisão, sobretudo aos noticiários. Hoje não me dou o trabalho de ver o batalhão de solidão, um comboio de ressentimento, reprimir sonhos, e atropelar desejos. Cansei de ver meu minotauro por trás dos pixels irreais da realidade. Não sei, mas alguma coisa me forçava a assistir àquilo. Algo insólito nesses primeiros instantes do terceiro milênio, principalmente aqui nesse lugar emoldurado pela solidão. Talvez o tom espetacular tenha tirado a atenção que por hora depositava nos meus sapatos brancos. Olhando a poeira sobre a alvura, uma fresta de ira começara a crescer dentro de mim quando o brilho da notícia chamou a atenção de meus olhos. Um monstro de muitas cabeças invadindo a história. Nesse momento percebi que dentro, bem lá dentro, ainda havia a latente saudade dos velhos tempos. Até deu vontade de olhar os espelhos da casa. Vi-me assoviando infinitos hinos. Todos os meus pelos arrepiaram, um filete daquele sangue quente fez meu pau crescer. Estava feliz. Finalmente um acontecimento digno de ressurreições. Cena espetacular, o passado vazando por um furo no presente. Como uma criança, bati pequeninas palmas. Porque o passado e o presente são duas mãos do mesmo corpo a aplaudir. E a vibração sonora dessa palma se

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bifurca nas Histórias, sobretudo, fissuradas nas frestas de nossos nós, na nossa pequena história familiar. De quando em quando, ao fim do dia, a farda voltava com seu sapato sujo. Acariciava o Alfrede com um carinho marrom encarnado, dava uma sapatada injusta na Francisca e restava para mim o pesado Meu caro da criatura mitológica bêbada descalçando os sapatos. Noutro dia vinha sempre o calçar, eu olhando e me perguntando até quando. Acordava sempre com o esfregar de Alfrede devolvendo uma ternura melancólica. Enquanto isso, lá fora, o Negro rútilo cintilava os meandros da cidade com a mesma calma de sempre, a fúria subia, de certo, porém, nos tempos perdidos. O rio só não levava os sentimentos e ressentimentos. Uma dubiedade, entre o amor e o ódio, eu nutria pelo filho da puta do minotauro. Francisca, minha mãe e mãe da gente, fez com que carregasse um rancor, um trauma. Jamais pude me libertar daquele minotauro refletido na pupila de Francisca. Foi assim, desde quando era menino. Fiquei com medo, mas ela me fez crer que os cadarços são as únicas coisas que não podemos perder nesses labirintos de muitos minotauros. Muitas vezes furava a sola e eram os fios, doados por Francisca, feito Ariadne, que me faziam sair da escuridão. Aliás, o presente é cheio de quartos escuros. É nessas horas que penso na importância dos cadarços, Meu caro. Talvez sejam eles que sustentam a necessidade de calçar os sapatos. Mas como desatar os nós emaranhados pelo tempo? Como desatar os nós enjaulados nos buracos do contratempo? Como desatar os nós contorcidos pelo cotidiano de minotauros maiores que o de casa? Como desatar os nós que afligem Francisca? Como desatar os nós dos sonhos reprimidos pelo batalhão de fardas solitárias? Como desatar os nós dos desejos atropelados por comboios de ressentimento? Como, enfim, desatar o nó que sai da garganta da História aos pés do tempo ao me olhar translúcido no vidro polido e metalizado que agora reflete minha luz? Um minotauro sentado numa cama, fissurada por labirintos, calçando um sapato branco-marrom e, ao lado, com um sorriso de cão, Alfrede, balançando lentamente o rabo. Agora, olhando a farda, os sapatos, os cadarços e todas as vezes que somente eu, mais ninguém, vê essa estranha criatura chegar e sentar ao lado, me encarar e depois se esbaldar de rir, reporto-me à franqueza de Francisca e 12

procuro entender por que, afinal de contas, a mãe da gente resolveu me chamar de Pancrácio, desde o dia em que vi pela primeira vez no espelho dos seus misteriosos olhos graúdos brotar minotauros?

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Está feito Está feito. Não fui. Fiquei. Preferi descer duas paradas antes. Não! Por algumas horas… Parei já caminhando pro destino dúbio. Aquele cão cansado. Olhar dual. Um albino surdo. Na rua… Disperso, entro no Acaso. Diverso na ordem de sempre. Encontro o Memória, acenou pra mim. Pedi um pouco, um copo e não me atrevi, não disse, mas bem que fui tentado. Era evidente, estava velho no seu Futuro. Contudo, o diálogo descreveu minutos mais tarde, a pujança de seu Presente. A mesma narina aberta pra todos os odores, olhar fraturado e um pouco de tudo no sangue. Na linha do progresso, ele disse algo um tanto incoerente. Sobre um tal baile de carnes. Percebi um golpe de pequena solidão naquele gesto. Iniciei, então, pelo gosto dos conceitos impossíveis, uma conversa poética, para mudar de prosa: - Descobriu, Memória, o que é…? – sorri para nosso medo. - O que é o quê, Panta? - O que é a literatura? – completei. O gesto de pequena solidão se desfez. Após alguns segundos, Memória compartilhou o sorriso e respondeu baixinho, com medo dos policiais de ideias: - É uma faca pontiaguda, Panta. - Uma faca pontiaguda? – perguntei incitando o novo no eterno. - É, Panta, uma faca pontiaguda abrindo uma fenda na realidade! – respondeu sorrindo. Enquanto entornava o copo, reconheci a necessidade e a beleza do vagão do Acaso. Muitos contos se passaram naquele quase. O rosnar do meiaonze me fez lembrar, Albino! O terror de ser capturado pelo terrível crime de conversar em grupo, ou, pelo crime mais abominável de viver. Memória, sutilmente, percebeu o cincoprasdoze me perturbando e disse aquilo que eu queria ter fotografado… À sombra, à luz, o Negro entrando pelas fissuras da cidade velha, e continuamos, às gargalhadas. Memória recordou meus rabiscos poéticos da 14

última folha do Dança Imóvel. Tecidos no grafite do tempo da velha casa dos estudantes por nós compartilhada. Aquela das histórias enraizadas nas argamassas da alma. No contratempo do gesto descuidado do garçom, Memória pôs-se a recitar os riscos: Deixarei meus registros Em poemas esquecidos Entre Scorza e orgias dionisíacas Que guardo em gavetas sem maçanetas que nunca serão abertas e descobertas O garçom sorriu, encheu os copos e disse com típica expressão facial: hêiii. E nós, em uníssono, respondemos de volta com um pouco mais de intensidade: hêêiiiiii. Dialetos boêmios inscrevendo a eternidade do momento. O tempo aberto e descoberto. E não é que o filho da puta do Memória abriu as gavetas! À sombra, à luz, o Negro entrando pelas fissuras da cidade velha, e continuamos, às gargalhadas. Nossas costelas estavam quebradas quando à nossa mesa chegaram salmonelas pululando das mãos sebentas do infidofinito Teutônico. Olhei o cão em meu braço. O meianoite já passava das duas. A onça lá fora já rondava, noutro vagão do tempo, estava forjada. Já era. Fiquei. Não fui. Está feito.

