A MIMESIS PAULINA EM GÁLATAS 2,15-21

May 27, 2017 | Autor: Frei Miguel Grilo | Categoria: Biblical Studies, Teologia, Trabalhos Academicos, Pesquisas, Estudos Bíblicos
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A MIMESis PAULINA EM GÁLATAS 2,15-21


Introdução

O presente artigo pretende elaborar um breve comentário acerca da
Mimesis Paulina presente na Carta aos Gálatas. Realizado inicialmente no
âmbito da disciplina de Escritos Paulinos, o artigo baseia-se em alguns dos
exegetas mais qualificados sobre esta temática, tais como Antonio Pitta,
Senén Vidal, James Dunn e Heinrich Schlier. Tendo em conta o âmbito desta
revista, esta temática não será aqui aprofundada de modo exaustivo, o que
nos obrigaria a uma análise minuciosa de certos aspectos que envolvem o
assunto. Procuraremos expor aqui apenas os seus elementos mais pertinentes.
Assim sendo, ao longo desta exposição, iremos examinar de perto em que
consiste a Mimesis Paulina presente em Gl 2,15-21.




Fé e Justificação em Jesus Cristo

O texto de Gal 2,15-21 utiliza o estilo de diatribe (diálogo), que é
uma forma amplamente utilizada no helenismo, cujo lugar original foi a
discussão dentro da 'escola' filosófica.[1] De facto, o pano de fundo deste
texto enquadra-se na reflexão da 'escola' de Paulo, que trata de contestar
as objecções dos judaizantes[2], pelo que "a base da argumentação é a fé
comum cristã, expressa na tradição cristológica sobre a morte salvadora de
Jesus Cristo: dela se retira a consequência sobre a eliminação da
observância da lei como meio salvador, coisa que não aceitavam os
opositores da Galácia"[3].

De modo a melhor compreendermos a estrutura de Gal 2,15-21
apresentamos o seguinte esquema:
15 Nós, por nascimento, somos judeus, e não pecadores de entre os
gentios.
16 A. Sabemos, porém, que
B. o homem não é justificado
C. pelas obras da Lei,
D. mas unicamente pela fé em Jesus Cristo;
E. por isso, também nós acreditámos em Cristo Jesus,
D1. para sermos justificados pela fé em Cristo
C1. e não pelas obras da Lei;
B1.porque pelas obras da Lei nenhuma criatura será justificada.

17 Mas se, ao procurarmos ser justificados pela fé em Cristo, fomos
também nós achados como pecadores, não será Cristo um servidor do pecado?
De maneira nenhuma!
18 Se, com efeito, aquilo que eu tinha destruído, o volto a construir,
sou eu que a mim próprio me apresento como transgressor.
19 É que eu pela Lei morri para a Lei, a fim de viver para Deus.
A. Estou crucificado com Cristo.
20 B. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.
C. E a vida que agora tenho na carne,
B1. vivo-a na fé do Filho de Deus
A1. que me amou e a si mesmo se entregou por mim.

21 Não rejeito a graça de Deus; porque, se a justiça viesse pela Lei,
então teria sido inútil a morte de Cristo.

O esquema da tradução procura dar-nos uma ideia da complexidade desta
mimesis Paulina que, no seu desenvolvimento, é constituída de 3 partes
fundamentais: A) vv. 15-16: a fé em Cristo; B) vv. 17-20: a questão
diatríbica consequencial; C) v. 21: a conclusão geral.

A primeira parte da discussão (v.15-16) é fundamental, pois interroga-
se sobre a diferença entre os judeus e os gentios com vista à salvação. [4]

De facto, no v.16 evidencia-se que no centro da mensagem não se
encontram as obras da Lei enquanto tal, mas a Fé em Cristo: «… também nós
acreditámos em Cristo Jesus». Uma tal afirmação é necessária para a questão
da Lei em Gálatas: Paulo enfrenta-a a partir da sua fé em Cristo e não da
incapacidade humana de a realizar nem tampouco baseando-se numa dissertação
autónoma sobre a economia da Lei. Por isso, a palavra «saibamos» não se
refere ao património da tradição judaica, segundo a qual o homem não é
justificado pelas obras da Lei mas na fé em Cristo que determina uma visão
negativa consequencial da Lei e das suas obras[5]. Por isso, Paulo irá
introduzir o vocabulário da justificação com o verbo dikaioun, enquanto a
expressão justificar se encontra num contexto negativo: «Não é justificado…
não será justificado».

