A Miséria do Mundo (2002) {Play, Texto teatral}

June 3, 2017 | Autor: Marcus Mota | Categoria: Dramaturgy, Drama, Dramaturgia, Teatro
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As misérias do mundo (2002)

Marcus Mota Número musical- a pantomima

Ao som da música farsesca, entra um gordo vestido de carro. Dança sem parar, para um lado e para outro, exibindo a máquina, mostra sua potência. Acelera, derrapa, faz curvas, feliz e saltitante. Um pouco cansado de sua exibição e procurando novas aventuras, ele vê ao longe um magrelo entrando devagar com seu carrinho velho. O gordo ri e olha terrivelmente para o magrelo. Depois corre com toda a força para cima do magrelo. A batida é terrível, terrível para o magrelo que capota várias vezes. Enquanto está no chão, o gordo passa vária vez por cima do magrelo, pula em cima dele, divertindo-se com a desgraça. Chama um compadre, vestido de roupas de juiz que chega, olha o magrelo e sorri. Depois pula no magrelo como o gordo fizera. Chega a atendente e faz a mesma coisa. De repente o magrelo levanta-se olha a todos com ira insuportável. Eles se olham entre si e voltam a correr atrás do magrelo, uma perseguição de carros até a saída de cena.

1Entram aos empurrões dois homens. Um gordo, sujo, com uma direção de carro na cabeça, vindo de acidente automobilístico . O outro, um magrelo na mesma situação, sangue em seu corpo e cabelos. Eles são conduzidos por uma mulher de uniforme impecável para um banquinho. Eles ficam exprimidos nesse banquinho lutando por um melhor lugar. Ao

2 fim, sentam-se colados, juntinhos, deixando grande parte do banco sem uso. O gordo fala e limpa as unhas com um canivete.

GORDO Sai do meu banco, magrelo, sai do que é meu! MAGRELO Não: dessa vez eu não largo, eu fico aqui! GORDO Sai agora, magrelo, eu tô mandando, eu tô mandando! MAGRELO Eu não vou sair daqui mais, eu vou ficar aqui prá sempre! GORDO Tu não se faz de besta que te mostro teu lugar! MAGRELO Esse é meu lugar, gordinho, esse é meu lugar também! GORDO Tu não tá entendendo, tu tá é até gostando de ficar do meu lado! MAGRELO Tu é que não entendeu: agora tu é que tá colado em mim! GORDO Quem mandou bater o carro em pobre! Tu não viu a tua faixa não? MAGRELO Mas foi tu mesmo que bateu em mim, saindo da tua faixa. GORDO Êhh moleque! Não sabe de nada! Eu não tenho que dar explicação nenhuma. Tu vai pagar, vai pagar tudo! MAGRELO O juiz é quem vai decidir. A justiça, viu, a justiça! GORDO (ERGUE-SE PARA FUMAR. RI.)

3 E tu conhece a justiça? Sabe onde mora o juiz? MAGRELO Não, por que? GORDO (RINDO) Então por que você me obrigou a vir aqui? Por que esse atraso de vida?(revirando os bolsos do Magrelo) Vai, vai passando o dinheiro, vai me passando tudo. MAGRELO Eieiei: tira essas mãozinhas gordas de cima de mim! Já não basta ter acabado com meu carro? GORDO E aquilo era carro? Não vi nada, pensei que era carroça, na faixa errada. Como tu quer que aceite estar aqui contigo se a gente não tem nada em comum? MAGRELO Tem sim, você atravessou meu caminho, acabou com meu carro e vai pagar, vai ter que pagar.

Passa a mulher de uniforme

GORDO Atendente, ô atendente: fala prô jovem aí que eu não tenho tempo prá perder com besteira. Chama o juiz, meu compadre: vamos resolver isso já. ( A atendente continua seu trajeto para fora de cena) MAGRELO(rindo) O teu compadre não te ouve? Tá viajando? Mas ele vai ver a gente, nós dois. GORDO