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O cano duplo da anarcossindicalista

Não que eu estivesse tão incomodado com o fato em si. As plumas do meu travesseiro continuam confortáveis. A merda é a memória da quebra de critérios. Além do mais, o céu brindava sempre comigo. Só depois disso as pálpebras fechavam a visão na hora do desfalque. Mirar. Pow! A vida resignava, mas com pulsão. Sentia, por vezes, ser o intangível. As regras comigo sempre foram claras, não topo: primeiro, crianças; segundo, velhos; terceiro, escritores; quarto, anarquistas; quinto e último, gente com urina de cheiro agradável. Descobri, tarde demais, a falta de um sexto critério: não trabalhar pra um amigo. André recorreu aos meus serviços. Fechamos a certeza nos quatro primeiros critérios, faltava o último. “Um puto como você não pode ter critérios, vai lá e mata”, André bruto como sempre me disse isso. Não sei, posso não ser polido, mas acredito ainda no amor. O cheiro doce de urina lembra o amor de minha mãe. Quando criança, ela não sabia, mas, de olhos fechados, eu ficava esperando ela chegar. Entrava devagar, deixava os saltos do lado de fora para o assoalho não ranger; abria a porta do banheiro e mijava. De lá, e com ela, vinha o cheiro doce de sua urina e um beijo. Era depois desse instante que eu dormia. Hoje me recuso a matar quem mija doce, por isso. Quem mija doce tem amor no coração. Acho que foi o amor de minha mãe que me fez criterioso. E, talvez, daquele velho anarquista que, de quando em quando, mijava um cheiro ébrio trazido das agruras do mundo. Um velho que vivia para organizar os trabalhadores de sua fábrica para não trabalhar. Nunca entendi isso, mas aprendi a aceitar o modo de ser do pai, vislumbrando o andar cambaleante dele, ao sair do banheiro, com aquele cheiro forte no ar em plena madrugada, para lustrar o revólver guardado em cima do armário. Na época, eu pensei que o efeito do andar era causado pelo ímã instalado na arma anarcossindicalista (ele sempre falava essa palavra a qual associei em certa altura à arma) e outro instalado na sua cabeça por detrás das ideias mirabolantes. André me colocou numa forca feita de memória. O pior é que eu atirei, e veio a tormenta da forca. Estou pendurado na forca de memória e não estou 16

mais conseguindo matar para morrer. O tormento da forca é uma fotografia da família reunida em preto e branco com bastante ruído e gritos abafados nas expressões faciais. Vejo, da esquerda para a direita, o anarquista, a puta, o metido a escritor, minha vó com meu sobrinho nos braços e eu olhando para o revólver no armário do pai. Evidentemente, o meu olhar não pode ser decifrado por todos que olham a foto, pois, para poder me ver de frente, o olhar da foto devia ser o olhar do cano da anarcossindicalista em cima do armário, ou pelo menos próximo ao seu ângulo. Essa é a fotografia que não podia ser revelada. E só o fato de matar alguém com essas características, eternizadas no ruído do negativo da fotografia, revelaria a foto um tanto guardada e seu núcleo esquecida numa gaveta da memória. O critério é a fotografia. Porra, o André me fodeu. Por que ele não conseguiu decifrar nos meus olhos esse sou matador de aluguel criterioso por amor? Na verdade, a culpa é minha. A porra é que não aprendi a dizer não para um amigo. Hoje vejo a necessidade de um sexto critério: não fazer o serviço para um amigo, nunca. Logo o Malatesta não imaginava. Acho que é coisa velha do amor deles, dessas que vêm desde a juventude. André também é daqueles que havia muito usava as anarcossindicalistas, mas pelas mãos dos outros, no serviço sujo de sua empresa. Mas, também, sempre teve ódio de Malatesta. O amor e o ódio sempre nessa dança dionisíaca. O problema é que ele é esse metido a escritor na fotografia encardida na parede da memória e, além de tudo, era e continua sendo amado. Foi ele, inclusive, que me ofertou os primeiros goles de esperança. Declamava um poema retirado do bolso esquerdo de sua camisa: nem pátria/nem patrão/o Estado rouba o pão. E quando descíamos a Alameda das Acácias cantarolava: Vila esperança, foi lá que conheci Maria Rosa meu primeiro amor. Como poderia matar o Malatesta, caralho? “Um puto como você não pode ter critérios, nem coração!”, rangia bruto no meu ouvido André. Talvez o último critério eu tenha criado para não ter que matar alguém que representou um vazio preenchido em minha vida, mas o André foi logo me pedir pra fazer isso. Como matar um homem que me ensinou a ver o significado das sombras? Como, por outro lado, não matar para um homem que sugeriu minha profissão ao me apresentar para seu Orlando Vizzini, depois que aquele general filho da puta chamado Pancrácio fodeu com meu pai e minha mãe, naquela noite em que lhe bati a porta pedindo uma cama quente, um prato de comida e um emprego? 17

Fiquei mais transtornado ainda quando Malatesta me ligou naquela noite e me fez um pedido sem saber de nada. Confesso que não gostava quando André me chamava de “puto”, só porque não tive a capacidade ou habilidade de ser um sindicalista nem um escritor. E depois, minha mãe para além de puta (e qual era o problema disso?) era minha mãe da urina doce e do beijo de boa noite, porra! Cabe-se um respeito que André desconsiderava. Na agonia dos pedidos, recordei a voz de mamãe no café cantando para me acalmar: Non... rien de rien...Non... je ne regrette rien…Ni le bien qu’on m’a fait, Ni le mal - tout ça m’est bien égal!. Emaranhados de cheiros, sons e memórias pululavam no tambor de minha cabeça, ora me tranquilizavam, ora me atormentavam. Tomei uma resolução. Marquei um encontro, na Alameda das Acácias, com os dois. Eu fiz, atirei. Como poderia deixar de ouvir o Malatesta? E seu pedido? Percebi que a vida é uma anarcossindicalista de dois canos mirados em uma única direção. É impossível ficar na sombra de uma fotografia, pois a fotografia é a própria sombra. É imprescindível escolher a direção do cano. De um lado André, do outro Malatesta. Eu fiz. Eu atirei. Agora, mesmo assim, sou enforcado pela memória de uma velha fotografia que tem cheiro de urina doce.

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O Velázquez de Danúbia



muito tempo tento sair dos limites desse quadro pintado por

Danúbia; por culpa do silêncio, no entanto, permanecia enxergando esse quadro absurdo. Depois que ela se fez cores no chão ao redor do prédio do apartamento sinto como se minhas costas fossem uma carreta, afundada no asfalto quente, pesando setenta e nove toneladas de silêncios. O Grito pintado no chão como autorretrato em cores vivas foi insuportável. Preciso pintar outro Pancrácio, outro quadro, mais verossímil. Agora, a luz da luminária denuncia que o velho Pancrácio ainda se encontra no andar intermediário. É hora de esvaziar a minha carreta, de sair dos estranhos limites do quadro moldado por Danúbia. Hesitante, topei no primeiro degrau da escada a caminho do mezanino. Cambaleei e, de relance, à procura do equilíbrio, dei com a mão em cima do bigode do Velázquez, primorosamente pintado por ela, no quadro pendurado a minha esquerda. Eu tenho que contar tudo a ele, ao velho nojento, o que vi, o que sei. Comecei a subir a escada como se eu fosse um gato, delicado e arisco, medindo as curvas do desequilíbrio do silêncio para fugir do medo. Mas a coragem é uma ponta quase invisível no meio do imenso mar do medo. Titubeei, estatelei, lembrei, três longos passos eu havia percorrido, pareciam quilômetros de pensamentos. Percebi que minhas mãos apertavam com força meus dedos, que suavam. Será que devo? Meu coração parecia coberto de gelo. Um náufrago no Amarelo do medo. Com ódio, opróbrio. Como começaria o diálogo? Eu me perguntava enquanto pensava em alguma frase poderosa como das placas do caminhão do velho.

