A missão de estudo portuguesa ao Serviço de Saúde nacionalista durante a Guerra Civil de Espanha (Fevereiro - Março 1939)

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A missão de estudo portuguesa ao Serviço de Saúde nacionalista durante a Guerra Civil de Espanha (Fevereiro- Março de 1939)

Trabalho para o seminário Ciência, Saúde e Sociedade orientado pela Doutora Ana Leonor Pereira e pelo Doutor João Rui Pita no âmbito do Doutoramento em Estudos Contemporâneos do CEIS20

Junho de 2014 Tiago Agostinho Arrifano Tadeu

1-Introdução Uma análise superficial diria que a guerra e a medicina são duas artes com objetivos bem distintos, tão antagónicos como a vida e a morte e provavelmente irreconciliáveis. Uma procura matar, ferir, enquanto a outra salva e trata vidas. Contudo, ao longo dos tempos foi-se criando uma estreita ligação entre elas, fruto da necessidade de reduzir o número de mortos e feridos em combate, sob pena de não existir ninguém para combater. Assim nasceu a medicina militar, que visa salvar, curar, para que os homens possam novamente ser lançados para a guerra. Como seria de esperar o seu desenvolvimento esteve intimamente ligado aos avanços bélicos e à capacidade de matar e ferir, que seriam testados como nunca durante o século XX. A I Guerra Mundial, com o seu inaudito número de baixas, foi acompanhada por algumas inovações ao nível da medicina militar, tendo o mérito de consciencializar os clínicos e militares para a importância da sua ação. A oportunidade de praticar muitos dos ensinamentos e hipóteses forjados durante o primeiro conflito mundial seria dada pela Guerra Civil de Espanha, sobretudo devido ao forte envolvimento estrangeiro associado. A carga ideológica que envolvia ambos os lados da contenta, assim como o clima pré-bélico existente no continente europeu, trouxe para o cenário espanhol os exércitos mais avançados da altura, que fizeram da península o seu campo de testes. A proximidade do conflito e a afinidade entre o Estado Novo e os militares sublevados conduziu o Governo Português a apoiar informalmente os revoltosos e a seguir com muita atenção o desenrolar do conflito espanhol. Tal materializar-se-á em Março de 1937 com a criação da Missão Militar Portuguesa de Observação a Espanha, que como o próprio nome indica tinha como principal objetivo recolher informações sobre as diferentes máquinas de guerra em ação. Será ao abrigo daquele organismo que se encetaram várias missões de estudo, entre as quais uma ao Serviço de Saúde em Fevereiro - Março de 1939. O trabalho aqui apresentado procura analisar esta missão da medicina militar portuguesa, que não podia perder a oportunidade de conhecer o que de mais avançado era feito para tratar dos feridos e sobretudo evitar os mortos.

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2-Medicina militar: uma breve análise histórica

O objetivo principal da guerra passa por derrotar o inimigo, provocando de preferência um elevado número de baixas (feridos, mortos) que o impeça de combater. Para tal, os militares tentam utilizar o armamento mais avançado e eficaz de modo a obterem uma rápida e conclusiva vitória. Todavia e até há bem pouco tempo com a introdução de drones, eram os soldados no terreno que ganhavam ou perdiam as guerras, fazendo da presença humana um fator chave para o desenlace dos conflitos. Ora se a falta de homens para combater poderia ditar a derrota os militares procuraram que eles sobrevivessem, recorrendo para isso à medicina. Esta, cujo principal objetivo passa pela salvação das vidas, estabeleceu assim uma estranha relação com a arte de matar, dando origem à medicina militar. As origens mais remotas deste ramo da medicina podem ser localizadas na antiguidade clássica, primeiro com os gregos e posteriormente com os romanos. Existem relatos sobre a atenção que os primeiros davam aos feridos em combate, apesar de essa não ser a principal preocupação de militares e médicos. A este respeito recorde-se a expressão atribuída a Hipócrates, “Aquele que deseja praticar cirurgia deve ir para a guerra”. Foi já durante o Império Romano que se criou um serviço rudimentar de medicina militar, que para além da existência de pessoal adstrito aos exércitos, também dispunha de instalações hospitalares onde os feridos pudessem ser tratados e convalescer. A queda de Roma no século V traduziu-se num retrocesso ao nível da medicina militar, pois só se poderá falar novamente num serviço de medicina militar quase em pleno século XIX com as campanhas napoleónicas. Tal não significou o desaparecimento do pessoal médico dos exércitos, contudo o mesmo não estava enquadrado numa lógica sistemática de prestação de cuidados de saúde aos militares, fosse na retaguarda ou na frente de combate. As campanhas napoleónicas que varreram a Europa no final do século XVIII recuperaram a profissionalização dos exércitos e com isso a necessidade de prestar um maior cuidado aos feridos, que também eram cada vez em maior número face ao número de homens envolvidos e sobretudo devido aos avanços bélicos. As hipóteses de salvação de quem tivesse tombado em batalha eram escassas, já que os feridos ficavam muitas vezes no terreno ou se tivessem sorte eram socorridos para a retaguarda pelos seus camaradas, onde também aguardariam longas horas ou mesmo dias por um socorro 2

mais ou menos adequado. Tal cenário chamou a atenção de dois médicos do exército francês, Pierre François Percy e Dominique Jean Larrey. O primeiro tentou criar um serviço de ambulâncias com base em “Bavarian artillery wagons (…) drawn by six horses, a vehicle known as the ‘Wurst’(sausage)“1. Apesar do plano não ter sido bemsucedido, Percy conseguiu estabelecer pela primeira vez “um grupo de auxiliares sanitários (…) cujo fim era prestar os primeiros socorros e fazer o levantamento dos feridos.”2 Ainda assim, continuava a existir demasiado tempo entre o ferimento e a prestação dos primeiros socorros, o que contribuía para uma elevada mortalidade entre os feridos. Há relatos feitos por Larrey referindo que a espera se arrastava por uma série de horas, podendo facilmente chegar aos vários dias. Esta ineficácia acabou por ter resposta quando aquele médico criou o primeiro sistema de transporte ligeiro de feridos, a chamada “ambulância voadora”, que possibilitava uma rápida retirada do ferido, proporcionando-lhe assim melhor hipótese de tratamento e de sobrevivência. Aquela denominação deveu-se à rapidez do meio de transporte, fruto de carroças e cavalos especialmente preparados. Para completar estes avanços verificados na transição do século XVIII para o XIX, resta referir a aplicação de um sistema rudimentar de triagem por parte de Percy, ao encontro do espírito igualitário da época, já que se baseava unicamente na gravidade do ferimento, ignorando por completo velhos pergaminhos como ”wealth and rank”3. Apesar destas inovações, a verdade é que o número de fatalidades entre os feridos no campo de batalha continuou a ser elevado. As razões principais deviam-se à falta de conhecimentos médicos e sobretudo à inexistência de fármacos eficazes no combate a infeções, comuns em fraturas e na entrada de corpos estranhos provocados por ferimentos de projéteis. Outro fator que contribuía para a mortandade era a ausência de respeito pelos feridos e pessoal médico, já que todos eram considerados inimigos e por conseguinte alvos a abater. Isso era notório no desabafo de um médico francês, aquando da destruição do hospital onde trabalhava pelas forças inimigas durante as campanhas napoleónicas. O clínico sugeria que no futuro, “seria desejável sem dúvida, por uma convenção mútua entre as potências beligerantes que os hospitais fossem declarados neutros … o asilo das infelizes vítimas de guerra deveria ser considerado Baker, David; Cazalaà, Jean-Bernard; Carli, Pierre; "Resuscitation great. Larrey and Percy — a tale of two barons", Resuscitation 66, 2005, p.260. 2 Bandeira, Romero, Medicina de catástrofe da exemplificação histórica à iatroética, Editora da Universidade do Porto, Porto, 2008, p.97. 3 Baker, David; Cazalaà, Jean-Bernard; Carli, Pierre, op. cit., p.261. 1