4 Ri, vai rindo. Eu já vou acabar com essa tua festa. É no bolso, magrelo, é no bolso que a coisa pega. E tu não vai ter ninguém prá te socorrer. MAGRELO Tu quer que eu fique com medo, tu quer me ver assim tonto como depois da batida do carro. Mas eu saí de lá de dentro, sai da carcaça que tu me fez e te trouxe aqui. Tu não queria vir não mas eu te trouxe. Tu pensava que eu ia ficar lá preso naqueles ferros. Tu pensava que eu não era capaz de sair dali, que tudo tinha se acabado prá mim. GORDO Foi uma batida grande, das boas. Sua carroça contra minha máquina. MAGRELO Eu demorei dois anos para juntar a entrada prô carrinho. Dois anos! Eu tinha acabado de pegar os documentos dele. O carro ia ser meu sustento. Depois tava até pensando com a mulher de fazer uma viagenzinha. Daí tu me apareceu , se atravessando todo em minha frente. Quase me matou. Agora quer ir embora. GORDO Não lembro, não lembro nada disso. Vai dizendo, vai mentindo. O magrelo mente que dói. Olha, o compadre não gosta de mentira. O compadre é sujeito honesto, de boa família. Eu conheço a família dele toda. A tua eu nunca vi. Só no hospital. MAGRELO Não adianta em querer me humilhar. Eu já perdi muito, eu perdi tudo. Eu tô pagando as prestações ainda. Tu vai pagar o que deve. Tu me fez essa dívida. E agora tem essa dívida comigo. GORDO Tu bateu mesmo com a cabeça, magrelo, bateu forte. Eu nunca devo nada, tá entendendo? Não devo nem pago. De onde eu venho, o que

5 eu faço é isso: não tenho dinheiro prôs outros. Não sei de nada, não fiz nada e não faço negócio com quem não conheço. MAGRELO Ah, gordinho, vai nessa, vai nessa: eu te peguei, eu te peguei mesmo. Tu achava que ia ficar a vida inteira assim nesse caminho, que nunca ia parar prá ninguém. Mas daí foi bater bem de frente comigo, bem na minha frente. Teve que parar na porrada. GORDINHO Eu já passei por cima de coisa pior e não vai ser tu quem vai me fazer parar. Eu tenho mais coisa prá fazer. É só o compadre chegar, é só eu pedir prô compadre que isso acaba. Depois eu quero ver quem vai pagar. Tu vai ter que vender tudo, vai ter que trabalhar a vida inteira prá pagar a pintura da minha máquina. MAGRELO Tu bate, acaba com tudo e acha que vai ficar nessa de arranhão? A tua lataria tá mais que arranhada, tua máquina precisa mais que uma pintura. GORDINHO (PASSA A ATENDENTE. Pega no braço dela.) Ô moça, moça: chama logo o compadre. Esse negócio aqui funciona ou não funciona? Eu tô com pressa. ATENDENTE(tirando de si as mãos dele) Meu senhor, aguarde a audiência. Sua hora vai chegar. GORDINHO Mas, mas eu já vim aqui. O pessoal me conhece. ATENDENTE Ninguém conhece ninguém. Toda vez o caso é novo. Aguarde a audiência. O juiz já vai chegar. MAGRELO É, a coisa tá ficando boa. Cadê seus amigos? GORDINHO

6 Na hora tu vai ver. Isso aqui é tudo encenação. Aqui nos corredores é assim. Lá dentro a coisa muda. Tu nunca veio aqui. Eu sempre estou nesse lugar. Sempre tenho que brigar contra gente como tu. Sempre tenho que ficar perdendo meu tempo atropelando esse povinho. MAGRELO Deve ser daí que tu tira dinheiro prá comprar sua máquina. Eu nunca precisei vir num lugar desses. Nunca atravessei o caminho dos outros. Vim aqui só porque tu acabou com meu carro. GORDINHO É o que tu diz, é a tua palavra contra a minha. Eu não lembro de nada disso. Eu tenho minha versão. MAGRELO E qual é? GORDINHO Eu posso contar tudo já (Passa a atendente) Moça, cerveja e dois copos. MAGRELO Como é que é? GORDINHO Tu me acompanha não é? Ou vai ficar fora dessa? Eu pago. MAGRELO Mas assim do nada? GORDINHO ( Volta a atendente e os serve) Calma, do nada pode vir alguma coisa? MAGRELA Iiihhh, nem bebeu e já... (Brindam com os copos e riem. Ficam conversando aos sussurros. e rindo, como se fossem amigos. O magrelo fica bêbado logo. A atendente volta e meia retorna servindo-os.)

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GORDINHO Quando ela passar de novo, puxa uma conversa. MAGRELO O QUÊ? Não, mas nem pensar. GORDINHO Vai por mim, eu garanto. Ela tá na tua. Eu conheço o pessoal daqui. MAGRELO Essa bebida é boa. Tem mais? GORDINHO O quanto você precisar. Pede prá ela? Pede que ela dá. MAGRELO Mas servem bebida aqui? GORDINHO Ela tá vindo, ela tá chegando: cai em cima, que eu arranjo o resto. (Chega a atendente com mais bebida. O magrelo olha como se estivesse vendo uma realidade desfigurada. Ele sorri para ela, interroga-se sobre o que vê. Ela lhe estende a bandeja com mais bebida. Ele ri, agradece e devolve seu copo, colocando o copo na bandeja. Ela fica sem entender o que aconteceu, vira-se e sai.) GORDINHO Seu burro, tu perdeu tua chance! Sempre foi assim. Sempre negando o que a sorte de dá. Tu não tem nada além da sorte e ela foi embora agora. MAGRELO O que eu fiz, o que fiz de errado? GORDINHO

