A modernidade vista por outros olhares_Caderno Prosa e Verso_O Globo_2015
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A MODERNIDADE VISTA POR OUTROS OLHARES Resenha publicada no Caderno Prosa e Verso, Jornal O Globo, em 28/02/2015. OS OSSOS DO MUNDO (Flavio de Carvalho, Editora Unicamp) MODERNIDADE TODA PROSA (Marília Rothier Cardoso e Eneida Maria de Souza, Casa da Palavra/Leya)
Duas publicações recentes trazem para a atualidade a prosa moderna em sua espessura histórica e reflexiva, revelando a complexa temporalidade da escrita modernista e os desafios de repensar esse legado literário do ponto de vista contemporâneo: Os ossos do mundo (Editora Unicamp) do artista e arquiteto Flavio de Carvalho e Modernidade toda prosa (Casa da Palavra/Leya) de Marília Rothier Cardoso e Eneida Maria de Souza. Ossos do Mundo é a formidável coleção de textos escritos por Flavio de Carvalho no decurso de uma viagem a Europa realizada em 1934 para apresentar um trabalho no VIII Congresso de Filosofia e Psicotécnica, do qual também participariam o psicólogo William Stern, Benedeto Croce (que acabou faltando ao evento) e Gaston Bachelard. Deste, Carvalho transcreve a seguinte colocação: “Os conceitos importantes não saíram da observação, mas sim do cérebro humano para contradizer a observação”, frase que de certo modo descreve também um dos métodos reflexivos que perpassam a prosa de Ossos do Mundo. Escrita durante a viagem e ao longo de 1934, a primeira versão do livro sai em 1936. O autor continuou a modificar os originais até 1937, quando concluiu a versão inglesa intitulada Southern Meditations. Sob coordenação cuidadosa de Flavia Carneiro Leão e Rui Moreira Leite a Editora da Unicamp apresenta-‐o agora a versão revista e ampliada, baseada nos arquivos do autor e na versão inglesa encontrada na biblioteca da Universidade de Yale. A viagem que começa no Rio, em hidroavião, prossegue pela costa brasileira com paradas em Vitória, Caravelas, Ilhéus, Salvador, Aracaju até Recife onde embarcaria para Portugal. A arquitetura colonial motiva os primeiros comentários de teor estético-‐cultural do narrador que se mostra particularmente impactado pelo interior “intrauterino” e cintilante das igrejas jesuíticas. Sobre o a igreja de São Francisco, em Salvador, diz que é “o rococó mais dourado e mais estranho do mundo” onde as figuras alucinadas emergem do “engruvinhamento barroco” com olhos extáticos, medonhos, excitantes. Não perde uma chance de fazer analogias entre o culto religioso e a pulsão sexual, de modo que o templo da fé é frequentemente associado à imagem de um útero, com função “protetora e maternal”. Do Congresso registra a algazarra dos debates científicos contaminados por investidas hitleristas comentadas com implacável ironia. Porém são as dobras reflexivas da modernidade, de um olhar fascinado pelos rastros materiais das
civilizações -‐ palavra insistente ao longo do livro -‐ que sobressaem nesse livro de viagens atravessado pelo ímpeto arqueológico. Em vários aspectos o teor das observações ali apresentadas antecipa a virada antropológica da História da Arte. Os relatos se abrem com o medo de voar, e o medo de voar é o medo da máquina e de sua falibilidade intrínseca. Tomado pela vertigem pânica das alturas, reaviva seus conhecimentos de engenheiro e passa a medir com os olhos juntas, tirantes e barras, calculando a possibilidade do desastre. Esse medo alucinógeno tem função cognitiva, expõe o narrador à sua própria instabilidade perceptiva arrastando com ele o leitor para um espaço moderno intenso, precário e bem pouco heróico, que transforma a escrita numa espécie de processo supersticioso e metareflexivo. À compreensão do mundo – e não apenas o Velho Mundo -‐ como campo arqueológico a ser explorado a partir do cruzamento de diversos saberes e intuições, soma-‐se a experiência da viagem tomada como ponto de vista privilegiado para refletir amorosamente sobre os resíduos das civilizações. Assim o gesto iconoclasta é visto simultaneamente como uma revolta viril e benéfica e sintoma da dificuldade de lidar com a atração mórbida