A metodologia do Solfejo Rítmico pela Função Métrica adaptada à realidade brasileira

July 4, 2017 | Autor: R. Dourado Freire | Categoria: Music Education, Music Theory
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A metodologia do Solfejo Rítmico pela Função Métrica adaptada à realidade brasileira Publicado Anais do XII Encontro Nacional da ABEM, Florianópolis-SC, 2003.CD.

Prof. Dr. Ricardo Dourado Freire Departamento de Música da UnB [email protected]

Resumo: O solfejo rítmico não é tratado na tradição musical brasileira como habilidade fundamental para a aprendizagem musical. Experiências pedagógicas de Chevél na metade do século XIX influenciaram as metodologias de Dalcroze e Kodaly propondo uma abordagem específica para o ritmo por meio da associação de sílabas e palavras aos sons musicais. O trabalho de Edwin Gordon na área da psicologia da Música o levou a desenvolver um sistema de solfejo rítmico baseado nas funções métricas que é apresentado neste artigo com adaptações à língua portuguesa e contribuições do autor para seu aprimoramento. Palavras-chave: educação musical, solfejo métrico, ritmo.

O ensino do solfejo melódico tem sido alvo de constantes pesquisas com intuito de desenvolver técnicas e metodologias que permitam que pessoas associem sons a silabas, letras ou números. Os nomes das notas: dó, ré, mi, fá, sol, lá e si estão intrinsecamente associados ao saber musical em países de línguas latinas muitas vezes representando a própria música. A prática do uso de sílabas é aceita na maior parte do mundo como ferramenta pedagógica válida para uma alfabetização musical, ou seja, requisito para que uma pessoa possa ler (e ouvir) o que está escrito em uma partitura musical. O ritmo, no entanto, não possui padrões de ensino aceitos universalmente como ferramentas de aprendizagem. Por essa razão, este artigo apresenta uma técnica de ensino para o solfejo rítmico, originário dos EUA, adaptado à língua portuguesa com contribuições do autor para prática no Brasil. Esta pesquisa teórica foi realizada para subsidiar a prática de ensino superior em turmas de Introdução à Música. A escrita do ritmo teve seu desenvolvimento ao longo de trezentos anos, durante os quais as figuras rítmicas e os valores rítmicos tiveram várias interpretações tanto quanto à grafia como à performance musical. Diferentemente da notação melódica, que desde o séc. XII já apresentava a coerência e estrutura definitiva de grafia musical, o ritmo apresentou diversas possibilidades de grafia até a unificação definitiva no início do séc. XVII, durante o período barroco. (Freire, 2003)

No estudo da música, existe um processo de alfabetização musical no qual os alunos devem aprender os signos gráficos e como decodificar os sons em uma grafia musical. No caso do solfejo melódico, existem as notas musicais, mas o estudo do ritmo normalmente é geralmente abordado usando apenas sílabas neutras (pah ou bah). Este tipo de estudo usa os mesmos sons para cantar quaisquer figurações rítmicas, sejam estas semínimas, mínimas, colcheias, semicolcheias ou combinações de diversos valores rítmicos. O aluno aprende os nomes das figuras rítmicas e suas relações com as pulsações e os sons que devem ser cantados por tentativa e erro e o processo não permite uma associação verbal entre sons cantados e sílabas faladas. O solfejo funciona como um processo de associação verbal no qual as duas partes do cérebro passam a interagir. O hemisfério esquerdo é responsável pela parte intuitiva e das emoções, e neste hemisfério são processados os sons, enquanto o hemisfério direito é responsável pela razão e processa a fala e o pensamento matemático entre outros. Por meio do solfejo e da associação verbal é possível ligar um som que é processado no lado esquerdo a uma sílaba verbal (ou número) que está no lado direito, unindo desta maneira intuição e razão em um pensamento codificado. Assim sendo, é possível compreender a sintaxe musical e recriar a música como um processo direto de percepção e realização musical. (Freire, 2002)