Mas nada, estava afundado no asfalto quente com o

tortuoso silêncio censurando as palavras. O caminhão do velho Pancrácio pode até ter a força de mil novecentos e sessenta e oito cavalos, mas sua carreta não pode suportar um homem derramando um silêncio de setenta e nove toneladas de pútridos sujos oriundos de seu bigode. A escada é como o sinuoso aclive do tempo esburacado. Em cada degrau, um buraco; em cada buraco, lembranças; em cada lembrança, silêncios sujos; e em cada um desses emergia do fundo Danúbia. 19

“Bia, meu amor, não demora!”. Mas já vão anos nesse vão entre um degrau e outro. “Núbia, sei que é difícil, mas...!”. A escada, o degrau. A coragem parece se esvair. Ninguém foge do passado. Ele carrega a fotografia do tempo na fase mais pesada da existência. Olhar pra trás é como olhar pra trás pelo retrovisor do caminhão de Pancrácio. O olhar Monalisa de Danúbia nos acompanhando o tempo todo. Mais um degrau, mais um buraco. Neste vejo As meninas de Velázquez. A família tentava fazer de Núbia uma Margarita Teresa do rei Felipe IV, sobretudo, pela luz projetada pelo velho. Pancrácio era o Velázquez desenhando essa Danúbia; ao fundo na sombra, eu era o camareiro Dom José deixando um soslaio enquanto subia essa escada e não sabia. “O tempo é um Velázquez perverso, Pancrácio. Ele muda a perspectiva e redesenha as coisas trocando as luzes e as sombras.” Essa não seria bem uma frase de traseira de caminhão, reconheço, mas poderia começar a descarregar o silêncio com ela. A cônica luminosa do mezanino perfaz, parece, o espectro de Danúbia. Subo mais um degrau. O tempo é mesmo esse poema de amor e ódio deixado nos muros de Pompeia. O reflexo do retrovisor mostra um passado infinito, como um deus, o mais triste. É preciso enfrentar o olhar de Velázquez atravessado no olhar de Teresa. É preciso deixar de acreditar no imaginário deixado no aço do retrovisor por Danúbia. Como ela pôde pintar um Pancrácio daquele jeito depois de receber à força uma carga de sua sujeira? O presente também é pesado. Insisto em fazer desses degraus vãos eternos. Sei que eles só são vãos. Sei que um vão é uma caverna de muitas gargantas. Preciso vencer a solidão do Tibre, mamar na loba, matar meu medo. Revigoro a coragem. “Pancrácio, esse vão é a chave pra mudar o mundo!”. Bem que posso começar assim, contundente. Desviar um pouco o foco para no fim quebrar o silêncio de setenta e nove toneladas. Mas como suportar a presença imponente de seu bigode? O mesmo bigode sujo pelos desejos da estrada tão bem camuflado na pintura de Danúbia, que de maneira amável redesenhou como o de Velázquez, tentando aproximar distâncias, mas a arte não conseguiu esconder as sujeiras do tempo. Danúbia, irmãzinha besta, como 20

podia enxergar Pancrácio daquele jeito? Entendo seu fascínio pelo Velázquez, mas projetá-lo num bruto general nojento disfarçado de caminhoneiro, depois de tudo aquilo? O

último

degrau

ficou

mais

íngreme

com

a

proximidade

e

verossimilhança do espectro de Danúbia projetada pela luz da luminária no mezanino, ou, pela luz pesada do meu silêncio, talvez, não sei. Não há mais chão que suporte o peso da carreta, o asfalto cedeu para um abismo. Que tal ser direto e incisivo: “Pai, sabe aquele dia da Danúbia?”, começo a pisar no último degrau, “pois sei o motivo de ela ter feito aquilo”, bem ao fundo num canto está o velho sentado ao lado da mesa com a luminária, “a luz também ofusca, pai!”, alcanço o mezanino, o silêncio adquire oitenta toneladas, mas a força da presença do bigode é tão absurda que não consigo dizer nenhuma dessas frases agonizando em minha cabeça; no entanto, como que para dar certa leveza ao meu silêncio, algumas palavras escapam: “Sabe aqueles olhos graúdos à espreita no chão avermelhado depois do pulo do prédio?” – ele assustado levanta a cabeça, e continuo antes que eu veja o seu imponente bigode de frente: “Os olhos de Núbia, pai, pareciam os velhos olhos graúdos da avó Francisca...” – ainda de costas, antes que ele virasse, terminei de descarregar o que deveria ser pintado: “... pude ver, pai, no espelho das pupilas de Núbia, a terrível imagem do senhor que ela não conseguiu pintar em vida, um quadro sujo e nojento com dejetos pútridos do tempo em seu bigode” Segurando o cu na mão e com o coração na boca, consegui encarar o Pai de frente sem pintura alguma pela primeira vez. Ao cabo, esperando uma reação violenta, espanto-me, no entanto, com o que vejo. Ao me olhar, sem pronunciar uma palavra, inesperadamente, como se fossem lágrimas, os filetes do bigode do velho Pancrácio começaram a cair.

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As transfigurações de um tempo imóvel

Quando fui levar a carta pro meu irmão que fazia dois anos estava em Manaus, estudando na Escola Técnica, vi o rosto de jovens afixados nas paredes externas do correio. Não entendia o significado da palavra: PROCURA-SE, parecia com os desenhos animados de bangue-bangue a que assistíamos na TV do seu Lico. Aos dez anos, aquilo era mais um mistério. Em casa ninguém sabia me responder. Mamãe apenas dizia: “Meu filho, uma criança não deve se preocupar com coisas estranhas”. Aí que tudo ficava confuso em minha cabeça de menino. Cinco meses que o Carlos havia sumido. E nós nos perguntávamos pra onde. Os outros colegas do futebol diziam que ele tinha ido servir no Exército. Nem sua mãe dava notícias dele. Tudo que fazia era, após a missa do domingo, ir chorar lá no cemitério. Diante do caixilho de seu marido, o professor Tomás Meirelles. Até hoje a cidade se pergunta: por que aquele homem distinto teria um fim tão trágico? Qual o motivo de ter se enforcado em seu próprio quarto? Nem os policiais conseguiram desvendar esse mistério. Certa vez, quando fugi para pular n’água lá no trapiche, ouvi o Beiço-demoça-branca dizendo a outros estivadores que o professor Meirelles era vermelho. Fiquei com medo de perguntar o que isso significava pro papai. Ele, com certeza, iria querer saber onde eu teria ouvido aquilo. Guardei por muito tempo aquela dúvida. Foi essa fotografia que me fez voltar. Há o registro da data no verso: dezesseis de julho de 1969. Era o dia da Santa. Olhando pra ela, me vêm ao ouvido inúmeras vozes, em uníssono... Flor do Carmelo É alegria Salve! Salve! Maria 22

Salve! Salve! Maria As lágrimas e os pés descalços de paixão anunciavam a chegada do andor e da gente, sacros. Da imagem brotam suas transfigurações irreais: um céu no entardecer. Um sorriso tímido de menino de dez anos de idade sobre um cavalinho de pau. Seu pai carregando pipocas e guaraná em mãos fortes de quem trabalha no pesado o dia inteiro. A mãe ainda jovem em seu vestido novo, esboçando um instante eterno de alegria. Os irmãos num sorriso largo. Caminhamos da casa até o arraial de Nossa Senhora do Carmo. Foi lá que papai chamou o Sócio pra tirar esse retrato: recordação daquela infância imóvel. Fiquei muito feliz quando, dias depois, ao redor da mesa no almoço de domingo, celebramos aquela imagem, já no álbum da família. Quanto ao Carlos, lembro-me bem. Naqueles anos, mesmo sendo muito mais velho que a gente, parava para jogar no gol. Costumava carregar, debaixo de braços franzinos, panfletos, sempre bem escondidos, os quais distribuía na frente das escolas, e um livro, cujo nome do autor certa vez me esforcei pra ler, mas não consegui. Nunca vi nenhum nome parecido na biblioteca da escola. Depois de muito tempo, eu iria saber que se tratava de Maiakóvski. Entendi também que a poesia era a grande paixão daquele jovem que um dia optou em torna-se um guerrilheiro.

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A merda do mundo

Tudo se abriu em cor, mas ainda não era tempo. O silêncio, espelho invisível da dor, recuperou um tempo nos olhos fechados do meu amigo. Um mundo se fechou. Aquele quando arregalados os olhos. Outro se abriu no escuro das lembranças transitórias. Sabia que, mas o fez, era proibido abrir as fendas, mesmo aquelas localizadas na pausa da memória. Logo a Voz Imensa entrou em seus ouvidos sussurrando ferozmente para abrir, paradoxalmente, o negro de suas minúsculas pupilas. - Que bosta, Argemiro, eu ter deixado cair... a chave no buraco da fechadura. Ele não parecia preparado para ver cores além do preto e branco das maquetes. O colorido da realidade perfurou e torturou Maro; derrocou seu ordenamento jurídico. Violência, diria ele depois, correndo o tempo, é quando a chave de um mundo se faz fechadura de outro; destrói-se tudo. Por isso, hoje, é o dia da celebração da data mais importante no calendário de Maro, uma cidade sem mármores, com muitas pedras forjadas ao papelão. Depois da primeira desaparição, ele fundou a data oficial contra a intromissão absurda do mundo na cidade-mundo. Maro surgiu justamente como soberania da presença, do palpável, do concreto, como um peso de porta para a porta ilusionista 69 do mundo. Neste dia, os dedos da mão firmaram, como ato, um cortejo dos habitantes que ainda possuíam condição corpórea em Maro, com uma curiosa dança caminhante, enquanto percorriam até o edifício de papelão, hibridizado, na performance do estilete, com um corpo sólido de isopor, da Presidência da República. Nesse momento, jorraram do céu sem nuvens, ao mesmo tempo, água e pétalas de areias, de forma programada, a cada segundo. Quando chegaram, então, ao poderoso e soberbo prédio presidencial, os marosianos desenvolveram a parte mais importante da cerimônia mítica do grande dia: Todos eretos levantaram a mão esquerda no ar, num instante, sincronicamente, como se fossem inúmeras vozes, serraram os punhos. A Voz Imensa lhes proibiu que falassem. Mas restavam-lhes os gestos.

