A METÁFORA COMO SINTOMA NO ROMANCE MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE, E COMO MEIO DE SEDUÇÃO EM CONVITE AO DIÁLOGO E À COMPOSIÇÃO NO CONTO PIRLIMPSIQUICE, DE GUIMARÃES ROSA

June 1, 2017 | Autor: Fabio Dourado | Categoria: Literary Theory
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Trabalho apresentado em 30-6-2016 ao Programa de Graduação em Letras da Universidade de Brasília (UnB) para o fim de avaliação de desempenho na disciplina Literatura Brasileira Modernismo, ministrada pelo Prof. Dr. Alexandre Pilati.

Estudande de Graduação do Curso de Letras do Instituto de Letras da UnB, Matr. 15/0024423, email: [email protected].

Çrno dos Anjos, 1938, O Amanuense Belmiro. 2." ediçS°-



A METÁFORA COMO SINTOMA NO ROMANCE MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE, E COMO MEIO DE SEDUÇÃO EM CONVITE AO DIÁLOGO E À COMPOSIÇÃO NO CONTO PIRLIMPSIQUICE, DE GUIMARÃES ROSA

Fábio Luiz Dourado Barreto 


RESUMO
O romance Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e o conto Pirlimpsiquice, de Guimarães Rosa, constituemse em obras representativas de momentos distintos e importantes da Literatura Brasileira. Com o fito de divisar a motivação intrínseca da atitude poética de seus autores, analisa-se o emprego de metáforas em suas linguagens para identificar se se fazem reveladoras de um sintoma, tomado o vocábulo nas suas concepções dadas por Freud e Lacan, e (ou) se se prestam de espaço de potência para o gozo, jogo inaugurador de frentes de prazer e, conseguintemente, de desejos por este originados. Concluise que a primeira obra é reveladora de um sintoma do espírito provinciano do primeiro momento do modernismo no Brasil e que a segunda funciona como convite ao diálogo e à composição adjetivável de sedutor, universalista e visionário.

Palavras-chave: Literatura Estética; Literatura – História e Crítica.




INTRODUÇÃO
A Literatura não se cinge a propiciar entretenimento. A conservadora concepção em sentido contrário se fez superada pela fundamentalidade da função poética da linguagem como meio de provocação de reflexão e de transformação da realidade.
O texto literário detém características específicas tanto quanto à sua estrutura formal como quanto ao seu fim de representar uma realidade.
É de examinar o conceito de Literatura. Como ensina Massaud Moisés (MOISÉS, 2004. p. 269),
Foi preciso que a Psicologia e a Filosofia da Linguagem ou Semiótica (ciência dos signos) se interessassem pelo assunto para que a discussão ganhasse pertinência. Tomemos, à guisa de amostra, o conceito proposto por Thomas Clark Pollock: "Literatura pode ser definida como o enunciado de uma série de símbolos capazes de evocar na mente do leitor um experiência controlada", ou, de modo mais explícito, consiste na "expressão de uma série de símbolos capazes de evocar na mente do leitor adequadamente qualificado uma experiência controlada, análoga à, embora não idêntica, à do escritor".
Este conceito, que ainda não escapa de privilegiar como essência da Literatura uma sua qualidade (a transmissão de uma experiência), implica a idéia de conhecimento: a arte literária constitui um tipo de conhecimento, distinto dos demais pelo signo empregado. Para bem compreender a proposta, torna-se imperioso abrir um parêntese acerca do signo, ou sinal: de modo esquemático, de resto imposto pelos limites de um verbete, pode-se dividi-lo em duas chaves de categorias, conforme a sua natureza e a sua valência: signos verbais e signos nãoverbais; signos unívocos e signos polívocos.
Aqueles englobam as palavras; esses, os números, os grafismos, os sons, os volumes, os movimentos, o espaço, etc. Quanto aos signos unívocos, apresentam uma só conotação, ou apenas a denotação, e podem ser, indiferentemente, verbais e não-verbais. Os signos polívocos ostentam índice de significação superior a 1 (um), ou seja, mais de uma conotação.