8 Nasceu, isso mesmo, já nasceu errado. Eu passava por onde tu morava e vinha gente como tu feito uns cachorros sem dono correndo atrás da poeira que meu carro levantava. Aquela molecada sem saber o que fazer diante de uma máquina. ( o Magrelo faz gestos de "o que isso tem a ver" e fica prestando a atenção no que o gordinho confessa). Eu já nasci com um carro, já nasci motorizado. Desde pequeno eu sabia o que fazer. Sabia que gente como tu ia ficar na minha frente e eu tinha que passar por cima. Tu sabe o que é isso, desde criança saber o que fazer? Eu precisava de um carro, de uma máquina prá mostrar a verdade, prá colocar vocês no lugar. Era preciso tirar vocês todos da estrada, limpar a estrada de gente assim. Eu corria contra o tempo desde que nasci. Por isso precisava de um carro cada vez mais rápido e forte para chegar antes e expulsar todos vocês de minha frente. MAGRELO Então não foi acidente: foi tudo planejado! Você confessou, se acusou! Tudo está claro, tudo, e eu ainda queria saber dos motivos. Sempre quem sofre quer entender a causa, quer desculpar. GORDINHO Tu tá é com pena de mim, heim? Teve a coragem de me julgar, de pensar em mim? MAGRELO Ora, é tão absurdo o que você fez que eu até pensei em você, me coloquei no seu lugar, tentei entender isso tudo. GORDINHO Daí acha que eu vou sentir pena também? Que vou acreditar nisso de você procurar algo de bom em mim, em tudo que houve? Você acha que sou burro prá cair numa dessas, acreditar em alguém que me traz ao juiz? MAGRELO

9 Uma coisa é diferente da outra, é o que eu achava: o que você fez é diferente de quem você é. Mas agora tudo está claro. Você é a mesma máquina que me prejudicou e que ainda tenta passar por cima de mim. GORDINHO Mas só alguém burro, muito burro mesmo poderia pensar que existe alguma diferença. Só alguém que entrou agora nesse mundo ia tentar melhorar o que já existe. Olha aqui, magrelo, olha direito: você me trouxe prá esse problema e não vai mais sair dele. Isso é prá você nunca mais esquecer que atravessou meu caminho. Eu posso ir prá onde eu quiser. E se encontrar alguém como tu me atrapalhando eu tenho que arrumar a casa, colocar tudo em seu lugar. E você me trouxe logo aqui, logo nesse lugar? Você vai aprender agora, com muito sofrimento, como as coisas são. MAGRELO Você confessa tudo, você conta tudo o que fez. O julgamento já começou e eu vou ganhar a causa. GORDINHO Que confessa que nada! Quem tá confessando o que! Você tá ouvindo, você tá me entendendo? Que julgamento é esse? Onde você está com a cabeça?(pega na cabeça do magrelo) Eu bati pouco nela, tinha que ter batido com mais força (solta). Da próxima vez não vai sobrar nada. Isso é que dá não acabar com o resto, as sobras. Eu devia ter acabado com tudo de uma só vez. Ah, é com isso que eu não me conformo. MAGRELO Na minha cara, na frente de todo mundo aqui você diz que bateu em mim de propósito, sabendo de tudo e fica se lamentando por não ter feito o pior? Acha que existe algo pior que isso? GORDINHO (ENQUANTO FALA PASSA A ATENDENTE) Fiz, fiz e você quer ficar falando, falando, falando. Por que você não cala a boca? Eu fiz

10 tudo para calar tua boca e você não pára de falar. Me trouxe aqui prá ficar falando mais e mais. Deixa o compadre chegar. Ela cala todo mundo. Daí a gente vai conversar de verdade. Daí você vai se arrepender de ter me trazido aqui. Você vai se arrepender de ter atravessado o meu caminho. MAGRELO (INDO ATRÁS DA ATENDENTE, SAINDO) Moça, moça: quando é que começa a sessão? Moça, por favor, quando começa a sessão? GORDINHO "Cadê teus amigos"(ri) E é só o começo.

2Uma mesa de reuniões estilo colonial, enorme. Atrás dela, o compadre com belas roupas negras apruma as unhas com uma lixa, rindo com o gordo que está assentado em sua frente . Ao lado do gordo está a atendente, sua esposa agora. Todos riem, como em uma reunião informal, familiar. O gordinho continua limpando as unhas com canivete. A atendente está com sua caixa de manicure e fica fazendo as unhas.