A segunda parte da discussão com os opositores (v.17-20) desenvolve a
anterior num plano mais concreto e grave: a questão sobre a vida dos
cristãos de origem judaica que vivem fora do âmbito da lei, o mesmo que os
cristãos provenientes do paganismo. O v.17 assume a objecção dos
judaizantes contra os judeo-cristãos libertos das práticas do judaísmo. O
v.17b deita por terra a acusação dos judaizantes, apresentando a
consequência absurda que dela surgiria.[6]

É nos versículos seguintes (v.18-21) que obteremos a justificação da
resposta dada no v.17b. De facto, no v.19b-20a deparamo-nos com uma
afirmação atrevida de Paulo quando diz: "Já não sou eu que vivo, é Cristo
que vive em mim". Não é uma mera expressão da experiência 'mística' de
Paulo, mas da realidade profunda de todo o crente: a sua existência
anterior (Homem velho) morreu (na morte de Cristo), e agora vive na
existência nova do próprio Cristo[7]: "E a vida que agora tenho na carne,
vivo-a na fé do Filho de Deus". O texto assume a fórmula tradicional de
'auto-entrega' salvadora de Jesus.[8]

A conclusão da proposição é enfática. Surge aqui a estrutura profunda
da argumentação de toda ela: o seu ponto de partida é a experiência (e não
uma simples premissa lógica) do 'dom de salvação' (charis) no âmbito de
Cristo Jesus, o único e definitivo acontecimento salvador de Deus[9]. Nesse
sentido, fica então excluído o intuito de salvação dentro do âmbito da lei,
pela prática do judaísmo.




A Função da Lei

Paulo apresenta a lei como um padrão de um julgamento universal, pelo
que os gentios estariam sujeitos ao julgamento de acordo com os mesmos
padrões que os judeus. E, visto que Paulo tem como pressuposto que todo o
homem, de um modo geral, tem não somente algum conhecimento de Deus, mas
também algum cuidado espiritual e moral sobre aquilo que é apropriado e
inapropriado na conduta humana[10], assim, no julgamento final, Deus irá
dar a cada um de acordo com as suas obras[11], sem partidarismos[12].

Numa segunda função da Lei, apresentada por Paulo, podemos falar da
lei como um tipo de poder – um poder dado a Israel, permitindo a Israel
poder afirmar que está 'sobre a Lei'. Paulo joga um pouco com esta
convicção bem alicerçada do Judaísmo, em que Deus enviou anjos para tomar
conta das restantes nações enquanto Ele guarda Israel para Si, como Sua
porção.[13]

Uma terceira função da Lei era regular a vida já dada. Isto é, para
regular e prosperar a vida do povo escolhido por Deus. É por isso que a lei
não está contra as promessas[14]. A crítica vai para a errónea
interpretação e o mau uso da lei e não para a lei em si mesma.
Presumivelmente essa função foi também distorcida pelo povo de Israel,
apegado à relação especial com Deus. Assim, a Lei foi-lhe destinada para o
proteger e cuidar. Isto ajuda a entender por que razão Paulo tinha de
morrer para a lei a fim de viver para Deus.[15]




Estou Crucificado com Cristo

É também necessário referir que Paulo pretende sublinhar que o crente
é e continua a estar unido à morte de Cristo[16]. Paulo não pensou na
crucifixão com Cristo como um evento único ocorrido no passado. Nem
tampouco pensando nestas passagens como já descido da cruz com Cristo e
erguido com Cristo. Pelo contrário, "estou crucificado com Cristo", ou
seja, foi pregado na cruz com Cristo, e ainda está nesse estado. A
implicação para o processo de salvação é clara: visto que a ressurreição
com Cristo chega com a meta final, então Cristo continua crucificado até à
Parusia e aqueles que estão crucificados com Cristo continuarão nesse
estado até à data da passagem. E, se Paulo o apresenta de forma implícita
em Gal 2,19 e em Rom 6,5, irá apresentá-lo em Rom 8,17 de modo bastante
mais explícito[17].

