A MICROFÍSICA DA OPRESSÃO E A BUSCA POR UMA PEDAGOGIA DO CORPO

June 6, 2017 | Autor: M. De Avila Todaro | Categoria: Education, Bullying
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A MICROFÍSICA DA OPRESSÃO E A BUSCA POR UMA PEDAGOGIA DO CORPO

Flávio de Jesus Landolpho (PPGE-UNINOVE) Mônica de Ávila Todaro (PPGE-UNINOVE)

INTRODUÇÃO Ainda que a humanidade, a cada geração, tenha por certo que seu tempo representa a própria síntese histórica e a do gênero humano e que toda a normalidade e o absoluto ético/estético estejam dados nas malhas de suas expressões e no desenrolar do seu cotidiano, é bem certo desvelar que nada é tão fluído como as realidades da condição do homo sapiens sapiens. A existência de relações de poder é parte da vida social. Opressores e oprimidos são os pólos opostos das relações sociais. Uma microfísica da opressão se traduz na ação de oprimir as pessoas e se dá no nível molecular do exercício de opressão. A natureza das relações é engendrada entre diferentes corpos, por isso não há como ignorar a questão do corpo na ciência pedagógica, entendido não só como o veículo da existência, mas como o elemento que afirma a presença do ser como pertencimento e legitimidade, ou não. Segundo Tucherman (1999), o corpo não é um dado biológico puro em simples estado de ser. Nele estão contidos também as dimensões do individual e social, levando a que este não expresse somente a materialidade do “eu”, mas tornese imagem, ou antes, uma imagem produzida e com finalidades. E a nossa cultura tem sido (...) uma poderosa construtora de espelhos e imagens legisladora de princípios de inclusão e exclusão, de natureza e cultura, mesmo e outro. Entre essas, talvez a mais radicalmente privilegiada tenha sido a imagem do corpo (...) (TUCHERMAN, 1999, p. 21).

Doutra monta, o processo civilizador, tal como nos alerta Elias (1994), é antes de tudo a construção de adequações entre as vontades humanas em harmonização com as regras sociais, sobretudo no que se refere a adequar as vontades e expressões do corpo aos limites da sociabilidade. Sociabilidade que, em última medida, é um controle do ser através de seu corpo adequado às exigências do todo social.

Tudo isso nos leva a considerar que os entendimentos que determinam os padrões imagéticos deste mesmo corpo, fonte de aceitação e/ou exclusão, variam no tempo ao bel prazer das ideologias, constrangendo como afirmação de sua totalidade aqueles que destoam dos seus limites estéticos. As questões dos biótipos étnicos que determinaram no passado a liberdade ou a escravidão, a vida ou a morte, a aceitação e a exclusão, bem como a ostentação dos ícones de consumo, tratam de alguns aspectos desta forma de biopoder, ou seja, atuação do poder sobre os corpos. Numa ótica simples, a afirmação daqueles que vivem o pertencimento e a inclusão se dá como corolário daqueles que, revelando em si a diferença, são apontados para a negação peremptória, seja qual for o nicho da sociedade. A linguagem corporal é um produto da (s) cultura (s). Culturas porque plurais são os padrões de comportamento socialmente transmitidos. Culturas do corpo porque há que se respeitar os diferentes corpos, seus diversos modos de se expressar, que não são universais e nem constantes, e a importância de considera-los por meio das vivências (falar, cantar, dançar, jogar, sentir). Fazer cultura, para Freire (1980), implica numa permanente atitude crítica, superando o simples ajustamento ou acomodação. Todos, assim, vivenciam a cultura como aquisição sistemática da experiência de ser humano.