GORDO Obrigado por me receber, compadre. COMPADRE É sempre um prazer receber os amigos. GORDO E nem faz tanto tempo que estive aqui. COMPADRE É verdade, é verdade: mas a gente procura quem a gente gosta. GORDO É a mais pura verdade, compadre, a única e justa verdade.

11 COMPADRE E o que é agora, heim? Bateu o carro de novo?(olha para a atendente que lhe retribuiu com sorrisos) GORDO A máquina, compadre, a máquina! COMPADRE É uma máquina mesmo! Me desculpe se não faço jus à sua potência, que potência! GORDO Ora, compadre, não precisa exagerar. Ela é nossa, é sua também. Fique à vontade. COMPADRE Eu sempre estou à vontade, muito à vontade. GORDO Pois como eu estava falando é uma injustiça o que me aconteceu. COMPADRE (RETÓRICO) Sempre é uma injustiça. Por isso eu estou aqui. Por haver tanta injustiça no mundo que eu existo. GORDO Ainda bem, compadre, ainda bem. É bom saber que não estamos abandonados à nossa própria sorte. COMPADRE Se isso acontecesse, se a gente não pudesse interferir, como é que seria o mundo? Se cada um fizesse o que quer e não o que pode, aonde a gente iria parar? GORDO É isso mesmo, é justamente o que sempre digo: aonde parar? Eu tive que parar obrigado, e isso me mata de ódio. Sempre tem um que me interrompe.

12 COMPADRE (com veemência) Quem é esse? Me mostra! Quem teve a coragem de interferir nas coisas além de mim? Quem ousou fazer justiça com as próprias mãos? GORDO Ai, isso me machuca, me incomoda. Eu nem quero dizer nada. Fala mulher, fala. COMPADRE Fala então, dona máquina. A senhora a gente ouve. GORDO Com mulher é diferente, tudo é diferente com mulher. ATENDENTE Posso falar? COMPADRE Que unhas tão lindas? É a senhora mesma quem faz? GORDO Não é uma beleza de máquina? E faz as unhas? COMPADRE (Comparando as unhas) Olha, eu ontem lasquei essa aqui e não queria trocar o esmalte. ATENDENTE Que base você usou? GORDO Viu, compadre, como ela sabe das coisas. COMPADRE Ninguém aqui nessa sala sabe mais que ela. (para ela) Você podia vir mais vezes me visitar, tem tanto problema prá resolver aqui. ATENDENTE

13 É a base, compadre, tem que escolher bem a base. Senão descasca logo. GORDO É impressionante como as coisas se resolvem tão fácil! COMPADRE É, mas é preciso muito tempo prá entender disso, não é minha cara bem cara? ATENDENTE E é preciso ficar sempre se cuidado, sempre se lembrando da base. COMPADRE (pega as mão do gordo) Mas compadre, você com uma mulher dessas e com essas unhas? Aonde você tá querendo chegar? GORDO É verdade, é a mais justa verdade. ATENDENTE (PEGA A OUTRA MÃO DO GORDO)Ele não se cuida, doutor, eu falo o tempo inteiro prá ele. Olha essa unhas! Como depois quer ficar perto de mim? COMPADRE Nossa que horror! Depois das desgraças você não lava as mãos? GORDO É por isso que eu vim aqui, compadre! COMPADRE Mas olha esse sangue grudado nas unhas, essa sujeira de gente escorrendo pela sala! ATENDENTE Tem até pedaço de carne, doutor, carne podre! COMPADRE

14 (AFASTA AS MÃOS) Ah, compadre, como é que você quer que eu te ajude nessas condições! GORDO Por isso eu vim, por isso trouxe minha mulher. COMPADRE Eu não quero de recriminar, te acusar de nada injustamente, mas você precisa ser mais cuidadoso, dar um jeito nisso! GORDO É que não tenho parado, compadre. Eu não consigo mais parar a máquina. Cada vez a estrada aumenta e eu acelero. COMPADRE Toda semana você vem aqui, eu sei. Toda semana a gente se encontra. Mas a justiça precisa de controle. Se você não puder se controlar, todo o esquema se acaba. ATENDENTE Eu não queria dizer isso mas sinto nojo dessas mãos imundas. É só ele nessa sala que tem as mãos imundas e não limpa. COMPADRE (para a atendente)Me daqui esses esmaltes. Vamos dar um jeito nisso. GORDO Passou base? ATENDENTE Não dá mais: agora é só prá disfarçar essas unhas horríveis. COMPADRE (passando esmalte no gordo com força e rapidez) Tá melhorando? Tá dando prá ver alguma coisa? ATENDENTE Passa mais, passa tudo. Passa nos braços também.