Com base nessas preliminares, podem-se identificar as ciências como a forma de conhecimento que utilizam signos verbais e nãoverbais unívocos; as filosofias e as religiões buscam, igualmente, a univocidade no emprego dos mesmos signos; as artes lançam mão de signos polivalentes, e dentre elas, a única que recorre à expressão verbal é a Literatura. O confronto permite inferir que a Literatura se distingue das demais formas e tipos de conhecimento da realidade pelo fato de exprimir-se por meio de palavras polivalentes. De onde se poder assentar o seguinte conceito: a Literatura é um tipo de conhecimento expresso por signos verbais polivalentes.
Ora, os signos verbais polivalentes correspondem às metáforas: a polivocidade do signo abarca os vários significados dos objetos, da mesma forma que a metáfora se estrutura sobre a comparação, explícita ou não, de dois ou mais objetos. Neste caso, entender-se-á por Literatura um tipo de conhecimento expresso por metáforas. Estas, consideradas o núcleo das figuras de linguagem, ou tropos, representam a realidade, à semelhança de todo signo, mas representam-na deformadamente. Dado ser problemático captar a realidade por via direta, só resta conhecê-la por meio de um sinal que a represente, não como tal, visto ser impossível, mas como pode ser expressa, ou seja, enquanto se submete à expressão: assim, conhecemos a representação da realidade, não ela própria.

Quanto à estrutura formal do texto literário, a seleção das palavras visa a organizar um todo estrutural de maneira a constituir metáforas – em contraste com a univocidade de signos desejável nos não literários. Para tanto, estabelece-se uma relação entre as palavras tanto de interdependência como de intertextualidade. O linguista Roman Jakobson (JAKOBSON, 1995), distinguiu seis funções da linguagem verbal: expressiva, conotativa, referencial, fática, metalinguística e poética.
A escola de crítica literária denominada de Formalismo procurou determinar as propriedades exclusivas do texto literário para satisfazer a necessidade de autonomia estéticodiscursiva da Literatura, então candidata a afirmarse como Ciência. Nessa escola, a Literatura é tida por uma função da linguagem, a função poética.
A função poética da linguagem, a desatar novas possibilidades de significação, funciona como elemento de ruptura, dominante nos textos literários e complementar das demais funções. Quanto maior for a seleção e a combinação das palavras, tanto mais literário será o texto.
No concernente ao questão da intenção de representar a realidade, relevante é perquirir que elementos desta advindos motivam a atitude poética. Motivação (do Latim movere, mover) designa em Psicologia, em Etologia e em outras Ciências Humanas a condição do organismo que influencia a direção (orientação para um objetivo) do comportamento. Noutras palavras, é o impulso interno que leva à ação. Distinguiu-se motivação intrínseca de extrínseca: a primeira é gerada por necessidades e motivos pessoais; a última, por processos de reforço e punição.
Este estudo, de enfoque contrastivo, tem por objetivo caracterizar as motivações intrínsecas das atitudes poéticas nas obras Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade (ANDRADE, 1971), e Pirlimpsiquice, de Guimarães Rosa (ROSA, 2008), em diálogo com suas fortunas críticas.
Para tanto, examinar-se-ão os conceitos de sintoma e de próprio das palavras, da lavra de Lacan e de Heidegger, respectivamente, sua aplicação à Literatura e, por fim, às obras mencionadas.



1. A METÁFORA COMO SINTOMA: MEIO PRAZEROSO DE CORREÇÃO DE UMA REALIDADE INSATISFATÓRIA
As primeiras teorias da motivação intrínseca a reputam decorrentes de forças interiores desencadeadoras de reações automáticas (instintos) ou geradoras duma tensão interna carecedora de descarregamento. Denominaram-se as últimas de pulsões. 
A teoria das pulsões mais conhecida e influente é a psicanalítica de Sigmund Freud, segundo a qual o ser humano possui duas pulsões básicas, eros (pulsão de vida, sexual) e tânatos (pulsão de morte, agressiva). Essas pulsões, originadas da estrutura biológica do homem, são a fonte de toda a energia psíquica; essa energia se concentra no indivíduo, gerando tensão e exigindo ser descarregada. O aparelho psíquico é dotado de três estruturas id, ego e superego que regulam esse descarregamento de acordo com diferentes leis, de forma que diferentes tipos de comportamento podem servir à mesma função de descarregar a tensão gerada por essas duas pulsões básicas.
Os conceitos de sintoma, fantasia e de pulsão em Psicanálise se fizeram objeto de interesse noutros campos. Dentre esses, o literário.