O CORPO NA ESCOLA A escola é o espaço das relações sociais e humanas. Em seu cerne, as práticas sociais se consolidam como parte intrínseca da realidade humana, mas isso não implica que as forças da ideologia e as capilaridades do poder opressor (FOUCAULT, 1979) não se manifestem como elementos não só da alienação, como da massificação mais perversa, aquela que é a produtora do homem-massa que só se afirma no coletivo brutalizado dos iguais, na homogeneidade da existência medíocre e anódina. Bem por isso, a diferença, entendida como diversidade, como multiplicidade de expressões da vida, passa a ser alvo das ações de ódio, sobretudo na escola por meio do bullying, exercício crudelíssimo de negação do outro, microfísica do mal em estado puro. Para Freire (1998), é preciso respeitar a diferença e esta é uma virtude sem a qual a escuta não pode se dar e nem, portanto, o diálogo. Sem diálogo, há, com certeza, opressão.

Ao contemplarmos a forma como a escola tradicional/formal e seus agentes enxergam e agem sobre o corpo, temos a impressão de que a negação é o grande parâmetro que norteia tais relações. Isso porque, o corpo na escola é objeto de um controle minucioso que visa a uniformização, a otimização, a homogeneização e a discrição mais eficaz e sub-reptícia, tal como se só as cabeças tivessem lugar ali, tal como se só os iguais pudessem ali expressar sua humanidade. Na escola, o corpo é elemento altamente visado para a “domesticação”, a “docilização” (FOUCAULT, 1995), contido na “anatomia política do detalhe” onde o esquadrinhamento do corpo e dos gestos, trazia e traz consigo o contentamento ou castigo, a aceitação ou o anátema, já que expressam uma racionalidade e técnica que ordenam o mundo social. Nesta racionalidade, os corpos são elementos coisificados, passíveis de controle pelos que buscam a ordem e a normalidade, a uniformidade como virtude e a mesmice como exigência. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, aprecia-lo, sanciona-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza o espaço analítico. (Foucault, 1995, p.131).

No contexto escolar, o corpo disciplinado transcende a mera escravidão ou o ideal ascético, mas busca instituir uma relação normatizada de obediência e funcionalidade. Assim, os corpos disciplinados tornam-se corpos submissos e dóceis, limitados a cumprir a ordem ou a vivencia-la. Para Foucault (1995), a disciplina aumenta as forças do corpo enquanto produto, enquanto utilidade, na contraface em que subtrai essas mesmas forças anuladas no senso normatizador da obediência, não imposta pela violência ou coerção de berros e armas, mas sutilmente, através da convicção, como fato dado na realidade, como necessidade ordenadora do mundo. No olhar foucaultiano, disciplina não é sinônimo de autogoverno, de adequação à civilidade, mas opressão docilizadora, a prisão do sujeito nas malhas da igualdade utilitária e uniformizadora, com finalidades que respondem aos poderes que regem a sociedade (FOUCAULT, 1995).

Para além desta macro determinação (porque do Estado e das forças dominantes da sociedade) da relação corpo-escola, temos uma forma de poder capilarizada, que se dá no âmbito da estética como elemento insidioso para que a relação inter-pares, ou seja entre os próprios alunos, venha a fluir ou estagnar. Aos jovens e adolescentes em idade escolar, não em sua totalidade felizmente, mas em pesada maioria, a aceitação está tão somente restrita à mesmice e o ódio e as ações de ódio estão maiormente voltadas aos que não estão adequados às formas que as mídias legitimam, que não se contemplam no que a bioascese determina, aos que não são jovens, bonitos, atléticos, longilíneos e radicais. Assim sendo, a escola enseja que os educandos, em sua ânsia de aceitação venham a agregar-se à massa, já que em seu imaginário o pertencimento é a finalidade maior da existência, e nisso reeditam não só o horror à diferença que é peculiar à massificação, mas ao apego à pseudo radicalidade perversa de afirmaremse no mundo pelo conformismo às avessas de barbarizarem o outro, a sociedade, os patrimônios porque dados ao bel prazer do uso, na mesma medida em que elegem a estética corporal uniformizadora como o crivo superior que direciona o agir quase inconsciente da condição massificada. A gestação do homem-massa não se dá em outro lugar que não o espaço da massificação, da mediocridade, da mesmice. (ORTEGA Y GASSET, 2002). Não é pois, descabido, considerarmos que o “outro” da escola é o corpo, já que este com sua diversidade agride a sensibilidade própria do homem-massa que ali é formado na condição de mero aluno. Parece-nos necessário, portanto, refletir a respeito das relações humanas na escola quanto às culturas do corpo e o costume de discriminar os que são diferentes.