Apesar de vários autores utilizarem apenas sílabas neutras, o estudo do ritmo usando sílabas existe desde a metade do séc. XIX. A primeira técnica de solfejo rítmico foi usada por Chevél, na França, por volta de 1860(GORDON, 2000). Chevél estabeleceu um tipo de sílaba para cada figura musical. Na Inglaterra, John Curwen tentou adaptar o sistema de Chevél à língua inglesa (LANDIS e CARDER, 1990). O educador musical húngaro Zóltan Kodaly apropriou-se desta técnica de Chevél e adotou-a em seu método de educação musical. Em um compasso 2/4 por exemplo: o som de uma semínima está associado à sílaba ta, o som de duas colcheias está associado às sílabas ti-ti e o som de semicolcheias às sílabas ti-ki-ti-ki. Desta maneira, a técnica de Chevél é muitas vezes vista como originária do método Kodaly. As sílabas usadas por Chevél permitem uma associação verbal entre figuras rítmicas específicas e sílabas específicas criando uma ligação entre som e símbolo gráfico. Neste caso, aluno pode usar-se das sílabas para decodificar os sons que podem ser associadas a símbolos gráficos de maneira mais efetiva. No início do século XX, o pedagogo suíço E. J. Dalcroze utilizou-se de palavras para representar as relações entre sons e figuras rítmicas específicas. Por exemplo: duas semínimas (no compasso 2/4) podem corresponder à palavra an-dar, para duas colcheias usa-se a palavra cor-rer, neste caso correr é mais rápido que andar e a pessoa deve acompanhar as figuras rítmicas apresentadas andando ou correndo. Este método foi o primeiro a estabelecer o uso de uma palavra que denota uma função métrica, ou seja, a pessoa associa o som a um movimento e o

movimento é associado à figura musical. No entanto existem problemas quanto à prosódia das palavras (principalmente quando traduzidas), que muitas vezes apresentam as sílabas acentuadas em lugares diferentes da palavra original. Outro problema é que as palavras não podem ser usadas como uma técnica de solfejo e sim como uma ferramenta na aprendizagem das figuras musicais associadas aos movimentos corporais indicados. A técnica de contagem dos tempos também é amplamente usada para auxiliar a aprendizagem do ritmo e principalmente em grupos musicais para auxiliar na contagem dos pulsos métricos. No Brasil, o professor Bohumil Med publicou o livro Ritmo1 no qual números são usados para contar os tempos em um determinado compasso como por exemplo: 1-e-2-e-3-e-qua-troe, as subdivisões podem usar ta para semínimas e da para fusas. Nesta metodologia o aluno deve praticar cantando as subdivisões e tocando os ritmos no piano. Na Eastman School of Music, em Rochester-NY, foi desenvolvida uma técnica de solfejo métrico semelhante. Esta técnica apresenta o uso de números e sílabas para designar tempos fortes e subdivisões do tempo. Nesta técnica os tempos correspondem aos números dos tempos, como 1-2-3-4. A subdivisão do tempo é mostrada pela sílaba eh, como 1-e-2-e-3-e-qua-troe. A subdivisão em semicolcheias será mostrada pelas sílabas ti e ta, como 1-ti-e-ta, 2-ti-e-ta.2 Este método adota o referencial da função métrica e têm sido adotados com muita eficiência por regentes que precisam que seus grupos desenvolvam uma subdivisão interna do pulso principal. No entanto, este método não proporciona uma associação entre figura rítmica e sílabas específicas e enfatiza a ato de contar e não a internalização de figuras musicais. O educador musical estadunidense Edwin Gordon propõe um novo paradigma para a aprendizagem musical em seu livro Learning Sequences in Music. Neste livro, o autor indica que todo conhecimento musical deve ser obtido a partir da compreensão auditiva do objeto sonoro. A experiência auditiva torna-se o fator central na aprendizagem e a compreensão dos processos auditivos, o objetivo principal do ensino musical. Para tanto, ele criou o conceito de audiação para definir o “processo de ouvir e compreender música quando os sons não estão fisicamente presente, audiação está para a música assim como o pensamento está para a linguagem” (Gordon, 1997) .