Segundo Freud, a função da fantasia é permitir que a pulsão entre nas redes do princípio do prazer, com a condição de não ser realizada. A satisfação buscada pela fantasia é a representação: construir um mundo em torno deste nó pulsional, de gozo. Ele mesmo não deve ser atingido, pois há uma barreira que impede o acesso do sujeito ao gozo. Pela fantasia, a pulsão entra nas trilhas da lei e de seu interdito.
O sintoma freudiano consiste na expressão de um conflito psíquico; mensagem do inconsciente e satisfação pulsional. As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória.. Segundo o princípio o prazer, a fantasia proporciona o prazer e evita o desprazer.
Para o fundador da Psicanálise, os sintomas neuróticos são a expressão de conflitos entre o eu e as pulsões, que são recalcadas, quer dizer, impedidas de se tornarem conscientes, por incompatíveis quer com a integridade do indivíduo quer com os padrões éticos do eu. O recalcamento amiúde se desfaz e a libido represada busca outras vias inconscientes de satisfação, operação denominada de retorno do recalcado. O resultado é um sintoma e uma satisfação sexual substitutiva de desejos sexuais não realizados
A teoria de Freud fez ver claramente que os objetivos perseguidos pelo comportamento humano não são necessariamente conscientes.
Em seus seminários ministrados em Paris de 1953 a 1981, Lacan influenciou muitos intelectuais franceses nos anos 1960 e 1970. Suas ideias impactaram significativamente o movimento pósestruturalista, a Crítica Literária, a Linguística, a filosofia francesa do séc. XX e a Psicanálise Clínica.
Segundo Paul Fry, em seu curso de Introdução à Literatura ministrado na Universidade de Yale (FRY, 2016), para Lacan, o sintoma é a percepção subjacente da falta de um objeto de desejo perante uma combinação de significantes dinamicamente substituíveis uns pelos outros denominada de metáfora pelo mencionado teórico da Psicanálise francês. A essa percepção os linguistas chamam de significação. Vale dizer: a falta do objeto de desejo é subjacente, e não clara, porque não há apenas um significante a expressá-la mediante uma ligação ao um significado chamada de significação por Jakobson, mas antes um feixe significantes dinamicamente apresentados ao leitor de modo fazer complexas as muitas significações possíveis.
Tendo lido Freud, Lacan formula sua teoria dos gozos, em que o sintoma continha em si mesmo sua possibilidade de cura, pois uma metáfora, tal como se fez, pode se desfazer mediante o desprendimento de seus significantes constitutivos e formação de nova combinação entre eles. O psicanalista apresenta, assim, o sintoma como mensagem, gozo e invenção. Para ele, o sintoma é um meio gozoso de correção de uma realidade insatisfatória.

2. A METÁFORA COMO MEIO DE SEDUÇÃO EM CONVITE AO DIÁLOGO E À COMPOSIÇÃO
A pesquisa empírica refutou a hipótese de o comportamento humano guiar-se apenas pela necessidade de reduzir a tensão gerada pelas pulsões. Verificou-se que a falta de estímulos leva o indivíduo a buscá-los ativamente, causa de elevação da tensão interna.
Abraham Maslow, psicólogo humanista, propôs que o comportamento é gerado por cinco tipos de necessidades: fisiológicas, de segurança íntima física e psíquica, de amor e relacionamentos (participação), de estima (autoconfiança) e de autorrealização.
Diante dessa nova perspectiva, o texto literário passou a ser visto também como espaço de potência para o gozo, jogo inaugurador de frentes de prazer e, conseguintemente, de desejos por este originados. Os autores também logram ver no outro diferenças não antagonizadoras, mas antes convidativas ao diálogo e à composição.
Aqui tem lugar a ideia barthesiana pósestruturalista do saber como sabor, qual a de que o texto consiste ele mesmo em objeto tanto desejante como desejoso. Tratase de uma visão do desejo imaginativo do poeta convergente com o conceito heideggeriano de "ipseidade": algo fundador duma individualidade desejada que nos distingue doutrem.
Leyla PerroneMoisés (PERRONE-MOISÉS, 1990), vale-se do conceito heideggeriano de "próprio das palavras" complementar do conceito de alteridade na medida em que percebe a possibilidade de ver na relação de contraste com o outro um convite ao diálogo à composição, e não ao afastamento ou mesmo à violência. O "próprio das palavras" é desviarnos do caminho reto de sentido para nos permitir a percepção dinâmica doutros sentidos possíveis, fenômeno denominado de conotação em Linguística.