BULLYING E AS CULTURAS DO CORPO NA ESCOLA Muitos aspectos das relações humanas são hauridos a partir dos critérios da estética corporal excludente, campeante habitus, que se expressa não só como desejo ou identidade, mas ao apontar a diferença como demérito, responde a esta com perseguições e bullying. Verdadeiros exercícios de opressão desvelam a crise da civilização no seio das escolas. Não por acaso, a opressão que se expressa nas malhas do cotidiano escolar, seja nas relações horizontais ou verticais, seja nas relações reais ou virtuais, adquiriu uma terminologia própria, tomada de empréstimo ao idioma inglês, e categorizou-se com o peso que engloba seu caráter deletério e perverso: o bullying.

“O bullying, termo sem equivalente em português, é um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas que ocorrem sem motivação evidente, de forma velada ou explícita, adotada por um ou mais indivíduos contra outro (os), causando dor, angustia e sofrimento. Está presente na família, na escola, no trabalho e na comunidade. Mas é na escola e no trabalho que o fenômeno bullying se revela, se acentua e marca de forma indelével a alma do indivíduo, aterrorizando-o e levandoo a reações desesperadas, podendo chegar até o suicídio.” (FANTE, 2005).

Seja como for, não nos deteremos aqui em explicar as origens do termo, suas ocorrências, ações ou interpretações. Aqui o que interessa de fato é relaciona-lo com as culturas do corpo e com a opressão como expressões da realidade escolar. O bullying não é só falta de educação, covardia ou crueldade, é opressão em sua radicalidade e toda opressão é uma forma de barbárie que conspira contra a vida. A barbárie tida, por muitos e por longo tempo, tão somente como o esforço formidável para a destruição, para o retorno ao caos e eficiente exercício promotor da desordem e do sofrimento, tal como imaginado a partir do recorte histórico do saque de Roma pelos vândalos (MATTÉI, 2002), aqui pode ser pensada de forma mais modesta, pulverizada nas ações (e crenças) que elegem parte da humanidade para o tormento contínuo da diferença como demérito e maldição, sempre visada para a ilegitimidade e para o espetáculo das violências que se auto justificam na culpa das próprias vítimas porque carregam em si as marcas da diferença. Falência pública e notória dos ideais do Iluminismo, a barbárie atomizada do cotidiano desta atualidade pós-moderna enquanto opressão é a negação peremptória da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” em última medida, sobretudo porque useira e vezeira nas relações entre os jovens em idade escolar, justamente estes que deveriam ser os herdeiros das benesses dos projetos da modernidade. Quase na condição de um alerta vermelho, posto que nos denunciam as perspectivas sombrias para o devir social, a barbárie que aqui se destaca, vivenciada nas escolas e em outras interfaces da sociedade, tem uma de suas expressões nas culturas do corpo dadas enquanto opressão, e que são em grande medida a reedição dos horrores engendrados pelas falhas da modernidade para com a condição humana: a eugenia, o higienismo social, a ânsia da homogeneização da sociedade, o corpo como produto e a vida como coisa.