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Antes não era assim em Maro. Não havia penetração da Voz Imensa, nem ilusionistas do Desaparecimento, não havia palco para a amarga magia do sumiço na cidade forjada pela brincadeira de nossas mãos no orfanato. Pois ele, na época, queria de qualquer forma se transfigurar num marosiano, e não num deus. Até o dia que, desiludido com a possibilidade, deixou Maro uns dias de lado. Quando, mudando para a casa dos tios, percebeu, aterrorizado, a Ausência presente também em Maro. Era dado o dia que os malditos ilusionistas, guiados pela Voz Imensa, colocaram suas mãos na cidade-mundo. A data oficial da celebração, então, entrou em vigor com um forte choro dele, e o meu choro-silêncio, em ecos lutando para romper a ligação dos dois mundos, este e a cidade-mundo; a ligação tomou, no entanto, um caminho duplo. A partir daí, os olhos tiveram que enxergar os fortes feixes da colorida luz saída da boca-claraboia da Voz Imensa do mundo. - Argemiro, meu amigo, como podemos ainda brincar com Maro? Perguntava-me aflito, naqueles dias. Após o fim da cerimônia desse ano, ele veio à janela desse outro mundo. Foi quando o mar passou a seduzir, fazer parte da vivência, as metamorfoses dos dias iriam ser apreciadas. O céu, alvo, azul, as nuvens. E os... ... vermes nascidos para formar angélicas borboletas,... Amarelas voando como bolhas, brilhando as íris de jovens. Outro após outros. De súbito voltou, fez uma curva na dança das cores. Na mesinha tudo era branco em pontos de preto. Esse colorido parece impossível e insuportável, sempre o foi, desde que a Ausência atingiu seus pais. A entrada dos pais na caixa do Desaparecimento executada pelos ilusionistas foi o motivo da existência de Maro e de nossa amizade. Seus olhos, a partir desse dia, formaram um zíper fechado lacrando e ferindo a pele da realidade. Causa, talvez, dessa terrível doença curiosa e ambígua, que fez surgir a criatividade e a dor. Num primeiro momento, manifestou-se com um fechar de olhos para o mundo, e um abrir criacional de outro: Maro. Por isso, o refúgio; preferia o preto e branco que ele criou com isopor, pedaços de papelão e outros apetrechos encontrados no orfanato, antes de ir morar na casa dos tios.

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Maro, no início, era a cidade–mundo perfeita para ele, porque instituiu, a partir do Conselho Criacional formado por nós, três únicas leis, que as considerou pétreas, para reger o microcosmo: 1- Não haverá nunca Desaparecimento em Maro. Não existirá essa palavra, portanto, essa prática. Reinará na cidade-mundo a aparição; o aparecimento; a permanência; a presença perene das coisas e, sobretudo, dos habitantes dela; 2- É proibido, terminantemente, a entrada, ou o surgimento, de ilusionistas; 3 – Todos os habitantes de Maro serão felizes. As três leis funcionaram perfeitamente durante o primeiro ano de Maro. Era tudo em tom branco e preto. Era um reduto de sombras. Somente depois do dia da celebração, e, quando ele descobriu, no rápido correr do tempo, que pétrea era o cu do mundo que pode deixar de sê-lo com um simples Balé no Pedregulho, foi que Maro divulgou a sombra como um reduto de inteligência. À sombra, ele produzia o chá. Tomava e via o preto esfumando o branco. Iam, os habitantes de Maro, comandados por ele, em passos diáfanos às festas no Paço. Tateando as fissuras do outro mundo. Amando os prazeres desprezados por aqueles. Nesse passado disperso e recente, ele encontrava empatia brincando. A brincadeira era uma arma quente. O jogo era o fazer mais sério, e temeroso, para aquele mundo colorido fora de Maro, para qualquer menino ou menina. Os lábios ficavam pretos de tanto construir jasmins de sobra de lápis que tonalizavam as praças de Maro. A brincadeira se forjou luta não mais para fugir da lembrança dos pais; mas, contra a Ausência e a Voz Imensa. Por isso, o dia da celebração, o rito, o ato e os punhos serrados dos habitantes de isopor de Maro pela perenidade da permanência. Na casa dos tios, a lua se transformou em esfera de aço e sempre brotava à noite. Na escuridão, tecíamos, ao redor das mesas, um retalho costurado a mãos com poesias coletivas, a partir dos “Procura-se” e dos nomes das folhas de jornais. - Argemiro, lembra como era antes de existir o dia da celebração em Maro? Perguntava-me. Deixava desabafar. Mas a Voz surgia: - Não! - Deixa-o falar, Voz Imensa filha da puta! 26

Da força de minha invisibilidade ela se calava ao pé do seu ouvido, então, ele podia continuar: - Fazíamos questão de deixar a caixa fechada. Não abríamos ao mundo por nada. Argemiro, tu sabes muito bem o motivo. Tivemos que abrir a caixa, mostrar Maro ao mundo, depois daquele dia de merda. A merda do mundo para o mundo de merda. Desculpa, mas hoje não é dia de chorar. Vamos já preparar os habitantes de Maro para o cortejo. Mas, antes, devemos rememorar. Lembra como era formidável nós dois ao redor da mesa construindo Maro?

O mar noturno, as pedras, os poucos habitantes, o

calendário, as praças, as sombras, o preto e o branco e a lindeza da permanência dos habitantes? O silêncio encontrado em cada canto? Nossa fuga, nossa cidade e nossa cumplicidade? Que bosta, celebrar esse dia; mas, por outro lado, Argemiro, eu ter deixado cair a chave, abrir a caixa, revelar Maro ao mundo, fez com que a celebração entrasse no mundo. Promete uma coisa para mim caso eu desapareça do mundo também? Pensa, faz a História de Maro. Não deixes o Esquecimento, como agora cobrem papai e mamãe, entrar também na cidade-mundo. Por favor, meu amigo, por favor. Maro, desde quando ele deixou a chave cair, caminha pisando em uma linha finita, escatológica, em busca de Parúsia. Nas escolas as novas gerações aprendem que haverá um fim e que há cores no chão. Que as pedras são partes fixas e sólidas, estáticas sem tempo. Os prédios não têm vida e as janelas estão proibidas de revelar os segredos que os olhos tateiam quando invadidos por sombras. Na última cerimônia da data oficial de Maro contra a Ausência e intromissão do mundo feita pelas mãos dele, os habitantes da cidade-mundo, além dos punhos serrados, começaram a registrar com sangue nomes aleatórios de ilusionistas, descobertos através de raros jornais, na parede do prédio presidencial de isopor. Ele esperava descobrir, depois que surgiu o dia da celebração, o ilusionista que fez, ouvindo a Voz Imensa, seus pais desaparecerem. Acreditava que era preciso registrar os nomes nos muros de Maro, para isso; não encontrou, no entanto, o ilusionista responsável. Foi então que, puto da vida, nomeou, através dos marosianos, a data oficial de quando a Ausência adentrou Maro como A merda do mundo.