Conquanto se esteja a falar das metáforas constituídas por meio da linguagem verbal – equivale a dizer, por palavras o mesmo raciocínio se aplica às metáforas construídas no plano da semântica textual, a saber: por meio da cadeia de referências do texto.
Para a Perrone-Moisés, os poetas são sedutores que se valem da linguagem e que por esta foram anteriormente seduzidos.
Segundo a autora, o tema da sedução aparece apenas ocasionalmente na obra de Freud depois de ter ele verificado que o episódio de traumático de sedução que julgara estar na origem da neurose de seus pacientes não era mais que uma fantasia.
Interessa reproduzir seus comentários acerca da visão do psicanalista francês Daniel Sibony sobre a questão da sedução:
A sedução, para ele [Sibony], é "um apelo mútuo a mudar de linguagem, a mudar de logro, a fazer explodir as regras do jogo na medida em que essas regras têm algo de auto-erótico. isto é, contribuem a fazer fechar-se uma linguagem nela mesma". A sedução pretende justamente abrir a questão da linguagem ao Outro, ao inconsciente.
Entretanto, ela não chega a operar a efetivação de uma linguagem, mas se mantém constantemente o mais perto possível de sua emergência. A sedução cria a vizinhança do gesto pelo qual uma outra linguagem aconteceria. "O importante", diz Sibony, "é que a linguagem não se detenha, não cesse, e. para tanto, precisamos seduzir a própria linguagem."
O discurso teórico de Sibony é sedutor porque ele desloca a questão da sedução de seu objetivo aparente (a relação sexual) para um objetivo fantasmático: a captura do próprio inconsciente na linguagem; porque esse objetivo, essa captura, se mantêm numa suspensão que poderíamos chamar de erótica. Possível, mas não certo. Decepcionante, no fim. como resultado: mas bem-suce- dido como corte de linguagem.
(...)
A forma mais tradicional da sedução é a oral: os discursos sussurrados ao ouvido, tendo por modelo mítico o canto das sereias, que desviavam fatalmente os navegantes de sua rota.
E a sedução por escrito? A escrita sedutora é ainda mais perversa do que a fala sedutora, porque pretende agir sobre um interlocutor ausente, porque mexe com todos os desejos vagos, múltiplos que a linguagem é capaz de mobilizar e atingir por ela mesma. Assim, a escrita sedutora tem algo de patético. assim como uma garrafa jogada ao mar (é seu aspecto de demanda), e algo de tremendamente ambicioso e virtualmente devastador, porque aspira a conquistar muitos e sucessivos leitores (é seu aspecto paranóico).
"Escreve-se para ser amado, é-se lido sem poder sé-lo. é sem dúvida essa distância que constitui o escritor", diz Barthes nos Ensaios críticos [ Essais critiques]. É também da distância e do malEntendido que vive toda sedução, e assumir isso. como faz Barthes, é entender do assunto.
(...)
A sedução é um jogo em cadeia, e o bom seduzido é sempre um bom sedutor. O seduzido consente em ser enganado, e também engana o sedutor; porque este lhe oferece algo, e o que o seduzido quer e pega está ao lado: ele é presa não da mentira do sedutor mas da fantasia que lhe indica seu próprio desejo.
Esse caráter consentidamente fantasmático no processo de sedução me leva a reafirmar que a linguagem é seu campo único e total, que na linguagem a sedução tem seu começo, seu meio e seu fim. Porque a linguagem é sempre promessa falaz de uma realidade. porque nela os processos substitutivos são infinitos e o jogo erótico pode circular em permanência.

3. O SINTOMA EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR
Oswald de Andrade, em seu romance Memórias Sentimentais de João Miramar, publicado em 1924 (ANDRADE, 1971), faz uma crítica ao mundo da arte brasileira provinciana. O autor parodia o intelectual provinciano da oligarquia brasileira. A personagem principal, João Miramar, é uma espécie de caricatura do homem paulistano da classe social mais abastada, avesso às coisas brasileiras e fascinado pelo que é estrangeiro.
Trata-se de um livro sobre um livro portanto uma obra metaliterária e seu escritor caricato. Há uma crítica jocosa ao pretenso intelectual provinciano e conservador; cultor não de conteúdos, mas antes de um estilo de discurso supostamente sofisticado restrito ao um grupo voltado para seus interesses e problemas e voltado para a ostentação em seu círculo social.