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como um lugar sagrado e respeitado por todas as nações. Mas, infelizmente nós ainda não atingimos este grau de humanidade”4. A preocupação formal pelos feridos de guerra só se concretizaria em 1864, altura da primeira Convenção de Genebra, quando se acordou em poupá-los da violência bélica, fossem eles militares ou civis, assim como quem lhes prestava socorro. Por detrás deste projeto estava Henri Dunant, um suíço que ficou impressionado com os efeitos da guerra, neste caso na batalha de Solferino, aquando da guerra da independência italiana em 1859. O sofrimento por ele presenciado impeliu-o a dar auxílio imediato aos feridos e a registar em livro, “Un souvenir de Solférino” (1862), algumas ideias para o combater, nomeadamente com a constituição de grupos de ajuda nacionais que auxiliassem os feridos da guerra. Dunant, em conjunto com outros concidadãos, criou então em 1863 o “Comité International de Secours aux Militaires Blessés” que em 1876 passaria a ter a denominação atual, “Comité International de la Croix-Rouge”. A primeira Convenção de Genebra formalizou assim a entrada dos socorros médicos na frente do conflito, não que antes não estivessem presentes, mas só a partir daquele momento é que passou a existir o seu reconhecimento formal e sobretudo a proteção da sua ação. Os conflitos que se seguiram vieram comprovar uma maior preocupação dos militares para com os seus feridos, visível nos exércitos das duas maiores potências da altura. Na guerra franco-prussiana (1870-1871) Friedrich Von Esmarch, cirurgião do exército prussiano, introduziu um rudimentar kit médico5, composto basicamente por algumas ligaduras e que era transportado por todos os soldados. O mesmo médico elaborou vários livros sobre os cuidados médicos que se deviam prestar no campo de batalha, de onde se destacou a sua obra inicial “Handbuch der kriegschirurgischen Technik [Manual técnico do cirurgião de guerra]” e que serviu de referência para vários exércitos. Por seu lado, os britânicos aprenderam nas várias guerras com os boers, final do século XIX, a importância do rápido transporte dos feridos e dos primeiros cuidados médicos que lhes eram prestados, já que muitas vezes eram deslocados de forma violenta e raramente numa posição horizontal. O elevado número de mortos levou à criação de um corpo de ambulâncias, “New South Wales Ambulance”6 e de um serviço

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Bandeira, Romero, op. cit., p.103. Brown, Kevin, Fighting fit – health, medicine and warfare in the twentieth century, History Press, Gloucestershire, 2008, p. 14. 6 Idem, p. 16. 5

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médico o “Royal Army Medical Corps”7. A atenção reforçada para os cuidados no campo de batalha ganhava um enfoque especial tendo em conta o que estava a acontecer no exército prussiano. Os britânicos receavam que num eventual conflito a causa para a sua derrota poderia ser determinada não pelo poderio militar, mas sim pela eficácia ou neste caso a falta dela no tratamento dos seus feridos em combate. Ainda a propósito da assistência no campo de batalha é de referir a Guerra da Crimeia (1853-1856), conflito onde a assistência aos soldados foi providenciada através de organizações religiosas como as “Filles de Charité” ou de leigas como Florence Nightingale e as suas companheiras britânicas. Lançadas as bases, foi durante a I Guerra Mundial que se colocou à prova a competência e a capacidade de resposta dos serviços de medicina militar. No caso português Carlos Vieira Reis aponta a criação de um serviço de saúde militar por altura da Guerra da Restauração (1680 -1688), contudo, aquilo que relata na sua obra “História da Medicina Militar Portuguesa”, acaba por ser uma proto-instituição cujas competências não estavam bem definidas e que mudavam “consoante a vontade do rei ou do governo”8. Pouco mais se fica a saber sobre a prestação de cuidados aos feridos em caso de guerra no tempo da monarquia, acrescentando apenas a existência nos inícios do século XIX de alguns hospitais militares no território continental português. A grande novidade do período republicano passou pela atribuição de maior autonomia e reconhecimento ao serviço de saúde do exército, que na segunda década do século XX já não estava submetido a nenhuma repartição, “despachando o seu chefe com o Ajudante General”9. A participação portuguesa na I Guerra Mundial acabou por colocar à prova o serviço português, que segundo a opinião de Romero Bandeira10 estava ao nível dos outros congéneres europeus. Todavia, o conflito acabou por revelar diversas lacunas que não tinham sido colmatadas desde os finais do século XIX, especialmente nas técnicas utilizadas e no transporte dos feridos. Apesar da crescente preocupação demonstrada em relação aos cuidados médicos prestados aos feridos em combate, a verdade é que em alguns países (Reino Unido, Holanda11) o serviço de saúde militar era mal visto pelos clínicos, considerando que 7

Idem, p. 26. Reis, Carlos Vieira, História da Medicina Militar Portuguesa, Estado-Maior do Exército, Lisboa, 2004, vol. II, p 8. 9 Idem, p. 10. 10 Bandeira, Romero, op. cit., p. 117. 11 Cfr. Brown, Kevin, op. cit, p. 27; Cooter, Roger; Harrison, Mark; Sturdy, Steve; Medicine and Warfare, Clio Medica 55, 2nd edition, Atlanta, 2004, p. 59. 8

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aquele era um emprego de recurso para os menos capazes e que não conseguiam obter uma colocação num hospital ou então estabelecer-se como médicos particulares. Não é assim de estranhar que os médicos militares recebessem salários inferiores aos dos outros militares, o que não contribuía para a atração dos profissionais mais competentes. Já em pleno conflito os soldados acabavam por comprovar aqueles estereótipos, ao contactarem com um serviço médico pouco preparado para as exigências provocadas pela guerra. Os cuidados de saúde quer ao nível das técnicas quer ao nível dos fármacos eram insuficientes, originando muitas vezes resultados dececionantes para o paciente como a amputação de membros ou a morte. A este propósito, recorde-se que a taxa de mortalidade para feridas abdominais durante a I Guerra Mundial rondava os 98%12 e após intervenção médica. Este era o cenário que aguardava o ferido que tivesse a sorte de ser socorrido na frente de batalha, uma vez que os maqueiros geralmente só faziam a recolha com o cair da noite, para estarem a salvo de balas perdidas. Depois de resgatado tinha de aguardar o transporte até ao hospital, o que podia demorar alguns dias e não contribuía para aumentar a esperança de vida dos feridos. Tal tratamento fazia com que os soldados britânicos dessem um novo significado à sigla dos seus serviços médicos (RAMC) “Rob All My Comrades”13. O elevado número de baixas e os avanços tecnológicos registados durante a I Guerra Mundial acabaram por conduzir a algumas alterações na assistência prestada aos que tombavam na frente de batalha, nomeadamente com a utilização de meios motorizados. Os automóveis, rapidamente adaptados pelos militares para a contenda, foram usados como ambulâncias que gradualmente substituíram as movidas a força animal. O mesmo fizeram os aviões, se bem que a uma escala muito reduzida e que só registou avanços significados com a Guerra Civil de Espanha e com a II Guerra Mundial. Porém, a maior alteração deu-se ao nível da experiência dos clínicos, que ficaram mais capacitados para preparar a assistência médica nos próximos conflitos. Neste domínio salientou-se o médico francês Edmond Delorme, fundador em 1881 da “Revue militaire de médecine et de chirurgie” e que publicaria duas obras sobre medicina militar, “Traité de chirurgie de guerre” e “Enseignements chirurgicaux de la Grande guerre”, resultantes da sua participação no conflito. Poderíamos achar que a preocupação evidenciada com os feridos ao longo da I Guerra Mundial se deveu a uma maior consciência humanitária, talvez despoletada pelo 12 13

Coni, Nicholas, Medicine and Warfare- Spain (1936-1939), Routledge, Abingdon, 2008, p. 61. Brown, Kevin, op. cit., p. 47.