Hoje, enclausurado na

multidão, ele carrega a esperança nas reminiscências de Maro antes do dia da celebração. Tenta recuperar a caixa perdida quando deixou cair a chave do 27

tempo que o Tempo insiste em esconder no fundo da memória da Voz Imensa. E, não sei se ele anda sabendo, mas dizem, por aí, as firmes vozes pequenas, que Pancrácio é o nome do filho da puta do ilusionista que enfiou seus pais na Ausência.

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O baile das carnes A

carne se fez homem. O homem se fez carne. Nessa alucinante dança

de um deus na História, alguns homens, percebendo a vibração da carne como prazer, fizeram-se exímios classificadores. No quadrado do meu espaço, antes sombrio, foram improvisadas festas nababescas, com direito a muitas risadas bifurcando a dor ao prazer, os soluços aos gemidos, orgia plena e completa. Num deles aconteceu o Grande Baile das Carnes que testemunhei. A multiplicidade de vozes desses classificadores continua ecoando dentro de mim, um corpo impresso de registros sonoros iguais aos grafites, destes que ficam na invisibilidade à espera de uma objetiva que possa revelar ao mundo as cores do Tempo. Graves sons à memória na audição de seus protagonistas. * Arthur: outro dia saído do apartamento, resolvi deixar de lado essa vida de camaleão. Fui ao açougue mais próximo e pedi um quilo. Veio rosada, tinindo de cheirosa. Pus na pedra, peguei o batedor e, após uma repetição de golpes, verifiquei a maciez. Adicionei, ao processo, pimentas verdes, vermelhas, quentes como um cu desejado e jamais degustado. Mas aquela ali, suculenta, era minha e chiando, ao fogo. Senti-me um verdadeiro chefe. Furei-a qual maduro furando figura jamais fendida. Com os dentes rasguei. E ri, ri, ri, muito. Farofa, misturada com olfato, cheiro de pele suína. Como fosse 88, sua tradução no molde rijo, fitei o suor, porra, saladas jamais! Agora seria somente carne, no preâmbulo de peles. Foi assim que adentrei no baile, que eu orquestrava de fora ouvindo a Voz Imensa. No baile das carnes. Entre seios, pimentas e cus, araras cantando enroscadas no pau. À carne dura são necessários choques para melhor amaciar, quando não umas queimadas com bituca de Hollywood. Mordi meu prazer até o último limite vendo a língua tentando sodomizar a mordaça. Quando olhei pra baixo, percebi uma lágrima brotando de minha virilha. Pancrácio: era sonsa e riu, riu, até demais, a carne de que mais gostei. Não quis falar, assim aumentava o prazer. E pensar que um dia, ontem, eu era 29

vegetariano. Verde somente depois do vermelho. Mesmo que tenha, às vezes, um cheiro de morte, gosto de comer carne viva. Detesto-a morta, por isso falarei somente uma vez dessa terrorista de nossas vidas. Tão moça, normalista que fosse. A expressão em sua face revelou o ódio e gritava feito aquele pederasta preto de outro dia. Foi um prazer ver minha garrafa com minha urina quente em sua boca. Ver os fios fazendo dançar os mamilos da colegial. O Não sei não saía mais. Eu já não sabia mais como lancinar aquela pele negra e quanta água eu tive que salivar vendo o bater de seus dentes. Gozava de prazer, na cara da carne, assistindo ela chupar a Mamadeira de Subversivo. Não há melhor carne que a carne filtrada na urina. Fleury: o baile prometia; o cheiro da carne convidava. Quero, além do cheiro, a carne da carne. Mordiscar, chupar, saborear, morder macio para depois morder agressivamente, agressivamente invasivo. Bituca na buceta. Sou radicalmente carnívoro. Descobri depois de mordiscar Esther. Foi Esther que me transformou num classificador sofisticado. Primeiro olho dos pés à cabeça; depois, com os meus dedos longos, vou medindo palmo a palmo, antes preciso cheirar; mas também observo os orifícios, tenho fissuras por todos, principalmente, aqueles que o corpo feminino revela; mas o masculino também tem seus segredos, descobri depois. Esther, com esse “h” no meio, eu, voraz à plena voz, vamos para a perdição, quer dizer, vou, vou e fico alhures, há muito, muito vivo porque sei e aceito Esther metamorfoseada de carnes revertidas de choros e cores, sangue e odores de esquina. Carne sucosa preparada para assar. Quem não gosta de uma maminha? O perigo, solícito de agora, desprovido de depois, me enche de coragem. Vou, vou e vou viajando pelo céu de Esther. Sou esse “h” abrupto dentro de sua estrela que dança, grita, canta essa tal de revolução. Rá, rá, rá. Revolução é a Cadeira do Dragão! Deixa a carne que é uma maravilha. Esther, Esther, Esther. Todas as carnes hão de ser Esther. Todos os seios suados, Esther. Todas as pernas, Esther. Mesmo se for Sheila, Aline, Bruna, Ana, há de ser Esther. Algumas mais Esther que outras, mas sempre Esther. É, deixei de lado a vida sem carne; mas, na verdade, há vida sem carne? Esther, a carne da teologia da libertação, ensinou-me: o baile das carnes é vida. Ailton: fui ao baile porque me prometeram um vitelo. Sou um classificador que não me recuso a comer carne macia, tenra e clara. A carne, 30

antes da contaminação vermelha, é garbosa. Não precisa de muito abate, basta uma bituquinha aqui, outra ali, para verificar a qualidade pela vibração das cordas vocais. É um ótimo ingrediente para transfigurar a qualidade da carnemãe ou da carne-pai. Por isso, sempre prefiro convidar mais um exímio classificador para juntos absorvermos todas as carnes de uma família. Há alguns classificadores com pudor ao uso de vitelo; são poucos, mas há. Rá, rá, rá. Rimos, rimos e rimos desses, então colocamos logo um vitelo na mesa, bitucamos, e pronto, basta a carne-mãe do outro lado berrar, os classificadores cristãos começam a salivar como cães com fome, e lembram do prazer inequívoco e inesquecível das carnes. Quanto mais alto os berros melhor a carne. Se for de primeira o som é insuportável; mas, ao Telefone, minhas mãos falam nos tímpanos quase surdos de Vésper. Então, tornam-se bem-te-vis inauditos com a mesma carne de um leão ensurdecedor. Ednardo: sou um classificador romântico. Gosto de massagear a carne com leveza. Participo do grupo que acredita que para a carne ficar macia deve morrer feliz. Por isso, quando minha exímia massagem não surte efeito, como acontece, às vezes, com algumas carnes, pego a seringa calabouço e injeto o Soro da Verdade. Sem inibições e com sonolência, a carne solta logo as histórias e as fibras vermelhas mantendo apenas o que há de melhor. Sempre ocorre, no entanto, os contratempos da técnica. A morte infeliz de algumas carnes fracas antes do processo completo; mas, mesmo assim, sempre as colocamos na mesa do baile. Albert: com o talher de prata eu corto e classifico as carnes mais nobres. Na Dinamarca aprendi bons hábitos. Vim para o Brasil vender gás (mas acabei me entrosando com os classificadores). Um trabalho árduo. Mas havia as horas alegres no final do expediente, espécie de terapia da ocupação. Meus amigos elmos, como o grande Ulstra, apresentaram-me os clubes de dança, inferninhos sofisticados. Eram fantásticos. Ali eu conheci inúmeras belas da tarde, eu vi mocinhas de pele branquinha, lembrando minhas amigas do leste europeu, na pista de dancing rebolando, freneticamente, como quem havia saído de uma geladeira. Jogos insólitos revelavam verdadeiros campeonatos excêntricos de sedução: encapuçadas, elas eram mergulhadas em recipiente com bebidas quentes; depois, eu e meus amigos perguntávamos: com quem você quer ficar, com o rapaz de azul ou de vermelho? Confesso, sem falsa modéstia, meus 31

olhos me ajudavam. Mas eu não me iludia, meu dinheiro e status de empresário do gás abriram muitas portas. Naveguei muito nas águas que surgiram das chuvas de março. Pau, pedra, fim do caminho, para mim? Jamais! O Brasil ficou outro. As festas melhoraram. Até as meninas, duronas, se abriram, gemendo e gritando.