15 GORDO Passa na minha cara, compadre, passa em tudo. Eu não paro de ver o pessoal atravessando a estrada e eu correndo prá cima deles. COMPADRE Vou passa em tudo, com toda a força. Depois a gente resolve. Eu tô fazendo o máximo que posso para acabar com esse sangue. ATENDENTE O cheiro, doutor, o cheiro. Não tá dando certo. Quanto mais esmalte, mas o cheiro da carne podre sai dele. COMPADRE Olha compadre, eu vou passar com mais força, eu vou te esfolar um pouco. Não posso deixar esse fedor sair dessa sala. Eu preciso acabar com o cheiro dessa imundície aqui dentro mesmo. GORDO (As cores vão ficando mais avermelhadas) Quando sair sangue, me avisa. Eu quero ver o sangue, eu nunca deixo de ver o sangue escorrendo. COMPADRE Pronto, tá ficando bom. ATENDENTE Uma maravilha, doutor, uma maravilha. Isso já é maquiagem.(para o gordo, abraçando-o) tá lindo, tá lindo. Vamos sair na máquina, vamos correr forte, fundo. GORDO Justamente o que eu queria! Agora o magrelo tá perdido! Vou passar por cima da raça dele! Está uma beleza, compadre! COMPADRE Nada: eu só fiz o que estava ao meu alcance. Deixa eu passar nos dentes. A boca tem fome de justiça.

16 GORDO Ah compadre, e eu tô cheio de justiça! Eu tô com a barriga cheia de justiça! Traz logo o magrelo que eu quero mostrar a justiça prá ele!

3Barraco. Marido e mulher. A mulher lavando roupa. O homem na mesa com uma garrafa de pinga. O impossível diálogo.

MAGRELO Daí eu fui lá, mulher, eu disse que ia. Tinha até gente servindo a gente. Eu tava com o gordo, eu tá com ele ali ó na minha mão, segurando pelos chifres. Eu não arredei o passo dali, fiquei um tempão esperando. Um lugar bonito, arrumado, cheio de luz. É, mulher: eu não larguei o gordo. Fui até o fim. ATENDENTE Deixa disso, homem, deixa disso! O que tu ganhou? Passou o dia sem trabalhar e agora a gente vai comer o que? MAGRELO E tu queria que eu fizesse o que? Que deixasse aquele monstro solto por aí? ATENDENTE E adiantou alguma coisa? Resolveu ? MAGRELO Não, adiaram a audiência. Mas eu vou voltar lá, ah eu vou! ATENDENTE Deixa disso, homem, deixa disso! Tu sabe com quem tá lidando? Sabe em quem tu bateu o carro? MAGRELO

17 Mas mulher, quantas vezes eu tenho que repetir: não fui eu quem bateu o carro. Foi ele, foi ele. ATENDENTE E daí? Quem vai pagar o prejuízo? Quem vai trazer dinheiro prá casa? Prá que essa sua inocência? MAGRELO Então não serve prá nada estar certo? Tá ouvindo o que eu tô dizendo? Dá prá entender o que eu digo? ATENDENTE Eu não agüento mais! É duro ver seu homem se lamentando. Eu quero um homem de verdade, trabalhador. Vai prá rua, vai, traz comida! Ou tu acha que vou ficar aqui me acabando nesse tanque lavando as roupas de quem não faz nada? MAGRELO Agora pronto: só falta dizer que ... ATENDENTE A culpa é tua, toda tua! Alegria de pobre dura pouco! Eu falei, eu falei antes: não compra esse carro, a gente não pode com nada. O mundo é mais forte . MAGRELO E eu tô dentro dele e não saio. Mulher, ouça... ATENDENTE Não vou ouvir nada! Já ouvi tudo. É sempre a mesma coisa. Você teve até um castigo menor que merecia. MAGRELO Como? ATENDENTE Isso mesmo, homem, isso mesmo: você nem reconhece a desgraça de sua vida e quer se livrar dela. Agora vai lá e pede desculpa.

18 MAGRELO Pedir desculpa? Onde ? prá quem? ATENDENTE Vai lá na casa do juiz, lá no tribunal e pede desculpa prá todo mundo por ter ido ali e ter dado esse vexame. Daí chama o cara que você bateu no carro dele e pede mais desculpas. Todas. MAGRELO Você quer que eu faça isso, que me humilhe? Que deixem fazer qualquer coisa comigo? ATENDENTE A vida é curta e não há tempo prá reclamar. Você se meteu com eles e agora não agüenta mais. Faça algo de bom por nós, faça algo de bom por você . MAGRELO É o que tô fazendo, acho que é o que eu tô fazendo. ATENDENTE Tô cansada dessa história de você se fazer de vítima, de sempre ser o coitadinho, de ser o injustiçado, o bom da história. Você não é melhor que ninguém.Não presta tanto quanto os outros. A maldade existe e está em todo canto. E quem é mal, é mal prá sempre. Merece mesmo o mal. MAGRELO Mulher, mulher: eu fui lá e peitei os caras. Agora aqui em casa sou peitado? Se eu recuar, toda vez que sair na rua não vou a lugar nenhum, ando prá trás. A nossa vida depende disso, viu, a nossa vida depende disso: continuar enfrentando a máquina. ATENDENTE Cale a boca, cale a boca! Chega desse negócio de lutar contra o vento. Você mesmo é a desgraça, a desgraça maior. Pare de culpar os