Na escola, produz-se o homem-massa na medida em que a massificação é um elemento preponderante na docilização dos corpos, enquanto microfísica do biopoder que se dissemina na conformação das mentes, nas relações opressivas que tudo nivela para manter as estruturas do poder (FOUCAULT, 1995). Ao permitir que as diferenças sejam alvo da repressão/agressão como punição por carregar em si a marca da diversidade, a escola alimenta nos alunos a falsa consciência, a falsa certeza de que a dignidade da vida está contida nos parâmetros movediços da imagética corporal e do consumo. A escola deveria ser o local onde o pensamento e o autoconhecimento sejam estimulados como valores basais, onde a desmistificação do senso comum, dos preconceitos enraizados e partilhados desde sempre na sociedade, sejam finalmente suplantados e toda diversidade viva não só o respeito, mas seja vista como um ensejo libertário e includente. Nas relações humanas onde opera o bullying como forma de exercício de poder, temos não o controle dos corpos, ainda que isso seja imaginado em algum nível, mas antes a barbárie modesta, inconsciente e imperceptível que milita pelo caos titânico e atávico do descontentamento de si e do mundo, desencadeado contra o outro. De acordo com Mattéi (2002), a barbárie é um conceito metafisico que define um dos dois polos em relação aos quais a humanidade encontra a sua orientação: se a civilidade é o destino da liberdade, da igualdade, da conscientização e da construção, a barbárie é o porto de chegada da opressão, da desigualdade, da alienação perversa e da destruição. A destruição promovida pela barbárie não se restringe somente aos prédios, às obras de arte, aos lugares sagrados da cidadania e da fé atacados feroz e gratuitamente, mas ao próprio âmago do ser humano, que atingido pela violência e pela estigmatização que o rebaixa na escala ontológica, o reduz a escombros estéreis que enfeiam a vida e pervertem o próprio sentido de humanidade (Mattéi, 2002). Acostumados às definições clássicas de barbárie como ações espetaculares de dimensões apocalípticas, ignoramos sua face mais modesta, mas não menos perniciosa, que se dá na microfísica das opressões cotidianas. Assim, se quisermos a escola como o espaço de humanização e realização, o corpo precisa ser contemplado em sua totalidade. As questões relativas à imagética corporal, à ilegitimidade do bullying e ao cerceio mais categórico às suas práticas devem ser uma constante e instrumento eficaz de garantia da qualidade de vida e contentamento mútuo nas relações que se desenvolvem na escola.

A concepção de culturas do corpo, na qual o corpo é a base existencial da diversidade cultural, se configura um desafio à convivência de pessoas diferentes num mesmo espaço, algo que demanda uma nova ética. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do presente texto, contemplamos algumas categorias que ajudam a entender a dinâmica da opressão nas relações corpo-escola. Para tanto, observamos que o corpo não é um dado biológico, mas representa um momento da cultura humana, da realidade humana historicamente estabelecida, com toda a gama de ideologias e ações ideológicas passíveis de produzir sentidos e relações de poder. A imagética corporal, elemento de ponta nesta condição, representa um fator determinante para a construção da própria identidade e de como os indivíduos irão se integrar no universo social. Bem por isso, na escola, espaço de formação dos futuros quadros sociais, a questão do corpo é basal, seja como negação, seja como elemento visado para a domesticação. Por outro lado, na dinâmica das capilaridades do poder, outras relações visando o corpo se estabelecem, ao nível da realidade anônima e discreta dos alunos, que sem a ação direta das forças dominantes da sociedade, estabelecem sua própria expressão de biopoder, ao exercerem ações de inclusão ou exclusão a partir dos limites da estética corporal, que determinam o grau de aceitação ou sofrimento imposto. O bullying que se presta ser expressão de biopoder, possui em sua contraface a gênese da barbárie que solapa a paz e a civilidade, revelando um caos que se projeta primeiramente nos elementos que destoam da mesmice estética e que por fim se consolida como realidade de homem-massa: medíocre, passivo, brutal em sua adesão ao coletivo dos alienados, inimigo da diversidade e sustentáculo das múltiplas faces da opressão. Somos, pois, por uma Pedagogia do Corpo que liberte as pessoas da dicotomia corpo-mente e da opressão advinda de situações ameaçadoras características de uma escola que pode, no futuro, vir a ser um lugar-espaço-território da verdadeira humanidade. Uma escola coerente com a liberdade de ser, onde conviver seja mais importante do que dominar ou controlar e aprender se dê a partir e com o corpo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, v I. FANTE, Cléo. Fenômeno Bullying. Campinas: Versus, 2005. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. _________________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 21. ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1995. FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. 11ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 7ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998. MATTÉI, Jean-François. A Barbárie Interior – Ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo, Ed. Unesp, 2002. ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Trad. de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2002. TUCHERMAN, Ieda. Breve História do Corpo e seus Monstros. Lisboa, Ed. Veja, 1999.

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