Afoguei as mágoas como um novo rico na

Cidade do Sol.

*

As vozes cimentam minha memória. Assim, foram muitos bailes de carnes em suas várias edições. Da 69 à 74. Meu amigo El Moroco, por exemplo, contou-me que os bailes de lá ferviam. Por outro lado, minha amiga Night in Day dizia que baile bom era baile gelado. Já meu querido Casablanca falava, em alto e bom som, que baile bom é baile com merda. Gosto é que nem cu, cada exímio tem o seu. Centenas eram os exímios classificadores de carnes. Hoje, penso que só existia um exímio classificador de carne. Na verdade, era uma exímia, de onde uma Voz Imensa surgia: a Hidra de Lerna à brasileira com mil cabeças. A dona do baile das carnes. Por sua causa, estou desmoronando no Tempo e preciso retirar e registrar as multiplicidades de vozes de dentro de mim. As pessoas passando pela rua em que fico localizada não imaginam como o meu corpo, agora na escuridão de um lugar vazio e trancado à memória alheia, guarda em sua pele as marcas de relatos tão festivos e saudosos de um Tempo em que ser classificador de carnes era uma profissão honrada. Naquele tempo esses meus amigos, carinhosamente, chamavam-me de A Casa da Vovó.

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A fenda e as pedras

Nunca imaginei morar com Ana e as pedras. A peculiaridade de nossa casa não era somente as pedras, mas nossa relação com elas. Quando a pedra de Ana não aparecia, as lâmpadas devoravam o escuro. As portas como veludo abraçavam os buracos das paredes. As janelas, no entanto, amigas confidenciais do vento, à noite, assobiavam segredos escondidos no buraco mais fundo do inferno. Nossa cor era lilás, sua cor preferida. Os gestos de Ana calculavam carinhos. Os carinhos calculavam os gestos de Ana. Até nossas brigas ruborizavam de ternura. Era o nosso singular clichê dentro de um outro clichê. Até que um dia aconteceu o ontem. O ontem era a pedra de cor obscura que, de tempos em tempos, fazia-se instante. Estávamos na sala, às gargalhadas, quando, sem aviso prévio, em uma das últimas ocorrências, entrou o instante: - Hijos de puta! – Ana gritou levantando do sofá. Tudo então era pausa. E ficou assim por longos segundos. Mas era mais uma tática. Os gestos de Ana eram calculados. Logo o frenesi continuou como repulsa à pedra. Suor, pele, e dor, amálgamas do tempo inscrito no agora. Palavras desiguais emboladas com gemidos num sofá. Vivemos, graças à onça que invadiu a sala, a esquizofrenia característica do nosso tempo. Não sabia por quê, mas nessas horas sentia o cheiro do verão. Depois, sempre num certo momento, o verão se dissipava. Ela corria para o Bolaño, e eu preferia cozinhar ouvindo Sosa vislumbrando la soledad de Macondo. Hoje, depois da pausa, o frenesi não deu muito certo como arma contra a pedra. Ansiosos, lembramo-nos do presente do Paraguai trazido pelo Leminski. Navegamos no chá.

O chaxixe, como chamamos, abriu para nós o mundo da

fome. Fui à cozinha. Quando cheguei, ri, feliz da vida, de vê-lo. De uma fenda pendurada no ar, perto da geladeira, surgiu Melquíades. Apareceu dionisíaco à procura da pedra. Disse, apontando com sua velha espada, que teria sido transportado “pela luz desta cor”. Disse mais, “o cheiro do chá me atraiu para ajudar a destruir a pedra”. Ela havia muito estava viajando no esquecimento, 33

“desde quando, por um descuido deles, deixaram escapar para a Memória”, soprou

o

velho

raquítico

e

barbudo.

“Corri

perpassando

diversas

temporalidades até que cheguei aqui, mas iria imaginar que seria em meio à cena tão banal? Esperava que a luta contra a pedra fosse algo especialmente mágico. Mas, pensando bem, não há nada mais mágico como a banalidade mundana da paixão, qual o flash explosivo de um coquetel”. Depois aquele velho, aparecido do Nada e quase completamente nu, desapareceu no Nada deixando a lembrança de sua espada em punho, nas costas uma capa tingida de estrelas lilases num fundo preto. Roubou-nos uma pedra. Depois de horas de sua preleção sobre o segredo do amor, fez-nos dormir. Quando Ana despertou, sentiu que ainda tinha uma pedra por ali e berrou: - Mierda! Tudo então era pausa novamente. Como combater a pedra com a paixão fundamental do ser? Não houve frenesi dessa vez; nem suor e pele, só dor, uma dor silenciosa. Ana começou a cantarolar um ponto, feito pombagira, depois um samba embatucado sobre o 2666. Parecia procurar no calhamaço a pedra obscura. Não obteve êxito, depois voltou da estante com o Noturno do Chile na mão. Na cama, pareceu fazer uma oração raivosa para o padre Urrutia Lacroix, pois, como uma crente encolerizada, gritou, abrindo outra fenda numa bruma lilás no ar: “su tormenta de mierda era su silencio, escuchamos su silencio de mierda, su silencio un tanto empañado!”. Nosso lilás é uma composição de cores leves, fortes, surreais e sujas. Foi em mil novecentos e setenta e três que começou a surgir a pedra para Ana, quando sua mãe, uma militante trotskista, desapareceu em Santiago. Ana queria fazer desaparecer do mundo de qualquer forma o general Pinochet, mesmo sabendo que ele estava preso no Chile. Para isso, tentava utilizar os livros do Bolaño como arma, A literatura tinha que servir para alguma coisa, dizia, depois que leu um poema falando que todas as armas são boas. Mas, hoje, depois das tentativas com os livros, sentiu que não estava funcionando com aquela pedra que permanecia ali. A pedra obscura entrou no instante com maior força.

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O nosso mundo, então, parou. Ana olhou a bruma em sua frente, deu dois passos, lentos como quem espera coragens ancestrais. Cria que um dia isso poderia vir a acontecer. Lembrou-se de sua mãe: cabelos curtos, olhos miúdos e panfletos nas mãos. Aconteceu. Ana desceu no tempo, incrível, por uma luz ínfima, mas uma luz que a guiava. Avançou a densidade da bruma, e, pela fenda, viu do outro lado: Allende estava à beira da morte. Era a anunciação que, tempos mais tarde, no passado, iriam dissipar sua mãe do mundo para tentarem dissipar as ideias. Aproximou-se da casa, diáfana como num sonho, viu uma imagem dúbia. Allende a apontar uma arma contra si próprio e, simultaneamente, pela janela uma boina militar apontava uma arma para Allende. A segunda imagem era mais forte; a primeira lembrava uma lembrança. Depois dessa imagem viu um corpo feminino em frangalhos cheio de marcas e vísceras de uma história de luta pelo tempo. Então, gritou desesperada: - Noooo! A fenda se fechou. Deixou apenas a sensação opressora da presença constante da pedra de cor obscura. Corri para a sala de estar com Ana. Improvisei carinhos que recordassem os outros tons de antes. Ela foi se acalmando e contando a história. Mas sentia que a pedra ainda estava lá. Então, eu trouxe à mesa a comida que cozinhei no dia anterior. Queria de volta seus gestos calculando carinhos. Queria o frenesi, o cheiro do verão, a nossa peculiar Macondo. De súbito, no entanto, vi Ana assustada. Seus olhos fitavam um vulto sobre meus ombros. Pude ler o terror brotando de suas pupilas. Terror e prazer, mesma sensação presente quando Ana tinha vomitado, algumas vezes, sua pedra em outros episódios. Com força, veio novamente o grito do fundo de sua garganta: - Hijos de puta! Chupamos, chupamos, comemos, comemos, cheiramos, cheiramos; em frações de segundo, assustados. A fenda da bruma não tinha se fechado totalmente, consegui ver: era lilás com bordas translúcidas, deixada pelo fuller da espada de Melquíades. Só quando pude enxergar com nitidez, foi que vi, e entendi assombrado, a pedra que persistia. Melquíades não havia transposto temporalidades para ajudar Ana a vomitar sua pedra, ela já havia feito isso várias vezes. O cheiro brotava de mim. A pedra obscura dessa vez é minha. A 35

mim cabe começar a vomitá-la. Urgentemente, do fundo de minha garganta, preciso começar a gritar para poder provocar o primeiro vômito. Tento, engasgo-me, mas sai: - Seus filhos da puta!