19 outros e lave suas próprias roupas no mesmo sangue. Aceite isso, homem, aceite tua culpa. Amaldiçoa teu Deus e morre. MAGRELO Mas mulher, eu sempre..... ATENDENTE Você não entendeu ainda? Quer que eu fale de novo? Pare de procurar deus e aceite o fim de quem não presta. Essa é sua vida, a nossa miserável vida.

4- Casa do gordo. Um jantar.

Primeiro o gordo fura um côco e despeja a água em um copo, batendo no côco para descer toda a água. Bebe a água e quer mais. Bate no côco como espremendo o côco. Depois, enquanto fala, tenta abrir o côco com as mãos, com marteladas, jogando o côco no chão, até destruir o côco. Depois, ainda enquanto fala vai pegando o côco destruído e vai descascando-o até juntar um monte de nada em cima de seu prato.

GORDO Eu quero ver até onde ele agüenta, o magrelo. COMPADRE Foi muita coragem dele ir até lá: poucos têm essa coragem. GORDO Coragem? Que coragem o que, compadre? Aquilo é desespero, se apegar ao nada , à corda que o enforca. COMPADRE Era o que restava para ele. GORDO

20 Não me surpreende. Eu me admiro é o senhor louvar essa atitude. COMPADRE Olha, não me agrada o que ele fez, o trabalho que trouxe. Mas foi diferente, taí uma coisa diferente essa. GORDO O magrelo até que achou que ia ganhar algo me intimidando. Foi por isso que me levou na justiça, compadre, tenho certeza disso. Ele queria é tirar vantagem, me atacar, pegar minhas coisas. COMPADRE O que me admira é essa revolta deles. Dá vontade até de entender isso, de revirá-los todos pelo avesso prá saber de onde vem esse desejo, essa necessidade agir assim revoltado. GORDO É por isso que eu passo por cima deles com gosto pois sei que não tem nada, que não é nada de mais. A gente põe na cabeça um monte de coisas como um freio contra o que se pode fazer. Você olha um cara daqueles e imagina a reação , a resistência, essa luta contra tudo e todos. Mas daí quando você passa por cima deles, joga eles no chão e destrói - o que sobra? O que resta? Não tem nada, compadre, não tem nada. Eu vi, eu sei: é só bagaço, é só a miséria das tripas se abrindo. Se você bater bem forte, espancar mesmo, acaba prá sempre com essa lataria velha e podre que sorri e grita na hora errada. COMPADRE Agora quem me surpreende é você, compadre. Você tem as mãos sujas desse negócio, sabe mais dessa gente que eu. Venha sempre que quiser a casa é sua. GORDO Mas compadre: estamos é na minha casa. (riem)

5-

21 Barraco. Magrelo lavando a roupa. Entra uma procissão que canta a morte próxima. Um bumbo em constante batida marca os movimentos e os cantores. Como uma ciranda, eles vão circulando, o magrelo que lava suas roupas e vai tirando suas roupas e lavando-as até lavar a si mesmo.

(4) Deixa o canto passar Deixa o canto passar, minha gente Deixa a rosa florir Abre a porta prá gente, querida, Deixa o canto passar (2) Voz que canta-fala

Todo dia eu me levanto Deixo a cama sem lençol Ela mostra que o meu peso Se apagou com a luz do sol. Cada dia que se passa Eu aqui fico menor daqui a pouco minha cama é um pingo já sem nó daqui a pouco minha cama é a cova de um homem só.

Deixa o canto passar Deixa o canto passar, minha gente Deixa a rosa florir

22 Abre a porta prá gente, querida, Deixa o vento gemer.

Toda vez que me levanto Penso até que vou morrer Pois ainda é noite alta dói o corpo sem saber de onde veio o golpe, a faca que me abriu o meu sofrer Fico assim o dia inteiro procurando entender se a dor já veio antes muito antes de eu nascer.

Deixa o canto passar Deixa a alma gemer, minha gente Deixa porta se abrir Traz um copo dágua, querida Mata a sede em mim.