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grau inaudito de estropeados e mortos. Contudo, a real motivação residia no calculismo de governantes e militares, que necessitavam de recuperar os feridos para os lançarem novamente para a frente de batalha. O palco ideal para a colocação em prática de todo o saber acumulado durante a I Guerra Mundial acabou por se concretizar na Guerra Civil de Espanha. O conflito, cuja génese e envolvimento interno foi pouco respeitado pelos outros países, forneceu assim às grandes potências da época um vasto campo de treino para homens e máquinas. Foi em Espanha que pela primeira vez houve um uso regular da aviação para bombardear alvos militares e civis, destacando-se a ajuda técnica e material dada por alemães e italianos aos militares sublevados, enquanto o lado governamental recebeu auxílio soviético. Esta forma de fazer guerra causava novos tipos ferimentos (estilhaços, fraturas expostas, choque) quer em militares quer em civis, fruto do combate em zonas urbanas e que raramente aconteceu durante a I Guerra Mundial. O mesmo se verificou com a extensão e a mobilidade das frentes de batalha em Espanha, realidade praticamente desconhecida em 1914-1918 e que obrigou a medicina militar a implantar um novo modelo de assistência com vista a cumprir a sua missão, salvar vidas. A estes condicionantes juntou-se a ajuda estrangeira ao nível dos cuidados de saúde, através da participação de diversos médicos e enfermeiros, que acabaram por ajudar na aplicação e desenvolvimento de novos tratamentos médicos. Tal dinamismo ao nível da medicina foi sentido sobretudo no lado governamental onde aceitavam mais facilmente a ajuda disponibilizada, ao contrário dos revoltosos que por várias vezes a rejeitaram o auxílio oferecido. Uma das grandes alterações verificadas ao nível da medicina militar durante a Guerra Civil deu-se com a assistência aos feridos na frente de combate, que agora era prestada o mais rapidamente possível. Tal foi a consequência da experiência médica obtida durante a I Guerra Mundial, mas sobretudo à que adveio dos conflitos travados pelos espanhóis na década de 20 em Marrocos, já que a Espanha não participou no primeiro conflito mundial. A assistência médica aos militares em África não era compatível com o seu transporte para hospitais de retaguarda muito afastados e às vezes até num outro continente. Assim, criou-se uma primeira intervenção mais próxima que desse aos pacientes melhores hipóteses de sobrevivência. Ora a Guerra Civil colocou esse modelo em prática, uma vez que “as equipas cirúrgicas avançavam até à primeira linha de combate e os soldados eram tratados pouco tempo depois de terem sido

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feridos.”14 Essa nova organização dos serviços médicos militares, que era mais ou menos coincidente nos dois lados da contenda, tinha as seguintes etapas: em primeiro lugar era dada a assistência aos feridos na linha da frente; seguidamente eram retirados de maca até a um “Puesto de Socorro” que estaria situado entre 300 a 700 m; depois eram conduzidos de ambulância (motorizada ou tração animal) até ao posto de classificação e triagem; feita a classificação eram então encaminhados para o hospital de campanha (“Hospital de Sangre”), situado entre 2 a 15 km da frente de combate ou então, se o caso assim o justificasse, os feridos eram evacuados imediatamente; após o tratamento no hospital o paciente iria de ambulância até ao hospital base onde convalesceria, até ser considerado apto ou inapto para retomar o serviço militar15. Quase todas as forças presentes no conflito espanhol implementaram este esquema, exceto as tropas alemãs, que não confiavam nos cuidados médicos dos seus aliados e preferiam evacuar os feridos diretamente para Alemanha via aérea ou marítima. A este respeito a experiência espanhola serviu para a Luftwaffe tomar contacto com os perigos da hipotermia e da hipoxia aquando do transporte dos feridos. De modo a promover este cuidado mais próximo foram criados os primeiros hospitais-móveis (“Hospitales de Sangre”), os verdadeiros percursores do famoso Mobile Army Surgical Hospital (MASH) da Guerra do Vietname. Estes hospitais eram compostos geralmente por vários camiões (conhecidos por auto-chirs) equipados com tudo o que era necessário para o funcionamento de um pequeno hospital, nomeadamente: zona de lavagem e desinfeção, mesas de operações, máquinas de raio-x, pessoal médico, pessoal administrativo, camas, cozinha e outro material considerado fundamental para efetuar rapidamente intervenções cirúrgicas. Esta proximidade da frente de combate fazia a diferença entre a vida e a morte para muitos feridos que não podiam esperar pela evacuação. Contudo, o estar tão perto criou um novo dilema junto do médico pois, “his professional duty lies first and foremost to the most severely wounded, but his militar duty lies in returning the greatest number of fighting fit men to the combat zone as quickly as possible.”16 Uma outra queixa associada a estas unidades era a sua constante mobilidade, porventura a sua maior qualidade, que obrigava a constantes deslocações e sobretudo a montagens e desmontagens, relatando quem lá

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Bandeira, Romero, op. cit., p. 118. Coni, Nicholas, op. cit., p. 107. 16 Idem, p. 112. 15

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trabalhava que dedicavam demasiado tempo a essas atividades em vez do tratamento dos feridos. No que diz respeito à ciência médica foram várias as especialidades que se desenvolveram na Guerra Civil de Espanha, fosse através de médicos espanhóis ou então graças ao numeroso contingente estrangeiro que na sua grande maioria apoiou o lado governamental. A especialidade que conheceu um maior avanço foi a ortopedia/traumatologia, em parte devido à classificação e rápida evacuação dos feridos do campo de batalha, mas sobretudo com as inovações introduzidas por Josep Trueta Raspall que permitiram uma redução substancial da mortalidade. O médico exercia a sua atividade no Hospital de la Santa Creu i Sant Pau em Barcelona aquando do começo da Guerra Civil. Porém, anteriormente tivera a oportunidade de estar alguns períodos na Áustria e Alemanha, locais onde aprofundou os seus conhecimentos sobre o trabalho desenvolvido por Winett Orr e Paul Friedrich naquela especialidade. Ao receber os feridos provocados pelos bombardeamentos sobre a capital catalã, o clínico concluiu que o tratamento das fraturas, especialmente as expostas, devia ser feito o mais rapidamente possível antes que as feridas infetassem. Para conseguir esse objetivo definiu a terapia nos seguintes passos: 1º- limpeza e desinfeção da ferida; 2º - remoção dos tecidos mortos; 3º- nova limpeza; 4º- arranjo da fratura e 5º- engessamento. Esta técnica, que o clínico alegou utilizar desde os finais dos anos 20, foi rapidamente adotada no tratamento de civis e de militares, inclusivamente no lado rebelde, onde a paternidade do método não era atribuída a Trueta. Os resultados da aplicação desta terapêutica foram muito satisfatórios, apresentando o clínico dados relativos a 1073 intervencionados em que só um paciente tivera gangrena17. Neste domínio também convém referir a introdução no conflito espanhol dos primeiros medicamentos antibacterianos, o prontosil, ainda que em quantidades muito limitadas. O avanço dos militares sublevados sobre a Catalunha em 1938 acabou por precipitar a fuga de Josep Trueta para o estrangeiro, mais concretamente para o Reino Unido. Aí teve a oportunidade de continuar a desenvolver a sua atividade na Universidade de Oxford, onde lecionou e pode partilhar conhecimentos sobre os efeitos dos bombardeamentos sobre as populações civis e quais as terapêuticas mais adequadas a utilizar. Essa informação acabou por ser preciosa com o desencadear dos ataques da Luftwaffe sobre as cidades britânicas durante a II Guerra Mundial.