pela “rugosidade vaginal do acúmulo do passado”. Interroga também o objeto em sua dimensão antropológica, mágica e fetichista, fóssil enigmático de uma arqueologia porvir. A “arqueologia malcomportada” a que aspira deveria ser capaz de absorver do cientista a curiosidade e a precisão, porém sem abdicar da força poética, único dom capaz de fazer vislumbrar a verdade dos ossos do mundo ali onde ela já não pode ser vista ou deduzida. Fascinante na variedade de tons e de focos de atração (o interior hiper-‐dourado das igrejas, o olhar fálico dos ciganos, turistas vegetarianos, a importância do canto na cultura eslava, a qualidade do papel higiênico de cada povo) a prosa dessas viagens vai do opinativo ao filosófico, do descritivo ao lirismo mordaz e deste a ao escárnio. Embora não aborde diretamente o livro de Carvalho, Modernidade toda prosa, certamente contribui para uma compreensão menos viciada do seu texto. O livro de Rothier e Souza constitui rara prática de crítica a quatro mãos. Da historiografia tradicional, recusam, com serenidade e lucidez a ênfase na estética da ruptura, a mania classificatória e a ambição totalizante, preferindo a revisão crítica inclusiva, descentrada e descanonizante da prosa moderna. Descentrada porque recusam tanto a ênfase no eixo Rio-‐São Paulo quanto o binômio ruptura x tradição, que por muito tempo organizou a historiografia do moderno; inclusiva por tomarem a prosa em acepção ampla (crônica, novela, romance, ensaio, memória, prosa de viagem, poema em prosa, prosa poética, etc.) e porque tratam com o devido cuidado a faceta menos solar, progressista e futurista de nossa prosa (Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Pedro Nava, Jorge de Lima, Murilo Mendes); e, enfim, descanonizadora por desenhar um quadro menos óbvio da prosa moderna, e porque em franca oposição à estratégia ressentida da inclusão canonizadora que reivindica ad infinitum um lugar ao sol para os excluídos. Sem visar uma síntese ou
uma unidade orgânica da modernidade, analisam-‐na em sua situação periférica sem no entanto ceder a ideia de inferioridade ou atraso, mostram mais uma vez que as desestabilizações do modernismo são coletâneas do seu projeto teleológico. Desarmada a arapuca teleológica, a escrita em prosa dos modernos emerge em sua singularidade heterogênea e paradoxal. Pedro Nava transforma-‐se em “aliado substancial” das autoras já que os seus seis volumes de memorias já repassam a modernidade mineira retirando dela a roupa justa modernista e ampliando sua compreensão concreta. Retomam vozes críticas cruciais para a ampliação da discussão do fenômeno moderno. Jean-‐François Lyotard torna-‐se intercessor importante na percepção da pós-‐modernidade como dobra reflexiva do moderno, mas é nos pares brasileiros e latino-‐americanos que as autoras encontram o campo de ressonância mais animado para sua revisão crítica e historiográfica. Absorvem e dialogam propostas recentes de Carlos Eduardo Capela, Paulo Herkenhoff, Florencia Garramuño mas também com Flora Süssekind de Cinematógrafo de Letras (1987) no qual desfazia o ilusório conforto cronológico da partilha entre autores modernos e pré-‐modernos no Brasil. São também plenamente justificadas as muitas retomadas do pensamento de Silviano Santiago a cujas releituras do modernismo inclusive dedicam um capítulo. A partir do final dos anos 70, o crítico empreendeu uma importante releitura dos paradoxos do modernismo brasileiro a partir da autocrítica do movimento realizada por Mário de Andrade nos anos 40 tornando visível e produtiva a diferença entre modernização e modernidade.
Resta salientar que ambos livros são o resultado de trabalhos de investigação em arquivos de diferentes instituições brasileiras e, direta e indiretamente, vinculam-‐se à pesquisas acadêmicas de longa duração. Neste sentido, são também antídotos contra o preconceito tão atual que prefere ver na crítica e na pesquisa acadêmicas ora um luxo sumariamente descartável ou substituível, ora um exercício de sadismo intelectual. Laura Erber
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