Sempre fui um bicho torto escapando das pisadas que os outros aplicavam em minhas costas 'sanguentadas. escorrendo entre os pés entre o pó, o chão e o nada fui ferido brutalmente mas uni o fio à espada quem viveu sempre fugindo

23 sabe bem suas mágoas.

Deixa o canto passar Deixa o homem viver, minha gente Deixa o homem falar Ouve tudo que diz, querida Olha o vento gemer.

Eu agora nessa casa tenho pouco prá sorrir se o negócio é como eu penso é melhor sair daqui ir embora dessa vida sem sentir falta de mim pois até me falta cuspe já nem tenho o que cuspir e falar do que se sofre é viver prá repetir.

Deixa o canto passar Deixa o canto ir embora, minha gente Deixa a gente partir Quando tenho sede, querida, Peço água a ti, Quando tenho sede, querida Abre a porta prá mim.

6-

24 Após o banho a procissão se retira carregando o magrelo. Três mulheres ficam conversando: a mulher do magrelo, a mãe do magrelo e uma mais nova, jovem. Enquanto conversam o magrelo, vai sendo amarrado em uma roda de tortura.

ATENDENTE Eu falei prá ele largar mão disso. E o que ele fez? Foi lá de novo importunar o homem. MÃE Foi lá de novo? Ah, minha filha, ninguém consegue segurar essa desgraça. ATENDENTE O homem gordo é tão ocupado, tem tantos negócios. E esse inútil aí vai e suja nosso nome, suja nossa gente. MÃE Meu deus, meu deus, onde isso vai parar? ATENDENTE Olha que eu fiz de tudo: gritei, implorei, xinguei e nada: ele parecia uma máquina , indo de frente pro seu destino. MÃE Desde pequeno ele foi assim, com essas idéias na cabeça. Que seu fim seja breve. ATENDENTE Idéias? Que idéia o que, minha sogra? Isso não é pensamento não: é burrice, orgulho besta, teimosia. Nem sabe o que faz. Pôs na cabeça que o homem bateu no carro dele e foi atrás do prejuízo. Seu filho tem um carro ruim, dirige mal, não tem emprego fixo, ganha pouco, não vê nada em sua volta e acha que a culpa é dos outros. MÃE

25 Você conhece ele melhor que eu. Você vive com ele. Arruma a casa, dorme na mesma cama. E ainda tem que agüentar essas manias. Nós sempre tivemos que suportar o pesos de nossos homens.(PARA A MAIS NOVA) Vai aprendendo, mocinha, vai vendo o que te espera. ATENDENTE Mas chega uma hora que não dá mais. A gente não pode ficar calada. Tô cansada de vir aqui e reclamar com a senhora. Eu vou lá no homem gordo , vou lá na casa dele pedir desculpas. MÃE Você vai falar com quem teu marido está brigando? Isso vai humilhar teu marido. Desse jeito, parece que a própria mulher ficou contra ele. ATENDENTE E o que a senhora quer que faça? Como a senhora quer que eu fique? A corda sempre arrebenta do lado mais fraco. E eu tô me acabando aqui, não tenho mais onde arrebentar. Olha, olha de verdade: o que teu filho me deu? O que me resta? Aonde posso me apoiar? Ele comprou um carrinho velho. Eu disse "não compra essa coisa!" E ele falou" É prá ganhar dinheiro, fazer carreto." Comprou a coisa sem ter dinheiro, mas comprou. Agora ficou só com a carcaça. E já que ficou sem nada, que fique sem mim MÃE Para uma mãe é triste ver seu filho chegar ao fim de tudo, esvaziado, murcho, jogado fora. Acho que se ele voltasse a ser meu menino e eu visse no que iria dar, teria criado ele de outra maneira. ATENDENTE A senhora devia ter tirado todas as forças dele, tirado esse incrível esforço dele ir atrás de suas coisas. Devia ter cortado os pés dele, amarrado seus braços, sangrado suas costas. Um homem fraco, minha

26 senhora, um homem fraco: era isso que a senhora deveria ter colocado no mundo. MÃE (para a jovem)Viu, minha filha, viu?. Escolhe um homem melhor, medroso, que aceite sua vida e saiba seu lugar. Escolhe um desses logo e me mostra, por favor, me mostra. JOVEM Quem é aquele gordo que vem vendo ali com o compadre? Ele não é daqui, não é? Não é dessa nossa vida! Quanto tempo eu tinha para escolher? ATENDENTE É como ele mesmo que eu também quero falar com ele. Eu preciso dele agora. MÃE Todas nós precisamos, minha filha, todas nós.