A crítica a essa atitude provinciana é operada também mediante o emprego de uma linguagem libertária. A fala do narrador se impõe com algumas características próprias e, assim, contrasta tanto com linguagem exibida na paródia do discurso retórico tradicional como com a tentativa de imitação desse discurso. Busca-se demonstrar este espírito libertário também na ordenação sintática do texto, oposta à obediência parnasiana às normas.
Logra-se, com isso, uma unidade na apresentação dos dois modelos provincianos e na crítica a ambos mediante contraste com a liberdade da linguagem modernista empregada pelo narrador. A linguagem dos personagens que fazem uso da fala provinciana é restrita a seu mundo
Busca-se nessa ficção de cunho modernista uma ruptura ideológica no sentido da cosmopolitização do País mediante a proposta de um conceito de nacionalidade mais consentâneo com o vigente no plano internacional. Tenciona-se exibir para o mundo uma versão mais original da cultura nacional. Trata-se de uma poética de exportação, como afirma o próprio autos no seu Manifesto Pau-Brasil.
A linguagem modernista, assim, tem que ver com o processo de industrialização e de urbanização e de mudança social havido no País no início da década de 1920. Percebe-se o emprego do recurso futurista de relação simultânea das palavras a formar um quadro de exposição sinóptica de elementos, em vez de uma continuidade temporal e linear, sintática, lógica e discursiva. Há uma sequência, mas a sua ordem é a simultaneidade, e não a linearidade temporal. Não é por outra razão que se deu à prosa do autor a alcunha de "prosa Kodak", em referência à Fotografia. Economizamse recursos da retórica do Brasil tradicional, da metáfora.
A síntese modernista feita por meio dessa prosa adjetivável de telegráfica suprime os significantes verbais deixa para o leitor a suposição, a invenção do contexto.
Percebe-se, assim, que é um linguagem própria do autor da obra. Com faz ver Bakhtin em sua obra Estética da Criação Verbal (BAKHTIN, 1997), percebese "a presença do autor nas marcas do texto". Noutras palavras, tem-se que a linguagem empregada na obra é propriedade de seu autor.
O livro é prefaciado por um orador típico representante do pseudo-intelectual do Brasil tradicional sequioso do reconhecimento social da sua erudição. Nisso reside uma contradição involuntária do autor modernista, reveladora de que o País não se libertou do Brasil tradicional. O convite do autor do livro objeto do romance a tal personagem para prefaciálo denota uma busca de legitimação da obra por meio de seu endosso de uma voz autorizada no seio do Brasil provinciano. Por essa forma, o conceito tradicional de Literatura é preservado: não há, na verdade, libertação; a suposta renovação se curva a valores conservadores.
Tem-se nessa contradição involuntária um sintoma freudiano. O desejo de reconhecimento por um grupo intelectualmente dominante de Oswald de Andrade é uma pulsão recalcada pelos padrões éticos do "eu". O recalcamento se desfaz mediante a satisfação com a legitimação conferida pelo prefaciador do livro objeto do romance sob análise, escolhido por ser autoridade no âmbito do grupo dominante cujo endosso se almeja. Dito de outro modo, a legitimação aludida é inconscientemente substitutiva do conscientemente refutado desejo de reconhecimento na esfera de um estrato social prevalente em sociedade oligárquica.
Percebe-se também o sintoma lacaniano. Consiste numa metáfora a substituição do significante reconhecimento social pelo significante legitimação na forma de elogio de autoridade intelectual local mercê de sua escolha para prefaciar a obra. Esse sintoma é, tanto quanto o freudiano, suscetível de percepção subjacente pelo leitor crítico, portanto impermeável a fetichismos não detectados pelo autor da obra.