De facto, quando Paulo se refere à lei em Gal 2,19, é consensual por
parte dos exegetas afirmar que não é possível que esteja a referir-se à
Torah. Seguramente, Paulo estará, uma vez mais, a jogar com o termo nomos.
[18] Por Lei de Cristo, Paulo tem em mente quer os ensinamentos de Jesus
acerca do mandamento do amor, quer o próprio exemplo de vida de Jesus sobre
como viver o mandamento do amor. De facto, Paulo não ensina que a Lei é
para ser revogada ou abandonada. A sua crítica da lei foi mais específica
e, assim sendo, removeu da lei as funções que ela não mais poderia servir e
deixou a sua tarefa bem mais clara.

Com o v.19b começa uma nova composição quiástica que prossegue até à
conclusão do v.20:


19b A. Estou crucificado com Cristo.
20 B. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.
C. E a vida que agora tenho na carne,
B1. vivo-a na fé do Filho de Deus
A1. que me amou e a si mesmo se entregou por mim.


No centro do quiasmo, disposto em forma circular, encontra-se o
presente de Paulo que continua a viver «na carne» "C", ou seja, na condição
que o associa a todos os homens, mas numa nova dimensão que vem explicada
na outra parte do quiasmo "A.B.B1.A1"[19].

Em "A-A1", Paulo relaciona-se ao evento da morte de Cristo. De facto,
entre as duas sentenças existe uma certa relação de causalidade da segunda
relativamente à primeira: pois visto que Cristo o amou e se entregou a si
mesmo por ele, Paulo morreu na cruz com Ele. Os verbos agapêsantos (= que
amou) e paradontos (= que se entregou) são dois aoristos que se coligam
directamente ao evento da morte de Cristo. O amor e a doação de Cristo «por
mim» constituem a razão do «meu» estar «co-crucificado» juntamente com
Cristo. Assim, na primeira frase do quiasmo, assume um particular valor o
verbo synestaurômai[20] (= estou co-crucificado), que exprime a
participação de Paulo na crucifixão de Cristo. O percurso figurativo deste
verbo chega ao cume em Rom 6,6, onde Paulo estenderá o seu valor ao evento
do Baptismo: com isso «o homem velho é co-crucificado para que seja
destruído o corpo do pecado»[21].

A nível terminológico, em Gal 2,19 não se encontra qualquer referência
ao baptismo nem tampouco à ressurreição que nos apresenta a parte positiva.
Todavia, em Gal 3,26-27, em que Paulo volta a falar da «fé em Cristo», como
em Gal 2,16, encontra-se explicitamente o verbo baptizein (v.27). Por outro
lado, a sequência do «morrer-viver», evidenciada como paradoxo do v.20, é
compreensível somente na dinâmica baptismal do «crucificar-ressuscitar».
Portanto, é necessário referir que, para Paulo, o baptismo não representa o
rito da condição necessária para entrar no povo da aliança que termina por
substituir a circuncisão, segundo o modelo do «nomismo da aliança». Com o
baptismo verifica-se a representação de uma relação prévia com a morte e
com a ressurreição de Cristo[22].

O elemento "B" do quiasmo retoma a temática do «viver para Deus»,
anunciada no v.19b, explicando o sentido do paradoxo formulado no v.19a.
Certamente Paulo continua a viver como todos os homens do seu tempo, mas já
não é ele a viver; pelo contrário vive nele o próprio Cristo. Se em A Paulo
susteve a sua participação na crucifixão de Cristo, em "B" o movimento é
inverso: do evento da cruz passa à actualidade da vida de Paulo[23].

O absurdo da expressão Paulina não está na apropriação da sua vida por
parte de outro, mas que este continue a viver nele, ainda que tenha sido
crucificado 20 anos antes. Assim, se o Cristo crucificado, ainda que morto,
vive em Paulo, nele mesmo, ainda que estando vivo na carne, está morto na
cruz com Paulo. O círculo participativo da relação entre Cristo e Paulo
está completo, colocando de parte toda e qualquer lógica espácio-temporal:
de Paulo a Cristo mediante a cruz, de Cristo a Paulo mediante a vida que
provém da sua morte e ressurreição.