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Brown, Kevin, op. cit., p. 100.

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A cirurgia maxilo-facial foi outra das especialidades que conheceu um certo desenvolvimento devido ao trabalho realizado pelo médico espanhol Moisés Broggi Vallés, que serviu nos serviços médicos das Brigadas Internacionais18. O clínico generalizou o uso da traqueostomia em feridos cujas vias respiratórias haviam sido danificadas, evitando assim muitas mortes por asfixia e dando condições para a estabilização do doente, possibilitando desse modo a realização de uma intervenção mais profunda. Ao nível da hematologia também houve desenvolvimentos, apesar da descoberta dos diversos grupos sanguíneos datar do início do século XX com o trabalho do austríaco Karl Landsteiner. Contudo, foram poucas as transfusões de sangue feitas durante a I Guerra Mundial. Havia falta de material e pessoal especializado para efetuar rapidamente um teste de compatibilidade como era exigido num cenário de guerra. Tal fazia com que os clínicos militares privilegiassem a transfusão direta, o que implicava a presença do dador adequado no local. Durante o conflito criaram-se verdadeiros bancos de sangue, visto que os organismos procediam à recolha, conservação e distribuição. Na zona governamental existiam dois bancos principais, em Madrid e Barcelona, que antes da guerra funcionavam de um modo rudimentar, pois face à ausência de conservação eram obrigados a chamar os doadores sempre que necessitavam de sangue. O conflito iniciado em 1936 e a presença de clínicos estrangeiros em Espanha acabou por levar à reorganização e desenvolvimento dos serviços de transfusão. Na cidade condal foi Federico Durán Jordá o médico responsável pela organização do banco de sangue e criação de instrumentos que possibilitavam a realização de colheitas e transfusões com segurança e até de métodos de conservação que asseguravam a chegada do precioso líquido à frente de combate. O clínico espanhol havia estudado atentamente o trabalho do russo Sergei Yudin (defensor da utilização de sangue cadavérico), o que contribuiu para se consciencializar da importância de existirem reservas de sangue para um período de necessidade. Antes de proceder à colheita o clínico espanhol fazia junto dos dadores testes de despistagem à malária, sífilis e tuberculose, que recebiam senhas para comprarem alguns produtos em troca da sua doação. Pouco antes do fim da Guerra Civil e da fuga de Federico Durán para Londres, onde havia de ajudar a montar um

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Contingentes estrangeiros, na sua maioria de voluntários, que foram lutar para Espanha ao lado das forças governamentais.

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banco de sangue, Barcelona contava com cerca de 30 000 dadores e com mais de 9 000 litros de sangue distribuídos entre o final de 1936 e o início de 193919. Na capital espanhola a dinamização do banco de sangue esteve a cargo de estrangeiros, inicialmente com o médico canadiano Norman Bethune e posteriormente com o britânico Reginald Saxton. Apesar da ajuda prestada aos feridos a verdade é que a organização madrilena apresentou no final do conflito um número de dadores e de colheitas efetuadas bastante inferior ao da realidade catalã20. Ainda assim, o saber obtido em Madrid acompanhou os clínicos, o primeiro na China e o segundo na Birmânia, onde durante a II Guerra Mundial puderam colocar em prática a sua experiência espanhola. A criação de bancos de sangue não foi um exclusivo dos republicanos já que há relatos da existência dos chamados “Centros de Preparación de Sangre Conservada” na zona nacionalista. Nessa mesma zona também esteve durante alguns meses o anestesista neozelandês Robert Macintosh, que desenvolveu a sua técnica em Espanha, onde concluiu ser preferível sedar o paciente enquanto se aguardava pelo efeito da anestesia21. Finalmente, uma outra área da medicina que beneficiou da experiência do conflito espanhol foi a psiquiatria, através do trabalho do médico Emilio Mira y López. O clínico, que também era professor na Universidade Autónoma de Barcelona, centrou o seu estudo nos efeitos psicológicos da guerra nos soldados, sobretudo naqueles que revelavam problemas relacionados com o stress, ansiedade e que muitas vezes desertavam da frente de batalha ou simplesmente se recusavam a combater. O psiquiatra conseguiu demonstrar aos militares que era mais humano e racional retirar aqueles homens do combate e tentá-los recuperá-los na retaguarda em “Casas de reposo”, em vez do definitivo fuzilamento. Como referimos anteriormente a Guerra Civil de Espanha foi um gigantesco campo de treinos, aproveitado por alguns países para testarem os seus homens e máquinas. Outros, menos apetrechados, também procuraram estar a par das novidades enviando missões de estudo para recolher informações, que lhes poderiam ser úteis na eventual modernização e atualização do seu aparelho militar. A proximidade do conflito e a afinidade do regime português para com os militares sublevados propiciou o envio de várias missões de estudo, repartidas entre a Engenharia, os Carros de Combate e o

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Brown, Kevin, op. cit., p. 104; Coni, Nicholas, op. cit., p. 76. Coni, Nicholas, op. cit., p. 74. 21 Brown, Kevin, op. cit., p. 93. 20

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Serviço de Saúde, cujos avanços elencados anteriormente não poderiam deixar de ser analisados pelos militares portugueses.

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3-A Missão Militar Portuguesa de Observação a Espanha O interesse do regime português em acompanhar o que se passava no campo militar espanhol foi manifestado logo no Verão de 1936, altura em que se realizaram os primeiros contactos com os militares sublevados, para que oficiais portugueses acompanhassem algumas das suas unidades em Espanha. Aliás, já em finais de 1934, período em que a Espanha era governada por um coligação de centro-direita, tinha existido uma missão portuguesa às manobras militares na região de León. O despontar da Guerra Civil fez renascer esse interesse, abrindo a possibilidade de Portugal obter informações sobre a máquina de guerra nacionalista, ao mesmo tempo que solidificava as relações com os militares revoltosos, já que uma futura missão podia criar “um canal de comunicação directo com a Junta de Burgos [capital inicial dos rebeldes espanhóis]”22. A primeira missão militar enviada à Espanha nacionalista, entre Outubro e Novembro de 1936, foi conduzida por dois oficiais da força aérea e centrou-se no domínio da aeronáutica. Aquele era o ramo que estava a concentrar mais atenções, tendo em conta os novos aviões utilizados por alemães e italianos na frente de batalha espanhola. Apesar da curta duração os militares portugueses ficaram impressionados com os avanços tecnológicos que puderam observar, aconselhando por isso a realização de “uma missão composta por pessoal das diferentes armas, com carácter permanente, destinada a acompanhar as operações em curso em Espanha”23. Tal desejo só se concretizou nos primeiros meses de 1937, altura em que outros interesses e atores portugueses entraram em jogo. O conflito espanhol teve uma profunda repercussão na sociedade portuguesa, mobilizando alguns dos seus elementos que não se coibiram publicamente de manifestar o seu apoio aos nacionalistas, afirmando inclusive o desejo de uma intervenção portuguesa, ao arrepio do Governo português que procurava manter formalmente uma posição de algum distanciamento. O general Raúl Esteves e o capitão Jorge Botelho Moniz foram das personagens que mais se movimentaram nesse sentido, encetando desde o Verão de 1936 uma forte campanha, recorrendo o primeiro ao diário A Voz e o segundo à antena do Rádio Clube Português, estação da qual era proprietário. O elevado 22

Vieira, Rui Aballe, Tomar o Pulso ao Tigre: Missões Militares Portuguesas em Espanha, entre a vigilância e a cooperação (1934 – 1939), 2011 (Tese de mestrado não publicada), p. 3, disponível em: http://run.unl.pt/handle/10362/7073, 22:37, 3-05-2014. 23 Idem, p. 39.