Maria de Lourdes Trindade (TRINDADE, 2008), em sua dissertação de mestrado, tece considerações interessantes sobre a metáfora e dá exemplo de uma gerada por significantes não verbais, tais como os aqui apontados:
Se o sintoma e o pai são metáforas, o que se quer dizer é que são significantes que vêm no lugar de outros significantes. A metáfora é, tradicionalmente, de acordo com Dor (1989), repertoriada nos tropos do discurso como uma figura de estilo fundada em relações de similaridade, de substituição. Nesse sentido, é um mecanismo de linguagem que intervém ao longo do eixo sincrônico (sintagmático), ou seja, um dos eixos da língua para Saussure. Em seu princípio, a metáfora consiste em designar alguma coisa por meio do nome de uma outra coisa. No seu sentido pleno do termo é substituição significante. Seguindo Lacan no seminário livro cinco, As formações do inconsciente, de 1957, a metáfora paterna, que concerne à função do pai, é a maneira complicada com que cada um faz uso dela, podemos dizer, é a maneira como cada um vai significantizá-la. Ela tem uma função estruturante, na medida em que é fundadora do sujeito psíquico como tal. (...) Ao trabalhar com os mitos freudianos, Lacan instaura neles, como diz Miller (apud Pérez, 2005, p. 99), a exigência de estabelecer algo que deve ser interpretado. Instaura, "portanto, (a exigência) de extrair a estrutura, cujo revestimento são os mitos". Nesta leitura dos mitos freudianos, acrescenta ainda Pérez (2005), observa-se bem a direção geral que orienta Lacan relativamente a Freud: extrair de seus mitos fundadores o real da estrutura, que é finalmente aquilo que determina a metáfora paterna. A função do pai, diz Lacan, é ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno. É nesse sentido "um princípio de separação". A substituição em questão significa que a ligação ao pai entra no lugar da ligação com a mãe. O pai intervém no desejo da mãe. É nessa medida em que o pai substitui a mãe como significante que vem a se produzir o resultado comum da metáfora. "O papel da metáfora paterna, substituindo o desejo da mãe pelo Nome-do-Pai, é assim, o de permitir um acesso aos discursos, mediante uma perda de gozo. Não se trata aí, em termos lacanianos, de nada diferente daquilo que a castração, em termos freudianos opera". (SKRIABINE, 2005, p. 104).
Querse um significado de assimilação vanguardista e universalista, mas se tem, de fato, uma mantença de comportamento provinciano. Inquietante é a fala em defesa de uma ruptura radical vinda de uma personagem caracterizada como uma pessoa tradicional, um oligarca que nada faz de edificante em sua vida, e a cumulação da crítica ao prefaciador da obra com a relação profunda com ele existente.
O que há de novo na obra examinada, na verdade, é um trazimento involuntário à baila do dilema do subdesenvolvimento do Brasil decorrente da detenção do poder por uma oligarquia não interessada em mudanças no estado das coisas que lhe convém.
4. O CONVITE SEDUTOR AO DIÁLOGO E À COMPOSIÇÃO EM PIRLIMPSIQUICE
A intitulação do conto Pirlimpsiquice, de João Guimarães Rosa (ROSA, 2002), remete à natureza encantadora da vivência de um rompimento criativo com pactos sociais limitadores e opressores. Em particular, com pactos sociais firmados com instituições de ensino conservadoras.
A narrativa se desenvolve no quotidiano dum colégio interno religioso de zona rural brasileira, em que a observância de prescrições rígidas sobre o modo de conduzir os trabalhos escolares, perfilhada a uma ótica essencialista da formação dos alunos, é considerada importante pela administração da instituição representada pelo padre incumbido da função de prefeito, nada obstante a simpatia por valores libertários percebida nas lições do padre diretor da instituição de ensino.
Pirlimpsiquice tem por tema o rompimento com a rigidez dessa visão de instrução livresca desprovida de espaço para criações dos alunos. Rompimento, vê-se, desatador de novas possibilidades, numa concepção valorizadora da busca individual e libertária por experiências inovadoras proposta existencialista compatível com o emprego da narração em primeira pessoa.
O autor de uma peça teatral a ser encenada por parte dos alunos, um professor empregado da instituição e por isso submisso às prescrições formalistas do aludido clérigo prefeito, cuida de que os integrantes do elenco saibam de cor suas falas, a fim de que o espetáculo tenha curso em conformidade com as limitações do texto previamente estabelecidas; conseguintemente, sem espaço para improvisos.
O narrador do conto é um aluno intelectualmente capaz e tímido, escolhido, em razão dessas características, para a função alcunhada de "ponto" no jargão teatral, a cujo ocupante cumpre auxiliar dos atores por ocasião da apresentação ante eventuais esquecimento de suas falas. Seu inverso é seu colega Zé Boné, muitíssimo extrovertido e espontâneo mas incapaz de lembrar de suas falas com a correção desejada, motivo de terlhe sido atribuído papel sem falas.