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Quando o teu olhar cortou minha memória

Passei

a procurá-lo nos silêncios daquele apartamento com vista

privilegiada para o infinito. * As cores estão gastas. Também já estou aqui há muito tempo. Com ele aprendi a preparar um passo atrás do outro. Agora imaginários, desde quando deixei de sentir minhas pernas. Sei que logo entrarei noutra ausência. A vida é feita disso, aprendi. Como seria conviver somente com as lembranças? Serpentes que aparecem cada vez maiores. Fugidias, diluem de memórias impressas em imagens guardadas em álbuns antigos, baús velhos escondidos em lugares de onde vazam tristezas que brotam do percurso do tempo. Agora como um subterfúgio recorria a esta figura feminina. Ela entrou em minha vida, desmoronada, fiz questão. Fugir de um palco lúgubre, encenar risos, mesmo que tivesse a certeza de que jamais se expandiriam as gargalhadas. Bastava-me aquela juventude inusitada, uma conversa na exata hora de todos os dias. Pelo menos eu fujo de mim. Até quando? Não poderia precisar.

* Nunca pensei ser cuidadora de idosos. Minhas manhãs nunca foram tardes de baralhos. Não sabia manejar jogos para os tempos acumulados. O que é um idoso senão tessitura de tempo comprimido? Tempo que se esvazia na troca de instantes até se perceber finito. Sou cuidadora do transitório. Cuido do tempo no Tempo do tempo das tardes de buraco. Ouço lembranças costuradas no tapete de velhas memórias. Gente que ouve o inexistente dizendo segredos ao pé do ouvido. Pancrácio é o nome do tempo em meus cuidados agora. O acúmulo é acurado pelas linhas de expressão do rosto, esses caminhos sinuosos do Tempo no tempo. Pancrácio, decrépito, meio surdo, e com cicatrizes estranhas pelo corpo, ensinou-me, ou tentou me ensinar, a conhecer certos endereços desse labirinto contando peripécias das rugas. As histórias brotam 37

dos furúnculos impregnados nas linhas do tapete velho como se fossem pulgas gordas de sangue, cheias de vida esparramando lembranças de mortes. Livre como um pássaro, enclausurado na gaiola do velho corpo, Pancrácio deixa as lembranças fluírem, as inventa. Aponta um estigma do lado interno das coxas e diz que as marcas são como os vestígios da existência. Mas aquela não iria retratar em narrativa, iria ficar nela para todo o sempre, levaria para o túmulo. Deixaria no arquivo de sua memória individual, para ele memória coletiva era uma fantasia perversa da Ordem que ajudou a forjar. “Você está vendo isto aqui?”, perguntou... “A memória nem sempre é uma gaveta coletiva para todo mundo abrir, ela pode ser uma gaveta fechada dançando por cima de todos nós, como um corpo vazando vozes inauditas. Entrou alguém, “já veio medir o quanto fervo?”, reclamou Pancrácio. Peguei seu braço, então senti o peso do tempo. “O tempo é um tiro, num ritmo de muitas curvas. O coração é motor do corpo, mensura tristezas, onde ficarão os homens como eu, um morto-vivo. Assim como o corpo é o recorte no pedaço do tempo cumprido, a morte é badalo de tempos múltiplos a se reinventar. Não há morte, há silêncio transbordado de lembranças. Você já presenciou a emoção diante da morte, minha filha?”. Com a mão trêmula, ajudei o rapaz a aferir a pressão dele. Vi as linhas de suas mãos. Acentuadas. Apesar de não ter tido a emoção diante da morte, não conseguia pronunciar simplesmente a palavra Não na frente daquele homem. Como então poderia eu ser cuidadora de idosos? Como cuidar da tessitura do tempo sem o mínimo de conhecimento do badalo de tempos múltiplos a se reinventar? Eu me considerei um disparate naquele instante. Parecia que o mundo virara às avessas. E quem estava cuidando de alguém ali era ele. O Tempo fazendo o tempo pensar. Comecei a questionar o badalo. Essa haste de contratempos suspensa em cada um de nós preparada para bater a qualquer instante nos tempos múltiplos. Quem será que foi esse velho? Por que através do seu olhar eu procurava por mim?

*

Ela não consegue decifrar meus enigmas. Eu não consigo revelar meu passado. Ele está por toda parte em meu corpo. O asilo Doutor Thomas escondeu muito bem os rabiscos 38

de minha pele. Seus dedos olham as linhas de minhas mãos, escorregam da base da palma, subindo até quase chegar no dedo indicador. Como quem procura encontrar vestígios do meu destino. Às vezes roçam meu polegar, em arco, até atingir meu pulso, na busca de indícios sobre minha vida. Quem é dono do destino? Minha vida é marcada pela tortura. Não sou digno nem desse olhar juvenil. Agora me vem a lembrança daqueles olhares, daquelas mãos que, sob minhas ordens, eu dizia, Decepem, apaguem. Será que um dia ela saberá que por trás desse ancião existe uma curva no Tempo revelando gestos horríveis? Hoje me decidi a fugir das cores gastas que, insistentemente, invadem o meu apartamento.

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Apiemieke?

As vozes rasgaram os grilhões do tempo abrindo múltiplos caminhos. - Apiemieke? Apiemieke? Pancrácio escutava, havia dias, uns gritos estranhos, em uníssono, sem origem perceptível, depois que sentiu seu bigode começar a cair com o peso do tempo. Após a conversa com o filho, não suportou a presença das vozes cada vez mais altas. Já não conseguia dormir. Com medo de o tempo ter lhe reservado o Alzheimer, tomou a resolução de lutar contra os monstros de sua cabeça. Nunca se rendeu para ninguém, muito menos para um inimigo. Concedeu maior atenção às frases em desespero ecoando do fundo da cabeça. Remotamente, reconhecia aquelas estranhas vozes e aquela linguagem híbrida. Pensou no início ser uma perturbação por causa da morte de Danúbia. Mas não, reconheceria, se fosse o caso, aquela voz doce, aquele gemido culposo. A insônia tomou de assalto sua vida. O grito de guerra que perturbava o sono do velho coronel da reserva do Batalhão de Infantaria de Selva da Amazônia era sempre o mesmo: - Apiemieke? Apiemieke? O coronel da reserva, depois de dias em claro, não aguentou o coro de vozes em silêncio e soltou, falando sozinho, a onça no meio da casa: - Apiemieke é o caralho! Que merda é essa? É a porra da velhice? Agora estou feito uma velha chata, pendurado noite e dia no ar por causa de umas vozes esquisitas. Vamos, suas vozes de merda, só sabem dizer isso, essa palavra absurda e inexistente, Apiemiekeeee!? Seus veados! Tenham a honra ao menos de me encarar, seus putos de merda! E vocês aí, não olhem assim pra mim, porra! Não estou doido! Vão logo para a cozinha, ou vão varrer a casa, vocês não têm o que fazer? Eu aqui em casa trancafiado por causa dessa comissãozinha de bosta. É isso que está me enlouquecendo. Vou pegar é a estrada. Silva, porra, pegue a chave do caminhão pra mim. Vou relembrar velhos ventos onde eu ouvia gritos e gemidos, sim, mas sentia prazer.