(Entra o gordo seguido do compadre. Vão direto para a roda da tortura.) GORDO Eu vim até você, magrelo, prá esse seu lugar imundo. A gente vai amaciar tua carne bem onde você mora. A gente vai te abrir todo até sair o que te resta. COMPADRE Por que? Por que você nos obriga a fazer isso, heim? Que lei é essa que te permite ficar na frente da gente, com essa estúpida lataria? Você é um perigo, um perigo nas ruas. E é meu dever limpar as ruas desse lixo. GORDO Agora não tem mais volta. As coisas estão se fechando. Até teus amigos, tua mulher estão comigo. Você conseguiu reunir muita gente.

27 Todos vieram aqui. Mas não estão contigo. A tua estúpida teimosia nos reuniu contra ti. COMPADRE Girem essa roda, girem! Movam as engrenagens do mundo! Vamos ver o coitadinho penar e sofrer. ( Os que carregaram a roda e as mulheres giram a roda) GORDO Você conseguiu, magrelo, você conseguiu! Era isso que você queria, era nisso que você pensava quando bateu em meu carro: chegar nesse momento, a sua grande hora! COMPADRE Eu acompanhei todo o processo, todo esse estúpido escândalo inútil. Você prejudicou o mundo inteiro, trouxe todo o mundo prá frente de ti. GORDO E tudo por causa do coitadinho, o homenzinho abandonado e triste, amarrado em sua roda, sofrendo. Você interrompeu a vida dos outros para mostrar a sua miséria, a tristeza dessa vida. Você nos obrigou a vir aqui para ter pena, pena de ti, para sofrer a tua dor, para viver teu sofrimento. ATENDENTE (irada)Seu monstro, mostro: como você pode fazer isso comigo? Você acabou com nossa casa, você desgraçou a minha vida! MÃE (lamentando)Meu filho, meu filho: que vergonha! Por que você fez isso? Olhe a sua mãe, meu filho, olhe a sua mãe! Olha e esqueça: nunca mais nos procure, nunca mais. JOVEM (PARA O GORDO) Me leve daqui, me leve, por favor! Não quero crescer com essa gente! Me leve prum lugar melhor, me leve pra sua casa.

28 GORDO (Empurra a mulher para o Compadre) Silêncio, gente horrível, silêncio! Ninguém vai sair daqui! Vocês todos vão ficar com ele! COMPADRE Essa é sentença: que o magrelo viva rodeado da gente que ele envergonhou. Já que não tem dinheiro nem para pagar o conserto da máquina do compadre e nem muito menos para pagar a dívida com a sucata de seu carrinho, eu condeno o magrelo a viver rodeado de seus acusadores. Ele vai ter que carregar essa roda o resto de seus dias como memória viva desse mal negócio. GORDO Viu? Eu não disse? Queria me ferir, acabou ferido. Eu sou mais forte, eu não quero tua dor. Não me serve prá nada teu sofrimento. Só o teu fracasso me atinge. E eu não choro. COMPADRE Vamos , cumpram a sentença! Se joguem contra ele, provoquem, xinguem: zombem do coitadinho, façam essa estúpida roda girar! O coitadinho conseguiu: nos trouxe as misérias do mundo.

Enquanto o gordo e compadre saem , o povo que fica canta uma canção jogando frutas podres no magrelo que, apavorado, vê a ira da massa e teme por sua vida

Quem/ vai / ficar com tua sorte Quem/ vai/ lembrar de tua morte

Tantos homens se perderam E nunca mais voltaram aqui Pois acharam que a tristeza

29 Causa dor e traz a luz.

Mas agora nós sabemos Que o melhor é te prender Se a vida é uma miséria É inútil enriquecer Dessa dor que te alimenta E nos faz empobrecer Se a vida é uma miséria Tua dor não tem porque.

Quem vai ficar com tua sorte Quem quer viver a tua morte.

Mas agora nós sabemos Que o melhor é te prender Se a vida é uma miséria É inútil enriquecer

Dessa dor que te alimenta E nos faz empobrecer Se a vida é uma miséria Tua dor não tem porque.

Quem vai ficar com tua sorte Quem quer viver a tua morte

Apaga-se a luz a partir desse dístico final e todos vão indo embora cantando. Ele, assustado, como se estivesse dentro de um

30 pesadelo, vê que está sozinho e começa a tirar as amarras, tentando sair da roda. Faz gestos para chamar atenção dos que já se foram. Começa a se arrastar suplicando: MAGRELO Voltem, voltem! Me ouçam, por favor, me ouçam! Eu não fiz nada, eu não tenho culpa! (lamenta-se e chora em frente de todos nós) Eu não sou culpado, eu não sou culpado! Eu não fiz nada, eu não fiz nada! Voltem por favor, voltem!( ergue os abraços em seu último pedido) Por favor!

FIM

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