Os integrantes do elenco acordam manter segredo sobre o enredo da obra. Diante da possibilidade de que outros alunos os pressionem para revelar o trama, criam uma segunda versão deste apenas satisfazer a eventual curiosidade de outrem até a apresentação da versão original.
Eis que a versão criada pelos próprios jovens atores os entusiasma. Nisso reside o cerne de questionamentos acerca da natureza do texto literário suscetíveis de levantamento a partir da sequência dos acontecimentos.
Extraise a lição de que a função da Literatura é, como a das demais artes, provocar reflexão e transformação.
Pirlimpsiquice revela o papel da linguagem como não só um modo sedutor, desviante da ideologia dominante, mas também como o lugar mesmo do jogo da sedução. Evidencia, em primeiro plano, que a atitude poética, a desatar novas possibilidades, cumpre a sua função de elemento de ruptura, complementar doutras funções elementares igualmente fundamentais descritas, como se viu anteriormente, por Roman Jakobson em seu escrito Linguística e poética (JAKOBSON, 1995). O texto literário passa a ser visto como espaço de potência para o gozo, jogo inaugurador de frentes de prazer e, conseguintemente, de desejos assim originados. Os atores-autores logram ver no outro diferenças não antagonizadoras, mas antes convidativas ao diálogo e à composição. O próprio das palavras mesmo, para usar a expressão cunhada por PerroneMoisés (PERRONE-MOISÉS, 1990) é corromper, desviar do caminho reto de sentido.
Em segundo, destaca a ideia barthesiana do saber como sabor possibilitadora de crítica à corrente estruturalista da Teoria da Literatura , qual a de que o texto consiste ele mesmo em objeto tanto desejante como desejoso. Seduzidos por essa possibilidade de gozo criador experimentado desde o início do processo de elaboração do seu enredo secreto, os atores dão início à vivência de um "drama do agora, desconhecido". Tratase de uma visão do desejo imaginativo do poeta convergente com o conceito heideggeriano de "ipseidade": algo fundador duma individualidade desejada que nos distingue doutrem.
PerroneMoisés retoma Heidegger em sua ideia de "próprio das palavras", complementar do conceito de alteridade na medida em que percebe a possibilidade de ver na relação de contraste com o outro um convite ao diálogo à composição, e não ao afastamento ou mesmo à violência. O "próprio das palavras" é desviar-nos do caminho reto de sentido para nos permitir a percepção dinâmica doutros sentidos possíveis, fenômeno denominado de conotação pelos linguistas. Para a autora, os poetas são sedutores anteriormente seduzidos pela linguagem mesma.
É precisamente o que se dá no conto sob análise. Corrompidos por essa capacidade sedutora da linguagem, os atores-poetas se percebem cúmplices na sedução tanto de si próprios com do público presente à apresentação neste incluído o padre Diretor da escola, a sinalizar inexistência de unanimidade em favor do discurso conservador. As personagens protagonistas se fazem no curso da estória poetas na prática de atos performativos seus sedutores. Lideradas por Zé Boné, de quem nada se esperava na versão limitadora do enredo da peça, seduzem também a audiência entusiasmada com versão de fato apresentada.
Como assevera o festejado astrofísico Neil de Grasse Tyson (TYSON, 2016), "É uma parte fundamental do ser humano: compartilhar histórias de outros."

5. LITERATURAS PSICOLÓGICA E VISIONÁRIA
Carl Jung fez distinção de interesse para a discussão aqui enfrentada. Como ensina Dante Moreira Leite (LEITE, 1987. p. 128129),
Jung faz uma distinção básica entre literatura psicológica e literatura visionária. Observa que (...) o segundo tipo que oferece um verdadeiro desafio ao psicólogo. "A literatura psicológica refere-se a conteúdo retirado do domínio da consciência humana — por exemplo, refere-se às lições da vida, a choques emocionais, a experiência da paixão e, de modo geral, às crises do destino humano, o que constitui a vida consciente do homem, e, especialmente, sua vida sentimental. Esse material é psiquicamente assimilado pelo poeta, elevado do lugar comum ao nível de experiência poética, e recebe uma expressão que obriga o leitor a conseguir maior clareza e profundidade de compreensão humana, ao trazer, para sua consciência, o que geralmente afasta e abandona, ou percebe apenas com um sentimento de perturbação. O trabalho do poeta consiste em interpretar e iluminar o conteúdo da consciência e das inevitáveis experiências da vida humana, com suas alternadas alegrias e tristezas. (...) Não são cercados por obscuridade porque se explicam inteiramente."