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comprometimento do capitão deve ser destacado, já que após ter dinamizado a criação da Legião Portuguesa24, estrutura que no seu entendimento deveria servir para a participação de Portugal no conflito, repartiu-se entre a guerra propagandística na sua emissora e as fileiras do exército nacionalista que acompanhava desde os finais de Outubro de 1936. A pressão destas individualidades acabou por ter sucesso em Março de 1937, altura em que o Subsecretário de Estado da Guerra, Fernando Santos Costa criou a Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha (MMPOE), tendo com certeza o aval do então Ministro da Guerra, António de Oliveira Salazar. Os objetivos iniciais estabelecidos retomavam os mencionados anteriormente em 1936, passando pela observação dos novos avanços tecnológicos e táticos, assim como das forças nacionalistas, hipotético inimigo num cenário futuro. A grande novidade residia num outro propósito que só se começou a desenvolver com o conflito, a participação efetiva de portugueses no exército nacionalista. Com esses homens em vista o terceiro objetivo da MMPOE era o de lhes providenciar assistência, curiosamente numa altura em que o Estado Novo já havia proibido o alistamento e recrutamento de portugueses para a Guerra Civil de Espanha25. À frente da MMPOE ficava um dos seus principais promotores, o general Raúl Esteves. A primeira fase da missão (Março de 1937 - Março de 1938) foi marcada pelo voluntarismo e amadorismo dos cerca de 30 militares que foram enviados a Espanha. Tal situação era notória nas críticas do major-médico Américo Pinto da Rocha, ao admitir que os oficiais faziam “«lo que les daba la gana» para não ficarem adinâmicos”26 face à ausência de liderança adequada. No mesmo relatório submetido aos seus superiores o militar avançava algumas soluções para dinamizar a missão, nomeadamente o fornecimento de meios de transporte para proceder a uma observação efetiva, assim como o envio de mais oficiais das diversas armas do exército num sistema de rotatividade, considerações que iriam ser bem acolhidas por parte do Subsecretario de Estado da Guerra. A reorganização da MMPOE (Março de 1938) determinará a sua divisão em duas secções, uma de observação e a outra de assistência, ressalvando o Estado Português que os militares desta última secção deviam manter o estatuto de observadores, não se alistando no exército nacionalista, evitando assim problemas

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Decreto- Lei nº 27 058 de 30 de Setembro de 1936. Decreto-Lei nº27 529 de 20 de Fevereiro de 1937. 26 Vieira, Rui Aballe, op. cit., p. 59. 25

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diplomáticos em caso de captura. A Secção de Assistência seria chefiada pelo capitão Jorge Botelho Moniz. O novo figurino da MMPOE resultou num aumento dos efetivos portugueses em Espanha, que passaram para cerca de 160 elementos e sobretudo num reforço das missões de observação e de estudo, que conhecerão uma forte dinâmica no derradeiro ano do conflito. Fevereiro foi o mês escolhido para o envio das missões de estudo de Engenharia, de Carros de Combate e do Serviço de Saúde. Como foi explicado anteriormente a Guerra Civil de Espanha, para além das inúmeras novidades técnicotáticas, deu também a conhecer inovações ao nível da medicina militar que chamaram a atenção do exército português, motivando por isso a realização de uma missão de estudo a Espanha entre Fevereiro e Março de 1939.

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4-A missão de estudo ao Serviço de Saúde A génese da missão de estudo pode ser encontrada numa proposta do major-médico Américo Pinto da Rocha, datada de Agosto de 1938, ao capitão Jorge Botelho Moniz, chefe da Secção de Assistência da MMPOE. Na missiva o oficial médico solicitava a criação de uma missão de estudo com os seguintes objetivos: “1º Observar, relatar e tratar em colaboração com os médicos dos hospitais espanhóis, todos os feridos e doentes dessa Secção [Secção de Assistência da MMPOE]. 2º Visitar periodicamente os militares nas unidades. 3º Acompanhar intimamente as unidades que estejam em combate e que tenham elementos dessa secção, assistindo-se-lhes médica e moralmente. 4º Estudar todos os assuntos médico-militares ao seu alcance, quer sobre o ponto de vista técnico, quer sob o ponto de vista da organização e funcionamento do Serviço de Saúde.”27 Contudo e ao contrário do que se iria verificar em Fevereiro-Março de 1939, o oficial pretendia assumir a missão individualmente sem o acompanhamento de mais ninguém. Desde cedo que o major-médico Américo Pinto da Rocha havia demonstrado um grande voluntarismo, tendo integrado os serviços de saúde nacionalista logo em Outubro de 1936, conforme indicava uma informação do Inspector General de Sanidad Militar Del Cuartel General del Generalísimo. Da análise ao processo militar de Américo Pinto da Rocha também se ficou a saber que o médico participara ativamente nos “Hospitales de Sangre”, fazendo inclusive nos primeiros meses de 1937 parte da equipa cirúrgica que estivera na ciudad Universitaria (Madrid) e cujos membros mereceram uma condecoração coletiva do exército nacionalista pelo seu desempenho, a Cruz Laureada de S. Fernando. Não há indicações sobre a aceitação ou não da proposta feita pelo major-médico ao chefe da Secção de Assistência da MMPOE, porém, existe um pequeno relatório datado de Outubro de 193828, onde o oficial tecia algumas considerações sobre “O transporte dos feridos a dorso no exército nacionalista espanhol.”29 Inicialmente o documento era acompanhado por inúmeros desenhos do equipamento utilizado e que acabaram por ser retirados. Nas conclusões do relatório o clínico assume o seu desagrado pelo transporte dos feridos no dorso de animais, que considerava ser

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AHM/DIV/1/38/48/04, Processo individual do major Américo Pinto da Rocha, Carta de 13 de Agosto de 1938 ao Chefe da Secção de Assistência da Missão Militar de Observação em Espanha. 28 AHM/DIV/1/38/47/02, Relatório do major-médico Américo Pinto da Rocha, 14 de Outubro de 1938. 29 Idem.