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Med, Bohumil. Ritmo. Brasília: Musimed, 1981. O uso das sílabas como subdivisão conforme a adaptação para português usada pelo professor Dr. David Junker, da Universidade de Brasília. 2

A “Teoria da Aprendizagem Musical” de Gordon revisa as práticas musicais e principalmente a teoria da música introduzindo novos conceitos e reorganizando alguns conceitos tradicionais em função das suas pesquisas sobre os processos de aprendizagem musical. Em relação ao ritmo, Gordon considera que todo ritmo pode ser organizado de acordo com macropulsos e micropulsos3 ou seja uma pulsação principal e sua subdivisão primária, sendo que a subdivisão pode ser em duas partes (dupla) ou três partes (tripla), correspondentes ao binário e ternário. Os compassos podem ser organizados de maneira que as pulsações tenham a mesma duração, denominada de métrica comum, como nos compasso 2/4, 3/2 ou 6/8. Os compassos também podem ser organizados de maneira que as pulsações tenham durações diferentes, métrica incomum, como nos compassos 5/4, 7/ 16 e 8/8. Objetivos deste tipo de solfejo rítmico é guiar a aprendizagem musical a partir do parâmetro da compreensão auditiva e de como a mente organiza as funções rítmicas. Assim sendo, este tipo de solfejo ficou conhecido como beat function, traduzido para o português como solfejo pela função métrica. Para a criação e aprimoramento de um solfejo baseado na audiação foram criadas algumas diretrizes: 1) O solfejo deve apresentar uma sílaba específica para cada função. 2) As sílabas devem distinguir claramente micropulso, macropulso e outras divisões do tempo, 3) Deve haver uma diferença entre métrica dupla e métrica tripla, 4) Deve haver uma clara distinção entre compassos regulares e compassos irregulares. Neste método os macropulsos (pulsos principais) sempre serão associados à sílaba Du, em qualquer métrica. Na divisão dupla, os microtempos serão associados à sílaba de. As subdivisões dos microtempos serão designadas pela sílaba tu, como por exemplo Du-tu-de-tu. A próxima subdivisão do microtempo será demonstrada pela sílaba ku como em Du-ku-tu-ku-de-ku-tu-ku. (Exemplo 1).

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Estes termos micropulso e macropulso estão citados no original em inglês como microbeat e macrobeat. Na tradução para o português feita em Portugal, os tradutores os colocaram como microtempo and macrotempo. Eu preferi usar traduzir beat como pulso para não confundir tempo com andamento, o que estava muito confuso na minha experiência em sala de aula.

Exemplo 1- Métrica dupla

Na divisão tripla os microtempos serão associados às sílabas da-di e as subdivisões do microtempo pelas sílabas tu, da mesma maneira que na divisão Dupla, assim o solfejo rítmico passa a ser Du-tu-da-tu-di-tu. A subdivisão posterior será indicada pela sílaba ku. (Exemplo 2) Exemplo 2- Triplo

Nos compassos que apresentam métrica incomum, como por exemplo 5/8, 7/4, 9/16 faz-se necessária a distinção entre os macropulsos divididos em duas partes e os macropulsos divididos em três partes. Gordon então sugere o uso da consoante prefixa b, para indicar estas divisões como por exemplo du-be du-ba-bi para um compasso 5/8 e du-ba-bi du-be du-be para um compasso 7/8. Exemplo 3- Métrica Incomum

A partir dos princípios básicos da associação verbal, no qual cada sílaba deve ser vinculada a uma função métrica específica, esta metodologia pode ser aperfeiçoada. Em algumas situações é possível confundir subdivisões que possuem a mesma sílaba, como por exemplo: Du-tu-tu-tu-tu. Nestas situações, faz-se necessário uma maior especificidade de sílabas para cada subdivisão. Uma solução para o problema das subdivisões pode ser o uso de diferentes vogais para as diferentes subdivisões. Neste caso a vogal a ser usada segue o macropulso ou micropulso anterior. Fisiologicamente, em velocidades mais rápidas, torna-se difícil cantar modificando as consoantes e vogais de cada sílaba, sendo mais fácil manter uma mesma posição das vogais e modificar apenas as consoantes de maneira a especificar as subdivisões do tempo. Nesta situação