(...)
Para Jung, o real desafio da obra literária deve ser encontrado no segundo tipo, isto é, na literatura visionária, onde somos obrigados a procurar um sentido, pois diante dela nos sentimos confusos. É comum que o grande público a rejeite e que os críticos também a considerem estranha ou perturbadora. Esta literatura decorre de uma visão "que é verdadeira expressão simbólica — isto é, a expressão de algo realmente existente, mas imperfeitamente conhecido".
(...)
Agora, será talvez útil aplicar essa distinção à literatura brasileira e, depois, ver até que ponto pode ser aceita ou auxilia nossa compreensão do texto literário. Para fazer uma oposição bem nítida, seria suficiente pensar, de um lado em Cyro dos Anjos e, de outro, em alguns contos de Guimarães Rosa, sobretudo de Primeiras Estórias. O Amanuense Belmiro () seria um exemplo bem característico do que Jung denomina literatura psicológica: o romance é a descrição, minuciosa e esclarecida, da vida sentimental de um homem maduro, perseguido, ora pelas lembranças de seu passado, ora pela vida presente que o convida à participação e ao amor. (...)

CONCLUSÃO
Em ambas as obras analisadas, tem-se na metáfora uma forma de desatamento de possibilidades de significação. É o que faz delas escritos literários.
Tem-se em ambas as obras a atitude poética como meio de satisfação de um desejo. Elas se distinguem pelas motivações intrínsecas das atitudes poéticas de seus autores, vale dizer, pela natureza dos desejos cuja satisfação se busca e pelo fato de o seu autor delas ser consciente.
Em Memórias Sentimentais de João Miramar, o espírito crítico identificará um sintoma considerado tanto na conceituação freudiana (embasada no existência de um desvio psicológico – de repercussão possível em projeto ideológico coletivo merecedor de cura) como na lacaniana (fulcrada num deslocamento de sentido não necessariamente negativo sob o prisma psicológico). Tem-se o sintoma na concepção freudiana porque há o recalcamento de uma pulsão por um reconhecimento de pertencimento a um grupo intelectualmente dominante que é desfeito pela metáfora do prefaciador do livro objeto do romance.
Pode-se ponderar se trata não só de uma característica pessoal do autor Oswald de Andrade, mas antes de um sintoma coletivo mesmo do primeiro momento do movimento modernista. Nesse sentido o entendimento prevalente da crítica não tradicional. A questão é merecedora de análise sob essa perspectiva mediante estudo abarcador de outras obras representativas daquele momento do movimento modernista.
Disso decorre um avanço libertário nas palavras, mas não em produto de um projeto ideológico consistente de reflexão e transformação do mundo real representado. O sintoma perceptível por um olhar crítico faz ver que não há uma atitude genuína de transformação da realidade. Tanto isso é verdade que a linguagem do modernismo rapidamente se fez oficial, em vez de promover uma ruptura nas relações sóciopolíticas.
Oswald de Andrade visa a formular uma linguagem nova, mas o poder transformador de sua obra se dá à revelia de suas intenções na medida em que advém de uma percepção pelo leitor atento do seu sintoma revelador de uma discrepância entre a ruptura operada pela linguagem e o continuísmo inconsciente de uma atitude provinciana do autor.
Em Pirlimpsiquice, diferentemente, a atitude poética é movida por um desejo libertário não maculado por um sintoma suscetível de cura. As metáforas nela empregadas não se prestam de meio de substituição prazerosa de uma pulsão recalcada ou de meio de expressão da falta de um objeto de desejo. A motivação intrínseca do poeta, ali, está na satisfação de um desejo consciente tanto de deixar-se seduzir pela linguagem como de empregá-la para seduzir outrem no sentido do diálogo e da composição cujo fim último é reflexão e a transformação da realidade. Percebese que a atitude poética desejada e desejante de comunicarse com o outro é de uma ruptura muito mais que estética. A metáfora, a exemplo daquela em que consite a personagem Zé Boné, se presta de elemento constitutivo do jogo objeto de desejo tanto do autor como do leitor que este quer seduzir.
Guimarães Rosa cria esse um embate entre forças antagônicas para fazer perceber o primado da preponderância natureza sedutora do texto.
Temse, assim, duas obras metaliterárias. A primeira, conforme as referida distinção de Jung, psicológica; a última, visionária.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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