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Quando chegou próximo da BR-174, o coronel Pancrácio começou a ouvir novas frases, enquanto dirigia o caminhão, num tom muito mais forte. Ficou feliz, no princípio, com a diversificação, não aguentava mais ouvir apenas Apiemieke. Parecia que chegava perto da origem daquele coro. Queria ver o inimigo de frente. Reconhecê-lo. As frases invadiram o porão de sua memória, então reconheceu a língua dos Waimiris. - Por que kamña matou Kiña? Apiemieke? Apiemieke? - O que é que kamña jogou do avião e matou Kiña? - Kamña jogou kawuni, igual a pó que queimou a garganta e Kiña logo morreu? Uma dança frenética de calafrios percorreu seu corpo. Recordou-se da gloriosa década de sessenta e oitenta: da construção da BR-174; da mineradora Taboca; da hidrelétrica de Pitinga e da hidrelétrica de Balbina. Que sem o seu essencial trabalho junto a Parasar e a Sacopã não conseguiriam instalar o progresso na Amazônia. Os selvagens não deixariam. Saudoso ficou, lembrando os infinitos prazeres, quando se especializou em cu de índio. Descobriu um método, depois de matar centenas dos selvagens, que deixava os índios menos ferozes, irracionais. Mas funcionava com poucos. O apaziguamento consistia numa conversa forçada com o cu do índio. Ficavam mais amáveis e assimilavam os costumes dos civilizados, depois de uma sessão da terapia. Apesar dos suicídios depois. Era na conversa que explicava aos Atroaris, os Kiñas, a maravilha que era uma estrada, a riqueza de uma mineradora e a beleza de uma hidrelétrica. O coronel lembrou, com isso, que Apiemieke significava por quê. Então, começou a tentar responder às vozes em coro, enquanto se dirigia para o local em que havia limpado para o progresso da Amazônia, ao lado do Alalaú, onde tentou, antes da limpeza, transformar a todo custo os milhares de indígenas em seres humanos, mas teve que fundar o cemitério de cus. - Apiemieke? Vocês perguntam. Ora! Porque era o certo, seus vermes! Se não aprenderam a serem civilizados, tinham que morrer mesmo, porra! Por quê? Não viram a importância da civilização? Porque quem pergunta sou eu, agora, por que não morrem de uma vez, caralho? Nem pra morrer vocês servem? Vou matá-los novamente, seus bostas. Quero ouvir de novo os gemidos pungentes e os soluços anônimos que me deram verdadeiros júbilos. Vocês ainda têm cu? Desejo escutar os clamores de misericórdia. Pensam que ainda tem a merda do CIMI e da FUNAI para tentarem proteger vocês? Não 41

tem mais o bosta do Calleri para procurar um modo mais humano de civilizar vocês. Nem os professores Schwade para proteger vocês, seus bostas! É bem o veado do Maiká que está comandando vocês novamente, ou o filho da puta do Maroaga, aqueles índios escrotos de merda, difíceis para morrer. “Matar ainda que não seja preciso; morrer nunca!”, mantenho o lema. Queria ainda ter a disponibilização de materiais de antes. Dinamite, granadas, bombas de gás lacrimogêneo, metralhadoras e helicópteros. Para ver se não dava fim em vocês novamente, suas vozes do inferno! O general colecionador-de-cu-de-índio, como ficou conhecido na época, estava resoluto em encontrar a fonte dos gritos. Por causa da intensidade aumentada, não acreditava que emergia de sua cabeça. Ele que, em toda a vida, foi guiado pela Voz Imensa, sabia que poderia localizar a origem. Seguiu para os arredores da hidrelétrica, para ver se reconhecia o cemitério de cus. Chegando próximo ao local, da agonia das vozes foi surgindo uma euforia no seu corpo decrépito. O coração bombeou os jatos de sangue mais rápido, mas não conseguiu levantar o pau como antes. Não tinha mais o imponente bigode que dava força ao corpo. Agora, ralo e em frangalhos, caíam os últimos filetes a cada frase proferida pela multidão indígena anônima. Chegou ao cemitério de cus beirando o anoitecer. Sentiu o prenúncio do cheiro daquelas noites equatoriais, onde tinha construído um castelo de prazer colecionando malocas quentes de índias. Desceu com a mesma postura de quando usava boina, enfrentando os gritos ensurdecedores em rodopio. - Apiemieke? Apiemieke? - Antigamente não tinha doença e morte. Kiña estava com saúde. - Olha civilizado aí! Olha civilizado ali! Lá! Acolá! Civilizado escondido atrás do toco-de-pau! Civilizado matou com bomba. - Civilizado matou Sere. - Civilizado matou Podanî. - Civilizado matou Mani. - Civilizado matou Akamamî. - Civilizado matou Priwixi. - Civilizado matou Tarpiya. (...) - Com pau. Feriu. 42

- Com bomba. Escondido atrás do toco-de-pau! Apiemieke? - Apiemieke? Apiemieke? O colecionador-de-cu-de-índio então gritou com a força de antes: - Calem a boca, seus merdas! Vocês não existem, porra! Nunca eram pra ter existido, caralho! Deram uma pausa. As vozes cessaram por um instante como nunca haviam nessas dezenas de dias. Olhando o horizonte do cemitério que poucos sabiam a localização, Pancrácio sorriu vitorioso. Sentiu uma brisa que lembrava o velho Alalaú que banhava os cus dos índios. Ao avistar, ao longe, os tentáculos de Balbina e um grande descampado, sentiu-se orgulhoso do protagonismo e de como se deu a construção da hidrelétrica e da BR-174. Ficou imóvel alguns minutos admirando o passado no presente. Quando se virou para voltar pro caminhão, achando que havia vencido as vozes, sentiu uma vertigem e um calafrio. Rodopiou, mas quando ia cair, foi aparado por um coro de vozes fortes gritando: - Por que kamña matou Kiña? Apiemieke? Apiemieke? Os gritos invadiram o orifício do coronel, o mesmo em que era especialista nos indígenas. A função anatômica do corpo se modificou. O cu do colecionador-de-cu-de-índio

virou ouvido.

As

violentas

ondas

sonoras

começaram a estrangular os órgãos internos de seu corpo. Terrivelmente, o coro de vozes se encaminhou a garganta, após o início da queda no chão. O ralo bigode resistente encontrou a derrocada final. As vozes não saíram pela boca do coronel Pancrácio. A fuga escolhida pelo coro, para sair daquele morredouro, foi o labiríntico espaço do buço. Os gritos, numa mistura trilíngue, pregaram-se entre os orifícios dos fios mais resistentes do bigode como larvas pegajosas e elásticas, depois alçaram voos violentos. A cada queda de um filete pútrido do coronel, despontavam perguntas ante o absurdo da boca do Tempo. Os gritos surgiam ora em português; ora na língua inaudita e forte dos Kiñas; ora na língua inconfundível da dor. O coro dos WamirisAtroaris invadiu Pancrácio apenas para saber o Apiemieke. Os gritos só cessaram quando o corpo do coronel caiu totalmente sem bigode no chão. O silêncio de ruídos peculiares da floresta pareceu voltar a reinar. O cemitério de cus, no 43

entanto, já não tinha uma geografia fixa e desconhecida. Agora, as vozes ganhavam nova morada na Memória, onde as lembranças, feito fendas, abriam múltiplos caminhos nos silêncios da História.

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SOBRE OS AUTORES

Arcângelo Ferreira Nasceu na cidade de Parintins, Baixo Amazonas, em 1969. É mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM, professor de História da UEA em Parintins e coautor dos livros: História, cidade e sociabilidade e História

da saúde e

da

doença,

ambos

pela

Editora

CasAberta. É membro da Linha de Pesquisa História, Literatura e

Sociedade do GEHA – Grupo de Estudos Históricos do Amazonas (UEA/CESP). Possui publicações nas revistas Travessias, Claraboia e Decifrar. Para melhor compreender a História, elege a literatura como fonte de pesquisa. Na acepção de que “o homem é um ser para a morte” constrói e reconstrói suas narrativas.

Thiago Roney Nasceu na cidade de Boa Vista/RR, em 1985, radicado em Manaus desde a infância, considera-se amazonense. Formou-se em Matemática pela UFAM, em 2010, e estuda Literatura no Mestrado em Letras e Artes da UEA. Como escritor, publicou diversos contos em várias revistas literárias como a Trevo, a Germina e a Acrobata. Publicou o conto A panela velha do mundo pelo selo digital Formas Breves, coordenado pelo escritor Carlos Henrique Schroeder, da editora e-galáxia. É autor do livro de contos O estouro da artéria de um cavalo húngaro, 1ª e 2ª edições pela Editora Multifoco – RJ e a 3ª edição, de forma independente, pela thysanura edições de rua.

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