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“incómodo para o ferido, perigoso pelas quedas e violento para o animal.”30 O médico recorria à sua experiência no terreno, relatando ter assistido a muitas situações onde os feridos lhe pediram para não serem transportados daquela maneira, acrescentando ser preferível efetuar a deslocação dos pacientes através dos maqueiros tradicionais. Ainda assim, rematava as suas conclusões considerando que havia margem de melhoria no equipamento empregue pelos espanhóis. Fevereiro de 1939 foi o período do frenesim das missões de estudo portuguesas, com a concretização da missão de estudo ao Serviço de Saúde dos nacionalistas. Foram escolhidos quatro oficiais médicos, alguns com experiência de campanhas coloniais e da I Guerra Mundial. A chefia da missão ficava a cargo do major-médico João Calvet de Magalhães Marques da Costa, à data chefe da 3ª repartição da Direcção do Serviço de Saúde Militar do exército português e que tinha dirigido o Hospital de Chomba (Moçambique) durante a participação portuguesa na Grande Guerra. O segundo elemento mais graduado da missão era o já referido major-médico Américo Pinto da Rocha, antigo membro do 1º grupo da Companhia de Saúde do Corpo Expedicionário Português (CEP) e possuidor de um vasto conhecimento sobre o conflito espanhol sendo referido no relatório final como “o guia e introdutor”31. Acompanhavam-nos os capitães António Alberto Bressane Leite Perry de Sousa Gomes e José Júlio de Sousa Santa Bárbara. O primeiro, à data professor numa escola regimental do exército, também havia feito parte do CEP (2º grupo da Companhia de Saúde). Já no que toca ao segundo oficial não foram encontradas informações biográficas no processo do Arquivo Histórico Militar, o único que existe, pois no Arquivo Geral do Exército nada há relativo a este oficial, sabendo-se apenas que foi Diretor do Hospital Militar de Évora nas décadas de 20 e 30 do século XX. Da análise do relatório da missão de estudo ficámos a saber que os militares partiram de automóvel de Lisboa no dia 15 de Fevereiro em direção a Burgos, onde no dia seguinte se encontraram com o major-médico Américo Pinto da Rocha. Com o grupo reunido nessa cidade visitaram então o “Parque de Sanidad Militar” assim como o Hospital Provincial. A próxima etapa da viagem levou-os até Saragoça, apesar de terem feito uma paragem não programada em Logroño. Na cidade aragonesa visitaram as seguintes instalações hospitalares: “Servicio Oficial de Transfusion de Sangre Conservada”, “Hospital marroquino”, “Hospital de regulares”, “Hospital italiano”, 30 31

Idem. AHM/DIV/1/38/47/02, Relatório da missão de estudo do serviço de saúde em Espanha, p. II.

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“Hospital da Faculdade”. Nessa localidade também puderam visitar um “comboiosanitário” [hospital móvel] que lá estava estacionado e várias pequenas fábricas de equipamento médico. No dia 23 de Fevereiro o grupo dirigiu-se para Barcelona com o intuito de “estudar in loco o Serviço de Saúde da zona vermelha”32, inspecionar o hospital-móvel “José António Primo de Rivera” e visitar um fabricante de instrumentos cirúrgicos. Dia 26 à noite encetaram o caminho de regresso a Portugal com uma nova paragem em Saragoça, onde vistoriaram as instalações fabris que produziam o equipamento motorizado para os hospitais-móveis. Concluída a missão o grupo separou-se no dia 1 de Março, com o major-médico Américo Pinto Rocha a ficar naquela localidade espanhola, enquanto os outros elementos regressaram de automóvel até Burgos, local onde embarcaram num comboio em direção a Lisboa, chegando à capital portuguesa no dia 5 de Março. Através da leitura da parte introdutória do relatório percebe-se que grande parte do tempo passado em Espanha foi dedicada às viagens e sobretudo ao arranjo dos meios de transporte motorizados, pouco fiáveis e que deixaram por várias vezes a missão apeada. Os próprios militares utilizaram as primeiras páginas para a descrição das peripécias que condicionaram o seu trabalho e os impediu de efetuar outras deslocações a instalações consideradas importantes. Quanto ao relatório propriamente dito está dividido em seis partes distintas, cada uma referente a um determinado aspeto/equipamento dos serviços de medicina militar. Na parte “A-Estudo sumário da organização actual do Serviço de saúde Espanhol”33, os militares caracterizaram o serviço criado pelos nacionalistas, destacando as seguintes facetas: “maleabilidade”34, “velocidade”35 e “económica”36. Para além de justificarem aqueles adjetivos a missão retratou a organização do serviço, muito parecida à referida na parte inicial deste trabalho: “1ºPosto de Socorro de Batalhão; 2º Posto de Classificação (Posto de Socorro de Divisão); 3º Hospital de Sangre/Grupo Cirúrgico Avançado; 3º Centros de Tratamento/ Hospital de Evacuação”37. Traçado o quadro orgânico da assistência em combate, os militares

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Idem, p. 2 Ibidem. 34 Ibidem. 35 Ibidem. 36 Ibidem. 37 De salientar que o relatório não tem nenhum glossário nem os seus autores se preocuparam em esclarecer as abreviaturas que fizeram relativas ao esquema do serviço de assistência nacionalista, deixando o leitor com uma difícil missão de interpretação. 33

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centraram-se no aspeto central da sua missão, “B-Estudo do material”38 que ocupou quinze das vinte e quatro páginas do relatório, graças a diversos desenhos dos equipamentos utilizados pelos nacionalistas. Esses esboços aparentemente foram retirados do relatório apresentado pelo major-médico Américo Pinto da Rocha em Outubro de 1938. A atenção da missão centrou-se na descrição do material utilizado em cada uma das etapas no esquema de assistência aos feridos em combate, começando pelo Serviço de Socorro de Batalhão. Salientava-se que o equipamento usado num primeiro momento (pensos, bolsa de enfermeiro) era transportado por solípedes ou então pelo pessoal do Serviço de Saúde e raramente por viaturas motorizadas. Já a evacuação dos feridos era feita a pé, se fosse necessário com a rotatividade de várias equipas de maqueiros, seguindo depois, se possível, em viaturas motorizadas que estavam colocadas perto da frente. Neste domínio o relatório da missão descreveu os três modelos motorizados utilizados pelos nacionalistas: o extra-ligeiro com capacidade para seis a sete feridos com dois em maca; o ligeiro ou médio que albergava dez pacientes com a possibilidade de quatro irem deitados; o pesado que podia levar cerca de vinte sete feridos sentados ou então seis com outros seis em maca. Outras características destacadas pelos relatores passava pelas viaturas não terem nenhum sistema de aquecimento ou arrefecimento dos passageiros e de não ostentarem os símbolos da assistência médica (Cruz Vermelha) sendo todas camufladas. O transporte com recurso a solípedes também foi abordado, pois era muito utilizado em Espanha nas zonas montanhosas, sendo disponibilizada informação com desenhos e indicação das dimensões das artolas utilizadas na evacuação de feridos sentados e deitados. Outros meios de transporte elencados foram o comboio-sanitário e o grupo cirúrgico móvel. O primeiro, visitado em Saragoça, era destacado pela sua capacidade de evacuação, já que poderia transportar cerca de seiscentos feridos, com oitenta deitados. Segundo a missão este era um meio muito utilizado na zona de Saragoça, onde aparentemente operavam doze destas composições. O grupo cirúrgico-móvel tinha como principal objetivo estabelecer um hospital de campanha (Hospital de Sangre) perto da frente de batalha e não tanto transportar os feridos, apesar de ter capacidade para tal. A composição que visitaram baseava-se em dez viaturas pesadas, que se dividiam nas seguintes valências: salas de operação, farmácia, administração, hospitalização, sala de aparelhos (raio-x, gerador) e transporte de equipamento. Uma

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AHM/DIV/1/38/47/02, Relatório da missão de estudo do serviço de saúde em Espanha, p.3.