é possível substituir du-tu-de-tu por du-tu-de-te, que mantém a subdivisão indicada pela consoante t está associada ao respectivo macropulso ou micropulso. Uma dificuldade semelhante ocorre quando uma nota é alongada por mais de um tempo e torna-se difícil para estudantes manter a continuidade musical em notas longas. No caso de notas alongadas, os macropulsos poderão ser demonstrados por meio do uso da sílaba nu, que apresenta o maior grau de continuidade entre as consoantes linguais.4 Exemplo 4- Alongamento do macropulso e subdivisão dupla

Na subdivisão tripla pode ser usado o mesmo princípio de manutenção da vogal e alteração da consoante. Neste caso a subdivisão do macropulso du-da-di ficará du-tu-da-ta-di-ti ou du-tu-kutu-da-ta-ka-ta-di-ki-ti-ki, proporcionando uma maior precisão e controle na execução de figuras rítmicas complexas. Exemplo 5- Triplo

Na subdivisão de métricas incomuns em 5 ou 7 seguem-se os mesmos princípios como no Exemplo 6. Exemplo 6- Métrica Incomum

O método de solfejo pela função métrica foi desenvolvido a partir de 1970 e ainda é pouco conhecido nos EUA e no restante do mundo. A opção de associar sílabas que indiquem uma 4

Essa sequência de consoantes segue a mesma sequência usada pelos trombonistas: nu para legatos, du para notas separadas, tu para staccato e ku para staccato duplos, conforme indicadas pelo Prof. Carlos Eduardo Mello da UnB.

função musical auxilia na leitura, compreensão, escrita e execução de uma determinada figura rítmica. Como um método estrangeiro precisa de adaptações à cultura brasileira, principalmente em relação às sílabas fonéticas e a forma vocal da língua portuguesa-brasileira, neste sentido foram apresentadas algumas contribuições deste autor. A adição de subdivisões seguindo a formação labial das vogais e trocando apenas o tipo de movimento lingual das consoantes facilita a emissão das sílabas métricas, principalmente em velocidades rápidas. Esta distinção entre as diferentes vogais torna mais fluente o solfejo métrico e consequentemente a execução musical. A clara identificação da função métrica de cada ritmo percebido auditivamente torna o ato de transcrever música uma atividade mais direta e precisa. O processo de aprendizagem do ritmo pode ser auxiliado por ferramentas metodológicas como o solfejo métrico que permite a decodificação dos signos escritos em prática musical. O solfejo métrico não deve ser o objetivo final de um bom músico, mas pode auxiliar um bom músico a superar seus objetivos musicais.

Referências Bibliográficas FREIRE, Ricardo Dourado. Reconstruindo o saber: o aprendizado do sistema de solfejo móvel no contexto universitário. In: Anais do XI Encontro Nacional da ABEM. Natal, 2002. FREIRE, Ricardo Dourado. Fundamentação teórica do uso da modulação métrica como recurso na performance musical. Música Hodie, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2003. LANDIS, Beth and Polly Carder (1990). The Kodály Approach. IN: CARDER, P. (Ed.) The Eclectic Curriculum in American Music Education. Reston-VA, MENC, 1990. Pag 57-74. GORDON, Edwin. Introduction to Research and the Psychology of Music. Chicago: GIA, 1997 GORDON, Edwin. Sequências de Aprendizagem Musical. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. MED, Bohumil. Ritmo. Brasília: Editora Musimed, 1981. PAZ, Ermelinda A. Pedagogia Musical Brasileira no Século XX. Brasília: Editora Musimed, 2000.

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