Paulo e nós

Tudo quanto Paulo afirma vale para si como para qualquer cristão; e
não o restringe a um momento privilegiado da sua espiritualidade mas
caracteriza toda a vida cristã. A relação entre "B-B1" permite compreender
a razão pela qual Cristo vive em Paulo "B", como em qualquer crente. Ainda
que nesta segunda parte do quiasmo o movimento seja análogo ao de "A-A1", o
elemento "B1", ou seja, a fé em Cristo, motiva a vida de Cristo nele.

Resumindo, Paulo pretende sublinhar as consequências que o baptismo
dos cristãos acarreta. Pelo baptismo, o crente liberta-se dos grilhões da
morte e vive para Cristo, que é quem o liberta da lei e do pecado. Paulo
procura então dar ênfase à responsabilidade cristã, visto que todos, pela
graça do baptismo, devemos viver em união com Cristo, na doação total de
nós mesmos. Ou seja, Paulo pretende provocar os destinatários da Carta a
agir como verdadeiros cristãos que, na doação de si mesmos a Cristo e aos
outros, vivam já no presente aquela união ardentemente desejada por
Cristo[24] e que será plenamente consumada na vida eterna.




Conclusão

Nesta mimesis de Gal 2,15-21 Paulo formulou o princípio pelo qual o
homem não é justificado pela Lei mas pela «Fé em Cristo» (v.16); a morte de
Cristo não teria qualquer valor caso a justiça se obtivesse mediante a
Lei[25]. A apresentação da Lei como condição para a justificação significa,
para Paulo e para os judeo-cristãos, uma acusação bem fundada de
transgressão e, para o próprio Cristo, a condenação de ser servo do pecado
e não da graça (v.17). A justiça fundada sobre a Fé e não sobre a Lei.



Bibliografia

DUNN, James D. G – The theology of Paul the apostle. Edinburgh: T & T
Clark, 1998.
PITTA, Antonio - Lettera ai Galati. Bolonha: EDB, 1996, p.138-158.
SCHLIER, Heinrich – La carta a los Galatas. Salamanca: Ed. Sígueme,
1975, p.117-119.
VIDAL, Senén – Las cartas originales de Pablo. Madrid: Ed. Trotta,
1996, p. 87-90.




Artigo elaborado por:
Miguel Pinto Grilo
Nº 311507012
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[1] Cf. VIDAL, Senén – Las cartas originales de Pablo. Madrid: Ed. Trotta,
1996, Pag. 87.
[2] Cf. VIDAL, Senén – Las cartas originales de Pablo. Pag. 87.
[3] VIDAL, Senén – Las cartas originales de Pablo. Madrid: Ed. Trotta,
1996, Pag. 87.
[4] Cf. VIDAL, Senén – Las cartas originales de Pablo. Pag. 88.
[5] Cf. PITTA, Antonio - Lettera ai Galati. Pag. 141.
[6] VIDAL, Senén – Las cartas originales de Pablo. Pag. 89.
[7] Esta ideia expressa-se também em outros textos paulinos, ainda que com
outra formulação.
[8] Cf. VIDAL, Senén – Las cartas originales de Pablo. Pag. 90.
[9] Cf. VIDAL, Senén – Las cartas originales de Pablo. Pag. 90.
[10] DUNN, James D. G – The theology of Paul the apostle. Edinburgh: T & T
Clark, 1998, pag.136.
[11] Cf. Rom 2,6.
[12] Cf. Rom 2,11.
[13] DUNN, James D. G – The theology of Paul the apostle. Pag.142.
[14] Cf. Gal 3,21.
[15] DUNN, James D. G – The theology of Paul the apostle. Pag. 154.
[16] Tal pode-se verificar em Gal 2,19, e posteriormente em Gal 6,14.
[17] DUNN, James D. G – The theology of Paul the apostle. Pag. 485.
[18] DUNN, James D. G – The theology of Paul the apostle. Pag. 653.
[19] Cf. PITTA, Antonio - Lettera ai Galati. Pag. 152.
[20] É significativo que este verbo, fora do epistolário Paulino somente se
encontre na narração evangélica da paixão, a propósito da crucifixão dos
ladrões juntamente com Jesus.
[21] Cf. PITTA, Antonio - Lettera ai Galati. Pag. 152.
[22] Cfr. Rom 6,4-8.
[23] Cf. PITTA, Antonio - Lettera ai Galati. Pag. 153.
[24] Cfr. Jo 17,20-21.
[25] Cf. Gal 5,2.
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