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vez chegados ao local as viaturas eram colocadas numa disposição particular, permitindo fazer uma ligação entre as salas de operação e a zona de hospitalização com recurso a lona. Todas as viaturas tinham iluminação e aquecimento, cuja energia poderia ser fornecida localmente ou gerada por meios próprios de modo a assegurar o permanente funcionamento deste hospital de campanha. Era ainda indicado que geralmente o hospital era montado em zonas arborizadas para escapar à deteção e bombardeamentos aéreos, daí a justificação pela pintura camuflada dos veículos. No que toca a efetivos humanos a missão contou os seguintes elementos no grupo cirúrgico-móvel que teve a oportunidade de visitar: três médicos, oito enfermeiros, um farmacêutico, um capelão, quatro maqueiros e dez motoristas. Numa apreciação global ao grupo cirúrgico-móvel a missão portuguesa destacava a sua componente prática, que permitia a montagem e desmontagem do hospital em menos de trinta minutos e a mobilidade, pois o hospital que visitara fizera “em 34 dias, 23 estacionamentos. Durante esses dias percorreu 1.200 quilómetros”39. Ficavam ainda algumas notas relativas a futuros melhoramentos com a inclusão de mais sete viaturas, que aumentariam o número de camas e de pessoal médico, assim como a introdução de cozinha e zonas de descanso para médicos e enfermeiros. Ainda no segundo ponto do relatório os médicos portugueses teceram algumas considerações sobre o serviço de saúde republicano e italiano. O primeiro foi caracterizado de um modo muito sucinto, salientando-se apenas a preferência pela evacuação dos feridos da frente de combate através de meios motorizados. Já o caso italiano centrou-se no esquema de evacuação dos feridos, semelhante ao nacionalista exceto nos nomes e na análise do seu hospital de campanha. As instalações italianas eram rudimentares, em comparação com o grupo cirúrgico-móvel dos nacionalistas, consistindo em seis barracas de lona suspensas com traves de madeira. Contudo, acabava por ter um maior número de camas, cerca de cinquenta, o dobro da capacidade do hospital nacionalista. Na parte final deste ponto a missão ocupou-se em indicar os vários aparelhos de raio-x móveis que encontraram, assim como os equipamentos fabricados nas diversas oficinas de Saragoça, remetendo mais informações para catálogos que deixavam em anexo ao relatório e que já não constam no processo.

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AHM/DIV/1/38/47/02, Relatório da missão de estudo do serviço de saúde em Espanha, p. 12.

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A terceira parte da análise dos militares centrou-se na visita que fizeram ao “CServiço de transfusão de sangue conservado”40 em Saragoça, um dos mais de vinte da zona nacionalista. Os relatores preocuparam-se em anotar os equipamentos que eram usados para proceder à recolha, salientando especialmente a utilização de equipas motorizadas, que transportavam o sangue em condições de conservação assim como o pessoal para os locais onde eram necessários. Os militares portugueses ficaram muito impressionados com a organização do serviço de transfusão, avançando que podia servir de modelo a Portugal, destacando a importância de uma valência daquelas quer “na paz ou na guerra”41. Outro dos aspetos analisados pelos oficiais-médicos foi o funcionamento dos hospitais na zona nacionalista, “D- Algumas considerações sobre a organização, funcionamento e aparelhagem dos hospitais e centros de tratamento, visitados pela missão”. O relatório apresentou um vasto leque de instalações hospitalares fruto das diversas localidades por onde os militares passaram (Burgos, Logroño, Saragoça, Barcelona). Do Hospital Provincial de Burgos destacaram o uso de um aparelho que fazia a anestesia local recorrendo a soluto de novocaína, desconhecido até então para os integrantes da missão. De Saragoça salientavam o cuidado prestado aos feridos marroquinos42, que tinham um espaço próprio onde eram respeitados os seus rituais religiosos, nomeadamente a confeção das suas refeições. Do Hospital italiano sobressaía o carinho e a humanidade demonstrados pelo pessoal para com os pacientes, mas sobretudo o bom apetrechamento das instalações. Este último era a principal distinção do Hospital da Faculdade, desde a lavandaria, à cozinha e às salas de operações que eram simplesmente “sumptuosos” 43. A este propósito os militares portugueses visitaram em Saragoça o estabelecimento de onde provinha a maior do equipamento hospitalar. Já no Hospital La Costa – Centro de Mecanoterapia e Ortopedia os relatores ficaram “maravilhados”44 com a qualidade de tratamentos ortopédicos proporcionados, recorrendo a aparelhos que eram feitos em Espanha. Os médicos portugueses davam um reconhecimento especial ao Diretor do Serviço de Ortopedia, que se prontificara vir a Portugal formar clínicos e técnicos para montar um serviço semelhante. Dos hospitais de Barcelona as impressões registadas não eram as melhores, sendo apontadas a falta de 40

Idem, p.18. Idem, p. 18. 42 Os militares sublevados, que desencadearam o golpe desde o Marrocos espanhol, acabaram por incorporar nas suas forças entre 50 000 a 100 000 marroquinos. 43 AHM/DIV/1/38/47/02, Relatório da missão de estudo do serviço de saúde em Espanha, p. 20. 44 Idem. 41

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meios e sobretudo de limpeza, fruto da ocupação dos “vermelhos” 45, que segundo os relatores criaram um clima onde “ninguém queria trabalhar ou limpar, pois a disciplina e a obediência eram nulas.”46 Num outro ponto do relatório, “E-Higiene geral – aparelhagem estudada em Burgos, Saragoça e Barcelona”, os médicos destacaram alguns dos equipamentos utilizados pelos nacionalistas, nomeadamente aqueles ligados ao aquecimento, iluminação. Também analisaram o esquema do serviço de higiene de um Grupo de Socorro de Divisão, enumerando o material utilizado para efetuar os banhos e a desinfeção das roupas. Neste domínio da higiene ainda houve tempo para destacar as campanhas de vacinação nacionalista (tétano, tifo e varíola), que segundo os militares portugueses haviam contribuído para uma quase eliminação de novos casos ao longo da Guerra Civil. Finalmente, no último ponto o relatório, “F- Visita à chefatura Provincial de Aragão da Falange Espanhola”, os militares analisaram o modo como aquela força política, bem similar à Legião Portuguesa, prestava a sua assistência aos seus membros. Relatava-se que os falangistas podiam dispor de subsídios em caso de doença, de cuidados médicos e de escolas para os seus filhos. A missão acabou por visitar um destes estabelecimentos de ensino, onde constatou que os alunos eram selecionados com base em ” “Tests” psicológicos de tipo americano e belga”47 que captavam os mais aptos e rejeitavam os menos capazes. O relatório foi finalizado com breves considerações, onde os clínicos reconheciam a utilidade da missão, sem deixarem novamente de referir os problemas logísticos, que na sua opinião limitaram o seu trabalho. Tais constrangimentos terão causado a quase ausência de conclusões no relatório, não sendo de estranhar que os oficiais-médicos sugerissem a continuação do trabalho da missão, mas agora em “outros S.S. [Serviços de Saúde] europeus, ou em estabelecimentos productores” 48, de modo a poderem contactar com as mais recentes técnicas e tecnologias aplicadas na medicina.

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Idem, p. 21. Ibidem. 47 Idem, p. 23. 48 Idem, p. 24. 46

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5-Conclusões Tradicionalmente o legado da Guerra Civil de Espanha costuma centrar-se no número de mortos, feridos e perseguidos pelos militares sublevados que iriam dar corpo ao regime franquista. Contudo, a análise do conflito sob o ponto de vista da medicina militar permite a realização de um outro tipo de análise, que acaba por contribuir para o alargamento do conhecimento relacionado com os avanços médicos, num período tão marcante e decisivo para o século XX. Vimos que o palco espanhol terá sido o grande responsável pela afirmação da medicina militar, aproveitando o dinamismo provocado pela I Guerra Mundial na maior parte do pessoal médico. Espanha ofereceu um excelente campo de treinos às teorias, aos homens e ao material, especialmente com a participação no conflito das mais poderosas nações europeias, não obstante se ter tratado de uma guerra civil. O povo espanhol, apesar dos sacrifícios a que foi submetido, beneficiou em termos médicos devido à interligação entre a medicina militar e a civil, fruto da proximidade entre civis e militares que permitiu uma rápida adoção dos avanços técnicos registados. Por outro lado, essa difusão científica não se deu só no plano interno, pois com a participação de diverso pessoal médico estrangeiro e a posterior fuga de pessoal especializado do lado republicano, possibilitaram uma rápida e assertiva divulgação desses novos progressos médicos a uma escala global. Porém, e fazendo uma análise fria e calculista podemos afirmar que a Guerra Civil acabou por ser um sucesso ao nível da medicina, nomeadamente na vertente militar, uma vez que contribuiu decisivamente para salvar milhares de vidas naquele conflito, mas sobretudo possibilitou a salvação de milhões nos conflitos seguintes. O impacto dos desenvolvimentos registados no conflito espanhol foi uma das razões que motivou o exército português a enviar uma missão de estudo àquele cenário bélico. As outras, mais dissimuladas, passavam pela observação do exército nacionalista, um inimigo potencial num futuro próximo e sobretudo pela assistência aos portugueses que haviam decidido lutar ao lado dos militares sublevados. Tal explica a criação tardia da Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha, em Março de 1937, uma vez que o interesse manifestado pelos militares portugueses já datava do 23

Verão de 1936. A vertente de observação da missão portuguesa revelou ao longo da sua vigência um carácter voluntarista e pouco metódico, visível na falta de meios humanos e materiais para proceder a um trabalho efetivo, que resultasse na obtenção de informações para o exército português. Tal foi novamente percetível com o envio de várias missões de estudo em Fevereiro de 1939, quando a maior parte dos contingentes militares estrangeiros já haviam abandonado o terreno e sobretudo, porque a conclusão da guerra era questão de semanas, o que impediria a realização de um trabalho mais aprofundado e até de novas observações. A missão de estudo do Serviço de Saúde acabou por ser a concretização dos desejos do major-médico Américo Pinto da Rocha, possuidor de um detalhado conhecimento do cenário de guerra espanhol, visto que estava ao serviço do exército nacionalista desde os finais de 1936. O seu afã e espírito de observação já o tinham conduzido à elaboração de um pequeno relatório no final de 1938 e que na nossa opinião serviu de base ao relatório de 1939. Quebrando um pouco a norma de aventureirismo e voluntarismo das missões portuguesas à Guerra Civil de Espanha, os profissionais que foram selecionados para a missão de estudo do Serviço de Saúde possuíam um conhecimento efetivo sobre a medicina militar, já que três dos quatro elementos haviam exercido funções médicas durante a participação portuguesa na I Guerra Mundial. Numa primeira análise ao trabalho da missão, achamos que ela cumpriu o seu objetivo principal, ao reunir inúmeras informações sobre o equipamento médico utilizado no conflito, disponibilizando inclusive catálogos de material. Todavia, existem dúvidas sobre se esse levantamento foi realizado em Fevereiro – Março de 1939 ou se já teria sido feito pelo major-médico Américo Pinto da Rocha. Um outro aspeto bem-sucedido passou pelo contacto e conhecimento com a organização utilizada na assistência aos feridos em combate pelos vários serviços de saúde visitados. Os médicos portugueses puderam conhecer as técnicas e equipamentos mais avançados da altura, ficando inclusive com indicações dos lugares/estabelecimentos onde poderia ser adquirida a aparelhagem. Ainda assim, e apesar das informações recolhidas e da autoavaliação positiva da missão, a verdade é que ela esteve muito condicionada por problemas logísticos e que obrigaram os oficiais a ficarem literalmente a pé. Percebe-se pela leitura do relatório que algumas deslocações e observações foram comprometidas e ficam dúvidas sobre se de facto efetuaram todas as mencionadas. Tais suspeitas estão relacionadas com o aproveitamento do relatório de 1938 do major-médico Américo 24

Pinto da Rocha. O teor daquele documento centrava-se sobretudo no transporte e assistência providenciado aos feridos, por coincidência o tema central do relatório de 1939. Não é por isso de estranhar que todos os desenhos do primeiro tenham sido retirados e aproveitados para o segundo documento, adensando desse modo as suspeitas sobre o efetivo trabalho da missão. A isto juntaram-se as parcas conclusões do relatório de 1939, que no fundo só aponta para a necessidade de realização de novas missões. No que toca ao impacto da missão de estudo à Guerra Civil na medicina militar portuguesa é difícil tecer quaisquer considerações. Não existem trabalhos que tenham feito um estudo sério sobre o assunto, o que nos deixa limitados a uma análise da carreira dos oficiais da missão. Após a sua participação na missão, o major-médico Américo Pinto da Rocha continuou ligado à medicina militar, assumindo em 1940 o cargo de diretor do Hospital Militar Principal em Lisboa, funções que já havia exercido em 1936 no Hospital Auxiliar de Belém. Entre 1945 e 1954 foi Diretor dos Serviços de Saúde do Exército. O capitão António de Sousa Gomes, que antes da missão era professor numa Escola do Regimento, passaria a ser diretor da Escola de Cabos no início da década de 40 e em 1943 prestava serviço na área da dermato-sifilografia até 1944, altura em que foi exonerado. Já o major-médico João Calvet de Magalhães, que era chefe da 3ª Repartição da Direcção do Serviço de Saúde Militar em 1937, passou parte dos primeiros anos da década de 40 envolvido numa missão de estudo relacionada com o armamento e numa comissão que dizia respeito aos fundos do exército. Só em 1946 é que retomaria a ligação com a medicina militar, altura em que foi nomeado professor eventual de um curso de formação do Serviço de Saúde. No ano seguinte passaria a ser diretor da Direcção do Serviço de Saúde Militar, cargo que acumulou e alternou com as funções de inspetor. Já nos anos 50 acabou por integrar uma comissão de estudo e atualização relativa à sanidade em campanha. No que toca ao capitão José Júlio de Sousa Santa Bárbara pouco há a dizer devido à ausência de dados no processo. As únicas informações encontradas referem que ele foi o diretor do Hospital Militar de Évora em dois períodos anteriores à missão (1927-1929 e 1932-1933). Analisados os percursos concluímos que a participação daqueles militares na missão não se traduziu em alterações significativas na sua carreira, pois as respetivas progressões deram-se em funções que anteriormente tinham assumido ou que estavam relacionadas. Suspeitamos que esta indiferença também se abateu na medicina militar portuguesa, não obstante o contacto com as múltiplas inovações registadas no conflito espanhol. A explicação para tal reside na análise já efetuada sobre as outras missões de 25

estudo à Guerra Civil espanhola e que resultaram, na sua grande maioria, na inexistência de alterações, pois Portugal não tinha os recursos financeiros para apetrechar e atualizar a máquina militar em todas as suas vertentes.

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Índice

1-Introdução .................................................................................................................. 1 2-Medicina militar: uma breve análise histórica ........................................................... 2 3-A Missão Militar Portuguesa de Observação a Espanha ......................................... 13 4-A missão de estudo ao Serviço de Saúde ................................................................ 16 5-Conclusões ............................................................................................................... 23 Fontes .......................................................................................................................... 28 Bibliografia ................................................................................................................. 28

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Fontes Arquivo Histórico Militar - AHM/DIV/1/38/48/04, Processo individual do major Américo Pinto da Rocha. - AHM/DIV/1/38/51/25, Processo individual do capitão António Alberto Bressane Leite Perry de Sousa Gomes. - AHM/DIV/1/38/51/23, Processo individual do major João Calvet Magalhães Marques da Costa. - AHM/DIV/1/38/51/24, Processo individual do capitão José Júlio Sousa de Santa Bárbara. - AHM/DIV/1/38/47/02, Relatório da missão de estudo do serviço de saúde em Espanha.

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